31 de outubro de 2017

A exceção americana

A seleção de futebol masculino dos EUA é inequivocamente excludente. Pode ser por isso que ela não vai à Copa do Mundo.

Stephen Wood


Christian Pulisic (EUA) reage à derrota para Trinidad e Tobago em 10/10/2017. Ashley Allen/Getty Images

Tradução / No dia 10 de outubro, o time nacional de futebol dos Estados Unidos não conseguiu se qualificar para a próxima Copa do Mundo. Tudo que eles precisavam para jogar na Rússia 2018 era um empate com Trinidad e Tobago; em vez disso, eles fizeram uma das performances mais apáticas de uma campanha de qualificação já sem graça. Quando soou o apito final, os estado-unidenses tinham fracassado num campo encharcado em Trinidad e Tobago, e ficaram fora da Copa do Mundo pela primeira vez desde o governo Reagan.

Há muitos responsáveis pelo desastre da desclassificação e muitas críticas foram direcionadas ao presidente da US Soccer Federation (USSF) [Federação de Futebol dos EUA], Sunil Gulati, que já era uma figura controversa. Por um lado, ele presidiu alguns dos maiores sucessos do futebol dos EUA, incluindo a vitória da seleção feminina na Copa do Mundo em 2015, o crescimento sem precedentes da Major League Soccer (MLS) [Liga Principal de Futebol] e a fundação da National Women’s Soccer League [Liga Nacional de Futebol Feminino]. Por outro, ele emitiu um “não” firme quando o time feminino exigiu que recebesse o mesmo que o time masculino. Quando uma dessas mulheres se ajoelhou em solidariedade a Colin Kaepernick na última primavera, a organização de Gulati passou imediatamente uma nova regra que obrigava os jogadores a “ficarem de pé de forma respeitosa” para o hino. Finalmente, houve a contratação e demissão do polêmico técnico Jürgen Klinsmann seguida pela escolha do conservador e sem inspiração Bruce Arena, que liderou a desastrosa campanha de qualificação para a Copa do Mundo.

Entretanto, por trás das controvérsias de Gulati estão questões mais sistêmicas: a estrutura monopolística do futebol nos EUA, o desrespeito ao treinamento nos níveis mais baixos e o acesso profundamente desigual ao esporte. Essas questões conspiram para criar uma podridão no coração do futebol nos EUA, agravando as disparidades ao mesmo tempo em que diminuem o desempenho ao longo do tempo.

Complacente no topo

Uma associação nacional de futebol (a USSF, no caso americano) é o órgão que governa o futebol de forma supostamente neutra num dado país. Ela serve como o representante daquele país para a FIFA, a Federação Internacional de Associações de Futebol, e organiza competições domésticas. Isso envolve a criação de uma estrutura de várias divisões, conhecida como uma pirâmide, que classifica as ligas profissionais de futebol do país. Há geralmente uma liga na primeira divisão; ligas similares mas menos glamurosas na segunda e na terceira divisão; e ligas regionais nas divisões mais baixas. Times podem passar de ligas inferiores para superiores ou vice-versa com base no seu desempenho.

O processo pelo qual eles podem se mover é conhecido como promoção/rebaixamento e é líquido e certo em muitas partes do mundo. O time ou os times que terminam melhor numa dada liga se movem para a liga acima dela, trocando de lugar com os times que terminam pior nessa liga mais alta. Em suma, o sistema de promoção/rebaixamento cria um percurso da obscuridade até o topo, criando algumas das maiores histórias do esporte. Por exemplo, o título do Leicester City FC na Premier League inglesa em 2016, vencido apenas dois anos depois que o clube subiu da segunda divisão, foi celebrado em todo o mundo e foi considerado o campeonato mais improvável da história dos esportes.

Nada disso acontece no futebol dos EUA. A MLS tem sido a força dominante no futebol estado-unidense desde a sua fundação. Em termos gerais, é a única grande liga de futebol do mundo que não promove equipes de baixo e não rebaixa seus membros mais fracos.

Hoje em dia, os clubes de segunda e terceira divisão estão ganhando popularidade nos Estados Unidos e começaram a pedir para poderem subir e cair. Essas chamadas se intensificaram após a partida com Trinidad e Tobago, com muitos apontando para promoção/rebaixamento como a solução óbvia para a complacência no topo da pirâmide. A USSF, como órgão “neutro” que governa o futebol, deveria estar estalando o chicote e forçando os clubes da MLS a aceitarem mais competição. Em vez disso, manteve-se junto com a MLS para anular os movimentos em direção ao sistema de promoção/rebaixamento.

Essa dinâmica íntima entre a USSF e a MLS não é evidente só nessa controvérsia. Também pode ser vista em outro ponto central do futebol nos EUA: o mecanismo de solidariedade.

Sem solidariedade

Os mecanismos de solidariedade são uma tradição histórica das federações de futebol em todo outro lugar do mundo. De acordo com as regras da FIFA, se um jogador se transfere para outro time durante seu contrato, 5% da taxa de transferência é distribuída para os clubes envolvidos no treinamento e educação do jogador ao longo dos anos. É um método lucrativo para apoiar clubes juvenis e incentivar treinamento de qualidade nos níveis mais baixos. E os Estados Unidos é o único lugar onde ela não existe.

Um dos jogadores no centro da controvérsia sobre a taxa de solidariedade é DeAndre Yedlin. Depois de fazer onda com os Seattle Sounders, Yedlin subiu, assinando com o Tottenham Hotspur da Premier League da Inglaterra, que gastou mais de 2,3 milhões de libras esterlinas para a aquisição.

De acordo com as regras da FIFA, e evidentemente não familiarizado com o conceito americano de “atleta estudante”, o Tottenham contatou a Universidade de Akron, onde Yedlin jogou na faculdade, para lhes dar uma parte da taxa de transferência. Isso provocou uma batalha no futebol nos EUA. A Major League Soccer pretendia ficar com todo o dinheiro e bloquear o mecanismo de solidariedade. Mas o Crossfire Premier, o clube no qual Yedlin realmente treinou quando jovem, viu no erro do Tottenham a chance de pegar uma parte da transferência, para a qual eles se sentiram autorizados. Se ele fosse de qualquer outro país membro da FIFA, cerca de 185 mil dólares do seu preço teria sido distribuído para o Crossfire e outros clubes nos quais o jovem Yedlin se desenvolveu.

Em 2014, o Crossfire Premier juntou-se a outros dois clubes num processo de ação coletiva pelo direito de cobrar taxas de solidariedade. O processo chamou a atenção da mídia americana de futebol, mas foi arquivado sob o argumento de que os tribunais dos EUA não existem para impor as regras da FIFA. Isso é uma pena, porque sem o mecanismo de solidariedade os clubes juvenis não têm dinheiro para dar a jovens jogadores a base sólida que eles precisam para entrar no futebol profissional mais tarde.

Isso só é agravado pelo fato de que o futebol dos EUA é afligido por um modelo particularmente excludente de pay-to-play [pague para jogar]. Em vez de fornecer apoio intencional e sistemático para jovens jogadores, as instituições de futebol dos EUA deixam-os ao capricho do mercado.
Futebol nos subúrbios

“Todo modelo no mundo é pay-for-play“, disse David Richardson, presidente e diretor técnico do Sockers FC, que fazia parte do processo do Crossfire Premier. O que varia, ele diz, “é quem está pagando por ele”.

As crianças podem e jogam futebol em praticamente qualquer superfície, mas aqueles que se tornam jogadores de elite geralmente treinam em campos de qualidade, muitas vezes viajando distâncias significativas para fazê-lo. Além dos custos de equipamentos e viagens, alguém deve fornecer nutrientes e cuidados de saúde dignos. Além disso, mesmo os melhores talentos brutos precisam de treinamento qualificado, e treinadores de elite tendem a não trabalhar de graça.

Em muitos países, uma criança pobre com talento nem sempre conta com seus pais para cobrir essas despesas. Em países como a Inglaterra e o Brasil, os clubes costumam hospedar experiências para as crianças locais, conquistando os mais promissores em sistemas juvenis bem financiados. Na Alemanha e na França, a federação nacional de futebol estabeleceu academias em todo o país com o objetivo de desenvolver jovens jogadores e ajudá-los a serem notados por clubes profissionais.

Os clubes juvenis americanos, por outro lado, quase sempre exigem que as famílias paguem taxas pesadas, seguindo a grande tradição dos EUA de transferir custos para os indivíduos. Nos subúrbios ricos, onde os pais podem pagar o melhor, os clubes podem cobrar quatro dígitos por criança por ano. Eles usam esse dinheiro para pagar os melhores técnicos e viajar para jogar contra os melhores times, atraindo mais interesse daqueles que podem pagar taxas.

Enquanto isso, crianças de áreas mais pobres são deixadas para trás. Ed Garza, ex-prefeito de San Antonio e atual presidente da Urban Soccer Leadership Academy (USLA) [Academia de Liderança de Futebol Urbano], explicou que é difícil atrair treinadores mantendo taxas baixas.

“[Nossos treinadores] estão ok com o pagamento atrasando um ou dois meses porque o cheque de um patrocinador não chegou”, ele disse. “É uma dinâmica diferente com a qual temos que nos virar por causa do modelo que nós estamos tentando desenvolver”.

A USLA não pode evitar cobrar das famílias, mas subsidia automaticamente uma alta porcentagem das taxas para qualquer jogador cuja família esteja perto ou abaixo da linha de pobreza. No momento em que as crianças estão no ensino médio, Garza diz, isso significa que cerca de 85 a 90% estão pagando menos de 200 dólares por ano. Não é um sistema perfeito, mas beneficia centenas de crianças do centro da cidade, em grande maioria não brancas e abaixo da linha de pobreza ou logo acima dela.

É claro que a maioria dos alunos da USLA não se torna profissional — Garza enfatiza que sua principal missão é ajudá-los a encontrar um “caminho para a faculdade”. Mas e se um deles se tornasse? O orçamento operacional da USLA no ano passado foi US$ 274 mil. Se DeAndre Yedlin tivesse vindo desse clube e se a USSF aplicasse as regras da FIFA que todos os outros países seguem, o mecanismo de solidariedade desse negócio por si só teria sido equivalente a um aumento de pelo menos um terço do orçamento do clube, o que Garza disse que iria para trazer mais crianças para o programa.

Mas Yedlin não veio de um programa do centro da cidade como a USLA. A maioria dos melhores jogadores dos EUA não. De acordo com Rick Eckstein, professor de sociologia da Universidade de Villanova, 25% das famílias com renda mais baixa representam apenas 13% dos membros de clubes juvenis, enquanto 35% dos jogadores juvenis vêm de famílias com renda anual superior a 100 mil dólares. Um estudo de 2013 por Greg Kaplan, da Universidade de Chicago, e o especialista britânico Roger Bennett descobriu que os jogadores da USMNT vieram de áreas que eram mais brancas, mais ricas, melhores educadas e melhores empregadas que a média nacional, enquanto os All Stars da NBA e os Pro-Bowlers da NFL vieram de áreas que estavam abaixo da média nacional em todas essas categorias.

Esses números são impressionantes, especialmente porque o futebol é exponencialmente mais popular entre os latinos do que entre os brancos. Alimentado pela desigualdade de renda, o modelo americano perpetua desigualdade racial e econômica num esporte que, em grande parte do mundo, é sinônimo da cultura da classe trabalhadora.

Mais uma vez, na moda americana clássica, alguns especialistas botaram a culpa nos indivíduos. Os jogadores precisam querer mais, os jornalistas precisam mantê-los num padrão mais alto, Gulati precisa ser colocado na geladeira etc. Pouco antes de se demitir, Bruce Arena criticou mistificadamente as “mudanças loucas” na abordagem dos Estados Unidos para o futebol. Outros, no entanto, estão despertando para a realidade de que o sistema está quebrado.

“A Federação de Futebol dos Estados Unidos está tratando o esporte da maneira americana”, observou Taylor Twellman da ESPN na sequência da derrota de semana passada, “enquanto o resto do mundo está fazendo o caminho oposto. Eu apenas penso, com a quantidade de recursos desse país, que nós somos melhores que isso”.

Twellman está certo na sua sugestão de que esse fracasso histórico garante um repensamento histórico sobre a forma que o futebol é tratado nos Estados Unidos. É absurdo pensar que este país não tem o talento ou os recursos para qualificar para a Copa do Mundo. Porém, com um sistema que priva jogadores e clubes pobres de acessarem esses recursos, era igualmente absurdo que esperássemos qualificar em primeiro lugar.

Sobre o autor

Stephen Wood é um jornalista freelancer com foco em esporte, política e suas interseções. Ele é co-anfitrião de Do or Die (or Draw): An MLS Playoffs Miniseries.

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