18 de março de 2011

A participação do Hezbollah na queda de Gaddafi

Charles Glass


Os líbios celebraram sua libertação com manifestações em massa em Benghazi ontem, o 28º aniversário de outro evento marcante na história do Oriente Médio. Em um domingo, 23 de outubro de 1983, às 6h22, um homem-bomba lançou um caminhão contra o quartel do Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA no Aeroporto de Beirute e detonou o que os especialistas forenses do FBI descreveriam mais tarde como a maior explosão convencional da história. Duzentos e quarenta e um militares americanos morreram. Um ataque semelhante em Beirute naquela manhã matou 58 soldados franceses. Os perpetradores eram, sem dúvida, membros do movimento nascente Hezbollah.

Os autores daquele ataque a militares dos EUA e da França, que levou os dois exércitos a deixarem o Líbano meses depois, muito provavelmente estão festejando o fim de Muammar Gaddafi talvez mais que os falantes líderes em Paris e Washington. Gaddafi, que em diferentes momentos tanto acolheu quanto rejeitou governantes britânicos, franceses, norte-americanos e árabes, nunca se entendeu com o Hezbollah. As raízes dessa animosidade são político-religiosas. Em agosto de 1978, Gaddafi recebeu festivamente o líder dos xiitas libaneses, Imã Musa Sadr, e dois colegas, que chegaram em visita oficial a Trípoli. Sadr era uma força a favor da reconciliação dos libaneses e, para pôr fim às disputas internas no Líbano, fez longa greve de fome. Tinha aliados cristãos e muçulmanos, num momento em que Gaddafi apoiava a aliança de muçulmanos de esquerda libaneses e palestinos. Pouco tempo depois de ter-se encontrado com Gaddafi, o Imã Sadr desapareceu. Nunca mais foi visto. Oficiais líbios garantiram que teria voado de Trípoli para Roma, viagem da qual não há notícia; como tampouco há notícia de que o Imã Sadr tenha desembarcado em Roma. Desde então, a questão de saber o que aconteceu a ele e aos clérigos que o acompanhavam dominou as relações entre as comunidades xiitas do Líbano e da Líbia. O Hezbollah foi dos poucos movimentos da resistência contra a ocupação israelense no sul do Líbano que sempre recusou qualquer ajuda que viesse de Gaddafi.

Há incontáveis versões sobre o que teria acontecido ao Imã Sadr. Nenhuma delas jamais foi confirmada. Ano passado, seu filho Sadreddine disse à Agência National News em Beirute que seu pai e os dois colegas que o acompanhavam estariam vivos, presos numa prisão líbia. Pouco depois, Hassan Nasrallah, líder do Hezbollah anunciou, em comunicado oficial, que “o Imã Sadr e os dois clérigos que o acompanhavam estão presos na Líbia e devem ser libertados”. Sadreddine Sadr jamais revelou suas fontes, mas, no início de 2011, nas primeiras escaramuças da guerra na Líbia, uma figura da oposição líbia disse que Sadr continuava preso na Líbia. Até agora, não se encontrou nenhum sinal do imã, que teria (ou tem) hoje 83 anos, nas prisões já abertas pelo Conselho Nacional de Transição.

A oposição do Hezbollah ao governo de Gaddafi criou dificuldades para o movimento libanês com seus apoiadores em Damasco, cujo regime baathista mantinha boas relações com o governo da Líbia de Gaddafi. E também pôs o Hezbollah, nos últimos meses, no campo dos apoiadores da ação da OTAN na Líbia. Com a aprovação decisiva do Hezbollah (que é parte, hoje, do governo libanês), o Líbano votou a favor da Resolução da ONU que aprovou a implantação de uma zona de exclusão aérea na Líbia, dia 15 de março. Sem a intervenção da OTAN, o levante de Benghazi contra Gaddafi dificilmente teria conseguido ser bem-sucedido. Se é verdade que Gaddafi foi deposto porque lutava contra a oposição de Benghazi, é verdade também que o desaparecimento de um clérigo libanês xiita também contribuiu para o desenlace.

O Hezbollah manteve inalterada a oposição a Gaddafi mesmo quando EUA, França e Inglaterra o reintroduziram festivamente na comunidade internacional, compraram o petróleo que ele tinha para vender e venderam-lhe armas. Nenhuma tortura, nenhuma violência, nenhuma ditadura líbia pareceu pouco recomendável aos olhos ocidentais, enquanto o petróleo líbio estivesse assegurado; o excelente petróleo líbio, com baixo conteúdo de enxofre e tão próximo da Europa, é o mais cobiçado dentre todos os países da OPEP. Gaddafi tinha 28 anos, era capitão do exército (depois, foi promovido a coronel) e comandou 8.000 soldados líbios que tomaram o poder na Líbia, em setembro de 1969, em golpe sem derramamento de sangue. Em novembro do mesmo ano, dia 20/11/1969, Henry Kissinger, então presidente-assistente da Comissão de Negócios do Conselho de Segurança Nacional dos EUA, recebeu o seguinte memorando interno, top secret, assinado por Robert Behr e Harold Saunders, assessores do mesmo conselho:

Nossa [dos EUA] atual estratégia é buscar estabelecer relações satisfatórias com o novo governo líbio. A recomposição de nossa balança de pagamentos e a segurança dos investimentos norte-americanos em petróleo são considerados nossos interesses prioritários. Queremos conservar nossas instalações militares, mas sem que isso ameace nosso retorno econômico.

Os EUA alertaram Gaddafi sobre uma tentativa de golpe, que o novo líder frustrou. Sua gratidão durou pouco, pois ele forçou os EUA e o Reino Unido a abandonarem suas bases no país e aumentou a parcela da Líbia na renda do petróleo, o que permitiu tanto a construção da infraestrutura que os rebeldes de hoje estão herdando quanto a corrupção do estado dinástico que Gaddafi impôs. Quando Tony Blair trouxe Gaddafi do frio depois de Lockerbie, os EUA entregaram suspeitos à Líbia para tratamento especial por torturadores experientes. Ninguém, exceto talvez o Hezbollah, sai bem dessa saga sórdida.

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