Rory Stewart sobre a intervenção líbia
Rory Stewart
Vol. 33 No. 7 · 31 March 2011 |
Tradução / Até ontem, eu acreditava que a era das intervenções militares estivesse chegando ao fim. O consenso que se viu depois do colapso da União Soviética foi destroçado pelas guerras dos Balcãs; depois do desespero, viram-se ainda intervenções na Bósnia, depois no Kosovo; em seguida, um orgulho triunfalista arrastou a Inglaterra para o desastre, no Iraque e no Afeganistão. A meio caminho, nesse período, em 2000, foi como se a Inglaterra pudesse intervir em qualquer lugar.
Mas em 2010, já parecia que a Inglaterra nunca mais se aventuraria a intervir militarmente em lugar algum. O que começou como irresistível vitória da democracia, do livre mercado e dos EUA, termina agora com ocupação, crise financeira e impotência dos EUA.
Parecia duplamente improvável que a Inglaterra algum dia interviria militarmente em país como a Líbia. Embora pobre em petróleo, o Afeganistão, na Ásia Central, foi visto por muitos muçulmanos como objeto de ocupação por cruzados infiéis, comandados por Israel e com o objetivo ou de implantar bases militares ou de arranjar petróleo barato. Qualquer movimento contra a Líbia – país árabe, muçulmano, obcecado numa luta sem tréguas contra o colonialismo e suando petróleo – dava a impressão de que seria visto como movimento extremamente hostil e sinistro, primeiro pelos seus próprios vizinhos árabes; mas também pelo mundo desenvolvido e até pelos próprios líbios.
A Líbia não atende, sequer, aos critérios da lei internacional, como alvo de intervenção militar. Gaddafi é o poder soberano, não os rebeldes; não praticava nem genocídio nem limpeza étnica. Na Bósnia, a situação era diferente: em algumas semanas haviam morrido 100 mil pessoas. E a própria Bósnia – estado soberano não reconhecido pela ONU – pediu formalmente a intervenção. O caso do Kosovo foi menos claro, mas a intervenção visou Milosevic e veio depois das guerras dos Bálcãs, iniciadas por ele, e do deslocamento forçado de 200 mil pessoas, com evidências abundantes de atrocidades movidas por preconceitos étnicos. Esse tipo de concepção do que seja uma intervenção militar legal, e que em 1999 parecia ser a quintessência da governança e do consenso global, deixou de ser a concepção dominante no ocidente.
Em 2011, Brasil, Índia e a África do Sul, além de China, estão presentes no Conselho de Segurança da ONU e nenhum desses países apoiou a intervenção militar na Líbia.
Por isso, na 5ª-feira, falei na Casa dos Comuns, para dizer que, embora a Inglaterra tenha o dever e o direito moral de proteger os líbios, de Gaddafi, seria errado agir sem plena autorização que viesse de uma Resolução do CSONU. A Grã-Bretanha deve usar o apoio à zona aérea de exclusão para dar sinal claro de que se opõe a Gaddafi e apóia os movimentos progressistas no Oriente Médio. Naquele momento, ainda cabia esperar que a Rússia vetaria a Resolução, o que excluiria definitivamente, de todos os cenários, o uso de jatos bombardeiros.
Mas a Rússia não vetou a resolução. E desde a noite passada, 17 de março, franceses, britânicos e norte-americanos estão autorizados a intervir no Oriente Médio, mediante “todas as medidas necessárias”. Nesse instante, ultimam-se os planos e os jatos bombardeiros preparam-se para decolar. Ministros de Relações Exteriores dos estados árabes menores recebem telefonemas, nos celulares privados, de políticos ocidentais. Por todo o mundo, explodem Twitters com a hashtag Líbia. E imagino que nos gabinetes oficiais, iluminados por telas de televisão gigantes, generais, conselherios especiais, diplomatas, assessores de imprensa, jornalistas e políticos tentam decidir o que fazer.
A primeira resposta de Gaddafi foi ativa. Menos de uma hora depois de aprovada a Resolução, seu porta-voz já falava em inglês da ONU sobre “aspectos técnicos do cessar-fogo”, “algumas preocupações sobre a redação do texto”. Usou tradutor para devolver ao árabe o que dizia em inglês – preocupado talvez com que seu público estivesse no Golfo, e queria que ouvissem o árabe mais formal. Mas o tradutor, mais seguro nas frases autoritárias sobre ‘as intenções pacíficas das forças de segurança nacional da Líbia’, brigou tanto contra o jargão da ONU, que teve de ser corrigido algumas vezes pelo chefe. Na 6ª-feira pela manhã, o ministro das Relações Exteriores da Líbia já dominava perfeitamente a nova persona de participante construtivo e neutro. Falou em árabe, referindo-se tão cerimoniosamente ao ‘Majlis al-Aman’ (‘Assembéia de Segurança’) que demorei a entender que se referia ao Conselho de Segurança da ONU, não a alguma unidade do aparelho de segurança de Gaddafi.
E quanto à resposta da Inglaterra? Se as crises da Bosnia, Kosovo, Iraque e Afeganistão, que consumiram mais de 100 mil vidas, 4 trilhões de dólares e absorveram um milhão de soldados de 60 países, não ensinaram a Inglaterra a ser mais prudente, poderiam, pelo menos, ter-nos ensinado a ser menos tolos.
Por duas décadas, as políticas inglesas nesses países foram descritas, explicadas e criticadas por especialistas em filosofia política, funcionários públicos, ativistas de direitos humanos, jornalistas, trabalhadores, cineastas e mais de 10 mil consultores privados.
Em todo o mundo, políticos falam privadamente sobre “resoluções do Capítulo 7”, “no-fly zones”, “a experiência dos curdos” e “a responsabilidade de proteger”. Mas ninguém discute as questões relevantes da intervenção militar, como se fossem tão óbvias quanto sem qualquer importância. Ninguém precisa nem saber dizer os nomes de quatro cidades líbias, para encontrar quatro argumentos seja a favor, seja contra, o que a Inglaterra já está fazendo na Líbia. Basta requentar os mesmos argumentos que se usaram na Inglaterra em 1960s no caso do Vietnã; em 1920s, no caso da Síria; e em 1860s no caso do Afeganistão.
Os argumentos contra a intervenção foram itemizados por Albert Hirschman como “perversidade”, “futilidade/hipocrisia” e “temeridade”: intervenções são sempre perigosas (para a Inglaterra ou para a Líbia); podem dar em nada; e podem dar resultado exatamente contrário ao que se buscava. O mesmo se pode dizer também em linguagem médica e comercial: “primeiro, cuide de não piorar o que encontrar”; “não é assunto da sua conta”; e “estamos quebrados, temos de cuidar primeiro da nossa vida”. E há até argumentos racistas que dizem a mesma coisa, contra intervenção militar. Por exemplo, Conor Cruise O’Brien, em 1992: “Há lugares no mundo onde muita gente prefere a guerra e os saques e estupros e a dominação que sempre acompanham a guerra, a qualquer tipo de ocupação militar pró paz. O Afeganistão é um desses lugares. Outro, a Iugoslávia, depois do colapso do regime comunista que centralizava as ações”.
Contra esses, há os quatro argumentos da segurança nacional da Inglaterra a favor da intervenção: medo de um estado-bandido; medo de um estado fracassado; medo pelos vizinhos; e medo pela própria Inglaterra. Primeiro, os ingleses declaramos que o Iraque seria estado-bandido – com armas de destruição em massa que poderiam ser detonadas em 45 minutos. Depois, os ingleses declaramos que o Afeganistão de 2002 seria estado fracassado – com o vácuo ocupado por narcotraficantes e terroristas. Depois, em 2009, a Inglaterra assumiu o medo em nome do Paquistão, vizinho do Afeganistão: “se o Afeganistão cair, em seguida o Paquistão cairá e os mulás-malucos porão as mãos nas bombas atômicas do Paquistão”. (Em tempos do Vietnã, chamava-se a isso “teoria do dominó”.) Depois, a Inglaterra temeu que sua reputação fosse ferida. De Kissinger no Vietnã aos britânicos no Afeganistão, há sempre a eterna ansiedade de não aparecer frente ao mundo como derrotado, ou como otário, por ter confiado no inimigo, ou como nação “sem credibilidade”.
Na Líbia, todos esses argumentos centram-se em medo de Gaddafi; medo da al-Qaeda num estado fracassado post-Gaddafi; medo de instabilidade na região (guerra civil na Líbia, que agite o norte da África e empurre milhões de refugiados pelo Mediterrâneo em direção à Europa); e medo de a Inglaterra perder a “credibilidade” (e se Gaddafi sobreviver às nossas ameaças e bravatas?).
Em seguida, há os argumentos morais. Há argumentos contra a intervenção militar a partir da lei internacional (é agressão à soberania do estado) e argumentos a partir da culpa (‘nós sempre apoiamos Gaddafi. Nós, de fato, armamos Gaddafi, e há muito tempo’). Há argumentos a favor, calculados por escala – os únicos a que a imprensa-empresa dá atenção e os únicos que divulga – de sofrimento humano; por esse argumento, nada-fazer levaria a maior número de mortes: temos o direito e o dever de impedir que aumente o número de mortes, obrigação moral em face do povo líbio.
Até aqui, temos três argumentos contra agir. Quatro medos de não agir. E um cenário de culpas, leis e obrigações morais. Há pelo menos uma analogia histórica para cada uma dessas posições. Quem se oponha à intervenção pode falar de “não a outro Vietnã”. Quem apóie a intervenção, por razões de segurança nacional, pode falar de ‘pacifistas de araque’ e invocar Munique. E pode também clicar em “substituir todos” e, onde está a Líbia, meter o Zimbabwe, Darfur ou, no que tenha a ver, a Abissínia, Hejaz ou “o reino de Caubul e demais dependências”. Em todos os casos, o que mais parece contar não é qualquer conhecimento do país afetado, mas uma certa, determinada, atitude mental: ou nobre otimismo, ou pessimismo reacionário, e na prática, ou quase sempre, sem coisa alguma entre uma dessas atitudes mentais e a outra.
Não quero dizer com isso que as milhões de páginas produzidas ao longo das últimas duas décadas nada tenham acrescentado. Os argumentos sempre ganham alguma maquiagem e são apresentados em design atualizado, carregados de fulgurantes infográficos e estatísticas, decorados com novas analogias. Quem queira, pode trocar Vietnã por Iraque, Munique por Rwanda e a Segunda Guerra Mundial pela Bósnia. A política ‘sempre avante’ é hoje chamada “construção do Estado. E “pacificação” se chama hoje “guerra contraguerrilha”.
Mas as posições básicas permanecem ou preto ou branco. Faça ou não faça, e não existe meia casa. E é aí, precisamente, onde mora o perigo.
Hoje, na Câmara dos Comuns, fui acusado de ter escolhido sentar na cerca. “De um lado, você diz que a zona no-fly é humanitária e nada tem a ver com mudar o regime. De outro lado, você diz que a Inglaterra está agindo contra o governo de Gaddafi, para derrubá-lo”. E quando tentei mostrar que há diferença entre medidas militares com finalidades humanitárias e medidas civis com finalidade política, meu interlocutor reagiu: “Claro, seria o pior dos mundos”. É exatamente o contrário: esse me parece ser o menos pior dos mundos.
É preferível uma zona aérea de exclusão a dar a impressão de que apoiamos ou endossamos as ações de Gaddafi; é melhor do que ocupar por terra, para derrubar o governo. Mas essas são medidas difíceis de explicar e de apresentar e vender.
É possível que eu esteja, simplesmente, traumatizado pelo envio de mais soldados para o Afeganistão. Talvez, agora, seria hora de eu festejar a decisão que a Inglaterra tomou, em vez de trazer à baila meu apoio sem entusiasmo e meus medos e cautelas. Afinal, a resolução da ONU explicitamente impede qualquer ocupação.
O ocidente está ferido, sente-se empobrecido. E todos os nossos soldados estão sobrecarregados e exaustos. Os políticos mundiais, pelo menos até agora, têm conseguido escapar das respostas de otimismo temerário e tem conseguido não ouvir o que lhes dizem os falcões linha-dura nos governos. Obama conseguiu sobreviver à pressão para mandar mais soldados para o Afeganistão. Cameron fixou prazo final de 2015 para todas as operações de combate no mesmo Afeganistão. Dadas as circunstâncias, ambos foram moderados. Afinal, parece razoavelmente provável que não nos arrastarão ainda mais para o fundo da areia movediça, do pântano.
Seja como for, não consigo apagar completamente a experiência direta que tive no Afeganistão, quando, todos os dias, via-se que, sim, todos os dias, estávamos sendo arrastados sempre mais, sempre mais, cada vez mais, para o fundo. Em todos os casos, a única chance que temos para impedir que a intervenção militar na Líbia se aprofunde é conhecer o país, aquele país, cada vez mais especificamente, mais detalhadamente. Esse trabalho, infelizmente, não atrai nem políticos nem a imprensa e nunca dá sinais de ser trabalho considerado importante.
Trabalho útil, hoje, seria construir um argumento contra a eficácia das sanções econômicas, a partir de informação confiável e bem construída e interpretação atenta e cuidadosa sobre o regime de Gaddafi, sua ideologia política, suas atitudes e ideias em relação ao ocidente.
Ao contrário, a retórica e a lógica a favor de intervenção militar cada vez mais profunda, com envolvimento militar cada vez maior na Região parece exercer atração hipnótica, irresistível. Já se ouvem, novamene, argumentos que se usaram a favor de a Inglaterra intervir no Afeganistão, agora a favor de intervenção na Líbia.
Todas as preocupações com Gaddafi e “estabilidade” podem ser rapidamente convertidas em “ameaça existencial à segurança global” e acionar aqueles quatro medos. Passo seguinte, é concluir que o fracasso será grande demais para que se deixe acontecer.
Mas já está acontecendo. Recentemente, no Afeganistão, um general americano disse-me que não há plano B. “O plano B é mais plano A”. Quando se diz que temos uma obrigação moral (nesse caso, com o povo líbio) ou um “dever de intervir”, tende-se a entender como uma obrigação moral incondicional. O complexo lógico, de estatísticas e teorias que levaram a nos aprofundar no Afeganistão continua ativo, extremamente sedutor. O mesmo pessoal estará, em breve, trabalhando sobre a Líbia. E quando virem que a zona aérea de exclusão não está dando o resultado que desejam que dê – nem derrubou o regime, nem pôs fim aos abusos contra os direitos humanos, nem melhorou as condições de segurança internacional –, não há qualquer dúvidas de que os mesmos exigirão, como sempre, mais envolvimento.
Como deputado na Câmara dos Comuns, ocorreu-me que talvez seja hora de lembrar as pessoas de que, apesar da desgraça do Afeganistão, a Inglaterra ainda pode ter papel construtivo no mundo. Hoje se discute a zona aérea de exclusão, que, hoje, me parece ser a opção mais certa. Mas nada me tira da cabeça que o perigo maior não é o desespero, mas as decisões irrefreáveis, quase hiperativas: o senso de alguma obrigação moral, o medo de estados-bandidos, de estados fracassados, de perdermos nossa "credibilidade". Isso, sim, me faz temer que estejamos no início de mais uma década de superintervenção militar.
Mas em 2010, já parecia que a Inglaterra nunca mais se aventuraria a intervir militarmente em lugar algum. O que começou como irresistível vitória da democracia, do livre mercado e dos EUA, termina agora com ocupação, crise financeira e impotência dos EUA.
Parecia duplamente improvável que a Inglaterra algum dia interviria militarmente em país como a Líbia. Embora pobre em petróleo, o Afeganistão, na Ásia Central, foi visto por muitos muçulmanos como objeto de ocupação por cruzados infiéis, comandados por Israel e com o objetivo ou de implantar bases militares ou de arranjar petróleo barato. Qualquer movimento contra a Líbia – país árabe, muçulmano, obcecado numa luta sem tréguas contra o colonialismo e suando petróleo – dava a impressão de que seria visto como movimento extremamente hostil e sinistro, primeiro pelos seus próprios vizinhos árabes; mas também pelo mundo desenvolvido e até pelos próprios líbios.
A Líbia não atende, sequer, aos critérios da lei internacional, como alvo de intervenção militar. Gaddafi é o poder soberano, não os rebeldes; não praticava nem genocídio nem limpeza étnica. Na Bósnia, a situação era diferente: em algumas semanas haviam morrido 100 mil pessoas. E a própria Bósnia – estado soberano não reconhecido pela ONU – pediu formalmente a intervenção. O caso do Kosovo foi menos claro, mas a intervenção visou Milosevic e veio depois das guerras dos Bálcãs, iniciadas por ele, e do deslocamento forçado de 200 mil pessoas, com evidências abundantes de atrocidades movidas por preconceitos étnicos. Esse tipo de concepção do que seja uma intervenção militar legal, e que em 1999 parecia ser a quintessência da governança e do consenso global, deixou de ser a concepção dominante no ocidente.
Em 2011, Brasil, Índia e a África do Sul, além de China, estão presentes no Conselho de Segurança da ONU e nenhum desses países apoiou a intervenção militar na Líbia.
Por isso, na 5ª-feira, falei na Casa dos Comuns, para dizer que, embora a Inglaterra tenha o dever e o direito moral de proteger os líbios, de Gaddafi, seria errado agir sem plena autorização que viesse de uma Resolução do CSONU. A Grã-Bretanha deve usar o apoio à zona aérea de exclusão para dar sinal claro de que se opõe a Gaddafi e apóia os movimentos progressistas no Oriente Médio. Naquele momento, ainda cabia esperar que a Rússia vetaria a Resolução, o que excluiria definitivamente, de todos os cenários, o uso de jatos bombardeiros.
Mas a Rússia não vetou a resolução. E desde a noite passada, 17 de março, franceses, britânicos e norte-americanos estão autorizados a intervir no Oriente Médio, mediante “todas as medidas necessárias”. Nesse instante, ultimam-se os planos e os jatos bombardeiros preparam-se para decolar. Ministros de Relações Exteriores dos estados árabes menores recebem telefonemas, nos celulares privados, de políticos ocidentais. Por todo o mundo, explodem Twitters com a hashtag Líbia. E imagino que nos gabinetes oficiais, iluminados por telas de televisão gigantes, generais, conselherios especiais, diplomatas, assessores de imprensa, jornalistas e políticos tentam decidir o que fazer.
A primeira resposta de Gaddafi foi ativa. Menos de uma hora depois de aprovada a Resolução, seu porta-voz já falava em inglês da ONU sobre “aspectos técnicos do cessar-fogo”, “algumas preocupações sobre a redação do texto”. Usou tradutor para devolver ao árabe o que dizia em inglês – preocupado talvez com que seu público estivesse no Golfo, e queria que ouvissem o árabe mais formal. Mas o tradutor, mais seguro nas frases autoritárias sobre ‘as intenções pacíficas das forças de segurança nacional da Líbia’, brigou tanto contra o jargão da ONU, que teve de ser corrigido algumas vezes pelo chefe. Na 6ª-feira pela manhã, o ministro das Relações Exteriores da Líbia já dominava perfeitamente a nova persona de participante construtivo e neutro. Falou em árabe, referindo-se tão cerimoniosamente ao ‘Majlis al-Aman’ (‘Assembéia de Segurança’) que demorei a entender que se referia ao Conselho de Segurança da ONU, não a alguma unidade do aparelho de segurança de Gaddafi.
E quanto à resposta da Inglaterra? Se as crises da Bosnia, Kosovo, Iraque e Afeganistão, que consumiram mais de 100 mil vidas, 4 trilhões de dólares e absorveram um milhão de soldados de 60 países, não ensinaram a Inglaterra a ser mais prudente, poderiam, pelo menos, ter-nos ensinado a ser menos tolos.
Por duas décadas, as políticas inglesas nesses países foram descritas, explicadas e criticadas por especialistas em filosofia política, funcionários públicos, ativistas de direitos humanos, jornalistas, trabalhadores, cineastas e mais de 10 mil consultores privados.
Em todo o mundo, políticos falam privadamente sobre “resoluções do Capítulo 7”, “no-fly zones”, “a experiência dos curdos” e “a responsabilidade de proteger”. Mas ninguém discute as questões relevantes da intervenção militar, como se fossem tão óbvias quanto sem qualquer importância. Ninguém precisa nem saber dizer os nomes de quatro cidades líbias, para encontrar quatro argumentos seja a favor, seja contra, o que a Inglaterra já está fazendo na Líbia. Basta requentar os mesmos argumentos que se usaram na Inglaterra em 1960s no caso do Vietnã; em 1920s, no caso da Síria; e em 1860s no caso do Afeganistão.
Os argumentos contra a intervenção foram itemizados por Albert Hirschman como “perversidade”, “futilidade/hipocrisia” e “temeridade”: intervenções são sempre perigosas (para a Inglaterra ou para a Líbia); podem dar em nada; e podem dar resultado exatamente contrário ao que se buscava. O mesmo se pode dizer também em linguagem médica e comercial: “primeiro, cuide de não piorar o que encontrar”; “não é assunto da sua conta”; e “estamos quebrados, temos de cuidar primeiro da nossa vida”. E há até argumentos racistas que dizem a mesma coisa, contra intervenção militar. Por exemplo, Conor Cruise O’Brien, em 1992: “Há lugares no mundo onde muita gente prefere a guerra e os saques e estupros e a dominação que sempre acompanham a guerra, a qualquer tipo de ocupação militar pró paz. O Afeganistão é um desses lugares. Outro, a Iugoslávia, depois do colapso do regime comunista que centralizava as ações”.
Contra esses, há os quatro argumentos da segurança nacional da Inglaterra a favor da intervenção: medo de um estado-bandido; medo de um estado fracassado; medo pelos vizinhos; e medo pela própria Inglaterra. Primeiro, os ingleses declaramos que o Iraque seria estado-bandido – com armas de destruição em massa que poderiam ser detonadas em 45 minutos. Depois, os ingleses declaramos que o Afeganistão de 2002 seria estado fracassado – com o vácuo ocupado por narcotraficantes e terroristas. Depois, em 2009, a Inglaterra assumiu o medo em nome do Paquistão, vizinho do Afeganistão: “se o Afeganistão cair, em seguida o Paquistão cairá e os mulás-malucos porão as mãos nas bombas atômicas do Paquistão”. (Em tempos do Vietnã, chamava-se a isso “teoria do dominó”.) Depois, a Inglaterra temeu que sua reputação fosse ferida. De Kissinger no Vietnã aos britânicos no Afeganistão, há sempre a eterna ansiedade de não aparecer frente ao mundo como derrotado, ou como otário, por ter confiado no inimigo, ou como nação “sem credibilidade”.
Na Líbia, todos esses argumentos centram-se em medo de Gaddafi; medo da al-Qaeda num estado fracassado post-Gaddafi; medo de instabilidade na região (guerra civil na Líbia, que agite o norte da África e empurre milhões de refugiados pelo Mediterrâneo em direção à Europa); e medo de a Inglaterra perder a “credibilidade” (e se Gaddafi sobreviver às nossas ameaças e bravatas?).
Em seguida, há os argumentos morais. Há argumentos contra a intervenção militar a partir da lei internacional (é agressão à soberania do estado) e argumentos a partir da culpa (‘nós sempre apoiamos Gaddafi. Nós, de fato, armamos Gaddafi, e há muito tempo’). Há argumentos a favor, calculados por escala – os únicos a que a imprensa-empresa dá atenção e os únicos que divulga – de sofrimento humano; por esse argumento, nada-fazer levaria a maior número de mortes: temos o direito e o dever de impedir que aumente o número de mortes, obrigação moral em face do povo líbio.
Até aqui, temos três argumentos contra agir. Quatro medos de não agir. E um cenário de culpas, leis e obrigações morais. Há pelo menos uma analogia histórica para cada uma dessas posições. Quem se oponha à intervenção pode falar de “não a outro Vietnã”. Quem apóie a intervenção, por razões de segurança nacional, pode falar de ‘pacifistas de araque’ e invocar Munique. E pode também clicar em “substituir todos” e, onde está a Líbia, meter o Zimbabwe, Darfur ou, no que tenha a ver, a Abissínia, Hejaz ou “o reino de Caubul e demais dependências”. Em todos os casos, o que mais parece contar não é qualquer conhecimento do país afetado, mas uma certa, determinada, atitude mental: ou nobre otimismo, ou pessimismo reacionário, e na prática, ou quase sempre, sem coisa alguma entre uma dessas atitudes mentais e a outra.
Não quero dizer com isso que as milhões de páginas produzidas ao longo das últimas duas décadas nada tenham acrescentado. Os argumentos sempre ganham alguma maquiagem e são apresentados em design atualizado, carregados de fulgurantes infográficos e estatísticas, decorados com novas analogias. Quem queira, pode trocar Vietnã por Iraque, Munique por Rwanda e a Segunda Guerra Mundial pela Bósnia. A política ‘sempre avante’ é hoje chamada “construção do Estado. E “pacificação” se chama hoje “guerra contraguerrilha”.
Mas as posições básicas permanecem ou preto ou branco. Faça ou não faça, e não existe meia casa. E é aí, precisamente, onde mora o perigo.
Hoje, na Câmara dos Comuns, fui acusado de ter escolhido sentar na cerca. “De um lado, você diz que a zona no-fly é humanitária e nada tem a ver com mudar o regime. De outro lado, você diz que a Inglaterra está agindo contra o governo de Gaddafi, para derrubá-lo”. E quando tentei mostrar que há diferença entre medidas militares com finalidades humanitárias e medidas civis com finalidade política, meu interlocutor reagiu: “Claro, seria o pior dos mundos”. É exatamente o contrário: esse me parece ser o menos pior dos mundos.
É preferível uma zona aérea de exclusão a dar a impressão de que apoiamos ou endossamos as ações de Gaddafi; é melhor do que ocupar por terra, para derrubar o governo. Mas essas são medidas difíceis de explicar e de apresentar e vender.
É possível que eu esteja, simplesmente, traumatizado pelo envio de mais soldados para o Afeganistão. Talvez, agora, seria hora de eu festejar a decisão que a Inglaterra tomou, em vez de trazer à baila meu apoio sem entusiasmo e meus medos e cautelas. Afinal, a resolução da ONU explicitamente impede qualquer ocupação.
O ocidente está ferido, sente-se empobrecido. E todos os nossos soldados estão sobrecarregados e exaustos. Os políticos mundiais, pelo menos até agora, têm conseguido escapar das respostas de otimismo temerário e tem conseguido não ouvir o que lhes dizem os falcões linha-dura nos governos. Obama conseguiu sobreviver à pressão para mandar mais soldados para o Afeganistão. Cameron fixou prazo final de 2015 para todas as operações de combate no mesmo Afeganistão. Dadas as circunstâncias, ambos foram moderados. Afinal, parece razoavelmente provável que não nos arrastarão ainda mais para o fundo da areia movediça, do pântano.
Seja como for, não consigo apagar completamente a experiência direta que tive no Afeganistão, quando, todos os dias, via-se que, sim, todos os dias, estávamos sendo arrastados sempre mais, sempre mais, cada vez mais, para o fundo. Em todos os casos, a única chance que temos para impedir que a intervenção militar na Líbia se aprofunde é conhecer o país, aquele país, cada vez mais especificamente, mais detalhadamente. Esse trabalho, infelizmente, não atrai nem políticos nem a imprensa e nunca dá sinais de ser trabalho considerado importante.
Trabalho útil, hoje, seria construir um argumento contra a eficácia das sanções econômicas, a partir de informação confiável e bem construída e interpretação atenta e cuidadosa sobre o regime de Gaddafi, sua ideologia política, suas atitudes e ideias em relação ao ocidente.
Ao contrário, a retórica e a lógica a favor de intervenção militar cada vez mais profunda, com envolvimento militar cada vez maior na Região parece exercer atração hipnótica, irresistível. Já se ouvem, novamene, argumentos que se usaram a favor de a Inglaterra intervir no Afeganistão, agora a favor de intervenção na Líbia.
Todas as preocupações com Gaddafi e “estabilidade” podem ser rapidamente convertidas em “ameaça existencial à segurança global” e acionar aqueles quatro medos. Passo seguinte, é concluir que o fracasso será grande demais para que se deixe acontecer.
Mas já está acontecendo. Recentemente, no Afeganistão, um general americano disse-me que não há plano B. “O plano B é mais plano A”. Quando se diz que temos uma obrigação moral (nesse caso, com o povo líbio) ou um “dever de intervir”, tende-se a entender como uma obrigação moral incondicional. O complexo lógico, de estatísticas e teorias que levaram a nos aprofundar no Afeganistão continua ativo, extremamente sedutor. O mesmo pessoal estará, em breve, trabalhando sobre a Líbia. E quando virem que a zona aérea de exclusão não está dando o resultado que desejam que dê – nem derrubou o regime, nem pôs fim aos abusos contra os direitos humanos, nem melhorou as condições de segurança internacional –, não há qualquer dúvidas de que os mesmos exigirão, como sempre, mais envolvimento.
Como deputado na Câmara dos Comuns, ocorreu-me que talvez seja hora de lembrar as pessoas de que, apesar da desgraça do Afeganistão, a Inglaterra ainda pode ter papel construtivo no mundo. Hoje se discute a zona aérea de exclusão, que, hoje, me parece ser a opção mais certa. Mas nada me tira da cabeça que o perigo maior não é o desespero, mas as decisões irrefreáveis, quase hiperativas: o senso de alguma obrigação moral, o medo de estados-bandidos, de estados fracassados, de perdermos nossa "credibilidade". Isso, sim, me faz temer que estejamos no início de mais uma década de superintervenção militar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário