1 de agosto de 2012

Janízaros democráticos? O papel da Turquia na primavera Árabe

A Turquia foi saudada no Ocidente como um modelo democrático para o mundo islâmico. Cihan Tuğal dá uma olhada legal no histórico de política interna e externa do governo de Erdoğan, desde a diplomacia de "problemas zero" até o bloqueio da Líbia e a guerra suja em Damasco, ataques aéreos contra curdos turcos e silêncio no Bahrein.

Cihan Tuğal


NLR 76 • JULY/AUG 2012

Tradução / Os levantes políticos da Primavera Árabe e as vitórias eleitorais de partidos islâmicos trouxeram de volta à tona o debate a respeito do "modelo turco" — que "integra Islã, democracia e economia vibrante de maneira bem-sucedida", de acordo com um artigo efusivo de 2011 do New York Times , que saudou o primeiro-ministro da Turquia Recep Tayyip Erdoğan como "provavelmente a figura mais influente do Oriente Médio". Funcionários da Casa Branca enfatizaram o exemplo positivo que a Turquia poderia dar como país muçulmano que mantém relações diplomáticas com Israel; em 2009, Obama, em uma visita a Ancara muito anunciada, saudou o governo do Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP) como um "parceiro-modelo" e um dos pilares da Otan. O International Crisis Group descreve a Turquia como "objeto de inveja do mundo árabe", usufruindo "uma democracia sólida, um líder legitimamente eleito que parece representar o ânimo popular, produtos populares do Afeganistão ao Marrocos — inclusive dezenas de seriados televisivos dublados em árabe que estão em televisores em toda parte — e uma economia que vale cerca de metade de todo o mundo árabe". Turistas de outros lugares da região acorriam para testemunhar "uma sociedade muçulmana em paz com o mundo, economicamente avançada e onde tradições islâmicas coexistem com os padrões de consumo ocidentais"1.

O louvor é ecoado por Tariq Ramadan, que declarou a visita de Erdoğan ao Egito, à Tunísia e à Líbia, em setembro de 2011, "um imenso sucesso popular" — "árabes e muçulmanos olhavam com espanto e admiração" enquanto Erdoğan falava em favor do direito dos palestinos à existência. "Ele está do lado certo da História", proclamou Ramadan. "A Turquia pode e deve desempenhar um papel importante", ajudando "a reconciliar os muçulmanos com confiança, autonomia, pluralismo e sucesso"2. Enquanto isso, o ministro das Relações Exteriores da Turquia Ahmet Davutoğlu se orgulhava de trazer uma nova pax ottomana para a região, uma abordagem "zero problemas com os vizinhos" que expandiria a influência de Ancara no Cáucaso e no mar Negro, no Oriente Médio e no Mediterrâneo, ao mesmo tempo ajudando a intermediar relações melhores entre Israel e os Estados árabes. Essa visão nega quaisquer ambições imperiais neo-otomanas; antes, é descrita por seus proponentes como uma questão de "soft power ", sublinhando o rosto sorridente que desejam associar a ela. Como uma estrutura emergente de sentimento, a pax ottomana foi abraçada por camadas da intelligentsia e pela cultura popular, indo muito além das fileiras do AKP3. A nostalgia por tudo que é ottomanesque arrastou até a Turquia secular, levando a taxas de audiência recordes para uma novela sobre o sultão Süleyman e as intrigas de seu harém; formas banalizadas e sexualizadas de esplendor imperial tornaram-se parte do ar que se respira.

Depois de uma década de governo do AKP, um consenso internacional tem retratado a Turquia de Erdoğan como a alternativa "bem-sucedida" tanto ao autoritarismo árabe secular quanto ao islamismo revolucionário do Irã. Pesquisas de opinião revelam uma aceitação mais cautelosa: relata-se que cerca de 60% dos árabes veem a Turquia como um modelo. Até que ponto um exame de cabeça fria da política externa e do histórico doméstico do AKP sustenta essas afirmações?

A NOVA OSTPOLITIK

O AKP assumiu o governo em novembro de 2002 como um partido outsider , capitalizando a crise do sistema político depois dos colapsos da economia turca em 1999 e 2001. Suas origens estavam em um movimento social conservador, construído com base em política de rua, escolas religiosas e mobilizações populares; sua ideologia combinava ética empresarial, devoção religiosa e parlamentarismo com uma linha pró-muçulmana convencional, portanto pró-Palestina, opondo-se à intervenção militar anglo-americana na região. Mas a nova liderança do AKP — Erdoğan, Abdullah Gül, Bülent Arınç — também era veementemente pró-União Europeia (UE) e fazia visitas frequentes aos Estados Unidos4. Nas eleições de novembro de 2002, o AKP amealhou 60% das cadeiras do Meclis, o parlamento turco, ainda que com apenas 34% dos votos. Seu primeiro teste de política externa aconteceu na primavera de 2003 com a invasão do Iraque pelos Estados Unidos — que teve a oposição de uma esmagadora maioria da população turca. Os resultados das três votações no Meclis sobre a guerra quase nem precisam ser relembrados. Em fevereiro de 2003, os deputados do AKP apoiaram uma decisão de permitir que bases americanas na Turquia fossem reforçadas, em preparação para a invasão. A segunda votação, realizada na ausência de Erdoğan, em março de 2003, assistiu a uma rebelião dos deputados do AKP, que se juntaram à oposição do Partido Republicano do Povo (PRP) para derrotar a moção do governo que permitia que tropas americanas lançassem a invasão a partir do solo turco. No momento da terceira votação, algumas semanas depois, Erdoğan tinha disciplinado seu partido: uma maioria maciça de deputados do AKP votou a favor da guerra — e do envio de forças turcas para apoiar a ocupação anglo-americana do Iraque (além das tropas que tinham patrulhado por muito tempo a região curda do Iraque sob a zona de exclusão aérea anglo-americana).

No fim, a utilização do exército turco como parte da força de ocupação no Iraque foi bloqueada pelo líder curdo iraquiano Massoud Barzani, e talvez também pelo governo Bush, como punição pela curta rebelião do Meclis. O mais impressionante, no entanto, e que dá uma medida da hegemonia que o AKP usufruía, foi o nível de apoio popular para a posição pró-Bush de Erdoğan, que foi entendida como um golpe de mestre estratégico: uma concessão a curto prazo que garantiria apoio americano para a Turquia e recompensas importantes a longo prazo. A terceira votação foi também saudada pelos liberais atlanticistas da Turquia como um bem-vindo passo na direção de uma participação mais plena nas intervenções militares da "comunidade internacional", principalmente em antigas terras otomanas. Esse apoio foi vantajoso para o governo Erdoğan quando ele emprestou apoio a intervenções militares ocidentais bem-sucedidas em países muçulmanos. Assim, em 2006, quando a população turca condenou quase unanimemente a invasão do Líbano e o bombardeio do sul de Beirute por Israel, Erdoğan e Gül, então ministro das Relações Exteriores, insistiram na participação turca na força da onu enviada para conter o Hezbollah, o que as forças de defesa israelenses evidentemente não tinham conseguido fazer, com a justificativa de "socorrer" as vítimas libanesas.

De forma semelhante, o vice-primeiro-ministro Bülent Arınç explicou que o exército turco está no Afeganistão para ajudar a Otan a "proteger a paz". Quando doze soldados turcos foram mortos lá recentemente em um acidente de helicóptero, os apoiadores liberais do governo — com destaque para o ex-maoísta Şahin Alpay — se apressaram a apontar a indissociabilidade entre os interesses turcos e os interesses "globais", em resposta a um questionamento contundente do novo líder, pró-esquerda, do PRP, Kemal Kılıçdaroğlu, sobre se as tropas turcas estavam no Afeganistão "para defender os interesses da nossa nação". Conservadores islâmicos, entretanto, argumentam que o contingente turco da ISAF [Força Internacional de Assistência à Segurança, da Otan] está lá para proteger os afegãos dos excessos do imperialismo ocidental — uma desculpa usada com frequência quando se defende a participação da Turquia em ocupações lideradas pelos Estados Unidos5. Eles também enfatizam a necessidade de proteger o modelo turco do Islã contra uma suposta versão al-Qaeda. A participação da Turquia na ISAF , junto com a da Jordânia e a dos Emirados Árabes Unidos, tem claramente valor simbólico, e não militar, para os Estados Unidos: a presença de tropas de países predominantemente muçulmanos supostamente prova que essa não é uma cruzada cristã contra o Islã. Na verdade, ela ajuda a manter a Turquia presa em seu papel costumeiro de "ponte" entre o imperialismo ocidental e o mundo muçulmano — uma ponte para a travessia das forças da Otan. Uma minoria de forças islâmicas mais radicais, junto com a esquerda, muito reduzida, ainda resiste ao envolvimento, orientado pelo Ocidente, da Turquia na região e exige uma ação diplomática e militar independente. Mas um número muito maior de intelectuais e ativistas islâmicos apoia o governo em sua tentativa de afirmar a liderança islâmica e ao mesmo tempo permanecer uma extensão do Ocidente.

NEO-OTOMANO?

Uma vez que o objetivo da política externa central do AKP de entrada na ue tinha sido adiado — depois da rejeição pelos eleitores cipriotas do plano de Kofi Annan para contornar o fato flagrante de quarenta anos de ocupação militar da ilha pela Turquia —, a ostpolitik de Ancara adotou uma nova ênfase. Em 2007, quando líderes franceses e alemães fizeram discursos de campanha eleitoral sobre a "Europa cristã", Erdoğan, Gül e Davutoğlu puderam apontar para o novo papel da Turquia no Oriente. Durante a Guerra Fria, os esforços da política externa de Ancara tinham sido quase exclusivamente voltados para o Oriente (se é que as antigas relações com Israel podem ser incluí­das nessa expressão). A desintegração do Império Otomano tinha deixado um legado de desconfiança mútua em toda a região até então governada de Istambul. Os turcos acusavam os árabes de "apunhalá-los nas costas" ao cooperar com potências ocidentais após a Primeira Guerra Mundial; a modernização (e turquificação) kemalista visava a uma ruptura decisiva com a cultura islâmica e árabe, incluindo a romanização do alfabeto e a "purificação" desarabizante da língua. Similarmente, a dominação turca histórica era um leitmotiv negativo para os Estados árabes, fossem repúblicas seculares, fossem monarquias conservadoras; livros didáticos árabes se referiam aos turcos, não apenas aos otomanos, como imperialistas. Assim como os kemalistas atribuíam o "atraso" turco à influência decadente da cultura árabe, os nacionalistas árabes culpavam o colonialismo e a exploração otomanos pelos baixos níveis de desenvolvimento econômico de seus países. É verdade que alguns islamitas árabes detectavam aspectos virtuosos no passado otomano, enquanto alguns islamitas turcos também tinham nostalgia pelos tempos em que turcos, árabes e outros coexistiam sob o estandarte do Islã. Mas, se havia uma compaixão generalizada em relação aos sofrimentos dos palestinos, havia pouca solidariedade prática pró-árabe entre os islamitas turcos, e a mais influente organização religiosa do país, a comunidade Gülen — dirigida pelo clérigo Fethullah Gülen de seu exílio autoimposto na Pensilvânia —, defende uma agenda cultural explicitamente nacionalista turca6.

No início dos anos 2000, porém, três desenvolvimentos estavam começando a colocar a Turquia sob uma luz mais positiva, ainda que com alguns pontos escuros, para o mundo árabe. Em primeiro lugar, o país tinha combinado sua adesão ao neoliberalismo com uma democratização parcial, enquanto regimes árabes neoliberalizantes insistiam no autoritarismo, justificando seus aparatos de segurança repressivos para a elite global como um baluarte contra o islamismo radical, e para as massas árabes como uma defesa contra a ameaça israelense7 (uma desculpa ridícula, já que os governantes árabes sistematicamente fecharam os olhos para as depredações praticadas por Israel nos territórios ocupados, contentando-se com demagogia antissionista). Em segundo lugar, quando sua recuperação econômica do crash de 2001 ganhou fôlego, a Turquia passou a contar com entradas recordes de investimento estrangeiro direto, principalmente de países do Golfo, e começou a exibir números de crescimento mais altos — embora também desigualdades que se ampliavam rapidamente. Em terceiro lugar, o advento do governo do AKP despertou a curiosidade do mundo árabe: a tradição kemalista da Turquia era habitualmente retratada como ateia e antiárabe, mas os líderes do AKP eram aparentemente devotos e, no caso de Erdoğan, tinham um toque popular. Assim, enquanto a brutalidade da polícia, a pobreza, a desigualdade e o desemprego se intensificavam sob regimes árabes neoliberais autoritários, a Turquia reemergia na imaginação popular árabe como uma entidade ambivalente. O governo Erdoğ an se tornava um símbolo de força muçulmana, mas também evocava inquietação com a arrogância imperial dos turcos.

Essa arrogância foi amplamente exibida no tratamento dado pelo governo Erdoğan aos curdos da Turquia. Desde 1984, o Estado turco matou um número estimado em 40 mil de seus cidadãos curdos — comparável pelo menos às mortes atribuídas a Bashar Assad — e a repressão da língua e da cultura curdas foi mais selvagem na Turquia do que na Síria, no Iraque ou no Irã8. Nos dois primeiros anos de governo, o AKP introduziu algumas medidas descriminalizando a cultura curda, entre elas a permissão para transmissões limitadas de tv e ensino privado em língua curda, embora estas ficassem aquém do que os curdos vinham reivindicando. Mas, em 2005, o AKP começou a tomar um rumo estridentemente nacionalista turco, intensificando a repressão militar no sudeste e envolvendo as cidades em gigantescas bandeiras turcas. Ao mesmo tempo, e encorajado pela região curda autônoma de fato criada sob os auspícios da ocupação dos Estados Unidos no norte do Iraque, o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) encerrou seu cessar-fogo de cinco anos. A Turquia intensificou devidamente seus ataques aéreos a campos do PKK no Iraque, irritando o governo regional de Massoud Barzani. O governo Bush interveio para repreender severamente seus aliados em janeiro de 2005 e novamente em outubro de 2007, intermediando acordos pelos quais a mão de Barzani seria molhada por empresas de construção turcas, enormes contratos de infraestrutura seriam concedidos ao governo no Curdistão iraquiano, entre eles o do aeroporto Sulaymaniyah, de US$ 40 milhões, enquanto o exército turco era autorizado a bombardear livremente militantes do PKK abrigados no norte do Iraque9. Depois de sucessivas ondas de prisões, os ativistas estimam que haja agora pelo menos três mil estudantes turcos-curdos na prisão, assim como jornalistas e professores universitários, nem todos eles curdos, acusados de "propaganda terrorista" ou de "insultar a nação turca".

"ZERO PROBLEMAS"

Foi nesse contexto que Erdoğan, Gül e Davutoğlu lançaram a iniciativa diplomática que batizaram de "zero problemas com os vizinhos", com o objetivo de impressionar os Estados do Oriente Médio com a influência de Ancara em Washington, e Washington com sua nova influência no Oriente Médio. Muito dinheiro foi gasto na melhoria de embaixadas turcas, e muito tempo e energia em viagens diplomáticas pela região. A política de "zero problemas" tinha um componente comercial substancial. Economicamente, a Turquia permanece predominantemente orientada para o Norte e o Oeste: em 2010, o comércio turco com a ue foi de quase US$ 125 bilhões (exportações turcas de US$ 52,7 bilhões, importações de US$ 72,2 bilhões), enquanto o comércio com a Rússia e outras ex-repúblicas soviéticas foi de US$ 35,1 bilhões. Em contraste, o comércio com o GCC (Gulf Cooperation Council) e o Iêmen foi de US$ 10,3 bilhões (US$ 6,7 bilhões de exportações, US$ 3,6 bilhões de importações); o comércio com o Norte da África foi de US$ 8,2 bilhões; com o Egito, de US$ 3,2 bilhões; com a Síria, de US$ 2,5 bilhões, dos quais três quartos compostos de exportações turcas. No entanto, em 2010 o comércio com o Oriente Médio e o Norte da África foi substancialmente maior do que tinha sido em 2002 — até o triplo com a Síria, quase o quádruplo com o Norte da África, o quíntuplo com o GCC e o Iêmen e o séptuplo com o Egito10. Grande parte disso foi representada pela indústria da construção civil turca, com projetos muitas vezes facilitados por empréstimos de bancos turcos; empresas de alimentos e têxteis turcas investiram no Egito, na Síria e no Golfo. A diplomacia "zero problemas" de Davutoğlu também levou a um bem-vindo relaxamento das restrições para vistos de entrada de visitantes de Estados árabes na Turquia, colocando-os em pé de igualdade com turistas da UE e da Rússia. As exigências de visto para marroquinos e tunisianos foram atenuadas em 2007, e para sírios, libaneses, jordanianos e líbios em 2009. No ano seguinte, a Turquia amarrou um acordo com Síria, Líbano e Jordânia para criar uma zona de livre-comércio com quatro países, a Associação Econômica e Comercial de Vizinhos Próximos. A ofensiva diplomática da Turquia envolveu naturalmente relações mais cordiais com os governantes do Golfo, Mubarak, Ben Ali, Assad, Kadafi, e assim por diante. Em 2010, Erdoğ an voou para Trípoli para ser reverenciado pelo líder líbio com o Prêmio de Direitos Humanos Al-Kadafi daquele ano.

"Zero problemas" com Israel era um elemento central da política de Davutoğlu. O comércio bilateral com Israel quase triplicou no governo do AKP, passando de US$ 1,3 bilhão, em 2002, para US$ 3,4 bilhões, em 2010. A Turquia fez grandes compras de armas israelenses, os exercícios militares conjuntos foram ampliados e ofereceu-se à Força Aérea israelense o livre uso do espaço aéreo sobre Konya para suas missões de treinamento. Davutoğlu e Erdoğan investiram muito esforço na tentativa de mediar as relações entre Israel e seus vizinhos. Erdoğan estava particularmente encantado com o papel que imaginou para si de "facilitador" em uma nova iniciativa de paz sírio-israelense em 2008. De acordo com diplomatas locais, suas inúmeras viagens entre Bashar Assad e Ehud Olmert permitiam que "a Turquia se sentisse importante" e que Israel demonstrasse suas "intenções pacíficas". Relatou-se que Erdoğan se sentiu "chocado e traído no que ele achava serem compromissos pessoais de Olmert" quando o primeiro-ministro israelense lançou a ofensiva da Operação Chumbo Fundido em Gaza no fim de dezembro de 2008, cerca de um dia depois de uma aconchegante discussão com jantar de cinco horas com Erdoğan, durante a qual o líder turco fizera um longo telefonema para Assad. Naturalmente Olmert não fizera nenhuma menção aos planos das forças de defesa israelenses para Gaza. Esse foi o pano de fundo do protesto de Erdoğan em Davos algumas semanas depois, quando, ao participar de um painel com Shimon Peres, leu críticas de Avi Shlaim e outros ao ataque a Gaza e deixou a plataforma no momento em que o moderador tentou fazer com que ele resumisse sua fala. Isso rendeu a Erdoğan elogios abundantes na imprensa árabe por "enfrentar Israel", embora os exercícios da Força Aérea israelense no espaço aéreo turco continuassem, e, em 2010, Tel Aviv cumprisse devidamente a entrega de tanques M-60 recondicionados e drones Heron, para que o regime do AKP os utilizasse contra o PKK no norte do Iraque11.

As relações turco-israelenses foram ainda mais tensionadas pelo caso Flotilha da Liberdade, em maio de 2010, quando comandos israelenses mataram nove ativistas turcos a bordo do Mavi Marmara quando este navegava na direção de Gaza para romper o embargo israelense-egípcio. Muitos dos ativistas a bordo eram filiados à IHH, uma organização de auxílio islâmica que fornece ajuda a muçulmanos afligidos pela guerra. Na partida do navio houvera uma manifestação em grande escala organizada pelo Partido da Felicidade, o remanescente do agrupamento islâmico mais intransigente do qual Erdoğan e os outros líderes do AKP haviam se separado em 2001, e que desde então tem sido apenas um ator político menor. Vários parlamentares do AKP aparentemente também tinham tentado ir a bordo, mas o governo os havia mandado voltar pouco antes de o Mavi Marmara iniciar sua jornada fatídica. Embora comentaristas na Turquia especulassem que a rota do navio fora aprovada pelo governo, o AKP negou qualquer ligação. Enquanto isso, em uma rara declaração à imprensa para o Wall Street Journal , Fethullah Gülen, o líder islâmico mais influente da Turquia, acusou os ativistas da flotilha de "desafiar a autoridade", um pecado grave para intérpretes conservadores do Islã12. Na verdade, o AKP conseguiu satisfazer aos dois lados: em resposta aos críticos israelenses e americanos que disseram que ele deveria ter impedido o navio de navegar, pôde argumentar que não tinha nenhum controle sobre a situação; entre seu eleitorado islâmico e os muçulmanos em todo o mundo, no entanto, ele pôde ganhar crédito por uma tentativa de romper o embargo a Gaza. Alinhado com essa abordagem, Gül pediu um inquérito oficial da onu sobre o destino da Flotilha da Liberdade. Como era previsível, o relatório da onu, presidido pelo ex-primeiro-ministro da Nova Zelândia Geoffrey Palmer, concluiu que o bloqueio de Gaza — uma população de quase 2 milhões de pessoas presas em condições semelhantes às de um gueto, com suprimentos dependentes do capricho de Israel — era perfeitamente aceitável sob a legislação internacional13.

PRIMAVERA ÁRABE

A diplomacia "zero problemas" do AKP foi ainda mais desorganizada pelas revoltas árabes de 2011. Assim como os Estados Unidos e a maior parte da UE, o governo turco permaneceu em silêncio em janeiro de 2011, enquanto protestos contra o regime de Ben Ali cresciam na Tunísia, em contraste com o apoio imediato ao movimento oferecido, por diferentes motivos, pelo Qatar, pelo Irã e pelo Hezbollah. Erdoğan fez uma intervenção mais notável no Egito. Falando na tv turca em 1º de fevereiro de 2011, uma semana após o primeiro "dia de fúria", ele aconselhou Mubarak a "atender ao desejo de mudança do povo, sem hesitação" — "você deve ser o primeiro a dar um passo para a paz, a segurança e a estabilidade no Egito, sem permitir que exploradores, círculos corruptos e círculos que têm cenários sombrios para o Egito tomem a iniciativa"14. Isso estava amplamente alinhado com o apelo do governo Obama, em 30 de janeiro, a uma "transição ordeira", e na verdade seguiu-se ao anúncio de Mubarak de que ele não concorreria à eleição presidencial marcada para setembro de 2011. Mas serviu para posicionar Erdoğ an como um amigo da praça Tahrir.

Como Washington, mais uma vez, Ancara silenciou quando protestos irromperam no Bahrein em meados de fevereiro e fechou os olhos quando manifestantes foram atingidos com tiros e bombas de gás lacrimogêneo na Praça da Pérola. Em 20 de março, apenas uma semana depois de tanques sauditas terem rolado pela calçada para esmagar os manifestantes pela democracia, Erdoğan anunciou que a Turquia e a Arábia Saudita "dão uma contribuição importante para a paz e a estabilidade regionais, e exibem um modelo de cooperação"15. De fato, Erdoğan e Davutoğlu agiram para consolidar as relações turcas com a Arábia Saudita à medida que a Primavera Árabe se enfraquecia, trabalhando para fortalecer a sectarização — sunitas contra xiitas e alauitas — da região. Ancara, prudentemente, também se calou sobre o levante no Iêmen, onde interesses sauditas e americanos poderiam ter sido ameaçados se as demandas por empregos, padrão de vida e democratização fossem atendidas. Quando a repressão se acirrou, as divisões dentro da elite tribal governante assumiram maior relevância, por fim lançando tribo contra tribo, em vez de ativistas contra a ditadura16. Negociações tribais acabaram levando à remoção do presidente Saleh sem nenhuma grande mudança no aparelho do Estado, que se manteve adequado aos propósitos dos sauditas e do governo Obama17.

A geopolítica da Primavera Árabe sofreu uma mudança decisiva com a militarização da revolta líbia, sob os auspícios das potências da Otan. Em 17 de março de 2011, a "comunidade internacional" autorizou-se a impor uma zona de exclusão aérea — de fato, uma guerra aérea contra o regime de Kadafi — e tomar "todas as medidas necessárias", nos termos da Resolução 1973 do Conselho de Segurança da onu. Nesse caso, o governo Erdoğan se dividiu18. A princípio o próprio Erdoğan havia se oposto à intervenção da Otan, deixando consternados seus apoiadores liberal-atlanticistas. Em 15 de março, ele anunciou em uma entrevista na tv que havia telefonado pessoalmente a Kadafi e o aconselhado a ouvir o povo e nomear um novo presidente. Seguiram-se muitas guinadas depois que a operação da Otan foi posta em prática. Em 25 de março, uma força naval turca foi enviada para impor o bloqueio de portos controlados por Kadafi. O Meclis aprovou o envio de mais forças, inclusive tropas, se necessário. Representantes turcos protestaram contra o fato de a Operação Harmattan, da França, se aproveitar secretamente da ação combinada das potências da Otan, e a base aérea de Izmir foi oferecida para o bombardeio. Os franceses contra-argumentaram que Erdoğan e Davutoğlu estavam ressentidos por não terem sido convidados para a reunião de cúpula que Sarkozy havia convocado após a aprovação da Resolução 1973 do Conselho de Segurança da onu. Sarkozy agiu para impedir que a Turquia desempenhasse um papel de liderança no ataque. Isso não foi difícil, dados os sentimentos ambíguos e as divisões internas entre as forças pró-governo na Turquia. Erdoğan e Davutoğlu decidiram a contragosto dar apoio logístico à Otan. No início de julho de 2011, Davutoğlu voou para Bengasi para encontrar os líderes do Conselho Nacional de Transição (CNT) e anunciar o reconhecimento pela Turquia do CNT como legítimo representante do povo líbio.

Essas incoerências foram em boa parte causadas pelas dificuldades de conciliar a abordagem "zero problemas" de Davutoğlu com as realidades das alianças ocidentais da Turquia, no contexto do que era, para Washington, Paris e Londres, uma guerra periférica de menor importância. Junto com os Estados Unidos e outros importantes Estados ocidentais, a Turquia tinha desenvolvido não só boas relações diplomáticas, mas também bons negócios com Kadafi, lucrando em especial com o boom de construção líbio após 2009. Não estava claro que a derrubada violenta do regime beneficiaria a Turquia, ao passo que as potências ocidentais, que tinham mais controle sobre a transição, poderiam contar com sua capacidade de dividir e manipular os novos detentores do poder líbio. Mas as guinadas do governo turco tinham outra fonte: os ideólogos e militantes de formação islâmica, que ainda constituíam as vértebras ideológicas do AKP, haviam combatido ditaduras; mas tinham também se oposto à ação militar ocidental na região, que desde 1990 adotara, ainda que seletivamente, a agenda da derrubada de ditadores. Como vimos, muitos desses apoiadores do AKP estavam agora fazendo as pazes com o papel subimperial da Turquia na região, como um baluarte da ordem da Otan. Essa era a dimensão diplomática e geopolítica de um processo mais amplo de absorção que descrevi em outro lugar como uma "revolução passiva"19. Em maio de 2011 — um mês em que mais de setecentos civis líbios foram mortos por ataques aéreos da Otan, de acordo com Trípoli —, Davutoğ lu resumiu a posição desses ex-anti-imperialistas islâmicos em relação às revoltas radicais da Primavera Árabe:

Um espírito revolucionário, uma cultura de rebelião se desenvolveu nesta região [...] Se eu não estivesse neste cargo, ou se fosse jovem, eu entoaria "Vida longa à revolução". Mas, como a grande potência [ büyük devlet] que guarda a estabilidade na região, temos de assegurar que as pessoas sejam prejudicadas o mínimo possível20.

Uma empatia "desencantada" e madura com a juventude e a rebeldia combinada a um elogio da ordem e da estabilidade; uma "ética de responsabilidade" que defende o Estado como o protetor de populações indefesas, ao mesmo tempo que seus mísseis chovem sobre elas; tais são as realizações do modelo turco do AKP. Claro, pode-se apontar para conversões semelhantes em Paris, Londres e Berlim.

GUERRA A DAMASCO

Até certo ponto, a resposta do governo Erdoğan à revolta na Síria seguiu um caminho semelhante. Aqui, as próprias políticas de livre mercado que Erdoğan e Davutoğlu vinham promovendo por meio da Associação Econômica e Comercial regional haviam ajudado a piorar a má situação da juventude nas cidades agrícolas decaídas, de Daraa, no sul, a Homs, Hama e Idlib, que seriam o centro da revolta, enquanto uma minúscula elite tinha ficado espetacularmente rica. Inicialmente, no fim de março e em abril de 2011, enquanto o regime de Damasco enfrentava manifestações com gás lacrimogêneo e canhões de água, Erdoğan buscou de novo se posicionar como mediador, tentando persuadir Assad a negociar com o braço político da Irmandade Muçulmana síria e marcar eleições. Ao mesmo tempo que navios de guerra turcos eram preparados para a operação da Otan contra Kadafi, Erdoğan informava à imprensa internacional que havia insistido para que Assad adotasse uma abordagem "positiva, reformista" — "é nosso desejo sincero que não haja aqui eventos dolorosos como na Líbia"21. O objetivo de Ancara era uma transição democrática administrada que ampliasse a base do regime de Assad — uma estratégia de revolução passiva que reconhecia que, para que permanecessem as mesmas, as coisas teriam de mudar22.

Isso estava em nítido contraste com a linha de Riad, tal como transmitida a um ex-operador do Departamento de Estado americano por um "alto funcionário saudita", que observou que "desde o início da revolta síria, o rei acreditou que a mudança de regime seria extremamente benéfica para os interesses sauditas, em particular vis-à-vis a ameaça iraniana. 'O rei sabe que, afora o colapso da própria República Islâmica, nada enfraqueceria mais o Irã do que perder a Síria'"23. À medida que a posição da Arábia ganhava força em Washington, no entanto, a linha turca também começou a mudar24. Embora mantendo contato com o regime de Assad, o governo Erdoğan permitiu que o líder da ala militar da Irmandade Muçulmana síria desse uma entrevista coletiva à imprensa em maio de 2011 em Istambul; em junho de 2011, a Turquia organizou uma conferência da oposição síria. Em julho de 2011, o Exército Livre da Síria (ELS), visando a derrubada militar do regime de Assad, foi criado na província meridional turca de Hatay, com apoio logístico dos Estados Unidos e dinheiro e armas sauditas; líderes do ELS receberam a proteção da polícia turca. Isso só poderia servir para confirmar a decisão fatalmente destrutiva de Assad, baseada na visão baathista de islamitas sunitas sírios de que deviam fidelidade a potências do Golfo, de tentar manter a ordem existente pela força. A principal demanda do ELS era uma zona de exclusão aérea; ou seja, o bombardeio ocidental de defesas sírias. Suas campanhas, concentradas principalmente nos arredores de Homs, eram travadas de olho nos meios de comunicação ocidentais incorporados em suas fileiras; quanto maior a atrocidade, mais provável era criar pressão internacional a favor de ataques aéreos americanos. O número de mortos subiu devidamente, enquanto forças sírias bombardeavam posições do ELS em áreas residenciais, e uma multidão de milícias sectárias, tanto alauitas como sunitas, saqueava e matava em meio à destruição.

Na Turquia, o ufanismo da imprensa islâmica liberal e conservadora cresceu regularmente até o início de 2012. Pedidos de intervenção turca também vinham de forças conservadoras no mundo árabe, particularmente do diário Sharq al-Awsat , sediado em Londres, cuja principal precondição era que deveria haver de antemão a aprovação ocidental. A Irmandade Muçulmana e outras forças islâmicas haviam jogado de bom grado a carta anti-imperialista quando Erdoğ an falara em separar a religião do Estado, mas jogaram a carta da intervenção humanitária quando quiseram se livrar de um regime. No momento em que escrevo, nem a Turquia nem os Estados Unidos estão prontos para uma incursão terrestre — descrita eufemisticamente como uma "zona-tampão" — ou um bombardeio aéreo, também conhecido como zona de exclusão aérea. Isso parece ser conveniente também para Israel. Argumentou-se que:

Um regime de Assad enfraquecido mas estável, em comparação com um regime sob "domínio islâmico", parece preferível para os dirigentes israelenses [...] Embora Israel veja vantagens em uma redução da influência iraniana na Síria, também vê um futuro sombrio em uma Síria pós-Assad, em que grupos islâmicos poderiam ganhar proeminência. Como consequência, o endosso pouco entusiasmado de Israel à queda de Assad ajudou a reduzir o senso de urgência entre os dirigentes americanos25.

Em meio a essa incerteza, a ala mais pró-ocidental do governo turco acompanhou as iniciativas americanas. No início de março de 2012, Gül era favorável à "via iemenita" para a Síria: Assad devia nomear um de seus assessores, como Saleh havia feito, e se afastar, deixando as estruturas de governo intactas; a notoriamente dividida oposição síria ainda não estava pronta para governar o país. Na semana seguinte, ele alertou contra a intervenção militar, pedindo uma "solução política" e uma reunião ampliada dos "Amigos da Síria" em Ancara que incluísse a Rússia, descartando, assim, uma opção militar26. Durante o mesmo período, Erdoğan deu as costas às exigências da Liga Árabe, que significativamente incluíam um "corredor humanitário" — significando uma invasão terrestre por parte da Turquia, o que levaria inevitavelmente a um conflito armado com o regime de Assad. Portanto, apesar de suas pretensões à liderança regional, a Turquia não conseguiu articular uma posição própria coerente. O melhor que Erdoğan foi capaz de propor foi contrabalançar a posição de Gül com a da Liga Árabe, ou seja, uma versão limpa da posição de Riad. A Turquia não liderou, seguiu atrás. A falta de clareza do governo permite interpretações conflitantes de suas ações. Mesmo entre os colunistas do diário pró-governo Yeni Şafak , alguns veem ampla "prova" de que o AKP está tentando tirar Assad do poder o mais depressa possível, enquanto outros acreditam que a prioridade do governo é a estabilidade em suas fronteiras e um rápido cessar-fogo27.

COMUNALISMO SUNITA

No geral, a imprensa turca islâmica foi muito mais receptiva à ideia de intervenção na Síria do que na Líbia, e pelo pior dos motivos. Além da simpatia pela Irmandade Muçulmana e por outras forças islâmicas na Síria, fortemente visadas historicamente pelo regime baathista, há uma identificação com os sunitas contra os xiitas sírios (nenhum desses motivos tinha impedido o AKP de desenvolver laços estreitos com Assad). Vozes pró-Turquia argumentaram que as divisões sectárias ou tribais presentes na sociedade da Líbia, do Bahrein, do Iêmen ou da Síria tornam o modelo parlamentar-constitucionalista moderadamente islamizado da Turquia ainda mais desejável, mostrando um caminho para sair do atoleiro. Mas, em vez de ficar acima dessas cisões, a Turquia se afundou ainda mais em seu próprio cenário étnico e sectário complexo, à medida que a turbulência política se aproximava de suas fronteiras. A hegemonia pacífica do AKP se baseia principalmente no fato de que a Turquia tinha extirpado à força seus 20% de população cristã, por meio do extermínio dos armênios e da expulsão dos gregos, entre 1915 e meados da década de 1950; esse não é um modelo muito bom a ser seguido por sírios e libaneses. E, apesar de os marginalizados e empobrecidos alevitas da Turquia terem práticas religiosas diferentes das dos alauitas sírios, e muito poucos laços com eles, o ódio dos sunitas sírios pelo governo da minoria alauita em Damasco pode ser facilmente reproduzido contra eles. O movimento islâmico turco foi liderado, ocupado e esmagadoramente apoiado pelos sunitas, apesar da existência no país de uma considerável minoria sectária muçulmana. Em 2012, os alevitas turcos mais uma vez encontraram marcas de giz em suas portas, que lembravam as da década de 1970, quando turbas sunitas — lideradas pelos nacionalistas de extrema-direita Lobos Cinzentos, mas atraindo conservadores e islamitas — executaram grandes massacres sectários.

O conflito sírio tem implicações complexas para a Turquia. Os dois países têm uma fronteira muito extensa; a Síria é uma importante rota de comércio turca para a região central árabe, e os turcos sunitas têm muitas relações comerciais ao longo do caminho. Acima de tudo, o possível nascimento de mais um pequeno Estado curdo assombra a ordem dominante da Turquia. No norte da Síria, o Partido da União Democrática (PYD), a ala síria do PKK, é a mais bem implantada e a mais organizada das forças curdas. No verão de 2011, quando o governo Erdoğan deu seu apoio ao ELS, Assad ofereceu um acordo de cidadania aos curdos sírios e parou de compartilhar informações sobre o PKK com a Turquia. Ancara tentou levar Barzani, o governante do Curdistão iraquiano, a impor sua hegemonia sobre os curdos sírios, mas os resultados tiveram curta duração. Quando Assad retirou suas forças das fronteiras norte e sul para expulsar o ELS de Aleppo, em julho de 2012, o PYD foi deixado no controle de uma série de cidades fronteiriças curdas: Ayn al Arab, partes de Qamishli, Efrin, Amude. De modo danoso para a exemplaridade da Turquia, os protestos dos curdos sírios contra o papel de Ancara foram um dos motivos para as altercações no Conselho Nacional Sírio, o agrupamento de oposição apoiado pelo Ocidente, junto com diferenças sobre a intervenção externa e a democracia interna28. Na verdade, enquanto prisioneiros políticos eram libertados no Egito e na Tunísia, prisioneiros civis curdos — bem como jornalistas, estudantes e professores não curdos — continuavam a povoar prisões turcas. Em dezembro de 2011, agindo com base em informações obtidas por drones dos Estados Unidos, jatos turcos lançaram um ataque aéreo contra um grupo de curdos pobres que carregavam cigarros contrabandeados através das montanhas perto da fronteira com o Iraque, matando três dúzias deles. Como poderia um país que tratava seus próprios cidadãos curdos dessa forma servir como um modelo para aqueles de seu vizinho?

MIRANDO O IRÃ

Finalmente, qualquer revisão das relações da Turquia com a Síria também significa uma redefinição das relações com outro vizinho, o Irã. Nos anos que antecederam a Primavera Árabe houvera uma aproximação importante entre Ancara e Teerã, apesar do ceticismo americano (e israelense). O surgimento do Curdistão iraquiano ajudou os governantes de ambos os países a convergir na luta contra a insurgência curda. O comércio bilateral aumentou significativamente nos últimos dez anos; o Irã é hoje o segundo maior fornecedor de gás natural da Turquia, só ficando atrás da Rússia29. Em maio de 2010, a Turquia e o Brasil intermediaram um acordo de processamento de urânio de baixo teor com o Irã, ambos aparentemente pensando que tinham sinal verde de Washington. Em setembro de 2011, porém, a Turquia havia concordado em instalar um sistema de radar de defesa contra mísseis da Otan perto de sua fronteira com o Irã, alegando que não haveria nenhuma menção ao programa nuclear do Irã como justificativa. Joost Lagendijk, ex-codiretor da delegação de parlamentares Turquia-ue, sugeriu que os Estados Unidos "precisam da Turquia" não apenas para derrubar Assad, mas também para desafiar o controle iraniano sobre o Iraque30.

No rescaldo da ocupação do Iraque pelos Estados Unidos, a campanha de longa data de Israel para manter seu monopólio nuclear na região se amalgamou à hostilidade saudita ao Irã e ao "crescente xiita" que, aos olhos de Riad, se estende desde o Irã, através do Iraque de Maliki, até a Síria e o sul do Líbano controlado pelo Hezbollah. Com a sectarização crescente, a Turquia parece estar desempenhando um papel cada vez mais aberto em uma coalizão sunita apoiada pelo Ocidente cujo alvo final é o Irã. Se havia rumores de descontentamento nos Estados Unidos, e entre círculos seculares e conservadores na Turquia, de que Ancara estava ficando muito íntima do Irã e até do próprio Ahmadinejad em 2009-2010, o pêndulo agora oscilou de volta, ganhando mais impulso da base sunita do AKP e do movimento islâmico em geral. Há conversas crescentes sobre uma possível guerra com o Irã, em especial se a Turquia decidir enviar tropas para a Síria. Ao mesmo tempo, a imprensa árabe sunita tem celebrado, com alguma cautela, o advento da "Turquia sunita". Comentaristas árabes, e alguns de seus colegas turcos, gostam de invocar as rivalidades históricas entre os impérios Otomano e Persa, como se o regime do AKP precisasse inflar suas pretensões imperiais31. Alguns intelectuais islâmicos afirmam que jáhá uma guerra sectária em curso, e que o Irã, o Iraque e a Síria a começaram. Eles estão embarcando na onda de sectarização, alegando que não podemos ignorar esse "fato" e que a Turquia deveria estar se preparando para travá-la como uma guerra sunita-xiita32.

No Iraque, sugere-se, isso poderia significar uma coalizão de sunitas iraquianos e forças curdas, com maior apoio sunita árabe e turco, alinhados contra o governo dominado por xiitas de Maliki em Bagdá. Houve uma insinuação disso em abril de 2012, quando o vice-presidente (sunita) do Iraque, Tariq Hashemi, se refugiou na Turquia depois de primeiro "visitar", ou fugir para, o Qatar e a Arábia Saudita, após o regime de Maliki ter emitido um mandado de prisão contra ele33. O governo iraquiano reagiu com um ataque verbal, e a Turquia revidou na mesma moeda. No meio dessa disputa de gritos transfronteiriça, Massoud Barzani decidiu visitar a Turquia e as tensões aumentaram ainda mais. Apesar da posição oficial do AKP contra a divisão do Iraque em três Estados, especulações febris proliferaram: o verdadeiro projeto de Erdoğan era a criação de uma confederação curda, sob tutela turca34? Não havia dúvida de que o governo do AKP descera de seu trono suprassectário autoatribuído quando decidiu abrigar uma figura destacada acusada internacionalmente de massacres sectários, mesmo que algumas das acusações sejam forjadas (e que outras possam ser atribuídas a Maliki). O regime confirmou, mais uma vez, a autoidentificação sunita do Estado turco.

RETROCESSOS

A Turquia precisa enfrentar seus próprios problemas de repressão sectária e étnica, coerção estatal e desigualdade econômica antes que possa se oferecer como um modelo para qualquer outro país. Não se pode esperar que as bolhas imobiliária e de crédito que elevaram suas taxas de crescimento nos últimos anos durem; sua oferta de serviços sociais é escassa, e sua distribuição de renda é a mais desigual da OCDE, pior que a do Egito ou a da Tunísia35. No front das liberdades civis, é verdade que o AKP travou uma luta decidida contra os enormes poderes que o Alto Comando militar usufruía sob o antigo regime; mas esta tem cada vez mais tomado a forma de substituir o militarismo kemalista por um novo Estado policial. A mais poderosa organização religiosa da Turquia, a fechada comunidade Gülen, exerce vasta influência na polícia e no Judiciário; alguns sugerem que ela agora está sendo estendida ao mit, o serviço de inteligência. Acredita-se que Gülen seja o responsável pela prisão de vários jornalistas críticos ao longo dos últimos dois anos36. Em 2010, o governo Erdoğ an forçou a aprovação de um conjunto notavelmente ambíguo de emendas à autoritária Constituição de 1980, mantendo alguns de seus componentes mais nacionalistas e repressivos: "insultar a nação turca", prontamente estendido a qualquer crítica ao Estado, continua a ser uma ofensa criminosa.

Em 2002, muitos liberais turcos tinham imaginado que o AKP era a melhor aposta do país para a "modernização" e a "integração com o mundo", e especialmente para o ingresso na UE. Círculos intelectuais da "esquerda libertária", ou özgürlükçü sol , desempenharam um papel decisivo no reforço da aprovação ao projeto de liberalização conservadora do AKP. Eles se lançaram atrás do AKP durante sua luta com as forças armadas, e por um longo período estenderam esse apoio incondicional também a outras políticas do governo, inclusive a suas emendas constitucionais. Intelectuais liberais influentes comemoraram o papel da polícia na "democratização" da Turquia — leia-se, retirar gradualmente o poder dos militares — e descobriram a face humana dos novos quadros da polícia. Essa ingenuidade traía uma leitura reducionista do Estado turco, cujo autoritarismo era atribuído à "tutela militar", e uma incapacidade de analisá-lo como um conjunto diferenciado de instituições e atores sociais com preocupações e interesses ora coincidentes, ora conflitantes. A estratégia dos liberais de ignorar as tendências autoritárias do governo Erdoğan se voltaram contra eles quando as emendas constitucionais foram seguidas pela mais pesada onda de repressão em muitos anos. Alguns agora se tornaram críticos do regime AKP-Gülen.

Internacionalmente, os defensores de um modelo turco para o mundo islâmico frequentemente o contrapõem aos exemplos do Irã ou da Arábia Saudita, situados no extremo oposto do espectro. Os eventos de 2011 sugerem um quadro diferente. As principais linhas de demarcação na região estão ficando menos ideológicas e já não são traçadas entre "islâmicos moderados" e conservadores. A exacerbação do conflito sírio começou a cristalizar diferenças sectárias supostamente "primordiais". Por mais dessemelhantes que possam ser em alguns aspectos, Arábia Saudita e Turquia encontram-se agora no mesmo campo, com o Irã como o inimigo comum. Mas, ainda que a situação possa mudar, é a Arábia Saudita, com apenas um terço da população da Turquia, que parece estar tendo o maior sucesso na moldagem do atual fluxo político a seus próprios interesses. Nem um murmúrio é emitido pela "comunidade internacional" quando ela submete sua população xiita ao mesmo tratamento que Assad dá aos manifestantes sírios. Erdoğan fez grande estardalhaço de sua turnê em setembro de 2011 pelas capitais do Egito, da Tunísia e da Líbia, acompanhado de 280 empresários turcos dispostos a aproveitar fontes baratas de mão de obra e declarando sua intenção de triplicar o investimento turco37. Mas a visita também demonstrou os limites da influência turca. A Irmandade Muçulmana não tinha nenhuma objeção a citar a Turquia do AKP como um modelo econômico, mas a demanda de Erdoğ an de um Estado secular incitou uma amarga resposta "anti-imperialista" dos Irmãos: a organização disse a ele que não se intrometesse nos assuntos internos do Egito. Enquanto isso, a primeira visita externa do presidente Morsi foi a Riad.

A política de "zero problemas com os vizinhos" do AKP está arruinada, enquanto a campanha insultuosa do rei Abdullah contra o Irã está agora na ordem do dia, promovida não só por Washington, Israel, o mundo sunita e a UE, mas também por Wall Street, com apenas a Rússia e a China resistindo à rixa internacional. Embora a convulsão da Síria confronte Ancara com o repentino fortalecimento de seu inimigo interno, o PKK, a Família Saud pode esperar ver o Líbano voltar ao seu bolso se o Hezbollah for debilitado pela fraqueza ou queda de Assad. Além disso, a liderança turca tem demonstrado constantemente sua vontade de priorizar a realpolitik sectária em detrimento dos princípios da democratização e da autodeterminação. Bahrein, com sua maioria xiita e sua monarquia autocrática sunita, serviu como um teste decisivo. Não só a Turquia fechou os olhos quando a monarquia esmagou violentamente os protestos; nos primeiros meses de 2012, como um prelúdio a uma crescente cooperação com os regimes do Golfo, Gül visitou os Emirados Árabes Unidos e exigiu democracia para a Síria durante seus encontros amigáveis com os autocratas lá. Nada poderia ilustrar melhor a natureza dos compromissos de Ancara com a democracia e a não intervenção na região. Ao longo da Primavera Árabe, a Turquia só fez solidificar suas relações com os sauditas; está seguindo de perto não apenas as políticas de Washington e Israel, mas também as de Riad — reforçando ainda mais as forças da reação na região.

Notas

[1] "In Turkey's example, some see map for Egypt".
New York Times , 5/02/2011. Ver também International Crisis Group (icg). "Turkey and the Middle East: ambitions and constraints", 7/04/2010, p. 20. Eu gostaria de agradecer a Aynur Sadet por comentários sobre o texto.
[2] Ramadan, Tariq. "Democratic Turkey is the template for Egypt's Muslim Brotherhood". New Perspectives Quarterly, vol. 28, nº 2, 2011.
[3] Cagaptay, Soner. "The empires strike back". New York Times, 14/01/2012.
[4] Ver Tuğal, Cihan. "NATO's Islamists". New Left Review, 44, mar.-abr.
[5] Laçiner, Sedat. "Neden Afganistan'dayız?. Star, 22/03/2012.
[6] Kösebalaban, Hasan. "Making of enemy and friend: Fethullah Gülen's national-security identity". In: Yavuz, M. Hakan e Esposito, John L. (orgs.). Turkish Islam and the secular state: the Gülen Movement. Syracuse: Syracuse University Press,
[7] Ver, por exemplo, Stepan, Alfred e Robertson, Graeme. "An 'Arab' more than 'Muslim' democracy gap". Journal of Democracy, vol. 14, nş 3,
[9] Em 2010, o comércio da Turquia com o Iraque havia subido para US$ 7,4 bilhões, dos quais US$ 6 bilhões correspondiam a exportações turcas, quase todas para o Curdistão iraquiano, onde a Turquia controla agora 95% do mercado de construção. Ver Kiri şci, Kemal. "Turkey's 'demonstrative effect' and the transformation of the Middle East". Insight Turkey, vol. 13, nş 2, 2011,
[12] "Reclusive Turkish imam criticizes Gaza Flotilla". Wall Street Journal, 4/06/2010.
[13] A coordenação entre as forças aéreas turca e israelense foi suspensa, mas reiniciada no fim de 2011: "Turkey, Israel reinstate air force coordination mechanism". Today's Zaman, 22/12/2011.
Para comentários internacionais sobre o Mavi Marmara, ver Baruh, Lemi e Popescu, Mihaela. "Communicating Turkish-Islamic identity in the aftermath of the Gaza flotilla raid". New Perspectives on Turkey, 45, 2011, pp. 76-
[14] "Erdoğan's Cairo speech". Blog da Foreign Policy, postado em 2 de fevereiro de 2011,
[15] "Erdoğan: 'Suudi Arabistan'la tam bir iş birligği içindeyiz'". Milliyet, 20/03/2011.
[16] Fattah, Khaled. "Yemen: A social intifada in a republic of dheikhs". Middle East Policy, vol. 18, nş 3, 2011,
[17] "US teaming with new Yemen government on strategy to combat Al Qaeda". New York Times, 26/02/2012.
[19] Tuğal, Cihan. Passive revolution: absorbing the Islamic challenge to capitalism. Stanford: Stanford University Press,
[20] Aydınta şbaş, Aslı. "Davutoğlu'yla zor sohbet". Milliyet, 5/05/2011.
[21] Strauss, Delphine. "Erdoğan urges Assad to hasten reform". Financial Times, 28/03/2011.
[22] Cebeci, Erol e Üstün, Kadir. "The Syrian quagmire: what's holding Turkey back?". Insight Turkey, vol. 14, n ş 2, 2012,
[23] Hannah, John. "Syria: the king's statement, the president's hesitation". Blog da Foreign Policy, 9 de agosto de 2011.
[24] Em abril de 2011, Hannah escreveu, com referência ao homem de Riad em Washington, o príncipe Bandar bin Sultan: "Trabalhando em conjunto com os Estados Unidos, Bandar [...] pôde se revelar um grande trunfo nos esforços para moldar as revoltas do Oriente Médio de 2011, em uma direção que serve aos interesses dos eua [...] Bandar trabalhando sem referência aos interesses dos eua é claramente motivo de preocupação. Mas Bandar trabalhando como um parceiro de Washington contra um inimigo comum iraniano é um grande trunfo estratégico. Baseando-se em recursos e prestígio sauditas, a engenhosidade e a inclinação de Bandar para uma atuação ousada poderiam ser utilizadas de forma excelente em toda a região de maneiras que reforcem a política e os interesses dos eua: através de medidas econômicas e políticas que enfraqueçam os mulás iranianos [e] solapem o regime de Assad". Hannah, John. "Bandar's return". Foreign Policy, 22/04/2011.
[26] "Suriye'ye Yemen modeli". Sabah, 3/03/2012;
Mu'arada Tunisiyya-Turkiyya li ay Tadakhkhul min Kharij al-Mintiqa fi Suriyya. Sharq al-Awsat, 9/03/2012.
[27] Ver Karagül, İbrahim. "Suriye için 'Misak-ı milli'. Yeni Şafak, 27/03/2012;
e Emre, Akif. "S uriye açmazında yeni dönemeç. Yeni Şafak, 27/03/2012.
[28] "Akrad Suriyya yatawaqq'un fashal mu'tamar Istanbul al-muqbil", Sharq al-Awsat, 29/03/2012.
[29] McCurdy, Daphne. "Turkish-Iranian relations: when opposites attract". Turkish Policy Quarterly, vol. 7, n ş 2,
[30] Lagendijk, Joost. "Using Turkey's expertise to deal with Iran". Today's Zaman, 29/02/2012.
[31] 'Adil al-Tarifi, "Turkiyya 'al-Sunniyya' [...] wa Fashal siyasa al-Ihtiwa". Sharq al-Awsat, 25/04/2012.
[32] Por exemplo, ver Karagül, İbrahim. "Korkulan oldu, bölündük...", Yeni Ş
afak; Ünal, Ali. "Terör ve dış gelişmeler". Zaman, 26/03/2012.
[33] "Baghdad turji' muhakama al-Hashemi mujaddadan". Sharq al-Awsat, 11/05/2011.
[34] Çakır, Ru şen. "Özal'ın hayali gerçekleşiyor mu?", Vatan, 24/04/ 2012.
[35] "Social Justice in the oecd How do the member states compare?". Gütersloh,
[36] A comunidade Gülen recebeu cobertura notavelmente simpática nos principais meios de comunicação ocidentais. Ver, por exemplo, "Turkish schools offer Pakistan a gentler vision of Islam". New York Times, 4/05/2008;
Global Muslim networks: how far they have travelled. Economist, 6/03/2008;
Meet Fethullah Gülen, the world's top public intellectual. Foreign Policy, 4/08/2008.
[37] "Turkey, Egypt form strategic cooperation council". Today's Zaman, 13/09/2011.

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