31 de março de 2023

O Red Scare mirou em radicais negros como Langston Hughes

O poeta Langston Hughes foi convidado para falar no Occidental College neste dia em 1948, mas deixou de ser convidado quando os red-baiters divulgaram um relatório chamando-o de "subversivo". Sua história mostra como o Red Scare do pós-guerra atingiu os radicais, especialmente os esquerdistas negros.

Peter Dreier


O poeta, autor, dramaturgo e ativista radical Langston Hughes em Nova York, fevereiro de 1959. (Arquivos Underwood / Getty Images)

No outono de 1947, o Eagle Rock Council for Civic Unity programou uma palestra de Langston Hughes para ser realizada no Thorne Hall de oitocentos lugares do Occidental College em 31 de março de 1948. Mas dias antes de Hughes chegar ao campus, o conselho de curadores da faculdade de Los Angeles convocou apressadamente uma reunião e cancelou sua palestra.

Hughes foi um dos escritores negros mais conhecidos da América, com muitos volumes de poesia, contos, artigos de revistas, roteiros de rádio, uma peça da Broadway, um musical da Broadway, um roteiro de Hollywood, letras de músicas e uma popular coluna de jornal em seu currículo. Mas esse era o alvorecer do macartismo e, quando os curadores olharam para Hughes, tudo o que viram foi um Red.

O incidente ilustra como funcionou o insidioso Red Scare pós-Segunda Guerra Mundial. Em um período de tensões crescentes entre os Estados Unidos e a União Soviética, políticos conservadores, jornais e outros procuraram assustar as pessoas, fazendo-as pensar que os comunistas estavam fazendo lavagem cerebral nos americanos e subvertendo nossa democracia ao se infiltrar em instituições importantes — principalmente sindicatos trabalhistas, Hollywood e televisão, universidades e a mídia. Eles orquestraram investigações e audiências para identificar os chamados agitadores de esquerda. Se os identificados se recusassem a obedecer — ou seja, a dizer que eram comunistas e a denunciar seus amigos radicais — provavelmente perderiam seus meios de subsistência. Produtores de Hollywood, estações de rádio e TV, gravadoras, faculdades, conselhos locais de educação, editoras de livros e casas de shows demitiram ou se recusaram a contratar aqueles cujos nomes apareciam em listas notórias dos chamados "subversivos".

O objetivo não era simplesmente erradicar os comunistas, mas assustar os americanos contra as críticas ao racismo americano, à política externa e às violações dos direitos dos trabalhadores, entre outras preocupações. O Red Scare procurou não apenas sufocar o direito de discordar, mas também a vontade de discordar, tornando certas críticas um tabu. Por exemplo, no filme de 1949 A Ameaça Vermelha, os comunistas são retratados protestando em uma imobiliária — uma mensagem não tão sutil de que qualquer um que defendesse moradia para veteranos ou negros americanos, questões ativistas comuns na época, deveria ser um Comunista.

Os red-baiters visavam particularmente os direitos civis e ativistas sindicais, professores do ensino médio, professores universitários, escritores e artistas, cancelando suas palestras, livros, apresentações e até mesmo seus passaportes. Raça desempenhou um papel enorme no Red Scare. Figuras negras proeminentes que foram investigadas e colocadas na lista negra incluíram Paul Robeson, W. E. B. Du Bois, Charlotta Bass, Canada Lee, Dorothy Dandridge, Sidney Poitier, Lena Horne, Richard Wright, Hazel Scott, Harry Belafonte, Ferdinand Smith, Alphaeus Hunton, Langston Hughes e muitos outros. Em julho de 1949, o Comitê de Atividades Antiamericanas da Câmara (HUAC) chegou a realizar três dias de audiências sobre “Infiltração comunista de grupos minoritários”. Ainda na década de 1960, o FBI e grupos de direita perseguiam supostos comunistas no movimento pelos direitos civis, incluindo vários assessores próximos de Martin Luther King Jr.

O evento Hughes em 1948, promovido pelo Conselho de Eagle Rock, pretendia arrecadar fundos para ajudar a pagar os custos da faculdade de uma estudante negra local que queria estudar na Occidental (apelidada de "Oxy"), que acabara de admitir seu primeiro aluno negro naquele ano. O conselho começou após a Segunda Guerra Mundial, inicialmente para ajudar os nipo-americanos deslocados a voltarem para suas casas na grande Los Angeles e para desafiar a imagem de Eagle Rock — o bairro onde a Occidental estava localizada — como um "enclave totalmente branco". O conselho foi um dos vários grupos com sede em Los Angeles envolvidos em uma campanha para proibir a discriminação racial na habitação em um momento em que isso era altamente controverso. Era afiliado ao Conselho Americano de Relações Raciais, um grupo liberal, mas dificilmente de esquerda, que buscava promover a tolerância religiosa e racial.

O evento Hughes na Occidental estava programado para acontecer sem problemas. Mas mal sabiam os organizadores que nas semanas que antecederam a palestra agendada, o senador estadual Jack Tenney, presidente do Comitê de Apuração de Fatos sobre Atividades Antiamericanas do legislativo, estava concluindo uma investigação sobre supostos subversivos na Califórnia.

Uma semana antes do evento, o comitê de Tenney divulgou um relatório descrevendo Hughes como comunista. Funcionários ocidentais ficaram alarmados. Eles negaram que Tenney tenha exercido pressão sobre a faculdade, mas o presidente da faculdade, Arthur G. Coons, disse ao Los Angeles Times que, "Neste momento específico, é considerado imprudente apresentar alguém em uma reunião pública no campus cujos pontos de vista tendem a ser social e politicamente divisivos". Franklin P. Rush, presidente do conselho de curadores da faculdade, que também era vice-presidente e gerente geral da Southern California Telephone Company, disse que as opiniões de Hughes "não eram particularmente leais — pelo menos não de acordo com a política da Occidental como uma faculdade cristã."

O objetivo dos red-baiters não era apenas acabar com as carreiras de radicais individuais, mas enviar uma mensagem através da mídia para o resto do país. Nesse caso, Tenney conseguiu as manchetes que esperava. A história do Los Angeles Times tinha como manchete "Tenney Protests Poet's Billing As Oxy Cancels Date". O Sacramento Bee foi publicado com "Slated Appearance of Negro, Reported Red, Is Opposed". "Occidental Calls Off Poet’s Talk", bradou o Los Angeles Daily News. Alguns dias depois, a American Civil Liberties Union protestou contra a ação da Occidental, mas essa notícia foi ignorada pela maioria dos jornais. Uma exceção foi o California Eagle, um jornal progressista voltado para negros com sede em Los Angeles, cuja história alertava para o “crescimento do fascismo americano”.

Como muitas faculdades, a Ocidental, fundada em 1887, tinha uma longa história de exclusão de estudantes negros. Um editorial de 1939 no jornal estudantil Occidental intitulado "A Race Problem at Oxy" apontou que a faculdade não havia admitido um aluno negro desde sua fundação. Dois anos antes, observou o editorial, um estudante negro havia sido desencorajado a se inscrever por temer que ninguém o acomodasse e que "sua vida social seria infelizmente limitada. ... O fato de tal coisa acontecer é uma admissão de que a Oxy tem um problema racial".

Em abril de 1947, James Dombrowski, ministro metodista e diretor executivo da organização progressista de direitos civis, o Southern Conference Educational Fund, falou no campus. De acordo com uma história no jornal estudantil, alguns alunos disseram a ele que a faculdade resistia a admitir alunos negros e que as fraternidades e irmandades da faculdade se opunham particularmente à ideia.

No outono seguinte — quatro meses depois que Jackie Robinson quebrou a barreira da cor do beisebol - a Oxy admitiu seu primeiro aluno negro, George Ellison, filho de um ministro presbiteriano da Filadélfia. Mas uma coisa era ter um aluno negro no campus. Convidar um radical negro para falar ao corpo discente e à comunidade em geral era, para alguns, uma ponte longe demais.

"Diabo Vermelho de Preto"

Desde a década de 1920, Hughes, uma figura importante no Renascimento do Harlem, foi um dos escritores negros mais proeminentes da América. Ele publicou seu primeiro volume de poesia, The Weary Blues, em 1926, e nas duas décadas seguintes publicou um fluxo constante de romances, peças de teatro, óperas, ensaios, memórias, poemas e uma coluna de jornal sindicalizado, tornando-o um procurado orador público.

Seu ensaio de 1926 "The Negro Artist and the Racial Mountain", publicado na revista Nation quando Hughes tinha apenas 24 anos, tornou-se um manifesto para ele e outros escritores e ativistas que afirmavam o orgulho racial. Ele escreveu:

Os artistas negros mais jovens que criam agora pretendem expressar nossos eus individuais de pele escura sem medo ou vergonha. Se os brancos ficarem satisfeitos, nós estamos contentes. Se não ficarem, não importa. Sabemos que somos lindos. E feios também. O tantã chora e o tantã ri. Se as pessoas de cor estiverem satisfeitas, nós ficamos contentes. Se não ficarem, seu descontentamento também não importa. Construímos nossos templos para o amanhã, fortes como sabemos, e nos colocamos no topo da montanha livres dentro de nós mesmos.

Após se formar na Lincoln University da Pensilvânia em 1929, Hughes voltou para Nova York e retomou sua prolífica carreira. Seu primeiro romance Not Without Laughter, publicado em 1930, ganhou a Harmon Gold Medal for Literature. Seu personagem central é um garoto afro-americano, Sandy, preso entre dois mundos. O pai de Sandy é descontraído e gosta de se divertir, enquanto sua mãe trabalha duro, exige respeito e aprecia os valores de classe média da comunidade branca ao seu redor. Através dos olhos de Sandy, Hughes revela os valores e atitudes conflitantes dentro da comunidade negra, retratando a vida dos personagens em detalhes íntimos.

Logo veio Mule Bone, uma peça de 1931 em coautoria com Zora Neale Hurston, Popo and Fifina, um livro infantil de 1932, e The Dream Keeper, uma coleção de poemas de 1932. Em 1934, Hughes publicou uma coleção de contos, The Ways of White Folks, sobre as relações cômicas, mas trágicas, entre negros e brancos.

Em sua arte, Hughes retratou a vida cotidiana dos negros comuns, incluindo suas alegrias, tristezas, música, humor e encontros rotineiros com o racismo. Mas ao contrário de outros proeminentes poetas negros da época, como Countee Cullen, Claude McKay e Jean Toomer, Hughes procurou contar as histórias dos negros em seu próprio vernáculo. Isso ofendeu alguns americanos negros de classe média que ficaram constrangidos com as representações de Hughes.

Como muitos americanos, Hughes se radicalizou durante a Depressão, ao ver sua família, amigos, o Harlem e o país sofrerem. Ele desenvolveu laços estreitos com o Partido Comunista (PC) e sua órbita de pessoas e organizações. O PC priorizou a organização e recrutamento de americanos negros e desafiou a segregação racial e a discriminação no trabalho, nas forças armadas, na moradia e no sistema de justiça criminal, incluindo a persistência de linchamentos. Por exemplo, levantou dinheiro para a defesa dos Scottsboro Boys, nove adolescentes negros injustamente acusados de estupro no Alabama em 1931. Também patrocinou protestos e divulgou o caso em geral, que se tornou uma notícia nacional.

Naquele ano, Hughes escreveu "Christ in Alabama", um poema expressando sua indignação com a injustiça racial, ideias que ele repetiu durante sua turnê de palestras em faculdades e igrejas negras. Três anos depois, em um artigo para a revista Crisis, da National Association for the Advancement of Colored People (NAACP), Hughes publicou "Cowards from the Colleges", criticando o silêncio de universitários negros e líderes comunitários sobre o caso de Scottsboro.

Em 1932, a União Soviética convidou Hughes e outros quarenta americanos negros para fazer um filme, Negro Life, sobre o racismo americano. Embora o filme nunca tenha sido concluído, Hughes pôde viajar por todo o país, o que fortaleceu suas visões cada vez mais esquerdistas e suas críticas aos Estados Unidos.

Em 1935, em seu discurso ao Primeiro Congresso de Escritores Americanos, um grupo patrocinado pelo CP, Hughes disse:

Os escritores negros podem buscar unir negros e brancos em nosso país, não na base nebulosa de um encontro inter-racial ou nas areias movediças da fraternidade religiosa, mas no terreno sólido da luta diária da classe trabalhadora para eliminar, agora e para sempre, todas as velhas desigualdades do passado.

Em 1937, Hughes cobriu a Guerra Civil Espanhola para jornais afro-americanos. Sua reportagem refletia o apoio da esquerda americana às forças populares que resistiam à tomada do poder pelo militar fascista Francisco Franco.

No ano seguinte, um grupo patrocinado pelo PC, a Ordem Internacional dos Trabalhadores, publicou A New Song, um volume de poemas de Hughes, alguns dos quais já haviam sido publicados no jornal New Masses, patrocinado pelo PC. Muitos dos poemas do livro refletem causas abraçadas pela esquerda em geral e pelo Partido Comunista em particular. Em "Chant for Tom Mooney", Hughes defendeu a causa do líder trabalhista radical de São Francisco que havia sido injustamente condenado por um atentado a bomba em 1916 que matou dez pessoas e que o PC insistentemente defendia que deveria ser libertado da prisão. Outros poemas da coleção, incluindo "Chant for May Day", "Justice", "Lynching Song", "Open Letter to the South", "Song of Spain", "Negro Ghetto", "Ballad of Ozzie Powell" (um dos Scottsboro Boys) e "Union", refletiam a crescente consciência radical de Hughes.

"Falo em nome dos milhões de negros", escreveu Hughes no poema intitulado, "Awakening to Action". Mas ele via sua luta não apenas como uma batalha contra o racismo, mas também como parte de uma cruzada por justiça econômica e igualdade, escrevendo: "Revolt! Arise! The Black And White World Shall be one! The Worker's World!"
 
Em "Deixe a América voltar a ser América", originalmente publicado na Esquire e incluído na coleção, Hughes contrasta a promessa da nação com seus maus tratos a seus companheiros afro-americanos, pobres, nativos americanos, trabalhadores, fazendeiros e imigrantes. Ele esperava ver um dia em que a América não seria mais dividida por divisões de classe e raça:

Que minha terra seja onde a Liberdade 
Não se coroe de falsos louros patrióticos; 
Onde a vida seja livre, haja oportunidade, 
Uma terra onde só se respire igualdade.

Não surpreendentemente, Hughes não era estranho à controvérsia. Por exemplo, quando ele chegou ao Vista del Arroyo Hotel em Pasadena em novembro de 1940 para discutir sua nova autobiografia, The Big Sea, ele foi saudado por uma grande multidão carregando cartazes de piquete e um caminhão de som que tocava "God Bless America" adornado com um banner "100 percent American". Eles eram seguidores da evangelista Aimee Semple McPherson, que denunciou Hughes de seu púlpito no Angelus Temple como um "radical e anticristo" e um "demônio vermelho de preto", citando seu poema de 1932, "Adeus, Cristo" como evidência. O protesto obrigou o gerente do hotel a cancelar o evento.

Hughes manteve seu prolífico ritmo de escrita ao longo da década de 1940, em grande parte tingido com ideias de esquerda sobre racismo e direitos dos trabalhadores. Embora morasse em Nova York, ele tinha muitos laços artísticos e políticos na área de Los Angeles e frequentemente visitava seus amigos locais durante suas turnês de palestras na Costa Oeste.

Ao retornar de sua visita à União Soviética, incentivou sua amiga Frances E. Williams, uma atriz negra, a estudar teatro naquele país. Ela seguiu seu conselho e, de volta aos Estados Unidos, teve uma carreira de sucesso como atriz e diretora. Em 1941, Williams mudou-se para Los Angeles, onde rapidamente se tornou uma ativista nos círculos de esquerda, fazendo amizade com Charlotta Bass, publisher e editora do California Eagle, o jornal negro progressista. Williams organizou eventos, incluindo peças de teatro, exposições de arte e outras exposições culturais, e sua casa se tornou um ponto de encontro para ativistas de esquerda. Em 1948, Williams se tornou a primeira mulher negra a concorrer à Assembleia do Estado da Califórnia, na chapa do Partido Progressista. Ela era uma líder do novo sindicato Screen Actors Guild, Actors 'Equity Association e do National Negro Labour Council.

É provável que Williams tenha ajudado a organizar as palestras de Hughes em Los Angeles, que incluíam sua palestra planejada na Occidental em março de 1948. Qualquer político da Califórnia que tentasse identificar os chamados "subversivos" radicais não teria que cavar fundo para encontrar Williams, Bass e seu conhecido amigo Hughes.

"Líderes negros no campo comunista"

Durante a maior parte da década de 1930, o senador estadual Tenney havia sido um líder no sindicato dos músicos e um New Dealer. Em 1936, ele foi eleito para a Assembleia do Estado da Califórnia como democrata. Mas logo mudou para a direita e, em 1940, foi eleito para o Senado estadual como republicano, servindo por mais doze anos. Durante seu tempo no senado estadual, ele se tornou o anticomunista de maior destaque do estado, elevando sua visibilidade ao fazer uma cruzada contra os radicais nos sindicatos, universidades, escolas públicas, Hollywood e outros setores da Califórnia. "Você não pode coexistir com o comunismo da mesma forma que não pode coexistir com um ninho de cascavéis", proclamou Tenney.

Em 1940, Tenney co-patrocinou um projeto de lei para remover da cédula da Califórnia qualquer partido político com a palavra "comunista" em seu título ou que tivesse qualquer vínculo com o Partido Comunista. O projeto foi aprovado e relutantemente foi sancionado pelo governador Culbert Olson. Em 1941, tornou-se presidente do recém-formado Fact-Finding Committee on Un-American Activities. Este se tornou seu veículo para chamar a atenção do público, investigando e atacando os chamados "subversivos".

Tenney estava em conluio com os líderes empresariais da Califórnia, que estavam preocupados com o apoio do público aos sindicatos, regulamentos, impostos mais altos para os ricos e a expansão dos programas sociais do governo, incluindo moradia subsidiada e assistência médica. Em 1941, logo depois que Walt Disney pagou por um anúncio na Variety que culpava os comunistas por instigar uma greve de seus cartunistas, Tenney usou seu comitê para lançar uma investigação sobre os "vermelhos no cinema". Ele não encontrou nenhum, mas ganhou muitas manchetes.

Ao longo da década de 1940, em audiências e conversas com a imprensa, Tenney usou expressões como "frente comunista" e "companheiro de viagem" indiscriminadamente para estigmatizar pessoas envolvidas em causas sociais e pintar como totalmente comunista qualquer organização liberal que tivesse membros com supostos vínculos com o PC. Tenney sabia que poderia gerar mais manchetes concentrando-se em figuras públicas conhecidas, portanto, não deveria surpreender que, embora seu comitê tenha iniciado uma série de investigações de centenas de supostos comunistas, ele incluísse pessoas conhecidas como Robeson, o escritor-ativista Carey McWilliams, a defensora da habitação Catherine Bauer Wurster, a organizadora trabalhista Luisa Moreno, o ator Edward G. Robinson e, claro, Hughes. Em 1947, o Congresso estava conduzindo sua própria investigação sobre comunistas em Hollywood e outras indústrias. Essas e outras audiências atraíram a atenção da mídia para os políticos nos comitês de caça às bruxas do Senado e da Câmara.

Nos anos após a Segunda Guerra Mundial, Hughes ainda era uma figura popular, dando palestras em faculdades, igrejas, grupos comunitários, bibliotecas, clubes literários e outros locais. Seus discursos sempre incluíam denúncias poderosas do racismo americano. Mas em meados de 1947, à medida que o Red Scare aumentava, Hughes começou a ser atacado por grupos de veteranos e comentaristas e colunistas de rádio conservadores.

Em uma tática comum, o diretor do FBI J. Edgar Hoover começou a vazar informações sobre os laços de esquerda de Hughes e suas críticas à religião organizada para a imprensa e para grupos que o convidaram para falar, muitos dos quais começaram a cancelar suas palestras. No início de março de 1948, por exemplo, a exclusiva North Shore Country Day School, nos arredores de Chicago, cancelou a palestra de Hughes depois que o Chicago Tribune publicou uma história de primeira página intitulada "Red-Tinged Poet to Speak at Winnetka Private School".

Prenunciando os esforços de censura do senador Joe McCarthy — e de fato os do atual governador da Flórida, Ron DeSantis — no início de 1947, Tenney iniciou uma investigação sobre os chamados livros didáticos "subversivos" usados nas escolas públicas da Califórnia. Por subversivo, Tenney e seus aliados anticomunistas se referiam a livros que tratavam de questões como favelas, práticas trabalhistas injustas e discriminação racial e religiosa. Este é o esforço que primeiro chamou a atenção de Tenney para Hughes, já que as histórias e poemas de Hughes eram ensinados em algumas salas de aula da Califórnia. Tenney patrocinou um projeto de lei para proibir as escolas públicas da Califórnia de ensinar matérias "não americanas" e exigir que elas ensinassem "americanismo" como parte do currículo.

O comitê de Tenney lançou oficialmente seu relatório de 448 páginas sobre "Organizações da Frente Comunista" em 24 de março de 1948. O relatório mencionou Hughes quarenta e seis vezes, identificando várias organizações às quais ele supostamente era afiliado — algumas verdadeiras e outras falsas. O relatório observou que "pode-se dizer que Hughes se compara a Paul Robeson como notórios líderes negros no campo comunista".

O relatório mencionou que Hughes estava programado para falar na Occidental na semana seguinte. Poucos dias antes do lançamento oficial do relatório, em 21 de março, o conselho de curadores da Occidental cancelou a palestra de Hughes, sem dúvida tendo sido contatado pelo próprio Tenney. O documento anunciava a reviravolta, dizendo: "Enquanto este relatório vai para a imprensa, um porta-voz do Occidental College anuncia que a instituição cancelou a apresentação de Hughes". O relatório Tenney também atacou o Eagle Rock Council for Civic Unity, o grupo que convidou Hughes para falar na Occidental. O relatório observou que Jerome W. McNair, diretor de programa do conselho, "é afiliado a várias organizações comunistas, incluindo a American Civil Liberties Union e o American-Russian Institute".

Na semana seguinte, Hughes deu duas palestras em Los Angeles, uma patrocinada pela League of Allied Art e o Unitary Club, a outra pelo Beverly-Fairfax Jewish Community Center. Mas na semana seguinte, suas palestras agendadas em escolas públicas em Palo Alto e Vallejo foram canceladas em resposta a veteranos e grupos religiosos preocupados com suas "possíveis conexões comunistas".

O incidente de Hughes na Occidental foi apenas uma pequena parte da vigorosa cruzada anticomunista de Tenney. Em 1949, Tenney elaborou uma legislação para colocar uma emenda constitucional em votação estadual que daria ao legislativo a autoridade para proibir a Universidade da Califórnia de contratar professores "desleais". Com medo do poder de Tenney, em 1950, o conselho de regentes da universidade concordou em instituir um "juramento de lealdade" para todos os professores. Dos 69 professores demitidos em todo o país por motivos políticos durante o Red Scare, quase metade era da Universidade da Califórnia, a maioria deles dos campi de Berkeley e Los Angeles, por se recusar a assinar o juramento de lealdade.

Mas o relatório de Tenney de 1948, o juramento de lealdade e o "americanismo" nas campanhas escolares foram seu último hurra. Em 1949, seus colegas do Senado estadual o destituíram do cargo de presidente do Comitê de Atividades Antiamericanas, em parte por violar o devido processo legal e em parte por causa das centenas de pessoas trazidas perante seu comitê ao longo de oito anos como os chamados subversivos não foram indiciados, muito menos condenados. Tenney fez muito para provocar o Red Scare, que só se intensificaria na próxima década, mas ele fez isso à custa de suas ambições pessoais. (O mesmo acabou acontecendo com o senador McCarthy, que foi censurado por seus colegas do Senado dos Estados Unidos em 1954 por sua imprudência, que logo destruiu sua carreira política.)

Em 1949, Tenney terminou em quarto lugar em sua campanha para prefeito de Los Angeles. Em 1952, ele perdeu sua campanha para a Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, bem como sua bizarra corrida para vice-presidente dos Estados Unidos no conservador Partido Nacionalista Cristão. Dois anos depois, ele foi derrotado nas primárias republicanas para sua própria cadeira no Senado estadual. Durante a década de 1950, ele publicou vários livros anti-semitas conspiratórios, incluindo Anti-Gentile Activity in America, Zion's Fifth Column, Zionist Network e Zion's Trojan Horse. Ele acabou servindo como advogado municipal em tempo parcial em Cabazon, uma pequena cidade no deserto da Califórnia. Ele morreu em 1970 aos setenta anos.

Bloqueando os canais vermelhos

Apesar do fim político de Tenney, suas táticas inspiraram outros políticos como McCarthy e Richard Nixon, que se tornaram conhecidos como caçadores vermelhos anticomunistas à medida que a Guerra Fria se intensificava. Em 1950, um grupo de ex-agentes do FBI, com a ajuda do FBI e do Comitê de Atividades Antiamericanas do Congresso, emitiu um relatório intitulado "Red Channels: The Report of Communist Influence in Radio and Television".

O relatório listou 151 atores, escritores, músicos, jornalistas de radiodifusão e outros a quem acusava, muitas vezes com evidências duvidosas, na melhor das hipóteses, sde fazerem parte da influência comunista na indústria do entretenimento - incluindo os atores Edward G. Robinson, Lee J. Cobb, Avon Long, e Orson Welles, escritores Arthur Miller e Dashiell Hammett, e artistas musicais Leonard Bernstein, Pete Seeger, Josh White, Lena Horne, Aaron Copland e Hughes. Muitos dos listados nos "Canais Vermelhos" receberam intimações para testemunhar perante o Congresso e foram colocados na lista negra por se recusarem a cooperar com a caça às bruxas do Congresso.

Em sua seção sobre Hughes, o relatório "Canais Vermelhos" identificou mais de quarenta organizações e publicações ditas subversivas de esquerda às quais Hughes supostamente era afiliado. Estes incluíam a American Peace Mobilization, o Friends of the Abraham Lincoln Brigade, o American Labor Party, a International Labor Defense, o Joint Anti-Fascist Refugee Committee, a League of American Writers, a American Youth for Democracy, o National Negro Congress, a New Theatre League, o National Council of Soviet-American Friendship, o People's Songs, o New Masses, e o Daily Worker.

Em 1953, o Subcomitê Permanente de Investigações do Senado de McCarthy convocou Hughes para testemunhar. Em vez de desafiar os políticos, ele escolheu cooperar. Ele se recusou a citar nomes, mas repudiou suas ideias radicais do passado. Questionado por McCarthy e seu principal advogado, Roy Cohn (que mais tarde seria o advogado de Donald Trump), Hughes negou ter sido membro do Partido Comunista. Ele admitiu que já havia admirado a União Soviética, mas disse que havia se desiludiu anos antes. Ele alegou que seu poema "Goodbye Christ" havia sido mal interpretado e que ele não era ateu nem antirreligioso. Ele afirmou que acredita na democracia e na igualdade racial, e parecia estar criticando o próprio macarthismo, quando disse ao comitê:

Eu gostaria de ver uma América onde pessoas de qualquer raça, cor ou credo pudessem viver em um plano de bem-estar cultural e material, cooperando juntas sem impedimentos por preconceitos sectários, radicais ou faccionais e intolerâncias nocivas que não fazem bem a ninguém, uma América orgulhosa de sua tradição, capaz de enfrentar o futuro sem o necessário confronto de pessoas contra pessoas e sem a doença da desconfiança pessoal e da desconfiança em relação ao próximo.

A cooperação de Hughes com o comitê de McCarthy custou-lhe a amizade com Robeson, Du Bois e outros que desafiaram os caçadores de bruxas. Hughes cortou seus laços com vários grupos de esquerda, incluindo o Partido Trabalhista Americano e o Conselho Nacional de Amizade Americano-Soviética, que o FBI, o Departamento de Justiça e os Red-hunters do Congresso consideravam organizações lideradas pelos comunistas. Em 1959, quando publicou Selected Poems, deixou de fora alguns de seus poemas mais radicais.

Não se sabe se Hughes rejeitou sinceramente seu passado radical ou simplesmente se acomodou à realidade de ser um escritor negro tentando ganhar a vida na América da Guerra Fria. Embora tenha abandonado publicamente muitas de suas visões de esquerda, ele continuou a protestar contra as condições sociais e raciais sofridas pelos afro-americanos e a promover a cultura negra em suas muitas obras. Ele também continuou a celebrar as revoluções socialistas e anticoloniais na África em sua poesia. Como Billie Anania escreveu para a Jacobin, seu trabalho posterior "continuou a conectar o policiamento racista com ditadores apoiados pelos EUA no Terceiro Mundo e expressou solidariedade com os movimentos de libertação no Cairo, na Cidade do Cabo e em Angola".

Em 1951, quando ainda estava sob ataque de direitistas, Hughes escreveu "Sonho protelado". O poema inclui algumas das linhas mais conhecidas da literatura americana:

O que acontece com um sonho protelado?

Feito uva ao sol
fica seco e enrugado?
Ou escorrido o pus —
fica que nem ferida, infeccionado?
Feito carne podre ele fede?
Ou açucara e forma crosta —
feito um doce melado?

Vai ver é como um fardo
que levantar ninguém pode.

Ou será que ele explode?

O poema parecia ser uma previsão do próximo movimento pelos direitos civis - os protestos, as campanhas de registro de eleitores, as marchas de protesto e as rebeliões urbanas dos anos 1950 e 1960.

Ele já era um escritor respeitado, mas o movimento pelos direitos civis e a subsequente explosão de interesse pelos estudos negros e pela literatura negra aumentaram sua visibilidade, pois seus escritos se tornaram amplamente lidos em escolas e faculdades. Ele era frequentemente chamado de "Poeta Laureado da Raça Negra".

Durante sua vida, Hughes publicou quinze volumes de poesia, dez romances e coletâneas de contos, vinte peças e óperas, duas autobiografias, quatro livros sobre história negra, centenas de artigos em revistas e colunas de jornais e sete livros para crianças, incluindo livros sobre África, Índias Ocidentais, jazz e história negra. Traduziu para o inglês as obras do poeta espanhol Federico García Lorca e da poetisa latino-americana ganhadora do Nobel Gabriela Mistral.

A consciência racial e o orgulho de Hughes, bem como suas representações da vida negra, influenciaram gerações posteriores de artistas e ativistas na África e no Caribe, bem como nos Estados Unidos. Durante a década de 1960, ele inspirou e apoiou muitos jovens escritores negros, ajudando a moldar uma nova onda de literatura negra. Em sua antologia de 1967, The Best Short Stories by Negro Writers, Hughes incluiu um conto de uma então desconhecida escritora nascida na Geórgia, Alice Walker, uma estudante do Sarah Lawrence College. "Seu apoio para mim significou mais do que posso dizer", lembrou Walker, que se tornou uma das escritoras mais aclamadas de sua geração.

O dramaturgo Loften Mitchell, uma geração mais jovem que Hughes, disse: "Langston estabeleceu um tom, um padrão de fraternidade, amizade e cooperação para todos nós seguirmos. Você nunca iria ouvir dele: 'Eu sou o escritor negro', mas apenas 'Eu sou um escritor negro'. Ele nunca parou de pensar no resto de nós."

Mas mesmo depois que ele rejeitou o comunismo, o trabalho de Hughes ainda não estava imune à controvérsia. Em 1965, o conselho escolar de Boston demitiu o professor Jonathan Kozol, de 28 anos, por ler o poema de Hughes "The Ballad of the Landlord", que retrata a exploração de inquilinos negros por proprietários brancos, para seus alunos negros da quarta série, indo fora do currículo prescrito pela escola. Kozol descreveu suas experiências no primeiro de seus muitos livros, Death At An Early Age: The Destruction of the Hearts and Minds of Negro Children in the Boston Public Schools, que ganhou o National Book Award de 1967.

O movimento chega à Oxy

Hughes nunca foi convidado para falar na Occidental. Mas, como outras faculdades, a Oxy foi moldada pela revolução dos direitos civis e particularmente pela revolta de 1965 em Watts, uma parte negra de Los Angeles. No final dos anos 1960 e 1970, a Oxy começou a recrutar mais alunos negros, pardos e de baixa renda. Em 1968, a faculdade contratou sua primeira professora negra, Mary Jane Hewitt, que ofereceu os primeiros cursos de literatura e cultura negra. Hewitt tinha uma ampla rede de artistas, músicos e atores negros locais e nacionais e foi influente em fornecer aos alunos ocidentais, especialmente aos poucos alunos negros do campus, uma compreensão da cultura negra e das contribuições dos afro-americanos à cultura americana.

Um dos alunos que veio para a Oxy naquele período foi Roger Guenveur Smith, que se formou em 1977. Smith se lembra de entrar em uma das aulas de Hewitt um dia e encontrar a professora conversando com os escritores Maya Angelou e James Baldwin e o ator Roscoe Lee Browne. Em um curso com Hewitt, Smith escreveu um artigo sobre Hughes. Para seu projeto sênior, ele criou e encenou “An Evening with Frederick Douglass”, o primeiro de uma série de peças biográficas e históricas que se tornaram sua assinatura como ator, dramaturgo e diretor premiado. Ele voltou ao campus várias vezes para ensinar e se apresentar.

Em 1979, um estudante negro do Havaí, então conhecido como Barry Obama, chegou ao campus. Dois anos depois, ele fez seu primeiro discurso político em um comício antiapartheid no campus. Há rumores de que ele alcançou algum sucesso depois da faculdade. Vários anos atrás, a faculdade inaugurou um programa de bolsas com o nome de Obama para estudantes interessados em carreiras no serviço público.

Entre as melhores faculdades de artes liberais do país, a Occidental é agora considerada uma das mais progressistas em termos de currículo e compromisso com a diversidade racial e econômica - embora, como suas contrapartes, seus alunos e professores muitas vezes se queixem de que ela nem sempre cumpre esta promessa. Certamente há muito espaço para melhorias. Mas hoje, vários professores ocidentais ministram cursos que exigem que os alunos leiam os escritos de Langston Hughes.

Colaborador

Peter Dreier ensina ciência política no Occidental College. É autor ou coautor de sete livros.

30 de março de 2023

Copom age politicamente e ameaça a credibilidade do BC

Postura restritiva do conselho é usada para pressionar governo

André Roncaglia 
Professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP

Folha de S.Paulo

A cabine de comando dos aviões é um cofre blindado. Ela impede que intrusos tomem controle da aeronave, mas também protege um piloto que sequestra o avião para derrubá-lo.

Esta parece ser a situação do comando do Banco Central. Protegidos pelo estatuto da autonomia operacional, os integrantes do Conselho de Política Monetária (Copom) vêm abusando do seu poder, insinuando que podem derrubar o avião com base em medo infundado de os motores ficarem superaquecidos.

Esta postura intransigentemente restritiva (hawkish, no jargão) está comprometendo a credibilidade do BC. Após a última reunião do Copom, as curvas de juros já antecipavam quedas da Selic. Nem o mercado acredita mais no "argumento técnico" do BC.

O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, conversa com o ex ministro e senador bolsonarista Marcos Pontes (PL-SP) durante sessão solene do Congresso Nacional em comemoração aos 130 anos do TCU - Gabriela Biló/Folhapress

A divulgação da ata mostra divisão interna ao Copom, acobertada pela unanimidade em favor de manter a Selic em 13,75%. O documento traz contradições, falácias e ameaças veladas ao governo, mostrando que o BC age politicamente. Vejamos.

A ata menciona que, para alguns membros, o aperto de crédito está "em linha com o esperado"; para outros, estaria mais "acentuado do que o esperado" e localizado em segmentos específicos. Dados divulgados ontem (29/03) pelo BC mostram uma queda, em fevereiro, de 9,5% na concessão de novos empréstimos (-3,8% no trimestre). O spread bancário cresce com as taxas maiores cobradas pelos empréstimos.

O sistema bancário pode estar com estabilidade financeira garantida, mas o elo fraco da correia de transmissão está no setor não-financeiro, onde mais de 70% das empresas de capital aberto têm nível preocupante de alavancagem. Se as grandes empresas não geram caixa suficiente para cobrir suas despesas financeiras, imagine as micro, pequenas e médias empresas que não têm acesso a crédito barato. Manter o arrocho monetário até o final de 2024 certamente produzirá uma recessão.

A grande falácia da ata é atribuir a inflação a um excesso de demanda agregada. O fato de o setor de serviços ter preços elevados não implica aquecimento excessivo. Como mostrou minha colega Julia Braga (UFF), este setor está apenas recompondo as perdas enfrentadas durante a pandemia.

Em termos agregados, o hiato do produto revela que a ociosidade na economia voltou a crescer. O próprio BC reconhece, em seu Relatório Trimestral de Inflação, que este indicador vem segurando a inflação.

No mercado de trabalho, a taxa de desemprego de janeiro de 2023 (8,4%) acelerou com relação a dezembro de 2022 (7,9%). Segundo estudo da LCA Consultores, o número sobe para 10,4%, se contarmos as pessoas fora da força de trabalho. Incluindo-se as pessoas na inatividade (mas dispostas a trabalhar) temos a taxa composta de subutilização que, no mesmo período, ficou em 18,7%. Ou seja, um em cada cinco trabalhadores não consegue ou já desistiu de encontrar emprego. Onde está o excesso de demanda?

Ao reconhecer o esforço fiscal da Fazenda, o Copom ressalva que não há "relação mecânica entre a convergência de inflação e a apresentação do arcabouço fiscal". Em tom de ameaça, o conselho avisa que tal resultado é "condicional à reação das expectativas de inflação, às projeções da dívida pública e aos preços de ativos". Traduzindo: a Selic cai se o Copom aceitar a proposta.

Por fim, a ata enfatiza que "a possível adoção de políticas parafiscais expansionistas" —leia-se, atuação do BNDES— pode "diminuir a potência da política monetária". O alarmismo fez o Copom não entender a proposta e errar feio. Uma injeção de crédito de 1% do PIB, até 2026, focada no investimento, não comprometerá os objetivos da política monetária.

Ao se pronunciar sobre (e atuar contra) propostas do governo, o Copom atua como um partido político clandestino. A autonomia operacional tem limites. O Copom precisa respeitá-los.

Por que a questão nacional importa para a esquerda

Karl Marx escreveu que "os trabalhadores não têm país" — mas ele imediatamente acrescentou que eles tinham que se tornar "a classe dirigente da nação". Por mais de um século, a esquerda lutou para conciliar as duas ideias.

Uma entrevista com
Jean-Numa Ducange


Por mais de um século, a "questão nacional" inspirou muita reflexão na esquerda. (Jorge Gil/Europa Press via Getty Images)

Entrevistado por
Adrian Thomas

Quando a primeira-ministra francesa Élisabeth Borne se levantou no parlamento para aprovar sua controversa reforma previdenciária, os parlamentares da esquerdista France Insoumise reagiram de uma maneira que seus colegas em muitos países europeus não reagiriam — ou seja, cantando o hino nacional. Ao contrário da sombria "God Save the King" da Grã-Bretanha, a trovejante "La Marseillaise" da França é pelo menos uma canção enraizada na revolução — ou mais precisamente, na guerra revolucionária. Mas seu patriotismo estridente significa que certamente não é amado por todos os esquerdistas, mesmo na França.

A relação da esquerda com o patriotismo e a identidade nacional não tem uma "solução" única — até porque não significa a mesma coisa em todos os países. Os socialistas nas democracias liberais no núcleo imperial dificilmente podem abordar o problema da mesma forma que os partidos que lideram a resistência armada à ocupação colonial. No entanto, a "questão nacional" certamente inspirou muita reflexão na esquerda, produzindo diferentes escolas de pensamento que fornecem uma visão do problema hoje.

Jean-Numa Ducange é um historiador do movimento socialista, com foco particular na França e nos países de língua alemã. Seu livro recente, Quand la Gauche pensait la Nation, discute como os socialistas na virada do século XX pensavam sobre a dimensão "nacional" de sua política e como ela se encaixava em seu proclamado internacionalismo.

Ele conversou com Adrian Thomas, da Lava Media, sobre como a esquerda tem lidado com a questão nacional — e por que ainda é um problema hoje.

Adrian Thomas

Por toda a Europa, os nacionalistas têm o vento nas velas. Eles saturam a mídia com visões fantasiosas de identidade nacional, de fato com algum sucesso. A esquerda parece não ter noção disso. Para muitos da extrema esquerda, cantar o hino nacional ou agitar a bandeira parece ultrapassado, até mesmo suspeito de tendências conservadoras. Então, partindo de suas origens, o que é de fato a nação — e de onde vem esse conceito?

Jean-Numa Ducange

É um conceito muito antigo que passou por muitas grandes reviravoltas, até o presente. Na França, costuma-se dizer que a "nação" foi um tema de esquerda após a Revolução de 1789 e gradualmente girou para a direita durante o século XIX com a ascensão do nacionalismo. "Vive la Nation" era o grito de guerra comum dos revolucionários de 1789, além de outros pontos que poderiam dividi-los. Nascia assim a ideia de uma nação política, teoricamente aberta a todas as nacionalidades, e que se baseava sobretudo num pacto político, contra os monarcas e contra qualquer perspetiva étnica.

De fato, muitos historiadores mostraram que a "nação" francesa é menos aberta do que parece. Alguns revolucionários tinham uma visão estritamente francesa, ligada à história de um povo enraizado em um território circunscrito. Mas, para muitos atores — e importantes movimentos revolucionários ao redor do mundo no século XIX — falar sobre a nação significava progresso humano e político.

Isso pode parecer uma perspectiva excessivamente centrada na França. Mas a ideia nacional manteve por muito tempo um caráter progressista para muitos povos sujeitos à opressão estrangeira. Isso se aplica a grande parte desse período histórico. Acima de tudo, a nação não é um conceito fixo definido de uma vez por todas: do ponto de vista socialista, é originalmente uma construção amplamente "burguesa", mas que pode assumir um caráter progressivo, dependendo das circunstâncias.

A nação não tem o mesmo significado quando intimamente ligada a um processo revolucionário como quando é produto de forças reacionárias. Uma das grandes questões é o lugar da nação diante de instâncias supranacionais (quer se trate de impérios, quer de estruturas mais recentes como a União Européia). Quem pode defender a nação nestas circunstâncias e em nome de quê?

Estas grandes questões não perderam a sua actualidade: e ainda hoje não há consenso sobre este ponto entre as forças da esquerda radical (dos comunistas aos ex-comunistas que permanecem à esquerda da social-democracia...).

Adrian Thomas

Que lugar Karl Marx deu à nação? Ele não escreveu no Manifesto Comunista que "os trabalhadores não têm pátria"?

Jean-Numa Ducange

Marx não deu nenhuma definição clara de nação, nem estabeleceu algum plano estratégico que teria permitido aos socialistas e comunistas dizerem "Marx disse que em tal e tal instância, devemos apoiar as demandas nacionais", etc. Ele adotou uma espécie de abordagem caso a caso — por exemplo, apoiando as demandas da oprimida Polônia — e concedeu à questão maior ou menor importância dependendo do período em que escrevia. Por exemplo, no caso de l’Algérie française — a Argélia, conquistada pela França a partir de 1830 — ele estava, como muitos socialistas da época, inicialmente convencido dos benefícios da colonização.

Mas ele evoluiu nessa questão e tornou-se cada vez mais consciente do destino específico dos povos não europeus. De Kevin Anderson a Marcello Musto, muitos pesquisadores recentes mostraram que, mais tarde na vida, Marx adotou uma leitura cada vez mais multilinear da história, abandonando a ideia de que o desenvolvimento da história humana teria de ser basicamente combatido e vencido na Europa.

Quanto à famosa linha do Manifesto de que os “trabalhadores não têm pátria”, observo que o que ele diz neste texto é muito mais nuançado quando consideramos toda a passagem. Mais precisamente, ele disse: “Os trabalhadores não têm pátria. Não podemos tirar deles o que eles não têm. Uma vez que o proletariado deve antes de mais nada adquirir a supremacia política, deve ascender à classe dirigente da nação, deve constituir-se a nação, até agora ele próprio é nacional, embora não no sentido burguês da palavra”.

Então, se citarmos apenas a primeira parte, estamos enfatizando que a falta de pátria dos trabalhadores é a principal perspectiva, também para o futuro: a abolição das fronteiras deve ser incentivada, e o desenvolvimento do capitalismo deve nos levar até lá. Mas se trouxermos a segunda parte da mesma passagem, que fala explicitamente sobre defender a nação, mas de uma forma diferente do sentido burguês, então a perspectiva muda.

Lendo a obra de Marx de forma mais ampla, acho que ele nunca realmente vislumbrou a abolição das nações, pura e simplesmente. Em vez disso, ele queria o fim da hostilidade entre as nações. Ele deixou aos marxistas muitas questões ainda por resolver: quando e em que circunstâncias eles podem defender a nação? E até onde devem ir, em termos de suas alianças políticas, para justificar uma frente comum no âmbito nacional?

Marx não entrou em detalhes sobre esse ponto, porque não considerava essa questão de importância tão central. Foram os líderes das gerações seguintes que levantaram esta questão: [Joseph] Stalin, Leon Trotsky, Karl Renner, Otto Bauer, Jean Jaurès, para citar apenas alguns.

A ideia de nação da esquerda tem variado muito. Foi um foco central durante a Belle Époque (1871-1914), tanto com Jaurès na França quanto na Europa Central. Os socialistas alemães e austro-húngaros estavam particularmente preocupados com esta questão. Para Jaurès na França, o mor pátrio estava acima de qualquer discussão: ele amava profundamente seu país, sua cultura e sua língua, que frequentemente elogiava em tons vigorosos. Mas ele nunca teve uma concepção exclusivista ou “racial” da nação.

Em seu trabalho de 1911, The New Army, ele ligou estreitamente a nação e o internacionalismo: “Um pouco de internacionalismo nos afasta da pátria; muito internacionalismo nos aproxima dela.” A lealdade ao próprio país era combinada com a defesa do internacionalismo. Para Jaurès, a França significava a pátria da Revolução e da República. Historiador dos anos de 1789 a 1794, ele se identificou com os “patriotas” desse período que se opunham aos “aristocratas”. Quanto aos países de língua alemã, o quadro era bem diferente. O ano de 1871 foi o momento em que a unificação alemã foi finalmente alcançada. Mas além do fato de que a Alemanha era agora uma realidade política e geográfica, permanecia a questão das minorias cujos direitos não haviam sido reconhecidos.

O mesmo vale para países totalmente dominados por outras pessoas. No seu caso, havia uma forte determinação em fazer valer os seus direitos nacionais, muitas vezes assumindo maior protagonismo do que as questões sociais, colocando assim poderosos desafios aos socialistas.

Podemos tomar os tchecos como exemplo. Hoje, eles estão reunidos em um país independente. Na época do império austro-húngaro, os tchecos estavam ligados à sua parte austríaca e não tinham reconhecimento específico de sua nacionalidade. No entanto, os tchecos compreendiam um grande número de trabalhadores, que estavam presentes em várias cidades industriais. A princípio, o alemão era a língua franca; o tcheco também era aprendido, mas isso foi relativamente pouco levantado como uma questão política. Mas as reivindicações linguísticas e nacionais ganharam força, a ponto de gerar conflitos com os trabalhadores de língua alemã.

Essa foi uma das razões pelas quais os austríacos (os chamados “austro-marxistas”) escreveram muito sobre questões de nacionalidade: essencialmente, eles não tiveram escolha a não ser fazê-lo e tiveram que oferecer algumas perspectivas a esses vários povos. Mas isso também definiu uma corrente mais ampla de pensamento e política, que resultou em um número impressionante de estudos e análises marxistas, estendendo-se até o início dos anos 1930.

Atendo-se à questão das nacionalidades — e simplificando enormemente — a visão deles era a seguinte: diante da realidade multinacional do Império Habsburgo, propunham uma “autonomia pessoal”, ou seja, a possibilidade de ter seus direitos “nacionais” reconhecidos pelo estado, sem que o estado seja sinônimo de qualquer nação. No contexto da Áustria-Hungria, isso significou notavelmente o reconhecimento dos direitos dos tchecos, mas sem sua secessão coletiva.

Os socialistas esperavam assim evitar a criação de muitos pequenos Estados-nação, que consideravam inviáveis. Esses princípios inspiraram alguns compromissos na época, especialmente na Morávia (parte da atual República Tcheca). A Primeira Guerra Mundial deixou de lado todos esses esforços, mas surgiram iniciativas interessantes próximas a essas ideias, como a “Federação dos Balcãs”: uma espécie de órgão supranacional que permitiria evitar a “balcanização” (uma palavra que entrou na linguagem cotidiana para se referir a guerras e fragmentação). Alguns sistemas políticos mais concretos e duradouros inspiraram-se nessas ideias, como a Iugoslávia.

Às vezes, lemos que o sistema atual na Bélgica (que reconhece as especificidades dos falantes de francês e holandês) é inspirado por essas ideias. Para mim existem sim algumas semelhanças familiares, mas nunca devemos esquecer que os austro-marxistas eram... marxistas!

A luta pelos direitos das nacionalidades tinha que estar ligada à luta social e de classes. Achavam que pelas contradições que o capitalismo gera ele seria incapaz de resolver o problema.

Adrian Thomas

Fundamentalmente, isso não é centralização idealizadora? As pessoas da classe trabalhadora têm mais interesse em viver em grandes unidades (pluri)nacionais, como a social-democracia alemã (SPD) uma vez imaginou com seu discurso de “Grande Alemanha” (isto é, que incluia todos os falantes de alemão), ou em pequenos Estados mais coerentes, como sugere o princípio da autodeterminação nacional?

Jean-Numa Ducange

Muito além do SPD, a ideia de que os proletários têm mais interesse em viver em espaços imperiais ou nacionais maiores era muito difundida ainda no início do século XX. A lógica era: não há nada a ganhar com um número cada vez maior de pequenos estados, que representam tantas divisões na classe trabalhadora.

Daí o apego de muitos militantes à ideia da "Grande Alemanha", um projeto que obviamente pode nos chocar hoje, já que essa grande Alemanha está ligada ao projeto nazista de Anschluss (anexação da Áustria à Alemanha por Adolf Hitler em 1938). Mas havia um antigo projeto "Grão-Alemão", surgido a partir da revolução de 1848, que visava, no fundo, criar um vasto território germanófono, que alguns imaginavam no modelo da República Francesa.

Por seu lado, Rosa Luxemburgo considerou ilusória a reivindicação da independência da Polônia, à época dividida entre a Rússia, a Alemanha e a Áustria. Por que, perguntou Luxemburgo, os socialistas deveriam desperdiçar o tempo dos proletários construindo novas fronteiras? Ela pensou que apoiar a independência polonesa obrigaria os partidos dos trabalhadores poloneses a se aliar a outras forças “burguesas”, ou mesmo reacionárias, sobre essa questão. Daí sua rejeição a essa demanda.

Esta prioridade colocada em unidades maiores também era difundida entre as perspectivas austro-marxistas, e os franceses também não necessariamente se distanciaram de tal perspectiva, embora em geral mostrassem pouco interesse por abordagens plurinacionais, bastante alheias à sua própria situação.

Adrian Thomas

Mas depois da Primeira Guerra Mundial, a rejeição do "social-chauvinismo"— como foi chamada a virada nacionalista dos social-democratas – esteve na base da criação dos partidos comunistas. A noção de patrie — a pátria — parece ter caído em desgraça após o grande banho de sangue de 1914-18.

Jean-Numa Ducange

Sim, de fato; uma das explicações para o grande sucesso do bolchevismo a partir de 1917 foi sua rejeição ao chauvinismo. Houve uma forte rejeição à "lavagem cerebral" e à propaganda de guerra, e os social-democratas foram associados a esse horror porque quase todos haviam apoiado os esforços de guerra de seus próprios estados no verão de 1914. Portanto, não surpreende que nos jovens partidos comunistas houvesse um repúdio visceral a todo patriotismo e a qualquer referência nacional. A nação — bem, foi em seu nome que os homens foram chamados para massacrar seus vizinhos...

Recentemente, tenho trabalhado sobre a fundação e desenvolvimento dos partidos comunistas da Alemanha e da Áustria em 1918-1920. Essas jovens organizações — especialmente na Áustria — a princípio reuniam uma ala minoritária do movimento operário e eram movidas por um internacionalismo radical que as levava a pensar que uma “Red Mitteleuropa”, uma espécie de URSS na escala da Europa Central e Oriental , estava ao seu alcance.

Sabemos das posições fortemente antinacionalistas de Luxemburgo, mas, nessa época, alguns foram ainda mais longe do que ela, defendendo um movimento operário que era “antinacional” tanto em princípio quanto na prática. Mesmo que ignoremos esta ala extremada, é claro que o internacionalismo comunista na origem destes partidos tendia a rejeitar a nação, excepto no caso dos povos oprimidos que ainda tinham de passar pela etapa nacional (a aplicação do “direito nacional à autodeterminação”) para se livrar das potências ocupantes.

Mesmo o movimento comunista francês dos primeiros anos – embora tenha dado seus primeiros passos em um país que havia saído vitorioso da Primeira Guerra Mundial e onde havia um forte sentimento de pertencimento nacional devido à ordem republicana – tinha uma visão crítica do patriotismo. Os membros do jovem Partido Comunista Francês (PCF) não quiseram cantar “La Marseillaise” e se recusaram a comemorar a Revolução Francesa, uma revolução “burguesa” que nada tinha a ver com o proletariado: era preciso abrir espaço para 1917 e o futuro pertencia ao sovietismo, que, mesmo respeitando as culturas nacionais, não pretendia mais fazer referência às nações de outrora.

Mas o que se aplicava em 1918-20 logo mudou. Na Alemanha, 1923 foi o último ano em que um movimento revolucionário de grande escala abalou o país. No início daquele ano, as tropas francesas e belgas marcharam para a região industrial do Ruhr para exigir o pagamento de reparações de guerra. Agora, a Alemanha estava parcialmente ocupada por um exército estrangeiro. Isso fez de Berlim a capital de um país oprimido? Foi um debate que percorreu a Internacional Comunista.

Alguns comunistas defendiam a resistência nacional contra o ocupante, enquanto outros desafiavam essa linha. Mas isso mostrava uma coisa: o movimento comunista não conseguia se esquivar do imperativo de se posicionar sobre a questão nacional, constantemente colocada. Dez anos depois, em 1935, quando a Internacional Comunista deu a guinada para as “Frentes Populares”, os Partidos Comunistas mudaram radicalmente sua perspectiva: agora, o PCF cantava “La Marseillaise” e reapropriava-se do legado de 1789, contrariando seus argumentos dos anos 1920. As minorias de esquerda ficaram profundamente feridas com essa mudança de atitude.

Essa virada se intensificou ainda durante a Segunda Guerra Mundial, com a resistência contra o ocupante nazista: a França, por sua vez, encontrava-se, de certa forma, na posição de país oprimido. No imediato pós-guerra, o PCF apresentou-se sobretudo como “o” grande partido nacional que defendia a independência e a soberania do país; alguns socialistas e militantes de extrema-esquerda o acusaram de chauvinismo, especialmente em questões coloniais.

Era uma forma excessiva de enquadrar as coisas, se compararmos tudo isso com a população francesa como um todo: as camadas da sociedade influenciadas pelo PCF eram mais internacionalistas e menos chauvinistas do que a norma, especialmente em comparação com as forças conservadoras que — não podemos esquecer — continuou a influenciar estruturalmente a vida política.

Adrian Thomas

Parte do movimento socialista não se desviou para o apoio à guerra e ao colonialismo, precisamente por causa de uma virada imperialista em sua ideia de nação? Por exemplo, na Bélgica poderíamos citar o caso de Émile Vandervelde.

Jean-Numa Ducange

Entre os grupos de liderança dos vários partidos da Internacional Socialista pré-1914, havia de fato uma orientação claramente favorável ao esforço colonial. Havia minorias de esquerda, principalmente em torno de [Vladimir] Lenin e Luxemburgo, que desafiavam isso, mas sem dúvida estavam isoladas.

A ideia de que era preciso reformar os impérios coloniais em um sentido mais humanista, mas sem realmente questionar seus fundamentos, era muito difundida: Vandervelde condenava o “tipo errado” de colonização. Ele tinha uma certa dimensão humanística: era capaz de condenar os crimes coloniais, mas não, mais fundamentalmente, o sistema estrutural de dominação colonial.

Isso estava no centro das contradições do Parti Ouvrier (Partido dos Trabalhadores) da Bélgica: a questão do Congo era então um dos grandes temas em debate dentro do partido. Isso era bastante difundido na época: Eduard Bernstein na Alemanha e, por muito tempo, alguém como Jaurès na França, estavam convencidos de que havia uma certa hierarquia dos povos, e desenvolveram uma espécie de “socialismo colonial” que não imaginava os povos colonizados tornando-se independentes.

Acho que essa também é uma das razões do sucesso internacional do comunismo de 1919 em diante; Lênin havia entendido bem que o século XX seria o século das lutas anticoloniais e que os comunistas deveriam lutar pela independência dos países oprimidos, mesmo que isso exigisse às vezes amplas alianças crivadas de perigos. Era necessário aliar-se a certos partidos burgueses ou nacionalistas, contra o colonizador? De sua parte, os social-democratas, ou pelo menos muitos de seus líderes, absolutamente não previram esse desenvolvimento.

Portanto, em vez de falar de uma “virada” (o que implicaria que houve uma posição claramente anti-imperialista para começar), é necessário distinguir entre as linhas opostas dentro do movimento socialista desde suas origens, que não necessariamente se sobrepõem com outras linhas divisórias. Com isso quero dizer que nem todos os reformistas eram pró-colonialistas, e nem todos os revolucionários eram anticolonialistas...

O exemplo francês é revelador a esse respeito. Conhecemos a famosa expressão “Argélia francesa”, que nos lembra o slogan da extrema-direita nacionalista que queria manter a Argélia como território francês. Quando falamos sobre os partidários da “Argélia Francesa” dos anos 1950, claramente é a isso que nos referimos. Pensemos na Organisation armée secrète (OAS), uma organização de extrema direita que organizou ataques terroristas, especialmente contra líderes da esquerda anticolonial. Mas a expressão já existia nas décadas de 1830 e 1840, e foi abertamente adotada e usada por muitos “socialistas utópicos” (por exemplo, Charles Fourier e os fourieristas). Muitas pessoas hoje têm uma queda por esses “utópicos” e cantam seus louvores contra o “socialismo científico” marxista – mas eles se esquecem totalmente desse elemento de sua visão de mundo!

De fato, o horizonte utópico desses primeiros socialistas era frequentemente colonial: os projetos que eles elaboravam para sociedades alternativas eram muitas vezes acompanhados de um orientalismo aberto, que via esses “novos territórios” africanos como o El Dorado onde eles podiam experimentar suas experiências sociais. Oitenta anos depois, os socialistas franceses se dividiram sobre a questão colonial: em 1912, um certo Lucien Deslinières apresentou ao parlamento um projeto de lei sobre o “Marrocos Socialista” em nome do grupo de deputados socialistas. A ideia consistia em enviar “bons” colonos socialistas franceses para explicar aos nativos como deveriam buscar o desenvolvimento. Esta foi uma típica abordagem colonialista de “esquerda”.

Mas esse projeto acabou sendo retirado graças à intervenção de Jaurès, que o considerou ultrajante. Sua posição sobre essa questão havia evoluído desde a década de 1880: ele agora se tornara um crítico ferrenho da ordem colonial.

Mas esse projeto foi apoiado por muito tempo por Jules Guesde, embora tenha sido ele quem mais fez para introduzir o marxismo na França. Certamente, alguns dos primeiros marxistas franceses, como Édouard Vaillant, já eram críticos brilhantes da ordem colonial. Mas neste ponto, Jaurès foi muito mais crítico do colonialismo do que outros, embora externamente eles fossem mais de esquerda em outros tópicos.

Seria necessária a criação da Internacional Comunista em 1919 antes que houvesse uma posição claramente anticolonial. Então, a partir da década de 1930, o mesmo problema surgiu mais uma vez. A virada para a Frente Popular e as amplas alianças que ela envolvia obrigaram o PCF a silenciar seu anticolonialismo.

Adrian Thomas

Chaim Zhitlowsky, um socialista judeu russo exilado na Suíça, parece ter tentado definir uma posição intermediária. Em 1899, ele escreveu em um jornal alemão que você cita que "enquanto o cosmopolitismo encontra seu ideal no desaparecimento das diferenças nacionais e entende a humanidade como um conglomerado de indivíduos isolados, o internacionalismo é baseado na ideia de confraternização entre os povos, o que não significa que um irmão deva ser idêntico ao outro como ervilhas em uma vagem." Esta é uma linha sustentável a seguir, na questão nacional?

Jean-Numa Ducange

Não estou necessariamente de acordo palavra por palavra com isso, mas o insight básico parece certo para mim. Internacionalismo não significa negar a existência de nações e culturas nacionais. Claro, essas são sempre construções históricas, mas sua longevidade e continuidade significam que influenciam estruturalmente a vida cotidiana dos indivíduos. Tentar ignorá-los, em favor de declarações que — embora generosas e fraternas — estão totalmente desconectadas da realidade de setores inteiros das classes trabalhadoras, não nos permite avançar e, portanto, deixa o campo aberto para outros.

Dificilmente poderíamos adotar o ataque de Zhitlowsky do início do século XX ao “cosmopolitismo”, uma linha que hoje tem conotações fortemente direitistas e até mesmo anti-semitas. Mas qualquer tentativa de se posicionar automaticamente contra os nacionalistas — o que à primeira vista pode parecer louvável — acaba por advogar ideias com uma circulação limitada e incompatíveis com o exercício efetivo da soberania em geral, ou da soberania popular mais particularmente.

Existe farta literatura sobre soberania popular e/ou nacional, e nesse contexto podemos discutir teoricamente o que podem e devem significar as fronteiras nacionais hoje. Mas penso que em termos de práticas concretas, a mudança social e política requer uma série de ações situadas e identificáveis envolvendo mobilidades relativamente restritas de fato e enraizamento em um determinado local de trabalho, cidade e assim por diante.

Por exemplo, no mundo de língua inglesa (e em menor escala em outros países, incluindo a França), há um interesse renovado nos conselhos de trabalhadores e em como eles se desenvolveram após 1918 (os soviéticos na Rússia, é claro, o Biennio Rosso na Itália, o Rätebewegung nos países de língua alemã, e assim por diante). Em alguns casos, esses conselhos colocaram a questão concreta do poder dos trabalhadores, do controle dos trabalhadores sobre as ferramentas de produção etc.

Posto assim, parece um ponto bastante banal. Mas me impressiona o quanto alguns tentam deixar de lado essa dimensão territorial (o que, portanto, levanta questões sobre o lugar onde o poder e a soberania concreta, “nacional”, “popular”, com raízes locais, podem ser exercidos).

Na era da revolução digital, pode-se argumentar que um número crescente de empregos está sendo completamente desterritorializado. Mas além do fato de que os trabalhos braçais e de colarinho azul continuam sendo uma realidade, mesmo que aquela parte da esquerda pareça quase esquecida, muitos empregos que são amplamente dependentes de TI estão frequentemente ligados ao trabalho coletivo situado (escritórios com a obrigatoriedade de presença de funcionários pelo menos parte da semana, etc.). Assim, a celebração da mobilidade permanente por parte de um certo tipo de esquerda contradiz certas realidades básicas, mesmo que me pareça uma reivindicação ilusória de grande parte da força de trabalho, dados os múltiplos imperativos da capitalismo.

Isso ajuda a afastar camadas importantes da população do que diz essa esquerda, e para que estas encontrem maior relevância em um discurso nostálgico-reacionário que celebra o chamado povo comum enraizado. Essas pessoas acham essas últimas reivindicações mais próximas de suas preocupações e de seu sentimento de desapropriação. Então, sim, acho que precisamos de uma posição “intermediária”: uma que mantenha uma perspectiva internacionalista da união dos povos e que pense o máximo possível em nosso destino comum e universal, mas também que afirme que uma prática política concreta (especialmente uma política socialista) tem de ser realizado a um nível que corresponda aos horizontes reais das populações. Para uma parcela muito grande das camadas populares, esse horizonte certamente ainda é nacional.

Adrian Thomas

Como você encontraria hoje um caminho marxista entre os dilemas do nacionalismo e internacionalismo, fronteiras e livre circulação, soberania nacional e globalização (ou europeização), integração (ou mesmo assimilação) e multiculturalismo?

Jean-Numa Ducange

Estas questões devem ser respondidas a partir da situação concreta para chegar a um equilíbrio adequado. Você pode me dizer que estou me esquivando da pergunta. De jeito nenhum. Voltemos brevemente ao que Lênin disse sobre a nação: apoiar o esforço nacional em um país imperialista (França, Grã-Bretanha, Alemanha, etc.) em caso de guerra. Por outro lado, Lenin apoiou as demandas nacionais dos países oprimidos, especialmente dos povos colonizados.

Em questões de soberania, uma posição sutil é necessária. Mas, em um nível mais geral, acho que estamos chegando ao fim de um ciclo em relação ao movimento livre, que a esquerda radical há muito percebe como um ideal em si mesmo.

Para reivindicar a política e defender os direitos sociais, parece-me necessário "territorializar" a política. O impressionante desenvolvimento de diferentes formas de mobilidade ao longo do último meio século há muito leva à crença oposta. Jamais voltaremos às posições anteriores, o que seria uma ideia reacionária, no sentido original da palavra. Mas a luta pela emancipação não pode prescindir de um marco concreto, de um lugar concreto.

Gostaria de ilustrar essas diferenças entre situações nacionais comparando brevemente a Europa Ocidental e a China. Há dez anos venho desenvolvendo intercâmbios acadêmicos com pesquisadores chineses sobre a história do socialismo e seus vários caminhos na história. Esses estudiosos frequentemente me perguntavam sobre a relação dos comunistas franceses (e europeus) com o mercado, a integração da UE e a nação. Para muitos deles, a reticência em relação ao projeto europeu parecia difícil de ser compreendido: eles nos veem (os países europeus) como tendo fortes especificidades nacionais, mas agora inevitavelmente formando um bloco continental, que deve se posicionar para o multilateralismo em escala internacional.

Da mesma forma, a globalização não tem o mesmo significado, pois a China jogou a carta do mercado e da globalização para o seu desenvolvimento, ainda que de forma amplamente controlada e sob a autoridade do Estado. Na França, a globalização significou um desafio para muitos aspectos de seu modelo nacional. A soberania nacional tem sido ferozmente defendida na China, mesmo quando seu comércio global se desenvolve em uma velocidade incrível.

Claro que tudo isso exigiria uma discussão mais precisa de cada uma das questões em jogo; mas mostra que não podemos definir a priori um conjunto simples e uniforme de respostas. Mais uma razão para reviver o internacionalismo original, que implicava sobretudo intercâmbios entre várias experiências nacionais.

Um último ponto, sobre a questão do "multiculturalismo". Se ficarmos num nível muito geral, podemos pensar que o "multiculturalismo" é uma coisa positiva em si: o reconhecimento dos direitos, da diversidade das culturas, etc. Alguns até veem uma semelhança familiar com o austro-marxismo.

Em certo nível de generalidade, ninguém negará a diferença das culturas e a necessidade de preservá-las. Mas, na prática, é preciso levar em conta as realidades nacionais, as dinâmicas de assimilação e as dinâmicas de integração, que nem todas têm sido negativas — longe disso. No século XX, os sindicatos e os partidos de esquerda desempenharam um papel assimilador para muitos imigrantes por meio de suas lutas e atividades no local de trabalho, por exemplo na França. Isso acompanhou a estruturação de uma consciência de classe.

É totalmente ingênuo acreditar, como dizem alguns multiculturalistas, que a realidade mudou e que qualquer tipo de "assimilação" se tornou reacionária, etc. Para ter uma perspectiva socialista, é preciso criar algo em comum, para "fazer um povo".

Mais uma vez, é difícil encontrar o equilíbrio. Mas a exaltação de todas as especificidades, de todas as diferenças — além do fato de que às vezes são ambivalentes e que os conservadores podem igualmente defender isso, no sentido "cada um a sua religião, suas particularidades, etc." — estão em desacordo com uma perspectiva real de libertação.

Colaboradores

Jean-Numa Ducange é professor da Université de Rouen e autor de Jules Guesde: The Birth of Socialism and Marxism in France (Palgrave, 2020) e Quand la Gauche pensait la Nation: Nationalités et socialismes à la Belle-Époque ( Fayard, 2021).

Adrian Thomas é editor da Lava Media.

Governos do PT aumentaram benefícios que agora Haddad quer cortar

Isenções tributárias no país são consideradas ineficientes pelo Banco Mundial e o TCU

Fernando Canzian

Folha de S.Paulo

O Brasil deixa de arrecadar mais de R$ 350 bilhões ao ano com a concessão de benefícios tributários a empresas e setores, além de incentivos creditícios.

Na apresentação da nova regra fiscal, o ministro Fernando Haddad (Fazenda) deixou claro que o governo buscará diminuí-los para "colocar o pobre no Orçamento", com costuma dizer o presidente Lula (PT).

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, em evento em Brasília - Gabriela Biló - 28.mar.23/Folhapress

Ironicamente, esses benefícios tributários, financeiros e creditícios chegaram a dobrar nos governos Lula e Dilma Rousseff (2003-2016); e atualmente equivalem a cerca de 3,5% do PIB. Embora o governo Jair Bolsonaro (2019-2022) tenha prometido reduzi-los, não houve alteração significativa.

Análise do Banco Mundial sobre políticas de incentivos em Brasil, Austrália, Canadá, Coreia do Sul, Holanda e México concluiu que só o caso brasileiro resultou na combinação de aumento dos gastos tributários e queda na arrecadação —sugerindo que eles não aceleraram o crescimento.

Os benefícios tributários no Brasil representam quase um quarto das receitas administradas pela Receita Federal e, do ponto de vista regional, também são fontes de desigualdades.

Estudo do Ministério da Economia (na gestão Paulo Guedes) mostrou que estados mais pobres como Maranhão, Piauí, Acre, Alagoas e Pará receberam menos de um terço da média nacional dos benefícios tributários per capita em 2018.

Já Amazonas (por causa da Zona Franca de Manaus), Santa Catarina e São Paulo se beneficiaram mais de renúncias tributárias do que contribuíram, proporcionalmente, para o crescimento do PIB.

Segundo relatório de avaliação do TCU (Tribunal de Contas da União), "os benefícios fiscais, em geral, representam distorções ao livre mercado e resultam, de forma indireta, em sobrecarga fiscal maior para os setores não beneficiados".

"Em um contexto de restrição [orçamentária], como o enfrentado pela União, os valores associados a esses benefícios devem ser considerados com maior atenção, em virtude do impacto nas contas públicas", diz o TCU.

Para o economista Alexandre Manoel, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, embora um eventual corte dos benefícios tributários possa resultar em aumento da carga tributária, isso seria positivo, pois deixaria de haver tratamento privilegiado a alguns setores.

Manoel suspeita que boa parte da diminuição da capacidade do governo nos últimos anos de produzir superávits primários (economia para reduzir a dívida pública) tenha relação com o aumento dos benefícios tributários, que diminuíram a receita federal.

A maior fatia dos benefícios tributários é dirigida ao Simples (cerca de 25%), e Haddad garantiu que esse mecanismo de simplificação tributária não será alterado.

No passado, várias tentativas de diminuir os incentivos tributários foram seguidas de forte lobby de seus beneficiários. Mexer com esses grupos não será tarefa política fácil do governo no Congresso.

Limitar o bolsonarismo a fenômeno "de baixo para cima" ofusca ação de elites

Ao enfatizar movimento totalitário em periferias, Gabriel Feltran constrói cenário sem saída política para o mundo popular

Jorge Chaloub
Professor do Departamento de Ciência Política da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora)

Pedro Luiz Lima
Professor do Departamento de Ciência Política da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro)


[RESUMO] O artigo de Gabriel Feltran publicado recentemente na Ilustríssima tem o mérito de ressaltar que o bolsonarismo não se restringe ao universo das elites, que enganariam massas confusas, mas a ênfase excessiva que o antropólogo dá às bases populares da extrema direita no Brasil, argumentam autores, carrega o risco de naturalizar os discursos de seus protagonistas e enfraquecer o potencial de compreensão do fenômeno.

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Mesmo nos melhores esforços interpretativos da vida política e social do país, duas constatações grandiosas costumam se alternar sobre a nossa malfadada democracia: ora se observa uma profunda degeneração capilarizada na sociedade brasileira, ora se constata um vício congênito do Estado e do nosso precário arcabouço institucional.

Quando a crítica se concentra nos problemas do Estado, é comum o uso de conceitos como patrimonialismo e populismo, desejosos de retratar um poder estatal incapaz de cumprir as promessas mais elementares.

Jair Bolsonaro discursa durante a CPAC (Conferência da Ação Política Conservadora) em Maryland, nos Estados Unidos - Evelyn Hockstein - 4.mar.23/Reuters

Ineficiência e inadequação seriam patologias atávicas em razão de problemas tão diversos quanto a promiscuidade entre interesses públicos e privados e a aversão a uma dinâmica de distribuição e equilíbrio de poderes. Parte substancial do liberalismo brasileiro, de Raymundo Faoro a Roberto Campos, tem nessa narrativa um dos seus elementos mais relevantes.

No padrão alternativo de argumentação, os problemas nacionais aparecem como expressão de males profundamente arraigados na sociedade brasileira, que seria profundamente autoritária, incapaz de se organizar em modernos padrões de classe ou de constituir as bases sociais pluralistas necessárias à fruição da democracia.

Estamos diante, nesse caso, de um longevo argumento da tradição conservadora brasileira, que tem na representação dos descaminhos de uma sociedade incapaz de se auto-organizar, entregue aos pequenos interesses e ao banditismo, a justificativa para a defesa mais ou menos explícita de ordens autoritárias. Nem sempre o diagnóstico leva a tal programa político, mas é preciso atentar para os riscos de argumentos desse tipo serem canalizados para esse caminho.

As interpretações sobre o bolsonarismo reproduzem com frequência elementos desse segundo padrão interpretativo. Ganha força a ideia de que estamos diante de uma expressão histórica profunda, que teria encontrado em Bolsonaro seu (autêntico?) porta-voz.

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Com grande sensibilidade às inflexões políticas contemporâneas, a caracterização do bolsonarismo como expressão de grupos sociais historicamente marginalizados aparece no artigo de Gabriel Feltran publicado na Ilustríssima no último dia 16.

As reflexões recentes de Feltran sobre o tema têm inúmeras virtudes e contribuem para uma melhor compreensão das relações entre as mudanças nas periferias urbanas e o crescimento da ultradireita no Brasil.

Deve-se destacar que sua interpretação evita a leitura do bolsonarismo e da ultradireita como patologia ou disfuncionalidade, individual ou coletiva, ao expor que há interesses, visões de mundo e práticas sociais que encontram representação na figura do ex-presidente ou de outros líderes do mesmo campo político. Feltran, dessa forma, colabora na análise do caráter moderno e da dimensão transnacional da ultradireita, o que não implica recusar suas peculiaridades locais.

A ênfase excessiva que o autor tem dado em textos recentes às bases populares do bolsonarismo e à sua caracterização como um fenômeno fundamentalmente "de baixo para cima", todavia, merece uma discussão mais detida.

Em um artigo publicado em 2020, Feltran deixou nítido o seu argumento: "Vestígios autoritários persistentes podem, sim, organizar alguns grupos de classe média, das elites. Mas elas embarcaram recentemente no movimento militarista policial e anti-intelectualista evangélico, não o contrário. O movimento totalitário em curso não é, como por vezes se faz pensar, uma mobilização das elites contra os pobres".

Para ele, os "pretos e jagunços" que organizam territórios e influem na política a partir de áreas historicamente marginalizadas recusam o Brasil oficial e, em parte por isso, romperam a "linha de poder" que os ligava às elites tradicionais. O "movimento totalitário" seria composto por "jagunços emancipados dos coronéis", polícias, militares e milícias, pastores reacionários e massas das periferias, que concebem "a violência crua como produtora de ordem legítima".

Mesmo que destaque, em outro texto, que o totalitarismo é um movimento, não um regime, o sociólogo parece pensar a hegemonia do movimento totalitário como um horizonte possível e até mesmo provável no futuro próximo, caso esse regime normativo não seja desmantelado ou reconfigurado.

O conceito de totalitarismo, no entanto, tem aspectos problemáticos até quando aplicado a seus objetos tradicionais, como a Alemanha nazista. Mesmo Hannah Arendt resistiu a mobilizá-lo para interpretar o fascismo italiano.

As dificuldades são ainda maiores no caso brasileiro. O conceito retrata atores políticos afinados à ideia de um poder total, sem contraste e possibilidade de resistência efetiva, o que sugere um grau de adesão a ideais e práticas extremamente raro na história brasileira. Tratar as periferias a partir do conceito de movimento totalitário as representa em perspectiva excessivamente uniforme, despida de diversidade de vozes e de caminhos para a transformação política.

O bolsonarismo recorreu constantemente a elementos de uma linguagem política fascista: por exemplo, apologia da violência, crítica negacionista à ciência, sobreposição de instituições ao líder, mobilização de setores subalternos da sociedade por meio de milícias armadas. Como desenvolve a melhor bibliografia sobre o tema, o fascismo implica tanto uma renovação de elites e uma mobilização de massas quanto passa por compromissos com as classes altas e ganha espaço a partir de crise políticas construídas por setores com recursos de poder.

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Alguns dados põem em perspectiva o papel das elites econômicas na gênese do bolsonarismo e em seu êxito eleitoral. Uma pesquisa Datafolha realizada em 7 e 8 de abril de 2016, às vésperas da votação do impeachment de Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados, apontou Jair Bolsonaro à frente nas intenções de voto entre quem tinha renda familiar mensal superior a dez salários mínimos (cerca de 5% da população) em todos os cenários, chegando a atingir 23% das intenções de voto em um deles. O então deputado tinha desempenho sensivelmente pior entre os eleitores com menor renda e alcançava de 6% a 8% das intenções de voto entre todos os respondentes da pesquisa.

O dado, destacado à época por André Singer nesta Folha, não reduz o bolsonarismo a um fenômeno de elite, mas aponta que Bolsonaro, antes mesmo de ser visto como um candidato competitivo, já era o predileto entre os mais ricos.

Um grande número de pesquisas enfatiza a crescente veiculação de ideias e argumentos de ultradireita no debate público nas últimas duas décadas. Em livros publicado por grandes editoras e em colunas de jornal, houve um aumento de intelectuais e líderes que reivindicam ostensivamente o pertencimento à direita e assumem motes típicos da extrema direita.

A maior parte dos protagonistas desse movimento dispunha de vastos recursos econômicos e sociais, que os permitiu construir atalhos para a mobilização política. Ao tratarmos esses personagens como expressão autêntica de grupos sociais subalternos, corremos o risco de naturalizar seus próprios discursos, em que frequentemente buscam reiterar os supostos vínculos dos novos protagonistas da direita com as maiorias silenciosas da sociedade brasileira.

Há, por outro lado, uma crescente radicalização da direita e da centro-direita, que se aproximaram da linguagem política da ultradireita. Ataques ao direito ao aborto, como os proferidos por José Serra e Aécio Neves (PSDB) nas eleições de 2010 e de 2014, e a criminalização da esquerda, vista como intrinsecamente corrupta, formaram uma cultura política crescentemente hostil aos pilares da ordem política de 1988.

Não é razoável supor que essas elites políticas só respondiam a movimentos de base ou lhes emprestaram uma adesão tardia. Tampouco se pode menosprezar os efeitos "de cima para baixo" do uso de recursos ilegais, ilegítimos e violentos na política desde 2014, ao menos. A pura violência das milícias certamente é anterior a esses eventos, mas sua normalização e seu ganho de escala não podem ser entendidos sem que se atente para o efeito demonstração da violência política praticada no andar de cima.

As relações entre a família Bolsonaro e milícias do Rio de Janeiro estão muito bem documentadas. No entanto, a figura do presidente e de seus filhos não pode ser vista apenas pelo prisma da sociabilidade ou de símbolos populares.

Bolsonaro dialoga simultaneamente com as altas patentes das Forças Armadas e os soldados, com o alto empresariado e os caminhoneiros. Ora veste camisas falsificadas de times e usa uma linguagem popular, ora mobiliza elementos de distinção, muitas vezes relacionados à branquitude.

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Limitá-lo a uma expressão do imaginário das periferias é problemático e enfraquece o potencial crítico de compreensão do fenômeno. Com isso, se perde de vista o núcleo contraditório do recente processo político brasileiro: tratar Bolsonaro unicamente como figura antissistema implica esquecer que isso é exatamente o que ele deseja parecer. O ex-presidente é sistema e antissistema, em uma combinação espúria.

Efeito e representante autêntico de um "movimento totalitário"? Talvez, mas certamente herdeiro de uma espiral de violência institucional que irradia do topo para a base e de volta.

O rebatimento político-eleitoral de movimentos de base nunca é imediato. As temporalidades são distintas, e movimentos sociais podem se revelar contraditórios quando se expressam politicamente.

No final de agosto de 2018, Bolsonaro contava com menos da metade das intenções de voto de Lula. Quatro anos depois, ele se tornou o primeiro presidente derrotado em uma candidatura à reeleição. Do mesmo modo que eventos podem ser tomados como sinais inequívocos de uma tendência histórica, sobretudo quando vista como expressão do "mundo popular hoje realmente existente", também podem apontar para sentidos diversos.

O artigo de Feltran tem o grande mérito de indicar que o bolsonarismo não se restringe ao predomínio de elites, que enganariam massas confusas. O autor expõe como a crise democrática pós-2013, o novo protagonismo político da ultradireita e o bolsonarismo não apenas repercutem fenômenos reais como expõem parte dos limites da ordem de 1988.

A ênfase nesse elemento, contudo, acaba ofuscando o papel de movimentos de elite na construção do bolsonarismo e oculta os intrincados vínculos que relacionam a vida político-institucional às práticas e aos discursos sociais difusos. Com isso, corre, paradoxalmente, o risco de construir um cenário sem qualquer saída política para as periferias.

29 de março de 2023

Crise em câmera lenta?

A quebra da hegemonia das finanças.

Cédric Durand



A hegemonia financeira teve sua primeira morte durante a crise de 2008. Provocado pelo superendividamento de devedores pobres nos Estados Unidos, esse cataclismo demonstrou que as promessas feitas por produtos financeiros complexos não passavam de fantasmagorias, alheias à capacidade real de nossas economias para produzir riqueza. Como se, na frase de Marx, "o dinheiro pudesse gerar valor e render juros, assim como é um atributo das pereiras produzir peras".

A reação em cadeia que se seguiu à falência do Lehman Brothers expôs o mito dos mercados financeiros autorregulados. Incapaz de sustentar a si mesma, as finanças tiveram que abandonar sua pretensão de ser o elemento totalizador da vida econômica, o local onde as esperanças de hoje se alinhariam harmoniosamente com os recursos de amanhã. Nas alturas de comando, no entanto, essa pretensão persistiu. Nos estertores da Grande Recessão, nos espasmos da crise da Zona Euro e ao longo da pandemia de Covid-19, as autoridades nunca deixaram de dar prioridade à estabilidade financeira. Por exemplo, em 2020 e 2021, para garantir que os efeitos do lockdown não causassem outro colapso, o Banco Central Europeu praticamente dobrou seu balanço, adicionando liquidez e comprando títulos no valor de 4 trilhões de euros: cerca de um terço da Zona do Euro PIB, ou € 12.000 por habitante.

Agora, a segunda morte da hegemonia financeira veio das mãos de ricos investidores em tecnologia californiana. Em 2008, os bancos foram salvos, mas os mutuários falidos foram forçados a abandonar suas casas. Em 2023, start-ups e capitalistas de risco pediram e obtiveram o apoio de Washington para recuperar suas economias do Silicon Valley Bank. À medida que o pânico crescia, os bancos foram mais uma vez resgatados pela generosidade soberana e as válvulas de liquidez foram totalmente abertas. (Uma grande ironia para um setor impregnado de ideologia libertária e profundamente hostil à intervenção estatal.)

A escala deste apoio pode ser aumentada conforme necessário. A 12 de março, a Fed introduziu o Bank Term Funding Programme, um mecanismo através do qual aceita como garantia de empréstimos ativos cotados ao seu valor nominal: ou seja, ao seu preço de compra, e não ao que efetivamente valem no mercado. Os balanços das instituições financeiras ficaram, assim, como num passe de mágica, imunes às perdas. Melhor ainda, quando o Credit Suisse foi salvo pelo compatriota UBS, o Swiss National Bank abriu uma linha de liquidez de € 100 bilhões - acessível, desta vez, sem quaisquer garantias. Parece que o "estado de risco", como a economista britânica Daniela Gabor o chama, está fazendo hora extra para evitar um desastre como o de 2008.

Isso torna improvável outro mega-crash. Embora, naturalmente, um ato de estupidez monumental de alguém ou de outro não possa ser excluído. Lembre-se que os aumentos de juros anunciados em 2011 pelo BCE de Jean-Claude Trichet ajudaram a encorajar ataques especulativos à dívida grega. Este erro óbvio, agravado pela miopia e incompetência dos políticos europeus, mergulhou o continente numa crise social e econômica perfeitamente evitável. A 16 de março, a decisão desse mesmo BCE de subir as taxas em 0,5%, desta vez sob a direção de Christine Lagarde, traz-me más recordações. Mas a obstinação em buscar o aperto monetário apesar do infeliz precedente é, acima de tudo, reveladora de um contexto macroeconômico radicalmente novo.

"Dado que os processos subjacentes à estabilidade de preços e à estabilidade financeira são diferentes", observou o economista Claude Borio, "não é de estranhar que possam existir tensões materiais entre os dois objetivos." Com uma inflação em torno dos 8%, essas "tensões" tornaram-se dilema dos bancos centrais - que põe em xeque a própria hegemonia das finanças. Atualmente, os bancos centrais podem priorizar o combate à inflação sob o risco de precipitar o colapso do sistema financeiro; ou então, para enfrentar a turbulência bancária e financeira, podem ampliar o acesso à liquidez por meio de diferentes canais. Neste último caso, esbarram na política restritiva que visa provar sua determinação em controlar a alta dos preços. Essa dinâmica ameaça corroer gradualmente o valor da dívida e dos ativos financeiros. Condenadas à contração, as finanças devem escolher entre a apoplexia - um crash - ou uma lenta decrepitude, sob os efeitos da alta dos preços. O próximo período pode, portanto, ser de uma crise financeira longa e lenta.

Essa conjuntura também pode marcar um ponto de inflexão para bancos centrais ultrapoderosos. Quer se trate do combate à inflação ou das condições de financiamento da economia, estas instituições parecem ter problemas. Price caps, vigilância das margens das empresas, negociações salariais plurianuais, políticas de crédito, bancos de investimento e serviços públicos e o desenvolvimento da proteção social são instrumentos que permitem uma melhor coordenação da atividade econômica no longo prazo, desde que uma regulamentação estrita chega para desinflar a insustentável esfera financeira. Nossa época tem coisas mais importantes com que se preocupar do que os altos e baixos do mercado. Chegou a hora de dizer adeus de vez à financeirização. Ela só vai morrer duas vezes.

Traduzido por Gray Anderson. Uma versão anterior deste ensaio apareceu no Le Monde.

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