16 de fevereiro de 2004

A velha e a nova economia do imperialismo

Recent theorisations of the world economic order have at least cleared away the fog created by the "globalization debate", with its talk of an equalizing world market and nascent cosmopolitan democracy. Attention has been refocused on material interests and the economic processes underlying the hierarchical arrangements of the world market. But they have left unresolved the opposition between these alternative interpretations of the trajectory of US power and the juxtaposition of rivalry and unity that characterises the new imperialism. As a result the persistent underlying contradictions of the world capitalist economy, and the US role in these contradictions, continue to be taken as signs of either the terminal decline of US power, or its opposite. In reality, however, economic internationalisation during this period of neoliberalism has been marked both by continuing competitive rivalry among the leading capitalist powers, and by growing economic interpenetration among capitalist firms and political interdependence between capitalist states. Contemporary imperialism, then, is an expression of the expansionist tendencies of capital to internationalize and constitute a world market for its valorization, while simultaneously differentiating itself into units located in states where class power and the production of value are materialized. There can be neither capital accumulation nor imperialism without states, or without the uneven development and relations of domination between states within the world market. Capitalist imperialism, on this reading, inherently involves contradictions between conflict and co-operation - what Harry Magdoff referred to in the 1990s as the "centrifugal and centripetal forces - at the very core of the capitalist process" - and between competitive economic rivalry and interdependency in the world market.

Gregory Albo

Socialist Register


Tradução / Há quarenta anos, no primeiro volume do Socialist Register, Hamza Alavi assinalava que era necessário voltar-se para uma análise de um "novo imperialismo", porque o "fim do domínio colonial direto... ainda não havia precipitado aquela crise final que marcaria o fim do capitalismo monopolista e anunciaria a era do socialismo". O autor insistia que a dinâmica chave na economia mundial não poderia mais ser capturada pelas teorias clássicas do imperialismo de expansão territorial que tendia à busca de novos mercados, e concluiu que:

o propósito principal do... novo imperialismo não é a exportação de capital como meio de exploração de trabalho barato no exterior. Muito pelo contrário, representa um meio de concentrar o investimento doméstico para expandir a produção no país metropolitano e de buscar o domínio dos mercados mundiais, nos quais ele estabelece sua influência por uma variedade de modos...[1].

Esta idéia, a um só tempo teórica e política, permanece central para a análise do novo imperialismo de hoje em termos da reprodução sistemática do desenvolvimento desigual e do arranjo organizativo hierárquico do mercado mundial, por meio de trocas econômicas e relações políticas entre estados que são formalmente iguais[2]. Por situar o imperialismo nos termos da lei do valor e do império da lei, “o consenso” pode ser visto como tão importante quanto a “coerção” para a compreensão do imperialismo moderno.

A internacionalização do capital durante o longo período do neoliberalismo, desde os anos 80, fez surgir novos padrões e contradições no mercado mundial e teve profundos efeitos sobre a institucionalização do poder estatal, a organização dos aparatos estatais e sobre as relações entre os estados. Trouxe também à tona três conjuntos de temas que dizem respeito à teoria do imperialismo: (1) os padrões de competição e a distribuição de poder nos centros de acumulação de capital, ou seja, relações inter-imperiais; (2) os mecanismos e padrões de desenvolvimento desigual que reproduzem relações hierárquicas entre formações sociais dominantes e dominadas; e (3) as relações políticas e culturais entre, e a opressão de, diferentes povos; ou para colocar de outra maneira, a questão da soberania política vis-á-vis o desenvolvimento de instituições supranacionais de governança; enquanto os três temas permanecem fundamentais para a economia política do mercado mundial de hoje, é o primeiro e principal preocupação deste trabalho.

Uma característica deste período de neoliberalismo é que as alternativas políticas fora do bloco capitalista avançado foram marginalizadas. O novo imperialismo intensificou as relações de dominação, em termos tanto de marginalização econômica como de subordinação geopolítica dentro da cadeia imperialista. A emergência de três zonas político-econômicas é um desenvolvimento chave –além das zonas com grande variação de arranjos organizacionais, da grande integração da União Européia (UE), dos acordos de comércio preferenciais da América do Norte e dos vínculos comerciais formados por redes de subcontratantes no Leste da Ásia. No entanto, como a internacionalização do capital afeta as formas de organização, rivalidades competitivas e interdependências destes três blocos, e, em particular, quais são seus efeitos na posição dos EUA como o pólo imperialista dominante?

Hoje existem, em grandes linhas, duas visões aparentemente contraditórias sobre o assunto, cada uma implica uma posição distinta sobre a natureza do novo imperialismo. A primeira enxerga os EUA em um declínio econômico e diante de uma rivalidade política cada vez maior, reivindicando a teoria de Lênin do imperialismo, de acordo com a qual os processos de valorização do capital e sua internacionalização logo encontram expressão em conflitos geopolíticos[3]. A derrota dos EUA no Vietnã, os distúrbios econômicos dos anos 70 e o fim do sistema monetário do pós-guerra de Bretton Woods, que foi construído sobre a força do dólar americano, todos foram vistos como indicações de que os limites do poder dos EUA foram alcançados. Nessa perspectiva, o declínio relativo dos EUA continuou nos anos 80, como se pode observar no crescimento econômico per capita vacilante, no baixo avanço da produtividade, nos mercados de capital “impacientes”, nos níveis de dívida crescendo em todos os setores, e na cada vez menor capacidade competitiva, que tomam a forma de enormes déficits estruturais de conta corrente. Os “capitalismos rivais” do Japão e da Alemanha, que ancoram os blocos comerciais do Leste da Ásia e da Europa respectivamente, foram vistos como zonas de produção ascendente e inovação organizacional –tecnologias e conglomerados em redes flexíveis, pós-fordistas, altamente organizados que superam a produção em massa dos EUA e as corporações integradas verticalmente. A oposição européia, e às vezes japonesa, ao unilateralismo dos EUA nos últimos anos (intervenção militar no Oriente Médio, agressividade nas relações comerciais e o descaso com a Rodada Doha, imprudência na administração do dólar) é tida como um sinal de crescente antagonismo político entre centros do capitalismo mundial em disputa.

A outra visão, oposta, enfoca a dinâmica econômica dos EUA (coincidente com o surgimento da “nova economia”) e a compara com uma década de deflação japonesa e a incoerência da política econômica da UE, e especialmente da Alemanha, (aprisionada na camisa de força do Pacto de Crescimento e Estabilidade e disciplinada pelo Banco Central Europeu). A força relativa dos EUA, nessa perspectiva, está relacionada, como o Financial Times coloca, a “uma combinação de mercados de capital flexível e um clima econômico que leva à assunção de riscos [que foi] ao menos tão importante como os próprios investimentos [reais]... Os mercados financeiros devem tomar muito crédito para extrair o dinheiro das administrações tradicionais e corporações entrincheiradas”[4]. A financialização e o neoliberalismo juntos, desse ponto de vista, arrebentam a organização dos trabalhadores dos EUA e aumentam as condições para a extração e realização da mais-valia. E o “regime Dólar-Wall Street” não apenas exportou o modelo dos EUA de maneira bem-sucedida para as zonas dominadas pelos EUA, como também reestabeleceu as condições para a acumulação internacional favorável ao bloco capitalista avançado como um todo, e pressionou a UE e o Leste da Ásia para que tomassem os caminhos necessários de reestruturação.

Uma divisão de interpretação um pouco paralela ocorreu de forma similar sobre a forma de interdependência no novo “império”. Uma das visões é a de que as classes capitalistas transnacionais agora transcenderam fundamentalmente os interesses nacionais, portanto, a soberania política e a coordenação econômica são efetivamente globais, um “ultra-imperialismo”[5]; a outra é a de que o novo império é predominantemente uma reafirmação da hegemonia dos EUA, um “super-imperialismo”[6].

Estas teorizações sobre a ordem econômica mundial atual ao menos dispersaram a névoa criada pelo “debate da globalização”, caracterizado por sua ênfase em um mercado mundial equalizador e uma democracia cosmopolita nascente. A atenção se reorientou para os interesses materiais e os processos econômicos que subjazem nos arranjos hierárquicos do mercado mundial. Mas deixaram sem resolver a oposição entre estas interpretações alternativas da trajetória do poder dos EUA e da justaposição entre rivalidade e unidade característica do novo imperialismo. Conseqüentemente, a persistência das contradições subjacentes à economia capitalista mundial, e ao papel dos EUA nessas contradições, continua sendo interpretada tanto como sinal da decadência terminal do poder dos EUA como do contrário. Na verdade, todavia, a internacionalização econômica durante este período de neoliberalismo foi marcada tanto pela rivalidade competitiva entre os principais poderes capitalistas como pela crescente interpenetração econômica das empresas capitalistas e pela interdependência política dos estados capitalistas. O imperialismo contemporâneo acaba sendo, assim, uma expressão das tendências expansionistas do capital para sua internacionalização e para a constituição de um mercado mundial com o propósito de sua valorização. Simultaneamente, este se concretiza de formas diferentes em unidades localizadas em estados onde se materializa o poder de classe e a produção de valor. Não pode haver acumulação de capital ou imperialismo sem estados, ou sem desenvolvimento desigual e relações de dominação entre estados no mercado mundial. O imperialismo capitalista, nesta leitura, implica intrinsecamente contradições entre conflito e cooperação –o que Harry Magdoff definia nos anos 90 como as “forças centrífugas e centrípetas... no próprio núcleo do processo capitalista”[7]– e entre rivalidade econômica competitiva e interdependência no mercado mundial.

Expansão capitalista e teorias do imperialismo

O capitalismo é definido, nas suas determinações mais simples, por um processo contínuo de transformação de mercadorias e relações sociais no tempo e no espaço em busca de mais-valia. Em uma das passagens dos Grudrisse freqüentemente citado, Marx nota que “enquanto o capital deve de um lado esforçar-se para romper toda barreira espacial ao intercâmbio, ou seja, às trocas, e conquistar toda a terra para seus mercados, esforça-se por outro lado em aniquilar tal espaço com o tempo... O resultado é: o desenvolvimento geral das forças produtivas tendencialmente e potencialmente... como base; de maneira análoga, a universalidade da troca, tendo o mercado mundial como base”[8]. Para Marx, a apropriação e produção de valor e de mercadorias por meio da exploração do trabalho ocorrem em locais de produção espacialmente determinados, ainda que a circulação de mercadorias e a distribuição do valor em fluxos de troca não estejam potencialmente presas a nenhum lugar em particular. Estas duas proposições simples possuem duas conseqüências importantes. Primeira, o capitalismo é inerentemente expansionista em dois sentidos: a competição impulsiona as empresas continuamente a aumentar a produtividade do trabalho pelo desenvolvimento tecnológico dos meios de produção e reorganização do trabalho, e a buscar novos mercados e novos setores para a produção e realização do novo valor agregado. Segunda, os locais de produção particulares –tanto como relações de classe e formas de estado– estão sempre implicados em um conjunto mais amplo de relações sociais, fluxos de troca e imperativos de competição.

Marx insistia que a reprodução ampliada do capital não era uma conseqüência da interação harmoniosa de indivíduos autônomos e empresas agindo sobre uma inerente natureza humana baseada no auto-interesse mediante o surgimento das oportunidades de mercado. Ao contrário, os padrões de reprodução das relações sociais são sempre específicos, conflituosos e transitórios: surgem da exploração dos trabalhadores e da competição para a extração de valor no momento da produção, e da luta competitiva entre “muitos capitais” para a realização e distribuição de valor na circulação. Esta competição leva a uma revolução contínua nas forças de produção e de circulação de capital. É justamente isso que Marx quis dizer quando escreveu que “a tendência para criar o mercado mundial está diretamente relacionada ao próprio conceito de capital”[9]. Como David Harvey assinalou ao aprofundar este aspecto do pensamento de Marx, a tendência ao expansionismo levanta uma importante contradição real[10]. A reprodução ampliada do capital deve manter certa “coerência” e “materialização” no tempo e no espaço para que o capital possa se valorizar e acumular, mas o espaço do capital está se alterando continuamente no tempo através de mudanças nos processos de produção, “condensando” distâncias por meio de novos métodos de transporte e comunicação e pela busca incessante de novos mercados. Há um processo contínuo de valorização e desvalorização nos complexos de capital fixo e nas relações sociais em espaços sociais distintos na medida em que as capacidades produtivas, a posição competitiva e as relações de troca evoluem. Existe uma contradição inescapável nas relações sociais capitalistas entre a fixidez necessária para a produção de valor e a fluidez da circulação de mercadorias e capital monetário em busca de um valor de troca maior.

Na abstração teórica de Marx, o imperativo da competição de acumular pelo “capital como um todo” está registrado na circulação de mercadorias no mercado mundial. As transformações dentro e entre os locais de produção como uma conseqüência da competição entre “muitos capitais” são, todavia, fontes de interdependências emergentes e tensões competitivas –e mesmo caos potencial– no mercado mundial, somente em contextos históricos específicos. Portanto, por exemplo, Marx argumentou que o comércio internacional e a exportação de capital reagem sob pressão sobre a taxa de lucros por meio da diminuição dos custos do material que compõe o capital constante, barateando as necessidades da vida e, logo, possibilitando a redução dos salários, e pelo aumento da escala de produção. Assim, os imperativos da competição forçam a internacionalização dos circuitos monetários, e de capital produtivo e comercial. A circulação internacional do capital, por sua vez, “dissolve” as sociedades pré-capitalistas em formas diferenciadas de colonialismo, variando em sua forma de coerção e estabelecimento, mas integrandoas em um mercado mundial crescentemente governado por imperativos capitalistas[11]. Marx considerava este processo como a “missão histórica da burguesia”, mas não sem ambigüidades; na medida em que revela “uma divisão do trabalho nova e internacional, surge uma divisão adequada às exigências dos principais centros da indústria moderna, e converte uma parte do globo em um campo de produção predominantemente agrário, com o propósito de abastecer a outra parte, que permanece um campo predominantemente industrial”[[12]. Além disso, “a troca desigual” dentro dessa divisão do trabalho emergente pode acentuar diferenças geográficas, na medida em que o comércio entre países de diferentes produtividades do trabalho e de composição de capital ocasionaria transferências de valor e de lucros[13].

É neste contexto que aparece o estado-nação, por um lado, como uma institucionalização historicamente específica das relações de classe e, por outro, como um mediador do conjunto mais amplo de relações de acumulação diferenciada estabelecido pelo mercado mundial. Este é o sentido em que, para Marx, o estado é “a forma de organização que a burguesia adota necessariamente para propósitos internos e externos, para a garantia mútua de sua propriedade e de seus interesses”[14]. No entanto, se a reprodução ampliada do capital exige que o estado estabeleça a base das relações de propriedade para a competição, valorização, desvalorização e internacionalização do capital, também o faz de modo mais direto, na medida em que os efeitos da competição estão parcialmente deslocados na política. Como resultado, o estado necessariamente defende o capital que foi investido em seu domínio territorial para que tal capital, e as relações sociais que lhe dão suporte, possam ser valorizados. Isto é feito não tanto para defender um “espaço nacional” delimitado, mas sim para salvaguardar interesses capitalistas particulares tanto em sua dimensão local quanto na global. Portanto, para Marx, os imperativos da competição que tendem à equalização e à internalização do capital no mercado mundial também contribuem com uma rede diferenciada de processos de trabalho concreto, capitais em competição e estados-nação organizados hierarquicamente.

Ainda que Marx tenha identificado os imperativos da competição de acumulação do capital que formam a base para as divisões econômicas do mercado mundial, ele não propôs nenhuma teoria do imperialismo para explicar os processos competitivos ou as formas de interdependência e rivalidade entre estados que as divisões do mercado mundial geram. As teorias clássicas da economia do imperialismo que emergiram durante a Segunda Internacional, no entanto, não poderiam evitar a tentativa de definir tal teoria[15]. Iniciaram com duas teses-chave: a competição leva à monopolização e à internacionalização de circuitos específicos do capital; e as bases territoriais da competição entre as empresas são transpostas numa rivalidade inter-estatal e em um conflito entre poderes imperiais. Rosa Luxemburgo, por exemplo, argumentava que as relações sociais capitalistas restringiam a base para sua realização e, portanto, necessitavam da busca de mercados externos em sociedades pré-capitalistas. Pelo contrário, Hilferding argumentava que a competição em um “capitalismo organizado” foi caracterizada por bancos sendo fundidos com indústrias para formarem o capital financeiro que, por sua vez, exportava capital buscando mercados para investimento e comércio. Para Lênin, a exportação de capital definia o imperialismo como a fase monopolista do capitalismo, onde a competição entre empresas monopolistas rivais é transformada em conflito entre estados para o controle de mercados e território. Em oposição a Kautsky, que sugeriu que os cartéis e os estados nacionais deviam cooperar numa política de ultra-imperialismo, Lênin insistia que o desenvolvimento desigual levava a uma competição monopolista contínua e ao conflito entre estados. Foi apenas Bukharin, no entanto, que viu que a “economia mundial como um sistema de relações de produção e, de modo correspondente, de relações de troca em escala mundial” produziu não apenas uma, mas duas tendências de imperialismo. Como ele assinalou, “junto com... a internacionalização do capital ocorre um processo de entrecruzamento ‘nacional’ de capital. Um processo de ‘nacionalização’ do capital”[16].

Enquanto as teorias clássicas centravam-se na competição excessiva que levava à exportação de capital e à rivalidade imperialista, o debate de um “novo imperialismo” no final da década de 60 e início dos anos 70 enfocava-se na capacidade da circulação do capital interno ao bloco imperialista, a qual mudava as capacidades competitivas relativas e reforçava novos padrões de desenvolvimento desigual[17]. Para Mandel, o predomínio dos EUA durante o período do pós-guerra foi desafiado na medida em que Japão e Alemanha (com esta última ajudada pela fusão mais ampla do capital europeu através de um estado Europeu supranacional) reestabeleceram suas capacidades produtivas para contestar o quinhão dos EUA no mercado mundial e suas exportações de capital[18]. Para Petras e Rhodes, por outro lado, a hegemonia dos EUA foi se reconsolidando por meio de seu domínio nas finanças internacionais, do acesso privilegiado aos recursos naturais, poderio militar e da fraqueza dos trabalhadores nos EUA[19]. No entanto, como outros envolvidos neste debate destacaram, o assunto em pauta não pode ser reduzido às capacidades competitivas como determinadas pelos índices de exportação de capital e às concepções clássicas de competição entre estados. As novas características da internacionalização do capital –corporações multinacionais e a expansão internacional do circuito total do capital– também postulavam os limites e conflitos sobre a organização e alocação das funções do estado na nova fase do imperialismo[20]. Na verdade, esta noção subjaz na insistência de Poulantzas de que a internacionalização do capital não devia ser entendida, como nas teorias clássicas, como uma relação quantitativa entre duas entidades externas –um estado integral e um capital estrangeiro imposto de fora buscando explorá-lo. Ao contrário, partindo de sua interpretação de que o estado não é um conjunto de instituições separadas do capital, Poulantzas observou a internacionalização do capital em termos da natureza cambiante do bloco de poder e “das transformações internalizadas do próprio estado”[21].

Estas teorias em disputa sobre a internacionalização do capital, que vieram à tona novamente com a consolidação do neoliberalismo e com a reafirmação de um imperialismo estadunidense explícito, explicam por que não há nenhuma teoria marxista do imperialismo. Para evitar continuar falando do mesmo tema, seria útil enfocar sete dimensões que tentam conceituar a economia do novo imperialismo.

  1. Interdependência e diferenciação. A tendência no sentido da equalização e diferenciação identificada por Marx significa que a competição entre espaços geográficos de acumulação e, portanto, o desenvolvimento desigual são inerentes ao mercado mundial capitalista. Estes processos, na medida em que criam interdependência global, simultaneamente criam a partilha do bloco dominado pelo bloco imperialista, e também torna a diferenciação um atributo das relações inter-imperiais.
  2. Competição internacional. A luta competitiva entre empresas em locais de produção determinados como conseqüência da intensificação, concentração e centralização da produção e da internacionalização da circula- ção é um aspecto constitutivo do capitalismo. As formas locais e particulares da produção de valor estão vinculadas com os fluxos monetários abstratos e universais no mercado mundial. A competição internacional, portanto, como um aspecto central, e historicamente específico, das relações interimperialistas, parece aumentar na medida em que o capitalismo se desenvolve.
  3. Competição entre estados. A competição entre “muitos capitais” produz múltiplos centros de poder e sua materialização no sistema de estados. Esta foi a intuição fundamental de Bukharin: a expansão capitalista é caracterizada por processos tanto de internacionalização quanto de nacionalização (ou seja, state-building). Neste sentido, a competição internacional não ocorre separada ou contra os estados, mas através deles.
  4. A “internalização” do capital estrangeiro. Todas as tendências de intensifi- cação, concentração e centralização do capital aumentam a escala das operações, a divisão técnica do trabalho e a complexidade territorial das empresas capitalistas. As multinacionais possuem uma “sede” na qual os agentes dominantes que possuem e alocam os recursos tem localização específica, mas também se tornam agentes importantes de acumulação nos lugares onde investem. Este processo de internacionalização tende a aprofundar a competição internacional na medida em que os locais de produção devem competir por fundos internamente alocados pelas empresas. Além disso, cada estado adquire interesse em proteger e atrair investimentos em capital fixo, uma vez que desenvolve interesse pela coordenação inter-estatal para sustentar a circulação internacional de capital. Segundo Poulantzas, o capital estrangeiro não deve ser pensado como uma imposição externa, já que em determinados pontos este forma uma “burguesia interna” dentro do bloco no poder. Neste caso, de modo contrário a uma “burguesia nacional” que organiza um espaço econômico nacional para si, o estado reproduz ativamente tanto o capital local como o externo mediante mecanismos ideológicos e políticos, e mediante o apoio à competição.
  5. Internacionalização e os circuitos do capital. A internacionalização do capital assume a forma da expansão dos circuitos do capital produtivo, mercantil, especulativo e monetário, cada um produz diferentes modalidades de desenvolvimento desigual, competição e interdependência. Diferentes fases de internacionalização serão dominadas por diferentes circuitos e, portanto, configura singularmente os padrões da competição internacional.
  6. A reorganização interna dos estados. Na medida em que os estados garantem as condições extra-econômicas necessárias para a acumulação e a reprodução social, a internacionalização do capital afetará a forma social e a organização do estado. Os aparatos internos de política econômica se tornarão crescentemente subordinados àqueles que são responsáveis pela internacionalização do capital, particularmente para assegurar a estabilidade da moeda e seu papel na circulação internacional. Assim, todo o estado estará condicionado pela competição internacional, o que Leo Panitch chamou de internacionalização e mediação da acumulação internacional pelo estado[22]. A capacidade de cada estado de mediar a competição internacional será determinada por sua capacidade administrativa e diplomática, sua posição na cadeia imperialista e suas relações de classe internas.
  7. Contradições nas relações interimperiais. A unidade e as contradições na circulação internacional do capital supõem que o conflito e a cooperação, a rivalidade competitiva e a interdependência, estão igualmente enraizadas no mercado mundial. Na medida em que os circuitos do capital nos estados estão internacionalizados e, portanto, dependentes do mercado mundial para sua auto-expansão e realização, estarão presentes tanto uma maior competição quanto uma interdependência internacionais. As relações interimperiais registrarão esta contradição. Todavia, apenas em momentos históricos particulares as rivalidades competitivas entre as empresas e entre os estados se tornarão uma rivalidade imperial no sentido de conflito em torno da liderança política do bloco imperialista. 

Relações interimperialista e o mercado mundial

Uma implicação do que acabou de ser dito é que, enquanto os imperativos gerais da competição sempre operam, os determinantes e configurações particulares das relações interimperiais variam conforme períodos específicos do capitalismo. Para reconhecer algumas das particularidades da economia do novo imperialismo, três aspectos mais abrangentes das relações dentro do bloco capitalista avançado desde o fim do boom do pós-guerra precisam ser consideradas: o desenvolvimento desigual que ocorreu durante a “grande depressão” (ou mais precisamente a grande desaceleração) desde 1973; a internacionalização do capital, e especialmente do capital financeiro; e a emergência de padrões particulares de competição internacional entre as três zonas capitalistas principais.

Devemos começar recordando que os países de capitalismo avançado ainda estão no meio de uma longa fase de acumulação mais lenta que a do boom do pós-guerra[23]. As taxas de crescimento anual nos países de capitalismo avançado caíram de 4% no período de 1950 a 1973 a menos de 2% na década de 80 e estagnaram desde então, com a exceção dos EUA na segunda metade dos anos 90. Obviamente, esta exceção incentivou em muito a visão do ressurgimento do colosso econômico dos EUA, capaz de estender seu alcance imperial via modelo neoliberal. Os EUA, nesse sentido, estiveram no coração da economia mundial em ambas as fases –graças à sua capacidade de ampliar rapidamente o uso dos meios de produção “de ponta”, e à flexibilidade de seu mercado de trabalho, o que permitiu a extração de mais horas de seus trabalhadores. Ainda que tanto o “boom do pós-guerra” como a “grande depressão” tenham sido períodos de “equiparação” aos EUA por parte da Europa e do Japão, em termos dos níveis de produtividade média e de renda per capita de ambos. O grau de equiparação da renda foi menos alardeado e mais desigual devido ao aumento da jornada de trabalho nos EUA e sua queda em outros lugares, mas medidas como os vários índices de desenvolvimento humano que se baseiam menos na renda mostram um processo ainda mais claro de equiparação sustentada[24]. Logo após a reconstrução do pós-guerra, os EUA não tinham par para suas capacidades produtiva e tecnológica nem na Europa nem no Japão; hoje cada uma das três maiores zonas da produção capitalista lidera em alguns setores de tecnologia, produtividade e fatias de mercado. Este desenvolvimento no longo prazo é indicado de várias maneiras: capitalização de mercado, renda total de vendas, quotas de exportação, regiões periféricas de redes terceirizadas e dependência econômica, a consolidação de moedas e zonas comerciais, e tensões comerciais entre os três blocos imperiais sobre a divisão da produção e propriedade em um conjunto de setores. O contexto competitivo e a configuração atual do mercado mundial são extremamente diferentes daqueles do domínio econômico unilateral estadunidense que definiu o sistema de Bretton Woods no pós-guerra.

Os desenvolvimentos da capacidade produtiva nas zonas chave do capitalismo avançado também foram registrados em transformações na circulação de mercadorias e de moeda no mercado mundial. No período do pós-guerra, os EUA forneceram liquidez para o sistema mundial de comércio, primeiro, por meio de exportações de capital para financiar os equilíbrios comerciais das economias em reconstrução da Europa e Nordeste asiático, e depois pela emissão de dólares e empréstimos na medida em que sua própria balança de pagamentos começava a mover-se de superávits a déficits no final dos anos 60. O processo de equiparação e a valorização do dólar resultante significavam que o dólar americano eventualmente tornou-se insustentável como moeda lastro única, e, com isso, terminaria o sistema de Bretton Woods. O mercado mundial entrou em uma era muito diferente: um sistema monetário puro de crédito (em vez do sistema de lastro-ouro), taxas de câmbio flutuantes (ao invés de taxas fixas), um conjunto de moedas acumuladas, junto com ouro, em bancos centrais para equilibrar as balanças comerciais (ao invés de apenas o dólar), a liberalização dos movimentos de capital (substituindo os controles limitados), e a negociação do ajuste das principais moedas entre as três zonas econômicas emergentes (após uma fase de ação unilateral).

O impasse econômico dos anos 70 gerou um conjunto adicional de preocupações: muitos países em desenvolvimento tiveram problemas comerciais, e o crédito destinado a cobrir as diminuições no comércio exterior logo se transformou em um problema igualmente grande para cumprir com os serviços da dívida e administrar os fluxos de capital. Taxas de crescimento menores e taxas de juros mais altas fortaleceram os interesses financeiros e tornaram sistematicamente mais difícil para os governos manter equilíbrios fiscais; e o déficit da conta corrente estadunidense, combinado com os superávits asiático e europeu, mostrou-se crônico, representando uma mudança estrutural no comércio relativo e nas capacidades competitivas entre os três blocos. Emitir moeda ou títulos do governo ou corporativos para manter líquidos os equilíbrios comerciais tornou-se um aspecto crítico dos fluxos do mercado mundial: inicialmente reciclar petrodólares, depois manter os déficits da balança de pagamentos do Terceiro Mundo e finalmente cobrir o massivo déficit em conta corrente dos EUA, e a crescente dívida do setor privado e governamental. A crescente competição por fatias do mercado mundial de bens e para atrair capital monetário, em um contexto de crescimento mais lento, é acompanhada pela interdependência das diferentes zonas em busca de saídas para mercadorias nos mercados uns dos outros, a internacionalização dos fluxos e demandas de crédito, e a coordenação interestatal do G7 de suas políticas de gestão da economia internacional.

Em meados da década de 80, os ajustes da taxa de câmbio e dos fluxos de capital provaram ser tanto arenas de cooperação como fontes de tensão, incerteza e instabilidade como conseqüência de assimetrias comerciais estruturais e mudanças relativas nas capacidades subjacentes das três zonas em produzir valor (esta contradição, por sua vez, estimulou uma explosão nos mercados financeiros secundários para cobrir os riscos). O FMI, o Banco Mundial e o G7 –com os EUA desempenhando um papel de liderança em cada um deles– promoveram a liberalização financeira e da conta de capital como o mecanismo de financiamento dos ajustes comerciais e fizeram com que os mercados de câmbio estrangeiros impusessem disciplina às economias nacionais. O sistema de taxas de câmbio flutuantes surgiu das assimetrias econômicas no mercado mundial e da fraqueza do dólar durante a década de 70. Mas nos anos 80, enquanto o déficit comercial dos EUA escalava novas alturas, o dólar valorizou-se cerca de 40% na medida em que afluíam capitais. Os acordos de Plaza e do Louvre de 1985 e 1987 tentaram administrar as tensões resultantes e reduzir o valor do dólar com relação ao yen e as moedas européias. Mas a grande desvalorização do dólar subseqüente em meio a um crescimento lento, não facilitou a solução dos problemas comerciais estadunidenses; e a valorização correspondente do yen e das moedas européias deram as condições para a bolha de ativos japonesa seguida de deflação, e para a estagnação européia. Nem estes realinhamentos e tensões poderiam ser contidos apenas no interior das economias “âncora”. As oscilações no mercado de ações de 1993-94 e os problemas monetários da Espanha, Itália, Portugal e de um conjunto de estados do Terceiro Mundo foram “efeitos de derrame”, que atuaram diretamente sobre suas economias e sua competitividade, reduzindo drasticamente a renda da classe trabalhadora e do campesinato.

As desvalorizações do início da década de 90 e a desaceleração garantiram o início de uma nova fase de intensificação da competição internacional, na medida em que o dólar atingia baixas recordes ante o marco alemão e o yen em 1994. Os japoneses começaram a tentar fazer desvalorizações competitivas para reavivar sua economia em face de uma catástrofe financeira; e para compensar o Pacto de Estabilidade e Crescimento da União Européia, que preparou o terreno para a moeda única. A União Européia, também, enxergou margem de manobra por meio de realinhamento monetário, enquanto o capital europeu buscava ativos externos para diversificar o risco. De 1995 a 2000, o dólar subiu cerca de 40% numa base de ponderação comercial, apesar disso não restaurar o alto crescimento nem na Europa nem no Japão. Além do mais, o influxo de capital resultante e o estímulo econômico que este deu à economia estadunidense gerou um período curto de crescimento de 1995 a 2000, quando o crescimento dos EUA apresentou uma média de 4% ao ano (devido em muito ao crescimento extensivo no tamanho da força e da jornada de trabalho, mas também ao crescimento acima da média da produtividade em 2,6% obtido nos EUA de 1975 a 1995, e bem acima do lento crescimento da produtividade na Europa e no Japão). A euforia da “nova economia” alcançou seu ápice em 2000 com um crescimento de cerca de 5% e com mercados de ações apresentando cifras astronomicamente elevadas em todos os ativos.

Apesar dos aumentos na produtividade, o gasto em capital dos EUA não foi excepcional em seus níveis ou duração após este salto, e os aumentos na capacidade produtiva não foram registrados nas contas comerciais, que continuaram a apresentar déficits recorde, tornando a posição do dólar vulnerável, especialmente com o alto consumo e as fusões corporativas sendo financiadas em ultima instância pela dívida externa. Daí a fragilidade do “ciclo virtuoso” da inflação de ativos, do gasto em capital, do aumento de produtividade, e de um dólar mais forte sem maior desempenho comercial. Além do mais, sem um crescimento sustentável na Europa ou no Japão, manter tal círculo virtuoso de crescimento baseado nas finanças nos EUA provou-se impalpável. Mesmo quando o Presidente da Reserva Federal, Alan Greenspan, advertiu sobre a “exuberância irracional” da igualdade dos mercados enquanto, sem parecer ironia, também celebrava a “nova economia”, a resposta estadunidense a todo choque econômico, e particularmente o da Reserva Federal, foi a de agravar os desequilíbrios estruturais. Cada crise de mercado –as crises da Ásia e da Rússia de 1997-98, o colapso dos fundos de investimentos internacionais Long Term Capital Management, e o colapso das ações da internet– teve como contrapartida injeções adicionais de liquidez para prevenir implosões posteriores dos mercados de crédito interdependentes. Isto sustentou o crescimento das outras economias afetadas bem como o dos EUA, mas a um custo progressivo de níveis irracional de ativos, uma maior carga da dívida e um equilíbrio na conta corrente cada vez mais insustentável. Com o crescimento quase nulo nos EUA após 2001, houve uma reversão desses processos. Mas o impacto da mudança dos EUA do estímulo da demanda efetiva para cortes de impostos e de crédito, em um mercado mundial diante de tendências deflacionárias, forçou uma mudança drástica na perspectiva do governo Bush.

Há, portanto, várias tensões que persistem na “interdependência desigual” das relações interimperiais na era do neoliberalismo, que podem ser rapidamente resumidas nas sete dimensões ressaltadas anteriormente:

(1) Interdependência e diferenciação. Desde 2000, a alternância entre crescimento e estagnação entre os três blocos após o período do neoliberalismo deu passagem a uma “equalização” de condições “diferenciadas” para um crescimento lento em todos eles25. Pela primeira vez desde o início da década de 80, os países de capitalismo avançado, e uma boa parte do resto do mundo, entraram em uma recessão sincronizada, tanto com taxas de inflação como taxas de crescimento real do produto interno bruto dentro dos países de capitalismo avançado tendendo a 2% ou menos para 2003. A Alemanha tem crescido menos de 1% desde 2001 (o alto crescimento na Europa como um todo em 2000 foi fortemente impulsionado pela forte queda do Euro, que favoreceu as exportações, mas apenas temporariamente). O Banco Central Europeu cortou as taxas de juros de 4,75% para 2% no período, mas seu compromisso firme com o Pacto de Estabilidade e Crescimento demonstra que a UE continua a depender desproporcionalmente de nova demanda externa para sustentar seu lento crescimento. Uma valorização desmesurada no Euro reduzirá ainda mais as perspectivas de crescimento, e forçará a Alemanha –que tem crescido menos que o Japão desde 2000– a uma deflação. Enquanto isso, no Japão, a deflação da bolha de ativos dos anos 90 transformou-se em uma de- flação econômica geral (com suas taxas de juros de curto prazo centrais em 0%). Como se espera que seu crescimento caia para menos de 1% em 2003, o Japão enfrentaria ainda mais dificuldades com qualquer fortalecimento do yen e o enfraquecimento de suas exportações. Apesar de haver sinais que o Leste asiático está desenvolvendo uma dinâmica interna de crescimento e comércio que está aprofundando a interdependência da região como um bloco econômico, este permanece dependente de exportações para zonas fora da região.

Os EUA têm sido a principal força de sustentação do mercado mundial, mas é óbvio que estes não saíram da recessão que teve início no final de 2000, e possuem seus próprios temores quanto ao crescimento das taxas de desemprego aos maiores níveis da década e a inflação continua a cair. Como os gastos de capital nunca se recuperaram ao longo dos anos 90, o aumento mais rápido do consumo que o da renda nos EUA tem sido crítico para seu crescimento. O consumo nos EUA continua a ser flexível, apesar da redução do montante de dívida e gasto adicionais que os consumidores desejam assumir (ainda que devamos lembrar que o nível de consumo japonês também se manteve alto nos primeiros anos de sua deflação de ativos, mas, o Japão nunca teve o equivalente da Reserva Federal incentivando alegremente as pessoas a emprestar mais respaldadas pelos valores crescentes de suas habitações). Uma correção nos gastos pessoais nos EUA parece inevitável: a riqueza líquida em queda; a dívida líquida em alta; poupança interna em queda; desemprego em alta. Além disso, nem a diminuição das taxas de juros realizadas pela Reserva Federal treze vezes desde o fim de 2000 ao nível mais baixo em 45 anos, nem a queda da taxa de curto prazo da Reserva Federal, de 6,5% a apenas 1% em junho de 2003, conseguiram estimular de maneira clara o gasto de capital (ainda que expliquem boa parte da elasticidade do consumo pessoal e do mercado imobiliário). As preocupações deflacionárias foram tais que a Reserva Federal têm pressionado as taxas de juros a longo prazo dos Bônus do Tesouro, bem como dado a maior liquidez possível ao mercado. As medidas de incentivo também se expressaram na mudança de posição fiscal do governo dos EUA neste período de um superávit de 1,4% do PIB a um déficit orçamentário projetado de 4,5%. No entanto, o realinhamento monetário como o resultado do declínio do dólar e da debilidade na Europa e no Japão torna difícil de antever as prováveis fontes de demanda mundial fora dos EUA. De fato, o cenário parece pavorosamente sombrio: recessão, debilidade fiscal e ameaça de deflação nas três zonas. Isto é o que se esconde dos avisos do FMI que, como na crise da Ásia de 1997, “o risco de deflação generalizada está na ordem do dia... a situação econômica global está particularmente incerta neste momento, com o alastramento de vulnerabilidades”[26].

(2) Competição internacional. Ao invés de ser uma fase de transformação fundamental nos lucros corporativos, na produtividade e acumulação na “nova economia”, a fase do final dos anos 90 reforçou a interdependência desigual do mercado mundial na economia e no poder dos EUA, na medida em que o resto do mundo se apoiava nos EUA como a “locomotiva” da acumulação mundial. Este período pode estar esgotado, na medida em que parece inevitável o realinhamento em algum nível entre as três maiores zonas do capitalismo, com as zonas periféricas do mercado mundial forçadas a alinhar-se a uma ou outra delas. Tal realinhamento aumentará a competição entre as zonas devido às condi- ções de debilidade econômica. O bloco dos EUA (inclusive Canadá e México) possui uma base de ativos em deflação, imensas demandas de capital e problemas de competitividade com as taxas de câmbio atuais; o bloco da UE apresenta uma produtividade relativamente pobre, um alto desemprego, demanda interna estagnada e competitividade externa sustentada por um Euro que constumava ser mais fraco que atualmente ou do que será no futuro; e o Japão possui problemas deflacionários, demanda interna débil e superávits em conta corrente que poriam em risco qualquer valorização cambial, e, portanto, tem pouco espaço para manobra (ainda que existam forças importantes em outras partes do Leste asiático, especialmente a China, que ainda pode apresentar uma trajetória diferente à zona mais ampla se sua dependência dos superávits de exportação para os EUA possam ser diminuídos, e os vínculos de comércio internos aprofundados).

Além da deflação japonesa, o sintoma mais visível da competição intensificada tem sido a reestruturação corporativa e os escândalos governamentais, particularmente nos EUA[27]. A fraqueza do setor corporativo se destaca por sua gravidade. Só as falências das empresas de telecomunicação nas economias centrais somaram mais que US$ 100 bilhões desde 2000, em sua maior parte ocorridas nos EUA, certamente uma dos maiores episódios de falha na coordenação do mercado já vistos. Os EUA registraram mais de US$ 382 bilhões de ativos entrando em falência em 2002, incluindo o impressionante colapso da Worldcom de US$ 104 bilhões, a maior falência da história. Espera-se que os níveis registrados do número de falências de companhias iniciadas em 2001 se mantenham e se estendam a todos os setores, além dos desastres no setor de tecnologia de informação. De acordo com a OCDE, o aumento da dívida nos anos 90, especialmente nos EUA, produziu um “excesso de capital” baseado no sobre-investimento no crescimento da demanda – “foi alocado muito capital e muito rápido”28. Os lucros das corporações claramente diminuíram, e foram ameaçados pela exposição ao endividamento de baixa qualidade e aos riscos. Portanto, a redução das taxas de juros para estimular a atividade econômica teve apenas um sucesso limitado nos rendimentos das ações corporativas. De modo aná- logo, as ofertas públicas iniciais (initial public offerings–IPOs) nos EUA em 2002 registraram seu pior ano desde 1991, e os novos ativos em ações de companhias já existentes não tiveram melhor desempenho. A interdependência do mercado mundial foi reforçada dela desaceleração entre suas diferentes zonas e, por sua vez, dando força à competição internacional em mercados que crescem mais lentamente.

(3) Competição através dos estados. Padrões desequilibrados de comércio de mercadorias entre países e assimetrias estruturais nos equilíbrios da conta corrente nacional estão se tornando os símbolos-chave do impasse no mercado mundial. A posição dos EUA de devedor líquido, que surge de seus déficits em conta corrente acumulados desde a década de 70, que estão estimados em cerca de US$ 2,7 trilhões para 2002; e seu déficit apenas para 2002 está estimado em cerca de US$ 450-500 bilhões (aproximando-se do nível de 5% do PIB que geralmente tem impulsionado crises de pagamento em outros países, uma restrição da qual os EUA estão isentos, em parte, graças ao dólar ser a principal reserva monetária). Isto é acompanhado por superávits nas outras duas zonas chave, e, em particular, no Leste asiático. Mesmo tendo caído cerca de 30% com relação ao Euro desde 2000, o dólar americano ainda precisa cair mais para aumentar a competitividade da indústria dos EUA (ainda que isto não necessariamente equilibre a conta corrente, na medida em que o dólar não o fez no passado. Por outro lado, uma expansão nos EUA enquanto o Japão e a Europa estejam estagnados agravará os dilemas em todas as partes)[29].

Tais desequilíbrios dão origem a duas tensões principais. Primeiro, os EUA precisam importar capital no montante de US$ 2,7 bilhões por dia para cobrir o déficit na balança de pagamentos. O restante dos credores mundiais deve aceitar a emissão de dólares destinados a cobrir a dívida (que é fixada em dólares) na esperança de eventualmente comprar, por sua vez, mercadorias dos EUA e ativos com os dólares acumulados (ou seja, na esperança de que os dólares ainda possam comprar um valor equivalente, uma perspectiva cada vez mais improvável). Não está claro, no entanto, que os credores continuem a manter este processo no mesmo grau. Na verdade, com a queda do dólar já existem sinais de menor movimento de capitais para o interior dos EUA, e de diversificação com relação aos dólares americanos. É pouco provável que o dólar, nessas circunstâncias, mantenha sua posição excepcional como um meio de pagamento internacional e, portanto, parece perder parte de sua capacidade de garantir senhoriagem (a capacidade de se apropriar de valor sem produzir valor). Os processos econômicos que diferenciam as três principais zonas avançadas continuaram, portanto, a ser refletidas no uso crescente de moedas regionais ou “centrais”. Segundo, as pressões políticas do comércio movem-se em duas direções ao mesmo tempo como resultado dos desequilíbrios: por um lado, a rodada Doha da OMC, numerosos acordos bilaterais de comércio, o NAFTA e a autoridade para a promoção do comércio (fast track) estão aprofundando o livre comércio; por outro lado, o protecionismo do comércio está emergindo sistematicamente, especialmente por parte dos EUA, no aço, bens agriculturáveis, madeira, automóveis e outros setores. A liberalização comercial contínua pode conter estas tensões ao aprofundar as interdependências no mercado mundial, mas apenas por meio do realinhamento das rivalidades existentes e desequilíbrios que originariamente promoveram o livre comércio. No entanto, o padrão de ajuste continua sendo confuso por causa da hierarquia de poder dentro do mercado mundial[30].

(4) A “internacionalização” do capital estrangeiro. As corporações multinacionais são os principais agentes que organizam a internacionalização do capital. Elas internalizam a cooperação e a competição em suas estruturas operativas pelo aumento da especialização e a intensificação do emprego de capital por meio de desenvolvimento tecnológico e comércio entre empresas. Durante a década de 90, cerca de 75% do estoque do investimento estrangeiro direto (IED) estava localizado nos países de capitalismo avançado, e tais países também eram responsáveis por cerca de 80% de todos os fluxos externos de IED e cerca de metade de todos os influxos[31]. As alianças capitalistas que as multinacionais incorporam assumem muitas formas que incluem o investimento direto, fusões e aquisições, investimentos conjuntos, relações de terceirização e a internacionalização de propriedade compartilhada. E o investimento estrangeiro direto é hoje generalizado em todos os setores e não está limitado aos bancos e às corporações industriais. Em outras palavras, a exportação de capital é, em primeiro lugar, uma questão de relações inter-imperiais.

O período do neoliberalismo transformou significativamente a natureza da interpenetração do capital. Notavelmente, após realizar mais da metade de todo IED globalmente no período do pós-guerra, os EUA hoje representam apenas cerca de um quarto dos estoques de IED, e possui um montante igual de IED residente no país. Em 2002, os EUA permaneceram como os maiores receptores de IED do mundo bem como o maior investidor32. Por outro lado, os IED japonês e alemão aumentaram significativamente, de cerca de 1% do IED mundial em 1960 para 11 e 9% respectivamente em 2000. Apesar do aumento, os influxos permanecem muito menores em ambos os países (com o Japão ainda recebendo menos que 1% do IED mundial). O IED interno está se tornando relativamente tão importante para os EUA como o é para a UE como um todo.

Além disso, a necessidade de financiar o déficit em conta corrente descontrolado dos EUA tem significado que os fundos ingressaram para comprar ativos financeiros de todo tipo no país. Durante o novo boom econômico de 1995-2000, este fluxo decorreu em parte das altas taxas de retorno dos ativos estadunidenses, da visão de que os EUA eram “um santuário seguro” e do uso de quantidades crescentes de dólares para a compra de ativos estadunidenses. Estes desenvolvimentos forçaram ainda mais os ativos líquidos dos EUA a um déficit (um processo que teve início no final dos anos 80) de cerca de US$ 1,5 trilhões e próximo a um quinto do PIB33. Com a desaceleração, os ativos dos EUA tornaram-se menos atrativos e o IED caiu, ainda que os investimentos em portifólio continuaram a ingressar para cobrir o déficit de pagamentos. A internacionalização do capital estrangeiro dentro de estados nacionais claramente não está mais limitada à penetração dos EUA nos estados europeus, mas abarca o bloco imperialista como um todo.

(5) Internacionalização e os circuitos do capital. A partir dos anos 70, a desacelera- ção econômica e o neoliberalismo levaram a uma financiarização signi- ficativa da economia. O capital monetário agora assume diversas formas relativamente desenraizadas da economia real: investimento estrangeiro direto na forma de aquisições ao invés da construção de novas instalações produtivas; enormes mercados de crédito; mercados acionários interconectados; a circulação massiva nos mercados de dinheiro que supera amplamente os requisitos do comércio de mercadorias; e mercados financeiros secundários que multiplicam o risco. Tais desenvolvimentos, a um só tempo, estreitaram as interdependências do mercado mundial na medida em que o capital monetário e especulativo se movimenta de modo mais livre entre as diferentes zonas do mundo, e as rivalidades se tornam mais claras na medida em que as diferentes zonas de produção competem pelos fluxos financeiros e enfrentam disciplinas competitivas que contêm o potencial de ampliar em choques maiores os distúrbios econômicos. O crescimento econômico lento tem significado que os retornos ao setor financeiro têm sido maiores que no setor produtivo e, portanto, transferiu o capital para o setor financeiro e tornou o capital financeiro (mesmo dos governos, ainda que em um sentido menor) o principal alocador de crédito. Nos países do centro, estes processos significaram uma transferência dos fluxos de renda para os detentores de ativos financeiros. Nos EUA, o crescimento da dívida habitacional e corporativa e os novos déficits fiscais do governo aumentaram vastamente esta transferência[34].

As contradições são ainda mais claras para os países periféricos no mercado mundial, particularmente os mercados emergentes que foram abençoados com influxos de capital financeiro. Para considerar uma das maiores economias do “sul”, o Brasil mantém reservas cambiais de apenas US$ 20-30 bilhões, deve em torno de US$ 250 bilhões em dívida acumulada (denominada em grande parte em dólares), e os bônus brasileiros têm taxas que superam em mais de 20% as dos bônus do tesouro dos EUA (comparáveis aos níveis da Argentina antes do colapso de dezembro de 2001). Isto requer esforços enormes por parte do Brasil para produzir os níveis de exportação necessários ao serviço da dívida, e ameaça o colapso do real causado pela fuga de hot money ao sinal de qualquer desordem econômica. A América Latina como um todo está numa situação similar, e ficou demonstrada a dificuldade de conter a expansão do “contágio” da crise argentina. A partir de estudos recentes, a CEPAL concluiu que a região atravessou outra “década perdida” na qual saíram capitais da região para pagar a dívida e na qual os lucros e dividendos superaram as entradas de capital na ordem de US$ 7 bilhões anuais (aproximadamente 0,4% do PIB regional) nos anos recentes[35]. Isto só pode piorar na medida em que se prevê que o PIB regional decresça por causa da desaceleração mundial e que aumentem as dificuldades para a entrada das exportações para os EUA, por causa da queda do valor do dólar.

A deflação da bolha de ativos adiciona outra tensão entre os EUA e as outras zonas que complica qualquer caminho de ajuste no mercado mundial. Só nos EUA de 2000 à metade de 2002, uma estimativa de US$ 7 trilhões e 1000 companhias foram perdidos em valorizações do mercado (e US$ 11 trilhões no mundo todo)[36]. Isto corresponde a cerca de metade do valor total do mercado; índices de mercado mais amplos apontam quantias similares, com o índice NASDAQ, que inclui um componente importante de tecnologia, desvalorizado quase em 80%. Com a queda dos rendimentos dos bônus resultantes da redução das taxas de juros e das grandes injeções de liquidez, os principais índices de ações subiram cerca de 25% na primeira metade de 2003, alimentados mais por expectativas do que propriamente por uma recuperação econômica[37]. Levando em conta as relações entre preço-utilidade usadas para avaliar os valores de capitalização dos mercados, que mais uma vez superam amplamente os valores médios de longo prazo (levando em consideração que, após um longo boom, normalmente se espera um longo período de desvalorização), poder-se-ia pensar que está se formando uma nova bolha financeira. É difícil encontrar alguma base teórica ou empírica para concluir que os níveis atuais podem se manter, o que a deflação da bolha de ativos e o conseqüente “mercado vendedor” não afetarão a economia real.

Na verdade, existem várias razões para sugerir que a desarticulação da bolha levará algum tempo e estará acompanhada da queda da acumulação e de tendências deflacionárias. Primeiro, as demandas financeiras realizadas no momento do crescimento da bolha estão tipicamente baseadas em projeções de um crescimento contínuo dos ativos que são difíceis de verificar depois que a bolha estourar. As falências ocorrem quando a destruição de capital se torna necessária para restaurar a base lucrativa para a acumulação. Os gastos em capital parecem declinantes até o fim do processo (a menos que a bolha possa de alguma forma ser inflada novamente, o que joga os problemas de hoje para amanhã). Segundo, a mudança que ocorreu durante os anos 90 na medida em que as pensões deixaram de ser benefícios pré-definidos para transformar-se em planos de contribuição individualmente dirigidos e definidos, fazendo com que os fundos se voltassem para as ações, danificaram seriamente as projeções de retorno dos fundos de pensão. No futuro, tanto empresas como indivíduos deverão incrementar suas poupanças para enfrentar as necessidades de pensão futuras. Terceiro, também deve-se prestar atenção ao peso da dívida dos particulares, qualquer que seja o impacto preciso do “efeito riqueza” originado no uso de valores inflados de ativos destinado a influir sobre o crédito, para ao menos reestabelecer os equilíbrios de poupança aos níveis tradicionais. Nos EUA, durante 2002, as amortizações dos fundos comuns de investimentos e outro tipo de instrumentos financeiros de risco foram absorvendo bilhões de dólares por mês, destinados para pagar dívidas ou para agregar “reservas de efetivo”, ainda que alguns destes fundos estão retornando para o mercado de valores com a finalidade de aproveitar a bolha mais recente.

(6) A reorganização interna dos estados. A internacionalização do capital depende de uma intervenção constante do estado. Durante o período do neoliberalismo, o estado internalizou a competitividade internacional com um de seus objetivos para mediar a territorialização da produção de valor e a crescente dependência da circulação internacional. Portanto, um parâmetro chave da reorganização do estado foi a administração da economia nacional de um modo que as taxas de câmbio e balança de pagamentos sustentassem a internacionalização dos circuitos de capital monetário. Isto fez com que os bancos centrais “independentes” ocupassem o ápice do aparelho do estado. Mesmo com desequilíbrios financeiros sérios, a Reserva Federal, o Banco Central Europeu e o Banco do Japão continuaram a basear-se nos cortes da taxa de juros, na expansão dos empréstimos líquidos privados, nos fluxos internacionais de capital, e em uma desvalorização assimétrica do dólar com relação ao Euro (mas não ao Yen) para estimular a recuperação[38].

Uma segunda dimensão é o fornecimento pelo estado de um ambiente social e fiscal hospitaleiro para atrair novos investimentos em capital fixo e proteger os existentes, em um contexto em que a política monetária garante os fluxos internacionais de capital. Portanto, mesmo quando os estado permitem que os déficits fiscais cresçam, continuam a seguir uma estratégia redistributiva de austeridade competitiva, que torna os trabalhadores, os pobres e os serviços públicos de que estes dependem vulneráveis ao esgotamento por constantes cortes nos gastos públicos, além dos cortes em impostos regressivos que ocorrem simultaneamente. A proposta orçamentária do Governo Bush para 2003, por exemplo, projeta um déficit de US$ 400 bilhões, ao mesmo tempo em que corta cerca de US$ 350 bilhões em impostos, particularmente sobre os dividendos e taxas marginais de impostos, e reduz o gasto com saúde, educação e infraestrutura. A Alemanha, por sua vez, ainda que esteja por quebrar o limite do déficit de 3% do PIB em 2003 estabelecido no Pacto de Estabilidade e Crescimento, reduz os impostos sobre a renda e heranças e restringe os benefícios para os desempregados, as proteções dos empregos e as pensões. O Japão, por sua vez, planeja um déficit de 7% do PIB no orçamento, ao mesmo tempo em que corta impostos sobre renda e heranças e gastos correntes, e continua com a redução das proteções do mercado de trabalho[39].

Finalmente, a internacionalização do aparelho do estado no sentido de mediar a extensão e intensificação do mercado mundial também continua[40]. Por um lado, os processos de regionalização nos três blocos comerciais estão forçando, por meio da UE, negociações comerciais variadas na Área de Livre Comércio das Américas, e novos vínculos cooperativos no Leste Asiático. Por outro lado, novas áreas de liberalização comercial, em particular na agricultura e nos serviços, permanecem na agenda da OMC; e tanto o FMI quando o Bank of International Settlements continuam a financiar novas medidas para liberalizar contas de capital e reformar os requisitos para adaptação ao capital dos sistemas bancários nacionais. Nesse sentido, a reorganização do estado aponta para a intensificação da competição internacional entre estados na mesma medida em que a coordenação entre os estados continua a se aprofundar no mercado mundial.

(7) Contradições das relações interimperiais. A “interdependência desigual” que caracterizou as relações inter-imperiais no período do neoliberalismo torna tais relações bem distintas daquelas que existiam durante tanto o período do boom do pós-guerra e da crise da década de 70. Enquanto os EUA permanecem como o centro competitivo do mercado mundial em termos de capacidade produtiva, do comando dos fluxos financeiros, centralidade nas modalidades neoliberais de governança e seu papel como “importador de última instância”, tornaram-se dependentes do suporte de políticas de estados em outras zonas chave para manter a internacionalização do capital e sua absorção sem precendentes da poupança mundial. A interdependência desigual se baseia em todas as oscilações da competição entre estados e na cooperação no interior do bloco capitalista. Isto produziu –e continua a reproduzir– padrões de competição e internacionalização do capital especificamente neoliberais, bem como relações sociais domésticas e internacionais que unificaram o mercado mundial de um modo que preveniu a diferenciação entre as zonas, fenômeno derivado do conflito político para o acesso exclusivo a mercados. Durante os anos 90, a interação entre os desequilíbrios comerciais, financialização e desaceleração foram resolvidas “positivamente” na medida em que a “nova economia” dos EUA forneceu as fontes para que a demanda mundial pudesse manter a continuidade da acumulação. O ajuste dos “excessos do setor privado” agora ameaça influir “negativamente” no mercado mundial como um todo, sem que outros centros imperialistas sejam capazes de preencher o buraco[41]. Em um contexto de relativa estagnação, o neoliberalismo parece que aumenta seu controle sobre o bloco imperialista.

Neoliberalismo, imperialismo e o poder estadunidense

A internacionalização do capital nas últimas duas décadas não é, portanto, um “ajuste espacial” sem fim para uma crise econômica permanente tanto do bloco imperialista como um todo ou do capitalismo dos EUA em particular. Pensar nestes termos lembra a velha teoria clássica do imperialismo que entende o interesse deste último por contar com mercados para seus excedentes como uma relação externa. Esta concepção é errônea porque, por um lado, trata a particularidade da produção de valor e das relações de classe como diferente da circulação do capital no mercado mundial e, por outro lado, porque vê as relações contraditórias entre ambas como sintomas de crise mais que como traço constitutivo das novas formas de competição internacional surgidas sob o neoliberalismo. Esta concepção leva à busca de modelos de desenvolvimento nacional mais “coerentes” que possam se opor ao “modelo norte-americano”, ou a previsões extremas de conflito interimperial ascendente e de crise em torno do processo de desvalorização que os EUA estão tentando impor sobre os outros países.

De fato, o neoliberalismo se consolidou como um regime global institucionalizado, que inclui formas particulares de desenvolvimento, competição internacional e “reforma” estatal. A “burguesia interna”, que se tornou central para a organização do bloco no poder de cada um dos países imperialistas, possui interesse em manter o neoliberalismo. Estes últimos apostam no “modelo norte-americano”, que, contrariamente ao que postulam muitos opositores do neoliberalismo, não deve ser visto como uma importação ou imposição externa que minava uma “burguesia nacional” indefesa, mas como uma matriz política que, nesta fase do imperialismo, satisfaz os interesses internos de classe do bloco no poder dentro de cada estado. Isto é em parte uma questão de seu interesse pela redução dos rendimentos dos assalariados para buscar a competitividade internacional; em parte uma questão dos interesses individuais de alguns dos membros-chave do bloco no poder na privatização do setor público; e, em parte, fruto da necessidade de manter os circuitos internacionais de capital que tornaram o reinvestimento de capital e sua realização mais dependentes do mercado mundial.

A internacionalização de capital não supõe nem uma superação das contradições próprias das relações inter-imperiais (devida à transnacionalização dos interesses capitalistas) nem uma dependência econômica unilateral do poder dos EUA. A competição internacional assume hoje a forma da interpenetração do capital e do asseguramento do espaço econômico extranacional através da extensão do sistema de estado-nação e da formação de blocos econômicos multinacionais. O capital internacionalizado tem acesso a seu próprio estado “de origem” (e, por conseguinte, às instituições supranacionais que são produto dos estados), e também aos estados em que investe. Tanto o estado “de origem” como o “anfitrião” asseguram ativamente a reprodução ampliada do capital, promovendo mais que se opondo à competição internacional. A “interdependência desigual” que caracteriza o mercado mundial nesta fase imperialista significa que a rivalidade competitiva não culmina em conflito geomilitar (como pensava Lênin), ou em políticas expansionistas específicas sobre as quais podem se unificar os interesses de todos os capitalistas (como previa Kautsky). O mercado mundial tampouco está enfrentando uma iminente crise internacional produzida pelo aprofundamento das rivalidades competitivas que não possam continuar sendo contidas politicamente.

Por outro lado, persistem a competição internacional e as contradições entre os centros imperialistas. Em outras palavras, o período do neoliberalismo produziu formas particulares de “unidade e contradição nos circuitos internacionais de capital” que devem ser examinadas nos seus próprios termos. Na velha economia do imperialismo, as contradições nas relações inter-imperiais concentraram-se em conflitos territoriais para satisfazer as necessidades expansionistas de mercados para bens ou capitais. Na nova economia do imperialismo, a interdependência e as rivalidades competitivas entre os centros imperialistas estão concentradas no desenvolvimento desigual das condições para a circulação internacional de capital. Como vimos, os EUA forneceram a demanda global necessária para a circulação internacional, enquanto que o resto do bloco imperialista apresenta superávits comerciais e exporta capital aos EUA (uma vez que o bloco dominado, com algumas exceções no Leste asiático, é pressionado para obter superávits comerciais para cumprir com as obrigações de crédito, mas não das necessidades de desenvolvimento). Isto reflete, como argumentamos, o declínio da superioridade relativa do capital estadunidense do período do pós-guerra (mesmo que continue sendo dominante tanto em tamanho como em capacidade); a formação assimétrica dos blocos continentais; e a interpenetração dos três blocos através da internacionalização do capital. Não está de todo claro como se resolverão estas contradições no mercado mundial, especialmente levando em conta o declínio da atividade econômica progressivamente sincronizada nos três blocos.

É possível, claro, que a economia estadunidense possa se expandir novamente com êxito e que volte a fornecer a demanda necessária para a acumulação internacional. Os EUA utilizaram ativamente tais expansões não apenas para estimular o crescimento, mas também para reforçar sua hegemonia. Utilizaram a dependência das exportações de outras zonas dos EUA para forçá-las a aprofundar sua adesão ao neoliberalismo, o qual fortaleceu a internacionalização do capital estadunidense, dando-lhe acesso a novos mercados e à compra de ativos externos. Por sua vez, a entrada de capitais nos EUA que tendem a cobrir os déficits financeiros permitiu certo grau de reestruturação do estoque de capital estadunidense, especialmente quando a acumulação se fundiu na Alemanha e Japão. Mas sem expansões paralelas na Europa e no Japão, os EUA provavelmente gerarão desequilíbrios ainda maiores nas dívidas pessoais e corporativas e nos pagamentos internacionais, e aumentarão os preços dos ativos. É muito pouco claro como se poderia dar um equilíbrio futuro que não esteja acompanhado por distúrbios significativos no mercado mundial e por alguns realinhamentos nas relações inter-imperiais, incluindo a posição do dólar como a moeda internacional quase única.

Alternativamente, recordando o início dos anos 90, o dólar estadunidense poderia continuar se ajustando, com um crescimento mais lento que permitiria correções nos balanços internos, e o resto do bloco imperial desempenhando um papel mais importante no estabelecimento da demanda mundial e absorvendo as exportações líquidas dos EUA de modo similar. Isto é o que a recessão em curso desde 2001 nos EUA deveria estar fomentando. No entanto, as mudanças no sentido da reflação e de um distanciamento da dependência de exportações que seriam requeridas da União Européia e do Leste da Ásia para esta rodada de ajustes que não foi produzida. O Japão ainda é prisioneiro de uma deflação baseada nos ativos que não foi compensada por uma década de medidas fiscais keynesianas; boa parte da Ásia ainda é subdesenvolvida e dependente das exportações, e as moedas asiáticas (especialmente a unidade monetária chinesa) foram mantidas vinculadas aos baixos valores relativos do dólar para manter a competitividade das exportações. Por sua vez, tudo isto fez com que o gasto japonês de cerca de 6 bilhões de yenes (mais de US$ 50 bilhões) na primeira metade de 2003 impedisse a valorização do yen e minasse as esperanças de recuperação do Japão[42]. Portanto, este depende de que a Europa se torne capaz de absorver uma porção muito maior das exportações mundiais (inclusive a dos EUA), pressões que se refletem no aumento do Euro. Não está de todo claro que a União Européia seja política, organizacional ou economicamente capaz de realizar este projeto. O Pacto de Estabilidade e Crescimento e a independência e as políticas restritivas do Banco Central Europeu bloquearam o ativismo fiscal e a reflação impulsionada pelo crédito. A paralisia européia nestas áreas de política econômica, apesar das medidas de flexibilidade e competitividade dos mercados promovidas, parece destinada a perdurar.

Em nenhum destes cenários, no entanto, há razões para esperar que a modulação das relações interimperiais constitua uma ruptura com o neoliberalismo ou a centralidade do poder dos EUA. Um Euro mais forte, uma nova constituição da União Européia com a inclusão de mais membros, e movimentos no sentido de políticas de segurança e defesa comuns podem estar registrando estas modulações. Contudo, é difícil pensar que a União Européia esteja propondo alguma transformação estratégica, e não uma mudança meramente tática, que transcenda os confins das instituições existentes e dos mercados neoliberais para coordenar as relações interimperiais.

Há um terceiro cenário mais dramático que não poder ser descartado como impossível. A recessão que envolve os EUA poderia simplesmente continuar por mais tempo, e a correção dos desequilíbrios estadunidenses desembocar em um ciclo deflacionário a partir de maiores desastres com os ativos e calote de dívidas. Isto reforçaria os atuais problemas deflacioná- rios do Japão e da Alemanha. Se fosse suficientemente brutal, esse processo de desvalorização radical poderia corrigir os desequilíbrios estadunidenses, ainda que seja impossível prever onde e como poderia terminar. Em uma fase mais inicial do imperialismo, estes processos desataram os desastres econômicos do período do entre-guerras na medida em que as rivalidades competitivas estrangularam e, então, interromperam a circulação internacional de capital. Mas hoje o bloco imperialista certamente tentaria uma resposta coordenada através das instituições internacionais existentes para frear rapidamente esta espiral econômica letal e restaurar certa estabilidade, se não todas as condições para uma rápida acumulação.

A interdependência desigual do mercado mundial durante este período de neoliberalismo serviu precisamente para evitar guerras comerciais que tendiam a “prejudicar o vizinho” e a desvalorizações agudas. Em seu lugar, produziu-se uma coordenação de políticas dentro do bloco imperialista que tende a realinhar as moedas ou a injetar liquidez em conjunturas cruciais, a reproduzir os padrões existentes de competição internacional ao custo de pôr ainda mais capital fictício e especulativo em circulação. Se Leo Panitch e Sam Gindin têm razão ao sugerir que atualmente as relações inter-imperiais impedem que as contradições econômicas intrínsecas levem novamente aos enfrentamentos violentos do passado entre rivais imperiais, também têm razão ao alertar sobre os limites que o império norte-americano impõe –que rege através dos estados– para o desenvolvimento de uma estratégia de crescimento neoliberal coordenada, mesmo entre os países capitalistas avançados[43]. Isto é assim porque a nova economia do imperialismo não elimina a competição: tanto a competição como a unidade permanecem nos circuitos internacionais de capital. Ademais, em condições de crescimento econômico lento e capacidade inutilizada no mercado mundial, a rivalidade competitiva obriga cada zona do mundo a embarcar em um processo contínuo de inovação e redução de custos, e a internacionalizar seu capital em busca de novos mercados e para baratear sua produção.

Na verdade, a reorganização dos estados e das relações sociais tende a fomentar a competição internacional, em todas estas formas, foi um traço integral desta fase do imperialismo nos três blocos imperialistas. Os aparelhos de estado estão sendo sistematicamente reorganizados em torno de uma estratégia de “austeridade competitiva” –fortalecimento dos aparatos econômicos que predizem a internacionalização do capital enquanto reestruturam as políticas trabalhistas para efetivar a compressão dos salários, busca de austeridade fiscal para as políticas sociais enquanto os impostos são reduzidos para atrair capital internacional, e assim sucessivamente. Não obstante, a aparência “keynesiana” das medidas que tendem a reflacionar a economia e manter condições para a realização mediante a extensão do crédito privado e do retorno aos déficits governamentais (uma vez que continuam se saqueando os funcionários públicos), é a dinâmica redistributiva da austeridade da classe operária para incrementar a competitividade internacional que, sobretudo, orienta as políticas estatais. A intensificação da exploração nas relações de classe dos espaços diferenciados do mercado mundial é a outra face da internacionalização do capital e da expansão do mercado mundial nesta fase do imperialismo.

Como assinalou Alavi, o novo imperialismo demanda a incorporação de todas as zonas do mercado mundial em um sistema econômico universalizado –as regras formalmente “iguais” de troca do mercado capitalista mundial e as normas do sistema do estado-nação. No bloco imperialista, a internacionalização do capital solidificou um interesse material de manter as formas de desenvolvimento desigual e os acordos organizacionais hierárquicos do mercado mundial atual. O neoliberalismo como forma de poder social e de relações de classe, e a competitividade internacional como sua expressão exteriorizada, é reproduzido nos capitalismos nacionais não como uma organização mais “racional” do mercado mundial, ou como uma imposição do “modelo norte-americano” sobre os modelos “europeu” ou do “Leste asiático”, mas como parte do imperialismo contemporâneo. De fato, inclusive as classes dominantes no bloco dominado podem ver seus interesses –tanto em termos de acumulação de capital como do desejo de ascender na escala da cadeia imperialista– representados na circulação internacional do capital, tal como as elites coloniais e compradoras do passado fizeram no velho imperialismo. Isto é assim apesar das repugnantes ineqüidades que as políticas de ajuste estrutural neoliberais produzem e que reduzem o consumo dos pobres e dos trabalhadores nestes países para melhorar a competitividade internacional, enquanto as poupanças mundiais fluem para financiar a prodigalidade dos consumidores estadunidenses e do bloco imperialista em sua totalidade.

Como isto se sustenta? Aqui se sustenta a importância da visão de Dick Bryan no sentido de que hoje “a contradição entre o caráter internacional da acumulação e da nacionalidade de regulação estatal não se resolve mediante a subordinação da última à primeira, mas mediante a redefinição do papel do estado que faz com que a dominação dos cálculos globais se apresente como beneficiosa para todos os habitantes do país. Em particular, a classe operária em cada nação deve ser convencida de que a busca da competitividade internacional é uma agenda válida tanto para os trabalhadores como para o capital”[44]. Enquanto a velha economia do imperialismo combinada politicamente uma “aristocracia trabalhadora” com “projetos imperiais” através do nacionalismo, a nova economia do imperialismo interioriza uma lógica de competição internacional entre os trabalhadores, empresas e estados na construção de “projetos locais” e “nacionais” para manter “seu” espaço em um mundo globalizado. Para minar esta lógica, será crucial que as lutas antiimperialistas atuais desafiem a ideologia e a prática da competição internacional, tal como está universalizada em instituições como a OMC e o FMI e particularizada em estados nacionais e ambientes de trabalho locais. Neste contexto, as lutas antiglobalização contra as instituições econômicas internacionais que fomentam a internacionalização do capital foram um passo importante da esquerda. O passo seguinte que se faz necessário dar é o desenvolvimento de novas lutas pela “soberania democrática” sobre os impérios do capital, que impliquem em visões e práticas apropriadas para “uma classe diferente de estado”. Estas são as únicas estratégias democráticas de saída do neoliberalismo e de sua interminável busca de competitividade; ou seja, de saída da economia do novo imperialismo.

Notas

1 “Imperialism Old and New”, em Socialist Register 1964, New York: Monthly Review Press, 1964, pp. 104 e 123-4.

2 Esta idéia foi desenvolvida melhor por Harry Magdoff em seu “imperialismo sem colônias” (confira seu Imperialism: From the Colonial Age to the Present, New York: Monthly Review Press, 1978), e por Leo Panitch e Sam Gindin a partir de sua concepção de “império informal” (confira seu ensaio neste volume), ambos escrevem especialmente sobre o imperialismo dos EUA.

3 Veja: David Gordon, “The Global Economy: New Edifice or Crumbling Foundations?”, New Left Review, 168, 1988; Giovanni Arrighi, The Long Twentieth Century, London: Verso, 1994; e Robert Brenner, “The Economics of Global Turbulence”, New Left Review, 229, 1998. As análises weberianas foram ainda mais insistentes sobre a crescente rivalidade, mas não chegaram perto da dinâmica de poder envolvida ou dos processos contraditórios de um desenvolvimento desigual. Veja: Jeffrey Hart, Rival Capitalists: International Competitiveness in the United States, Japan, and Western Europe, Ithaca: Cornell, 1992; e Robert Boyer e Jean-Pierre Durand, After Fordism, London: Macmillan, 1997.

4 “New US Economy Part 2: Winning Ways: Ready Bucks and a Flair for Risk”, Financial Times (14/12/1999).

5 Michael Hardt e Antonio Negri, Empire, Cambridge: Harvard University Press, 2000; Leslie Sklair, The Transnational Capitalist Class, Oxford: Blackwell, 2001; e Stephen Gill, Power and Resistance in the New World Order, New York: Macmillan, 2003.

6 Peter Gowan, The Global Gamble, London: Verso, 1999; Leo Panitch, “The New Imperial State”, New Left Review, 2, 2000; e Michael Hudson, Super Imperialism: The Origin and Fundamentals of US World Dominance, London: Pluto, 2003.

7 “Comments on Imperialism”, Radical History Review, 57, 1993, p. 77.

8 Karl Marx, Grundrisse, New York: Vintage, 1973, pp. 539, 542. 9 Marx, Grundrisse, p. 408.

10 David Harvey, The Limits to Capital, Chicago: University of Chicago Press 1982.

11 Veja Aijaz Ahmad, ed., On the National and Colonial Questions: Selected Writings of Marx and Engels, New Delhi: Leftwords Books, 2001.

12 Karl Marx, Capital, Volume 1, New York, International Publishers, 1967, p. 451.

13 Karl Marx, Capital, Volume 3, New York, International Publishers, 1967, pp. 237-40.

14 Karl Marx, A Contribution to the Critique of Political Economy, New York: International Publishers, 1970, p. 80.

15 Para as revisões veja: Anthony Brewer, Marxist Theories of Imperialism, London: Routledge, 1980; Charles Barone, Marxist Thought on Imperialism, Armonk: M.E. Sharpe, 1985; e Alex Callinicos, “Marxism and Global Governance” em David Held e Anthony McGrew, eds., Governing Globalization, Oxford: Polity, 2002.

16 Nikolai Bukharin, Imperialism and World Economy, London: Merlin, 1972, pp. 25-6 e 80. Confira também: Rosa Luxemburgo, Accumulation of Capital, London: Routledge and Kegan Paul, 1951; Rudolf Hilferding, Finance Capital, London: Routledge, 1981; V.I. Lênin, Imperialism: The Highest Stage of Capitalism, Peking: People’s Publishing House, 1964; e Karl Kautsky, “Ultra-Imperialism”, New Left Review, 59, 1970.

17 Isto foi levado em consideração tanto pelos teóricos da dependência quanto pelos novos teóricos marxistas do imperialismo cujo enfoque estava sobre os países periféricos.

18 Ernest Mandel, Europe versus America: Contradictions of Imperialism, New York: Monthly Review Press, 1970; Robert Rowthorn, “Imperialism in the 1970s – Unity or Rivalry?” New Left Review, 69, 1971; e John Halliday e Gavan McCormack, Japanese Imperialism Today, New York: Monthly Review Press, 1973.

19 James Petras e Robert Rhodes, “The Reconsolidation of US Hegemony”, New Left Review, 97, 1976; e Martin Nicolaus, “The Universal Contradiction”, New Left Review, 59, 1970.

20 Veja Alavi, “Imperialism Old and New” como também o ensaio de Stephen Hymer, Christian Palloix e Robin Murray em Hugo Radice, ed., International Firms and Modern Imperialism, New York: Penguin, 1975.

21 Nicos Poulantzas, Classes in Contemporary Capitalism, London: New Left Books, 1974, p. 81.

22 Leo Panitch, “Globalisation and the State”, em Socialist Register 1994, London: Merlin Press, 1994.

23 Esta seção é baseada em: Michel Beaud, A History of Capitalism, 1500- 2000, New York: Monthly Review Press, 2001; Robert Brenner, The Boom and the Bubble, London: Verso, 2002; e Robert Albritton, Makoto Itoh, Richard Westra e Alan Zuege, eds., Phases of Capitalist Development, New York: Palgrave, 2002.

24 Angus Maddison, The World Economy: A Millennial Perspective, Paris: OECD, 2001, pp. 131 e seguintes. 25 FMI, World Economic Outlook, Abril de 2003, Washington: FMI, 2003, capítulo 1; Stephen Roach, Deflation in the World Economy, New York: Morgan Stanley, Novembro de 2002; e “Breaking the Deflationary Spell”, The Economist, 28 de junho de 2003.

26 World Economic Outlook, p. 11.

27 Veja: “Bankruptcies Forecast to Stay Near Record”, Financial Times, (27/02/2003); Robert Brenner, “Towards the Precipice”, London Review of Books, 25(3), 2003; e Wynne Godley, “The US Economy: A Changing Strategic Predicament”, Levy Economics Institute, 2003.

28 OECD, Economic Outlook, 73, Paris: OECD, 2003, pp. 10-16.

29 Fred Bergsten e John Williamson, eds., Dollar Overvaluation and the World Economy, Washington: Institute for International Economics, 2003; e “Washington”s Weak Dollar Policy”, Financial Times, (20/05/2003).

30 É exatamente isso o que o Banco Internacional de Pagamentos postula em seu Annual Report 2003, Basel: BIS, 2003, capítulo 8.

31 UNCTAD, World Investment Report 2002, New York: United Nations, 2002; Peter Dicken, Global Shift, New York: Guilford, 1998, pp. 42-9; e Richard Kozul-Wright e Robert Rowthorn, eds., Transnational Corporations and the Global Economy, London: Macmillan, 1998.

32 UNCTAD, World Investment Report 2002, p. 37.

33 Maddison, The World Economy, pp. 135-7. Em contraste, Alemanha e especialmente Japão possuem superávits em seus ativos líquidos.

34 Veja: “The Debt Bomb”, Barron’s, 20 de janeiro de 2003; e “The True Cost of Hegemony: Huge Debts”, New York Times, (20/04/2003).

35 ECLAC, Latin America and the Caribbean in the World Economy, 2000-1, Santiago: ECLAC, 2002.

36 Baseado no índice Wiltshire 5000 de todas as companhias que operam publicamente: veja “Hold on for a Wild Ride”, New York Times (21/07/2002).

37 “Market Bubble Being Inflated?”, Toronto Globe and Mail, 20 de junho 2003; e “On a Wing and a Prayer”, Financial Times (03/07/2003).

38 BIS, Annual Report 2003, capítulo 4.

39 OECD, Economic Outlook, pp. 71-80; Paul Krugman, “Jobs, Jobs, Jobs”, New York Times (22/05/2003); e “Schröder Urges Party to Grasp Need for Reform”, Financial Times (24/05/2003).

40 WTO, Annual Report 2003, Geneva: WTO, 2003, capítulo 1.

41 Confira: “The World Economy Adjusts to a Disappointing Decade”, Financial Times, (02/07/2003); e Alex Izurieta, “Economic Slowdown in the US, Rehabilitation of Fiscal Policy and the Case for Co-ordinated Global Reflation”, Cambridge University, CERF Paper Working Paper N. 6, 2003.

42 “Investors Place Bets on Asia Foreshadowing US Recovery”, Financial Times, 27/06/2003.

43 Leo Panitch e Sam Gindin, “Global Capitalism and American Empire”, neste volume.

44 Dick Bryan, The Chase Across the Globe, Boulder: Westview Press, 1995, p. 186.

O "novo" imperialismo: Acumulação por espoliação

David Harvey

Socialist Register


Tradução / A longa sobrevivência do capitalismo, apesar de suas múltiplas crises e reorganizações e dos presságios sobre sua iminente derrota provenientes tanto da esquerda como da direita, é um mistério que exige esclarecimento. Henry Lefebvre pensava que havia encontrado a chave do mesmo, em sua famosa idéia de que o capitalismo sobrevive através da produção do espaço, mas não explicou exatamente como isso ocorria[1]. Tanto Lênin como Rosa Luxemburgo, por razões muito distintas, e utilizando também argumentos diferentes, consideravam que o imperialismo –uma forma determinada de produção do espaço– era a resposta para o enigma, ainda que ambos postulassem que esta solução estava limitada por suas próprias contradições.

Nos anos 70, tratei de abordar o problema mediante a análise dos “ajustes espaço-temporais” e de seu papel nas contradições internas da acumulação de capital[2]. Este argumento só tem sentido com relação à tendência do capitalismo de produzir crises de sobreacumulação, a qual pode se entender teoricamente mediante a noção de queda na taxa de lucro de Marx[3]. Estas crises se expressam como excedentes de capital e de força de trabalho que coexistem sem que pareça haver maneira em que possam se combinar de forma rentável com o intuito de realizar tarefas socialmente úteis. Se não se produzem desvalorizações sistêmicas (e inclusive a destruição) de capital e de força de trabalho, é necessário que se encontrem maneiras de absorver estes excedentes. A expansão geográfica e a reorganização espacial são opções possíveis. Mas estas tampouco podem se divorciar dos ajustes temporais, já que a expansão geográfica implica freqüentemente investimentos de longo prazo em infra-estruturas físicas e sociais (por exemplo, em redes de transporte e comunicações, educação e pesquisa), cujo valor leva muitos anos para se realizar através da atividade produtiva à qual contribuem.

Desde os anos 70, o capitalismo global experimentou um problema crônico e duradouro de sobreacumulação. Considero que os dados empíricos coletados por Robert Brenner para documentar este tema são, em geral, convincentes[4]. De minha parte, interpreto a volatilidade do capitalismo internacional durante estes anos em termos de uma série de ajustes espaço-temporais que fracassaram, inclusive no médio prazo, em enfrentar os problemas de sobreacumulação. Como coloca Peter Gowan, foi através da orquestração da volatilidade que os Estados Unidos (EUA) buscaram preservar sua posição hegemônica no capitalismo global[5]. Por conseguinte, a recente virada para um imperialismo aberto respaldado pela força militar norte-americana pode ser entendida como um sinal do debilitamento de sua hegemonia frente às sérias ameaças de recessão e desvalorização infligidos previamente em outros lugares (América Latina nos anos 80 e início dos anos 90, e as crises ainda mais sérias que consumiram o Leste e Sudeste Asiático em 1997 e que logo abateram a Rússia e parte da América Latina). Mas também quero colocar que a incapacidade de acumular através da reprodução ampliada sobre uma base sustentável foi acompanhada por crescentes tentativas de acumular mediante a espoliação[6]. Esta, segundo minha conclusão, é a marca do que alguns chamam “o novo imperialismo”[7].

O ajuste espaço-temporal e suas contradições

A idéia básica do ajuste espaço-temporal é bastante simples. A sobreacumulação em um determinado sistema territorial supõe um excedente de trabalho (crescente desemprego) e excedente de capital (expresso como uma superabundância de mercadorias no mercado que não pode se vender sem perdas, como capacidade produtiva inutilizada, e/ou excedentes de capital, dinheiro que carece de oportunidades de investimento produtivo e rentável). Estes excedentes podem ser absorvidos por: (a) o deslocamento temporal através dos investimentos de capital em projetos de longo prazo ou gastos sociais (tais como educação e pesquisa), os quais jogam para o futuro a entrada em circulação dos excedentes de capital atual; (b) deslocamentos espaciais através da abertura de novos mercados, novas capacidades produtivas e novas possibilidades de recursos e trabalho em outros lugares; ou (c) alguma combinação de (a) e (b).

A combinação de (a) e (b) é particularmente importante quando analisamos o capital fixo independente imobilizado no ambiente construído. Este oferece as infra-estruturas físicas necessárias para que a produção e o consumo se realizem no espaço e no tempo (dos parques industriais, portos e aeroportos, sistemas de transporte e comunicações, até o fornecimento de água e esgotos, habitação, hospitais e escolas). Claramente, este não é um setor menor da economia, e é capaz de absorver enormes quantidades de capital e trabalho, particularmente em condições de rápida expansão e intensificação geográfica.

A realocação dos excedentes de capital e trabalho nestes investimentos exige a mediação das instituições financeiras e/ou estatais capazes de gerar crédito. Cria-se uma quantidade de “capital fictício” que pode transcender o consumo atual para ser atribuído a projetos futuros, como construção ou educação, que revigoram a economia (talvez incluindo o aumento da demanda do excedente de mercadorias como camisas e sapatos por parte dos professores e trabalhadores da construção)[8]. Se os gastos no ambiente construído ou as melhoras sociais provam ser produtivos (isto é, facilitam no futuro formas mais eficientes de acumulação de capital) os valores fictícios se amortizam (seja diretamente através da dívida ou indiretamente sob a forma de maiores receitas de impostos que permitam pagar a dívida pública). Se não, a sobreacumulação de valor no ambiente construído ou na educação pode se manifestar nas desvalorizações destes ativos (habitações, escritórios, parques industriais, aeroportos, etc.) ou em dificuldades para o pagamento da dívida estatal originada na infra-estrutura física ou social (crise fiscal do estado).

O papel deste tipo de investimento na estabilização e desestabilização do capitalismo foi significativo. Refiro-me, por exemplo, ao fato da origem da crise de 1973 ter sido o colapso mundial dos mercados imobiliários (começando com o Herstatt Bank na Alemanha que arrastou o Franklin National nos EUA), seguido quase imediatamente pela virtual bancarrota da cidade de Nova Iorque em 1975 (um caso clássico de gastos sociais que superam os impostos); ao fato da década de estancamento no Japão iniciada no início dos anos 90 ter começado com o colapso da bolha especulativa sobre terras, propriedades e outros ativos, que pôs em risco o conjunto do sistema bancário; ao fato do início do colapso asiático de 1997 ter sido a explosão da bolha de propriedade na Tailândia e na Indonésia; e ao fato do impulso mais importante para as economias estadunidense e britânica, após o início da recessão generalizada em todos os outros setores, a partir de meados de 2001, ter sido o vigor especulativo O ¨novo¨ imperialismo sustentado pelos mercados imobiliários. Desde 1998, os chineses mantiveram o crescimento de sua economia e trataram de absorver o excedente de trabalho (e controlar a ameaça de descontentamento social) mediante investimentos em mega-projetos que apequenaram a já enorme Represa das Três Gargantas (13.600 quilômetros de novas estradas de ferro, autoestradas e projetos urbanísticos, massivos trabalhos de engenharia para desviar a água do rio Yang-Tsé para o Amarelo, novos aeroportos, etc.) financiados com o endividamento. É muito surpreendente que a maioria das análises da acumulação do capital (incluída a de Brenner) ignorem completamente estes temas, ou os tratem como epifenômenos.

O termo “fix” tem um duplo sentido. Por um lado, uma certa porção do capital total fica literalmente fixada em alguma forma física por um tempo relativamente grande (dependendo de sua duração física e econômica). Os gastos sociais também se territorializam e se mantêm geograficamente imóveis através do compromisso estatal (no entanto, não vou considerar explicitamente a infra-estrutura social já que o tema é complexo e exigiria muito espaço). Parte do capital fixo é geograficamente móvel (como a maquinaria que pode ser deslocada facilmente de suas localizações originais e levadas a outros lugares), mas o resto está fixo de modo tal que não pode ser movido sem ser destruído. Os aviões são móveis, mas os aeroportos para onde estes voam não.

O “ajuste” espaço-temporal, por outro lado, é uma metáfora das soluções para as crises capitalistas através da suspensão temporal e da expansão geográfica. A produção do espaço, a organização de novas divisões territoriais de trabalho, a abertura de novos e mais baratos complexos de recursos, de novos espaços dinâmicos de acumulação de capital e de penetração de relações sociais e arranjos institucionais capitalistas (regras contratuais e esquemas de propriedade privada) em formações sociais preexistentes fornecem diversos modos de absorver os excedentes de capital e trabalho existentes. No entanto, estas expansões, reorganizações e reconstruções geográficas freqüentemente ameaçam os valores fixados em um local em que ainda não foram realizados. Vastas quantidades de capital fixo em um determinado local atuam como uma carga para a busca de um ajuste espacial em outro lugar. Os valores dos ativos fixos que constituem a cidade de Nova Iorque não eram, nem são, triviais, e a ameaça de desvalorização em massa ocorrida em 1975 (e novamente em 2003) era (e é) vista por muitos como um grande perigo para o futuro do capitalismo. Se o capital se move daí, deixa para trás um rastro de devastação (a experiência de “desindustrialização” dos anos 70 e 80 nos centros econômicos do capitalismo como Pittsburgh e Sheffield, assim como em muitas outras partes do mundo, como Bombaim, ilustra esta questão). Por outro lado, se o capital sobreacumulado não pode ou não quer se mover, permanece para ser diretamente desvalorizado. Usualmente ofereço o seguinte argumento resumido deste processo: o capital, em seu processo de expansão geográfica e deslocamento temporal que resolve as crises de sobreacumulação às quais está inclinado, cria necessariamente uma paisagem física à sua própria imagem e semelhança em um momento, para depois destruí-lo. Esta é a história da destruição criativa (com todas as suas conseqüências sociais e ambientais negativas) inscrita na evolução da paisagem física e social do capitalismo.

Geralmente surge outra série de contradições dentro da dinâmica das transformações. Se existem excedentes de capital e de força de trabalho dentro de um território determinado (como, por exemplo, um estado-nação) que não podem ser absorvidos internamente (seja mediante ajustes geográficos ou gastos sociais), devem ser enviados a outro lugar a fim de encontrar um novo terreno para sua realização rentável para não serem desvalorizados. Isto pode acontecer de várias maneiras. Podem se encontrar outros mercados para o excedente de mercadorias. Mas os espaços aos quais se enviam os excedentes devem possuir reservas de ouro ou dinheiro (por exemplo, dólares) ou bens intercambiáveis com meios de pagamento. Os excedentes de mercadorias saem em troca da entrada de dinheiro ou mercadorias. O problema da sobreacumulação se alivia somente no curto prazo, já que se trata meramente de uma troca do excedente de mercadorias por dinheiro ou por outra forma-mercadoria, ainda que o caso de que a troca se realize em matérias-primas ou outros insumos mais baratos é possível aliviar temporariamente a pressão sobre a queda da taxa de lucro no lugar. Se o território não possui reservas ou mercadorias para intercambiar, deve localizá-las (como foi o caso em que a Grã-Bretanha forçou a Índia a fazer, abrindo o comércio de ópio com a China no século XIX e extraindo o ouro chinês através do comércio hindu) ou deve receber crédito ou assistência. Neste último caso, um território recebe o empréstimo ou a doação de dinheiro com o qual comprar o excedente de mercadorias geradas no território em questão. Os britânicos o fizeram com a Argentina no século XIX, e durante a década de 90 os excedentes comerciais japoneses foram amplamente absorvidos mediante empréstimos para os EUA destinados a apoiar o consumismo que comprava os bens japoneses. Claramente, as transações mercantis e de crédito deste tipo podem aliviar os problemas de sobreacumulação, ao menos no curto prazo. Elas funcionam muito bem em condições de desenvolvimento geográfico desigual nas que os excedentes disponíveis em um território se compensam pela falta de oferta em outro lugar. Mas simultaneamente, o recurso ao sistema de crédito torna os territórios vulneráveis aos fluxos de capital especulativo e fictício, que podem tanto estimular como minar o desenvolvimento capitalista e inclusive, como aconteceu recentemente, podem ser usados para impor desvalorizações selvagens em territórios vulneráveis.

A exportação de capital, particularmente quando esta é acompanhada pela da força de trabalho, opera de maneira bastante diferente e freqüentemente tem efeitos de mais longo prazo. Neste caso, os excessos de capital (no geral capital-dinheiro) e trabalho são enviados a outros lugares para pôr em movimento a acumulação de capital no novo espaço. Os excedentes gerados na Grã-Bretanha no século XIX encontraram seu lugar nos EUA e nas colônias da África do Sul, Austrália e Canadá, criando novos centros dinâmicos de acumulação nestes territórios, o qual gerou uma demanda de bens britânicos. Dado que podem passar muitos anos para que o capitalismo amadureça nestes territórios (se é que isso aconteça alguma vez) e se comece a produzir sobreacumulação de capital, o país de origem pode esperar ser beneficiado por um período considerável como resultado deste processo. Este é o caso particular dos bens que se demandam em outros lugares como infra-estruturas físicas fixas (como por exemplo, estradas de ferro e represas) exigidas como base para a futura acumulação de capital. Mas a taxa de retorno destes investimentos de longo prazo no ambiente construído depende da evolução de uma dinâmica sustentada de acumulação no país receptor. A Grã-Bretanha guiou a Argentina neste caminho durante a última parte do século XIX. Os EUA, através do Plano Marshall para a Europa (na Alemanha em particular) e Japão viram claramente que sua própria segurança econômica (deixando de lado o aspecto militar associado à guerra fria) residia na revitalização da atividade capitalista nestes lugares.

As contradições surgem porque os novos espaços dinâmicos de acumulação de capital terminam por gerar excedentes que devem ser absorvidos através da expansão geográfica. A partir do final dos anos 60, o Japão e a Alemanha transformaram-se em competidores dos EUA, de modo similar com que a América do Norte havia superado o capital britânico (e contribuído para derrubar seu império) durante o século XX. É interessante observar o momento em que o desenvolvimento interno forte transborda na busca de ajuste espaço-temporal. O Japão fez durante os anos 60, primeiro através do comércio, depois através da exportação de capital como investimento direto na Europa e nos EUA, e mais recentemente através de investimentos em massa (diretos e de carteira) no Leste e Sudeste asiático, e finalmente através dos empréstimos ao exterior (particularmente aos EUA). A Coréia do Sul se voltou repentinamente para o exterior nos anos 80, seguida quase imediatamente por Taiwan nos anos 90. Ambos os países exportam não apenas capital financeiro, mas também algumas das mais desapiedadas práticas de administração do trabalho que se pode imaginar, como subcontratistas do capital multinacional ao redor do mundo (na América Central, África, e o resto do Sul e Leste da Ásia). Inclusive os países que tiveram sucesso em sua recente adesão ao desenvolvimento capitalista tiveram a urgente necessidade de encontrar um ajuste espaço-temporal para seu capital sobreacumulado. A rapidez com que certos territórios, como Coréia do Sul, Cingapura, Taiwan e agora também China, passaram de receptores líquidos a exportadores líquidos, foi bastante assombrosa se a comparamos com o ritmo mais lento em períodos anteriores. Assim, estes territórios bem-sucedidos devem se adaptar rapidamente à pressão interna de seus próprios ajustes espaço-temporais. A China, que absorve excedentes sob a forma de investimento estrangeiro direto do Japão, Coréia e Taiwan, está substituindo rapidamente estes países em muitas linhas de produção e exportações (particularmente as de baixo valor agregado e intensivas em trabalho, ainda que rapidamente esteja avançando na produção de mercadorias de maior valor agregado). O excesso generalizado de capacidade identificado por Brenner pode se desagregar em uma série expansiva de ajustes espaço-temporais, no Sul e Leste da Ásia em primeiro lugar, adicionalmente na América Latina –Brasil, México e Chile em particular–, acompanhados agora pela Europa oriental. E em uma sugestiva reversão, explicável em boa medida pelo papel do dólar como moeda de reserva global que confere o poder de senhoriagem, os EUA, com o enorme crescimento de sua dívida, absorveram os capitais excedentes do Leste e Sudeste asiático principalmente e também de outros lugares[9].

O resultado adicional, no entanto, é a competição internacional, que se intensifica crescentemente à medida que surgem múltiplos centros dinâmicos de acumulação de capital que competem no cenário mundial, num contexto de fortes correntes de sobreacumulação. Como nem todos podem ter sucesso no longo prazo, ou os mais fracos sucumbem e caem em sérias crises de desvalorização, ou estouram confrontações geopolíticas expressas através de guerras comerciais, monetárias ou inclusive militares (do tipo que produziu duas guerras mundiais entre as potências capitalistas no século XX). Neste caso, o que se exporta é a desvalorização e a destruição (por exemplo, aquela que as instituições financeiras estadunidenses induziram no Leste e Sudeste asiático em 1997-1998), e os ajustes espaço-temporais assumem formas muito mais sinistras. Para entender como isto ocorre, é necessário destacar alguns outros aspectos desse processo.

Contradições internas

Na Filosofia do Direito, Hegel apresenta como a dialética interna da sociedade burguesa, mediante a produção de sobreacumulação de riqueza em um extremo e uma multidão de indigentes no outro, leva a buscar soluções através do comércio e das práticas coloniais e imperiais. Rechaça, por outra parte, a idéia de que seja possível resolver os problemas de desigualdade social e instabilidade através de mecanismos internos de redistribuição[10]. Lênin cita Cecil Rhodes para dizer que o colonialismo e o imperialismo são as únicas formas possíveis de evitar a guerra civil[11]. As relações e a luta de classe dentro de uma formação social territorialmente circunscrita impulsionam a busca de ajustes espaço-temporais em outros lugares.

Neste sentido, é interessante a evidência do final do século XIX. Joseph Chamberlain (apelidado “Joe, o radical”) se identificava estritamente com os interesses manufatureiros de Birmingham, e no início se opunha ao imperialismo (durante as guerras afegãs da década de 1850). Dedicou-se à reforma educativa e à melhora das infra-estruturas físicas e sociais para a produção e o consumo em sua cidade natal. Pensava que isto oferecia uma saída para a produção dos excedentes que no largo prazo seria rentável. Figura importante dentro do movimento liberal conservador, foi um observador direto da crescente onda de luta de classes na Grã-Bretanha. Em 1885, pronunciou um discurso no qual convocava as classes proprietárias para reconhecerem suas responsabilidades sociais (melhorarem as condições de vida dos menos favorecidos e investirem em infra-estruturas sociais e físicas em nome do interesse nacional) além da estrita promoção de seus direitos individuais como proprietários. O escândalo que originou entre as classes o forçou a retratar-se, e desde esse momento converteu-se no defensor mais ardente do imperialismo (no final, como o Secretário Colonial que levou a Grã-Bretanha ao desastre da guerra dos Boers). Mas esta trajetória era bastante comum para a época. Jules Ferry na França, outro defensor ardente da reforma interna, particularmente da reforma educativa durante a década de 1860, assumiu a defesa do colonialismo após a Comuna de 1871 (levando a França ao atoleiro do Sudeste asiático que culminou na derrota de Dien Bien-Phu em 1954); Francesco Crispi tratou de resolver o problema da terra no sul da Itália através da colonização da África; e até Theodore Roosevelt nos EUA priorizou as políticas imperiais sobre as reformas internas, depois que Frederick Jackson Turner declarou, erroneamente, ao menos no que diz respeito às oportunidades de investimento, que a fronteira estadunidense estava fechada[12].

Em todos estes casos, a virada para uma forma liberal de imperialismo (associada a uma ideologia de progresso e a uma missão civilizatória) não resultou de imperativos econômicos absolutos, mas da falta de vontade política da burguesia de abrir mão de qualquer um de seus privilégios de classe, bloqueando assim a possibilidade de absorver a sobreacumulação mediante a reforma social interna. Atualmente, a forte oposição por parte dos proprietários do capital a qualquer política de redistribuição ou de melhora social interna nos EUA não deixa outra opção que olhar para o exterior para resolver seus problemas entre 1884 e 1945, e isto imprimiu seu tom particular às formas que adotou nesse momento o imperialismo europeu. Muitas figuras liberais e inclusive radicais se tornaram imperialistas orgulhosos durante estes anos, e boa parte do movimento operário se persuadiu de que devia apoiar o projeto imperial como um elemento essencial para seu bem-estar. Isto exigiu, no entanto, que os interesses burgueses comandassem amplamente as políticas estatais, os aparatos ideológicos e o poder militar. Em minha opinião, Hannah Arendt interpreta este imperialismo eurocêntrico corretamente como a “primeira etapa do domínio político da burguesia e não a última fase do capitalismo”, como havia sido descrita por Lênin[13]. Considerarei esta idéia com mais detalhe na conclusão.

Mediações institucionais para a projeção do poder no espaço

Num artigo recente, Jeffrey Henderson assinala que a diferença entre Taiwan e Singapura (ambos os países escaparam da crise de 1997-98 relativamente ilesos exceto pela desvalorização da moeda) e Tailândia e Indonésia (que sofreram um colapso econômico e político quase total) explica-se pelas diferenças no estado e nas políticas financeiras[14]. Os primeiros se mantiveram isolados de fluxos especulativos em seus mercados imobiliários e financeiros através de fortes controles estatais, enquanto que os últimos não o fizeram. As diferenças deste tipo sem dúvida importam. A forma que as instituições mediadoras assumem é a de produtoras, ao mesmo tempo que de produto, da dinâmica de acumulação do capital.

Claramente, tanto o padrão de turbulência nas relações entre poder estatal, supra-estatal e financeiro como a dinâmica mais geral da acumulação de capital (através da produção e desvalorizações seletivas) foram um dos mais claros e complexos elementos na narrativa do desenvolvimento geográfico desigual e da política imperialista do período iniciado em 1973[15]. Penso que Gowan tem razão quando vê a reestruturação radical do capitalismo internacional como uma série de apostas por parte dos EUA para tentar manter sua posição hegemônica na cena econômica internacional frente a Europa, Japão, e mais tarde frente ao Leste e Sudeste da Ásia[16]. Isto começou durante a crise de 1973, com a dupla estratégia de Nixon baseada nos altos preços do petróleo e desregulamentação financeira. Nesse momento, os bancos estadunidenses receberam o direito exclusivo de reciclar as grandes quantidades de petrodólares que estavam se acumulando na região do Golfo. Esta atividade financeira, que voltou a se centralizar nos EUA, junto com a desregulamentação do setor financeiro dentro deste país, ajudou a resgatar Nova Iorque de suas crise econômica local. Criou-se um poderoso regime financeiro baseado em Wall Street e na Reserva Federal[17] com poder de controle sobre as instituições financeiras globais (tais como o FMI) capaz de fazer e desfazer muitas economias mais débeis através da manipulação do crédito e das práticas de administração da dívida. Segundo o argumento de Gowan, este regime monetário e financeiro foi usado por sucessivas administrações norte-americanas “como um formidável instrumento de governança e controle econômico para impulsionar o processo de globalização e as transformações nacionais neoliberais associadas ao mesmo”. O regime se desenvolveu através das crises. “O FMI cobre o risco e assegura que os bancos estadunidenses não percam (os países pagam mediante ajustes estruturais, etc.) e a fuga de capitais provenientes de crises localizadas no resto do mundo termina reforçando o poder de Wall Street”[18]. Como efeito disto, o poder econômico norte-americano se projetou para o exterior (em aliança com outros, sempre que fosse possível) e foram impostas outras práticas neoliberais (culminando com a OMC) sobre boa parte do mundo.

Há duas questões a destacar neste sistema. Primeiro, o livre comércio de mercadorias costuma ser descrito como a abertura do mundo a uma competição livre e aberta. Mas este argumento é desmentido, tal como Lênin havia assinalado muito tempo atrás, pelo poder monopolista ou oligopolista (seja na produção ou no consumo). Por exemplo, os EUA utilizaram repetidamente o fechamento do acesso a seu enorme mercado como arma para forçar outras nações a cumprir seus desejos. O caso mais recente (e tosco) desta linha de argumentação foi oferecido por Robert Zoellick, o atual Secretário de Comércio, ao considerar que se Lula, o presidente eleito do Brasil pelo Partido dos Trabalhadores (PT), não se alinhar com os planos do livre mercado para a América, então seu país se veria forçado a exportar para a Antártida[19]. Taiwan e Cingapura foram forçados a aderir à OMC e, conseqüentemente, a abrir seus mercados financeiros ao capital especulativo frente às ameaças norte-americanas de negar-lhes acesso a seu mercado. Diante da insistência da Reserva Federal, a Coréia do Sul foi obrigada a atuar no mesmo sentido como condição para obter a assistência do FMI em 1998. Os EUA planejam agora agregar uma cláusula de compatibilidade financeira institucional para conceder doações com contrapartida para países pobres. Em matéria produtiva, os oligopólios localizados majoritariamente nas regiões capitalistas centrais controlam efetivamente a produção de sementes, fertilizantes, produtos eletrônicos, programas de computação, produtos farmacêuticos e produtos do petróleo, entre muitos outros. Nestas condições, a maior abertura mercantil não amplia a competição, mas apenas cria oportunidades para a proliferação dos poderes monopolistas com todas as suas conseqüências sociais, ecológicas, econômicas e políticas. O fato de que quase dois terços do comércio exterior atual concentrar-se em transações dentro de e entre as maiores corporações transnacionais é um indicador desta situação. Existe consenso entre os analistas sobre que no sul e no leste da Ásia algo aparentemente tão benigno como a Revolução Verde foi acompanhada do incremento do produto agrícola com uma considerável concentração de riqueza no setor agrário e com maiores níveis de dependência com relação a insumos monopolizados. A penetração das empresas de tabaco estadunidenses no mercado chinês compensa as perdas que estas têm em seu próprio mercado e seguramente gerará uma crise de saúde pública na China nas próximas décadas. Neste sentido, que o neoliberalismo implica uma competição aberta antes que um controle monopolista ou competição limitada dentro de estruturas oligopolistas é uma idéia fraudulenta que, como de costume, o fetichismo da liberdade de mercado mascara. O livre comércio não significa comércio justo.

Como o reconhecem alguns de seus defensores, há também uma grande diferença entre o livre comércio de mercadorias e a liberdade de movimento para o capital financeiro20. Isto coloca imediatamente o problema de que tipo de liberdade de mercado é aquela da qual se está falando. Alguns, como J. Bhagwati, defendem ardentemente o livre comércio de mercadorias, mas resistem em aceitar que este necessariamente deva se aplicar a fluxos financeiros. A dificuldade aqui é a seguinte. Por um lado, os fluxos de crédito são vitais para os investimentos produtivos e para as redistribuições de capital de uma linha ou local de produção para outros. Também desempenham um papel importante em facilitar o equilíbrio das necessidades de consumo –de habitação, por exemplo– com as atividades produtivas nos mercados mundiais espacialmente desagregados pela existência de excedentes em alguns lugares e déficit em outros. A esse respeito, o sistema financeiro, com ou sem participação estatal, é crí- tico para coordenar a dinâmica da acumulação de capital através do desenvolvimento geográfico desigual. Mas o capital financeiro abarca também uma grande quantidade de atividade improdutiva na qual o dinheiro é usado simplesmente para obter mais dinheiro mediante a especulação em mercados futuros, valores monetários, dívida e demais coisas. Quando se dispõe de grandes quantidades de capital para estes fins, os mercados abertos de capital se tornam veículos para a atividade especulativa, parte da qual se transforma em profecias auto-realizadas, como temos visto durante os anos 90 nos casos das “ponto.com” e das bolhas da bolsa de valores, ou dos fundos especulativos de cobertura (hedge funds), que contavam com bilhões de dólares à sua disposição, e forçaram a bancarrota da Indonésia e da Coréia do Sul sem que importasse a consistência de sua economia real. Boa parte do que passa em Wall Street não tem nada a ver com facilitar os investimentos em atividades produtivas. É puramente especulativo (daí as descrições de capitalismo de “cassino”, “depredador” e até “abutre” –é o caso do desastre da Long Term Capital Management que necessitou de uma ajuda de US$ 2,3 bilhões, o que nos lembra que a especulação pode falhar facilmente). Esta atividade tem um forte impacto sobre a dinâmica geral da acumulação de capital. Sobretudo, facilitou que o poder político e econômico voltasse a centralizar-se primariamente nos EUA e nos mercados financeiros de outros países centrais (Tóquio, Londres, Frankfurt).

O modo com que isto ocorre depende da forma dominante das alianças de classe dos países centrais, das relações de força entre elas na negociação dos acordos internacionais (a nova arquitetura financeira internacional implementada após 1997-98 para substituir o denominado Consenso de Washington–CW de meados dos anos 90) e as estratégias político-econômicas postas em marcha pelos agentes dominantes com relação ao capital excedente. O surgimento de um complexo “Wall Street-Reserva Federal-FMI” dentro dos EUA, capaz de controlar as instituições globais e de projetar um vasto poder financeiro ao redor do mundo mediante uma rede de outras instituições financeiras e governamentais, desempenhou um papel determinante e problemático na dinâmica do capitalismo global nos últimos anos. Mas este centro de poder somente pode operar do modo em que o faz, porque o resto do mundo está interconectado e efetivamente aprisionado a um marco estruturado de instituições financeiras e governamentais (incluindo as supranacionais). É daqui que vem a importância da colaboração entre, por exemplo, bancos centrais das nações do G7 e dos diversos acordos internacionais (temporários no caso das estratégias monetárias e mais permanentes no caso da OMC) desenhados para enfrentar dificuldades específicas21. E se o poder do mercado não é suficiente para alcançar determinados objetivos e para enquadrar os elementos recalcitrantes ou “estados canalhas” (rogue states), está disponível o inigualável poder militar estadunidense (aberto ou encoberto).

Este complexo de acordos institucionais deve, no melhor dos mundos capitalistas possível, colocar-se em marcha para sustentar e apoiar a reprodução ampliada (crescimento). Mas, de modo similar ao que acontece com a guerra em relação à diplomacia, a intervenção do capital financeiro respaldada pelo poder estatal freqüentemente pode se tornar acumulação por outros meios. Uma aliança non sancta entre os poderes estatais e os aspectos predatórios do capital financeiro forma a ponta de lança de um “capitalismo de rapina” dedicado à apropriação e desvalorização de ativos, mais que à sua construção através de investimentos produtivos. Mas, como devemos interpretar estes “outros meios” de acumulação ou desvalorização?

Acumulação por espoliação

Na Acumulação do capital, Luxemburgo presta atenção ao caráter dual da acumulação de capital:

De um lado tem lugar nos locais de produção da maisvalia –na fábrica, na mina, no fundo agrícola e no mercado de mercadorias. Considerada assim, a acumulação é um processo puramente econômico, cuja fase mais importante se realiza entre os capitalistas e os trabalhadores assalariados... Paz, propriedade e igualdade reinam aqui como formas, e era mister a dialética afiada de uma análise científica para descobrir como na acumulação o direito de propriedade converte-se em apropriação da propriedade alheia, a troca de mercadorias em exploração, a igualdade em domínio de classes. O outro aspecto da acumulação se realiza entre o capital e as formas de produção não capitalistas. Este processo se desenvolve no cenário mundial. Aqui reinam como métodos a política colonial, o sistema de empréstimos internacionais, a política de interesses privados, a guerra. Aparecem aqui, sem dissimulação, a violência, o engano, a opressão e a rapina. Por isso, dá trabalho descobrir as leis severas do processo econômico nesta confusão de atos políticos de violência, e nesta disputa de forças. 

Estes dois aspectos da acumulação, segundo seu argumento, estão “organicamente vinculados” e “a evolução histórica do capitalismo somente pode ser compreendida se os estudamos conjuntamente” 22.

A teoria geral da acumulação do capital de Marx se baseia em certos supostos iniciais cruciais que, em termos gerais, coincidem com os da economia política clássica e que excluem os processos de acumulação primitiva. Estes supostos são: mercados competitivos que funcionam livremente com acordos institucionais que garantem a propriedade privada, o individualismo jurídico, a liberdade de contratar, e estruturas legais e governamentais apropriadas garantidas por um estado “facilitador”, o qual também assegura a integridade do dinheiro como reserva de valor como meio de circulação. O papel do capitalista como produtor e intercambiador está estabelecido, e a força de trabalho foi convertida em uma mercadoria que geralmente se troca por seu valor. A acumulação “primitiva” ou “originária” já ocorreu, e a acumulação se desenvolve como reprodução ampliada (através da exploração do trabalho vivo na produção) dentro de uma economia fechada que opera em condições de “paz, propriedade e igualdade”. Estes supostos nos permitem ver o que aconteceria se o projeto liberal da economia política clássica ou, em nosso tempo, o projeto neoliberal dos economias neoclássicos, se realizasse. O brilho do método dialético de Marx está em mostrar que a liberalização mercantil –o credo dos liberais e neoliberais– não produzirá um estado de harmonia no qual todos estarão melhor, mas que produzirá maiores níveis de desigualdade social, como de fato aconteceu durante os últimos trinta anos de neoliberalismo, particularmente em países como a Grã-Bretanha e os EUA, que se ativeram mais estreitamente a esta linha política. Marx prediz que também produzirá crescente instabilidade, a qual culminará em crises crônicas de sobreacumulação do tipo da que agora estamos presenciando.

A desvantagem destes supostos é que relegam a acumulação baseada na depredação, na fraude e na violência a uma “etapa originária” que deixa de ser considerada relevante, ou, como no caso de Luxemburgo, é vista como algo “exterior” ao sistema capitalista. Uma revisão geral do papel permanente e da persistência de práticas depredatórias de acumulação “primitiva” ou “originária” ao longo da geografia histórica da acumula- ção de capital é muito pertinente, tal como o assinalaram recentemente muitos analistas23. Dado que denominar “primitivo” ou “originário” umprocesso em curso parece equivocado, daqui em diante vou substituir estes termos pelo conceito de “acumulação por espoliação”.

Uma observação mais atenta da descrição que Marx faz da acumulação primitiva revela uma ampla categoria de processos. Estas incluem a mercantilização e privatização da terra e a expulsão forçada das populações camponesas; a conversão de diversas formas de direitos de propriedade –comum, coletiva, estatal, etc.– em direitos de propriedade exclusivos; a supressão do direito aos bens comuns; a transformação da força de trabalho em mercadoria e a supressão de formas de produção e consumo alternativos, incluindo os recursos naturais; a monetarização das trocas e a arrecadação de impostos, particularmente da terra; o tráfico de escravos; e a usura, a dívida pública e, finalmente, o sistema de crédito. O estado, com seu monopólio da violência e suas definições de legalidade, desempenha um papel crucial ao respaldar e promover estes processos. Existem consideráveis evidências, como sugere Marx e confirma Braudel, de que a transição ao desenvolvimento capitalista foi amplamente submetida ao apoio do estado –apoio decisivo no caso da Grã-Bretanha, débil no da França e fortemente negativo até muito pouco tempo na China24. A referência ao caráter recente da virada para a acumulação primitiva na China indica que se trata de um processo em curso; e existem fortes evidências de que o estado e a política desempenharam um papel crítico na defi- nição da intensidade e dos padrões das novas formas de acumulação de capital, particularmente no Leste e Sudeste da Ásia (por exemplo, no caso de Singapura). O papel do “estado desenvolvimentista” nas fases recentes de acumulação de capital foi objeto de intensa análise25. Só falta voltar os olhos para a Alemanha de Bismarck ou ao Japão de Meiji para reconhecer que foi este o caso desde muito tempo.

Todos os traços mencionados por Marx têm estado claramente presentes na geografia histórica do capitalismo. Alguns deles foram se adequando e hoje desempenham um papel ainda mais importante que o que haviam desempenhado no passado. Como ressaltaram Lênin, Hilferding e Luxemburgo, o sistema de crédito e o capital financeiro foram fatores que influíram significativamente na depreciação, na fraude e no roubo. As promoções bursáteis, os esquemas de ponzi, a destruição estruturada de ativos através da inflação, o esvaziamento através de fusões e aquisições, a promoção de níveis de endividamento que mesmo nos países capitalistas avançados reduzem populações inteiras à servidão por dívidas, para não mencionar a fraude corporativa, a espoliação de ativos (o ataque dos fundos de pensão e sua liquidação pelos colapsos acionários e corporativos) mediante a manipulação de crédito e ações, todos são traços centrais do que é o capitalismo contemporâneo. O colapso da Enron espoliou os meios de vida de muita gente e de seus direitos de pensão. Mas, sobretudo, devemos prestar atenção aos ataques realizados pelos fundos especulativos de cobertura e outras grandes instituições do capital financeiro como a ponta de lança da acumulação por espoliação nos últimos anos. Ao criarem uma crise de liquidez no Sudeste asiático, os fundos especulativos de cobertura forçaram a falência de empresas. Estas empresas puderam ser adquiridas por preços de liquidação por capitais excedentes dos países centrais, dando lugar ao que Wade e Veneroso descrevem como “a maior transferência de ativos de proprietários domésticos (por exemplo, do Sudeste asiático) para estrangeiros (por exemplo, estadunidenses, japoneses e europeus) em tempos de paz nos últimos cinqüenta anos em qualquer lugar do mundo”26.

Também surgiram mecanismos completamente novos de acumulação por espoliação. A ênfase nos direitos de propriedade intelectual nas negociações da OMC (o denominado acordo TRIPS) marca os caminhos através dos quais as patentes e licenças de materiais genéticos, plasma de sementes, e qualquer forma de outros produtos, podem ser usadas contra populações inteiras, cujas práticas de manejo ambiental desempenharam um papel crucial no desenvolvimento destes materiais. A biopirataria é galopante, e a pilhagem do estoque mundial de recursos genéticos em benefícios de algumas poucas grandes empresas multinacionais está claramente em marcha. A recente depredação dos bens ambientais globais (terra, ar, água) e a proliferação da degradação ambiental, que impede qualquer coisa menos os modos de produção agrícolas com emprego intensivo de capital, foram resultado da total transformação da natureza em mercadoria. A mercantilização das formas culturais, as histórias e a criatividade intelectual pressupõe a total ausência de posse –a indústria da música se destaca pela apropriação e exploração da cultura e da criatividades populares. A transferência para as corporações e a privatização de ativos previamente públicos (como as universidades), para não mencionar a onda de privatização da água e outros serviços públicos que arrasou o mundo, constitui uma nova onda do “cercamento dos bens comuns”. Como no passado, o poder do estado é usado freqüentemente para forçar estes processos, inclusive contra a vontade popular. Como também aconteceu no passado, estes processos de espoliação estão provocando ampla resistência, disto se trata o movimento antiglobalização27. O retorno ao domínio privado de direitos de propriedade comum ganhos através da luta de classes do passado (o direito a uma pensão estatal, ao bem-estar, ou ao sistema de saúde nacional) foi uma das políticas de espoliação mais ilustres realizadas em nome da ortodoxia neoliberal. O plano de governo de Bush para privatizar a seguridade social (e fazer com que as pensões estejam sujeitas às oscilações dos mercados acionistas) é um caso claro disto. Não surpreende, então, que boa parte da ênfase do movimento antiglobalizante tenha se centrado recentemente na exigência de bens comuns e no ataque ao papel conjunto do estado e do capital em sua apropriação.

O capitalismo internaliza práticas canibais, predatórias e fraudulentas. Mas, tal como Luxemburgo observou convincentemente, é “constantemente difícil determinar, dentro do emaranhado de violência política e disputas de poder, as duras leis do processo econômico”. A acumulação por espoliação pode ocorrer de diversos modos e seu modus operandi tem muito de contingente e casual. Apesar disso, é onipresente, sem importar a etapa histórica, e se acelera quando ocorrem crises de sobreacumulação na reprodução ampliada, quando parece não haver outra saída a não ser a desvalorização. Arendt sugere, por exemplo, que para a Grã-Bretanha no século XIX, as depressões dos anos 60 e 70 deram o impulso inicial de uma nova forma de imperialismo na qual a burguesia tomou consciência de que “pela primeira vez, o pecado original do simples roubo, que séculos antes havia tornado possível “a acumulação primitiva do capital” (Marx) e que havia possibilitado toda a acumulação posterior, devia se repetir uma vez ou outra, sob pena de que o motor da acumulação subitamente se detivesse”28. Isto nos traz de volta às relações entre a busca de ajustes espaçotemporais, os poderes estatais, a acumulação por espoliação e as formas de imperialismo contemporâneo.

O “novo” imperialismo

As formações sociais capitalistas, freqüentemente constituídas mediante configurações territoriais ou regionais particulares e usualmente dominadas por algum centro hegemônico, estiveram incluídas por muito tempo em práticas quase-imperialistas que buscam ajustes espaço-temporais para seus problemas de sobreacumulação. É possível, no entanto, periodizar a geografia histórica destes processos tomando seriamente o argumento de Arendt de que o imperialismo centrado na Europa durante o período 1884-1945 constituiu a primeira tentativa de domínio político global por parte da burguesia. Os estados-nação envolveram-se em projetos imperiais próprios para enfrentar seus problemas de sobreacumulação e conflitos de classe internos. Na virada do século, este primeiro sistema estabilizado sob a hegemonia britânica e construído em torno dos fluxos livres de capital e mercadorias no mercado mundial se decompôs em conflitos geopolíticos entre os principais poderes que tentavam obter autarquia em sistemas crescentemente fechados. Confirmando em boa medida a previsão de Lênin, este sistema explodiu em duas guerras mundiais. Parte do resto do mundo estava sofrendo o saque dos recursos (basta olhar a história do que o Japão fez em Taiwan ou o que a Grã- Bretanha fez em Witwatersrand na África do Sul) com o objetivo de que a acumulação por espoliação compensasse a incapacidade crônica de manter o capitalismo através da reprodução ampliada, o que se manifestaria nos anos 30.

Este sistema foi substituído em 1945 por um outro liderado pelos EUA no qual se tratava de estabelecer uma aliança global entre todos os principais poderes capitalistas para evitar a sobreacumulação que havia castigado a década de ‘30. Para que isto acontecesse, era necessário compartilhar os benefícios da intensificação de um capitalismo integrado nas regiões centrais (por isto o apoio estadunidense às iniciativas de formação da União Européia) e se envolver na expansão geográfica sistemática do sistema (daí a insistência estadunidense na descolonização e no “desenvolvimentismo” como um objetivo generalizado para o resto do mundo). Esta segunda fase do domínio global burguês foi possível em grande medida pela contingência da guerra fria. Esta pressupunha a liderança militar e econômica estadunidense como o único superpoder capitalista. O efeito foi a construção de um “superimperialismo” estadunidense hegemônico, que era mais político e militar que uma manifesta- ção de necessidade econômica. Os EUA não eram muito dependentes de exportações ou importações. Podiam inclusive afrontar a abertura para outros mercados e assim absorver mediante ajustes espaço-temporais internos, como o sistema inter-estatal de auto-estradas, a suburbanização desordenada e o desenvolvimento de suas regiões sul e oeste, parte da capacidade excedente que começava a ser gerada na Alemanha e Japão durante os anos 60. Assim, foi produzido um sólido crescimento com a reprodução ampliada no mundo capitalista. A acumulação por espoliação esteve relativamente silenciada, ainda que países com capital excedente, como Japão e Alemanha Ocidental, tivessem uma crescente necessidade de buscar mercados externos, incluindo a competição pelo controle dos mercados em desenvolvimento pós-coloniais29. Apesar disto, na Europa foram instalados fortes controles sobre a exportação de capital (nem tanto sobre a exportação de mercadorias) e se mantiveram as restrições sobre as importações de capital na Ásia do Leste. Dominaram as lutas de classe no interior dos estados-nação pela reprodução ampliada (como ocorreria e quem se beneficiaria). As principais lutas geopolíticas que surgiram foram as próprias da guerra fria (com o outro império constru- ído pelos soviéticos) ou lutas residuais (freqüentemente atravessadas pela política da Guerra Fria que levou os EUA a apoiarem muitos regimes pós-coloniais reacionários) que resultaram da falta de vontade dos poderes europeus de se desvincular de suas posses coloniais (a invasão de Suez pelos britânicos e franceses em 1956, que não contou em absoluto com o apoio dos EUA, foi emblemática). O ressentimento crescente gerado por permanecerem em uma situação espaço-temporal de subordinação perpétua ao centro suscitou movimentos de liberação nacional e contra a dependência. O socialismo do Terceiro Mundo buscou a modernização sobre uma base política e de classe completamente diferente.

Esse sistema foi quebrado ao redor dos anos 70. Ficava difícil impor controles ao capital quando os dólares excedentes inundavam o mercado mundial. As pressões inflacionárias resultantes da tentativa dos EUA de ter ao mesmo tempo “canhões e manteiga” em meio à Guerra do Vietnam se tornaram muito intensas, uma vez que os níveis de luta de classe em muitos dos países centrais começaram a erodir os lucros. Os EUA, então, trataram de erigir um sistema distinto, baseado em uma combinação de novos acordos internacionais e financeiro-institucionais que resistiam às ameaças econômicas da Alemanha e do Japão e que voltaram a centralizar o poder econômico como capital financeiro operando a partir de Wall Street. A conivência entre o governo de Nixon e os sauditas para elevar o preço do petróleo a níveis siderais em 1973 causou muito mais estrago às economias européias e japonesa que à estadunidense, uma vez que esta última não era nesse momento dependente demais da oferta petrolífera do Oriente Médio30. Os bancos estadunidenses ganharam o privilégio de reciclar os petrodólares na economia mundial. Ameaçados na esfera da produção, os EUA contra-atacaram impondo sua hegemonia através das finanças. Mas para que este sistema funcionasse efetivamente, os mercados em geral, e os mercados de capital em particular, deviam ser forçados a abrirem-se para o comércio internacional –um processo lento que exigiu da pressão interna dos EUA respaldada pelo uso de fatores de influência internacional tais como o FMI e do compromisso igualmente intenso com o neoliberalismo como a nova ortodoxia econômica. Também implicou a transformação na correlação de poder dentro da própria burguesia, na qual os setores produtivos perderam poder frente às instituições do capital financeiro. Isto podia ser usado para combater os movimentos de trabalhadores na reprodução ampliada, seja diretamente, exercendo a supervisão disciplinadora na produção, seja indiretamente, facilitando a maior mobilidade geográfica de todas as formas de capital. Assim, o capital financeiro foi central para esta terceira fase do domínio global burguês.

Este sistema era muito mais volátil e depredador e conheceu vários períodos breves de acumulação por espoliação –usualmente mediante programas de ajuste estrutural administrados pelo FMI– que serviram de antídoto para as dificuldades na esfera da reprodução ampliada; em algumas instâncias, como é o caso da América Latina nos anos 80, economias inteiras foram assaltadas, e seus ativos recuperados pelo capital financeiro estadunidense. Em 1997, o ataque às moedas tailandesa e indonésia por parte dos fundos especulativos de cobertura (hedge funds), respaldado pelas ferozes políticas deflacionárias demandadas pelo FMI, levou à falência empresas que não necessariamente eram inviáveis e reverteu o destacado progresso econômico e social que se tinha alcançado em parte do Leste e Sudeste da Ásia. Como resultado, milhões de pessoas foram vítimas do desemprego e do empobrecimento. Além disso, a crise suscitou uma inclinação em favor do dólar, confirmando o domínio de Wall Street e gerando um assombroso boom dos valores dos ativos para os estadunidenses ricos. As lutas de classe começaram a confluir ao redor de temas como o do capital financeiro e da perda de direitos através da privatização.

As crises da dívida podem ser usadas para reorganizar as relações sociais de produção em cada país, sobre a base de uma análise que favoreça mercados internos e as empresas prósperas ficaram à mercê das empresas estadunidenses, japonesas ou européias. Deste modo, os baixos lucros nas regiões centrais puderam ser complementadas com parte dos maiores lucros obtidos no exterior. A acumulação por espoliação converteu-se em um traço muito mais central dentro do capitalismo global (com a privatização como um de seus principais mantras). A resistência a isto também se tornou mais central dentro do movimento anticapitalista e antiimperialista31. Mas o sistema centrado no complexo Wall Street-Reserva Federal tinha várias dimensões multilaterais com os centros financeiros de Tóquio, Londres, Frankfurt e muitos outros centros financeiros participantes. Estava associado com a emergência de corporações capitalistas transnacionais que, apesar de que pudessem ter uma base em um ou outro estado-nação, se estendiam ao largo do mapa mundial em formas que eram impensáveis em fases prévias do imperialismo (os cartéis e trusts descritos por Lênin estavam estreitamente relacionados a estadosnação concretos). Este era o mundo que a Casa Branca de Clinton, com seu todo-poderoso Secretário do Tesouro Robert Rubin, proveniente do setor especulativo de Wall Street, tratou de administrar mediante um multilateralismo centralizado (cuja síntese foi o denominado “Consenso de Washington” de meados dos anos 90). Por um instante, pareceu que Lênin havia se equivocado e que Karl Kautsky tinha razão e que um ultra-imperialismo baseado na colaboração “pacífica” entre os maiores poderes capitalistas –agora simbolizado pelo agrupamento conhecido como o G7 e a denominada “nova arquitetura financeira internacional” sob a hegemonia dos EUA32– era possível.

Contudo, agora, este sistema encontra-se em sérias dificuldades. A extrema volatilidade e fragmentação caótica dos conflitos de poder torna difícil, como o havia notado precocemente Luxemburgo, discernir como estão funcionando as leis duras da economia atrás da cortina de fumaça e dos jogos de espelhos do setor financeiro. Mas, a crise de 1997-98 revelou que o principal centro com capacidade de produzir valor excedente localiza-se no Leste e Sudeste asiático (daí os EUA apontarem especificamente aí para a desvalorização), a rápida recuperação do capitalismo nesta região voltou a colocar o problema geral da sobreacumulação no centro dos assuntos internacionais33. Isto coloca a questão de como se poderia organizar uma nova forma de ajustes espaço-temporais (na China?) ou de quem suportará o impacto de uma nova rodada de desvalorização. A incipiente recessão norte-americana, após uma década ou mais de exuberância espetacular (ainda que “irracional”) indica que os EUA podem não ser imunes. A maior instabilidade reside na rápida deterioração da balança de pagamentos dos EUA. Segundo Brenner, “a mesma explosão das importações que impulsionou a economia mundial”, durante os anos 90, “elevou o comércio e os déficits em conta corrente dos EUA a níveis recorde, com o crescimento inédito das responsabilidades dos proprietários externos” e “a vulnerabilidade sem precedentes da economia estadunidense à fuga de capital e ao colapso do dólar”34. Mas esta vulnerabilidade afeta ambas as partes. Se o mercado estadunidense entra em colapso, as economias que se orientam nesse mercado como o receptor de sua capacidade produtiva excedente se arruinarão com ele. A rapidez com que os bancos centrais dos países como Japão e Taiwan enviam fundos para cobrir o déficit estadunidense tem um forte componente de auto-interesse. Deste modo, financiam o consumismo estadunidense, o qual constitui o mercado para seus produtos. Neste momento, podem estar financiando o esforço militar dos EUA.

Todavia, mais uma vez, a hegemonia e dominação dos EUA estão ameaçadas e desta vez o perigo parece mais agudo. Se, por exemplo, Braudel (seguido por Arrighi) está no caminho certo, e uma poderosa onda de “finançarização” pode ser o prelúdio de uma transferência do poder dominante de um hegemônico a outro, a virada dos EUA no sentido da “finançarização” nos anos 70 parecia exemplificar um padrão histórico de autodestruição35. Os déficits, tanto internos como externos, não podem seguir crescendo descontroladamente por um tempo inde- finido, e a habilidade e vontade de outros, primariamente da Ásia, para financiá-los, ao ritmo de US$ 2,3 bilhões por dia em taxa corrente, não é inesgotável. Qualquer outro país no mundo que exibisse as condições macroeconômicas da economia estadunidense estaria sujeito a uma desapiedada austeridade e a mecanismos de ajuste estrutural do FMI. Mas, como ressalta Gowan: “a capacidade de Washington de manipular o pre- ço do dólar e de explorar o domínio financeiro internacional de Wall Street permitiu às autoridades estadunidenses evitar o que outros estados se viram obrigados a fazer: vigiar a balança de pagamentos; ajustar a economia doméstica para assegurar altos níveis de poupança e investimentos internos; vigiar os níveis de endividamento público e privado; assegurar um sistema interno de intermediação financeira para assegurar o forte desenvolvimento do setor produtivo interno”. A economia estadunidense teve uma “rota de fuga de todas estas tarefas” e como resultado se tornou “profundamente distorcida e instável”36. Mais ainda, as sucessivas ondas de acumulação por espoliação, a marca distintiva do novo imperialismo centrado nos EUA, estão suscitando resistência e ressentimento onde quer que irrompam, gerando não apenas um ativo movimento antiglobalização mundial (cuja forma difere bastante da das lutas de classe imbricadas na reprodução ampliada), mas também uma ativa resistência à hegemonia dos EUA por parte dos poderes subordinados previamente maleáveis a sua influência, particularmente na Ásia (Coréia do Sul é um caso), e agora inclusive na Europa.

As opções para os EUA são limitadas. Os EUA poderiam se distanciar da atual forma de imperialismo, comprometendo-se com uma redistribuição massiva de riqueza dentro de suas fronteiras e buscando esquemas de absorção do excedente através de ajustes temporais internos (melhoras espetaculares na educação pública e reparo das infra-estruturas envelhecidas seriam bons pontos de partida). Uma estratégia industrial de revitalização da manufatura também poderia ajudar. Mas isto exigiria mais financiamento deficitário ou maiores impostos, assim como uma forte direção estatal, e isto é precisamente o que a burguesia se negará a contemplar, como ocorreu nos tempos de Chamberlain. Qualquer político que propusesse um pacote como este seria, quase sem dúvida, silenciado a gritos pela imprensa capitalista e seus ideólogos, e perderia qualquer eleição ante o poder assombroso do dinheiro. Apesar disso, ironicamente, um contra-ataque massivo dentro dos EUA assim como em outros países centrais do capitalismo (particularmente na Europa) contra as políticas do neoliberalismo e o recorte do estado e dos gastos sociais poderia ser uma das poucas formas de proteger, de dentro, o capitalismo ocidental contra suas próprias tendências autodestrutivas.

Tratar de aplicar, mediante a autodisciplina, o tipo de programas de austeridade que o FMI usualmente impõe a outros, seria, dentro dos EUA, ainda mais suicida do ponto de vista político. Qualquer tentativa de fazê-lo por parte dos poderes externos (através da saída de capitais e o colapso do dólar, por exemplo) geraria, seguramente, uma feroz resposta política, econômica e até militar. É difícil imaginar que os EUA pudessem aceitar pacificamente e se adaptar ao crescimento fenomenal da Ásia do Leste e reconhecer, tal como Arrighi sugere, que estamos no meio de uma transição fundamental para a constituição da Ásia como o centro hegemônico do poder global37. É improvável que os EUA se despeçam tranqüila e pacificamente. Implicaria, em qualquer caso, que o capitalismo do Leste asiático sofra uma reorientação –da qual existem alguns sinais– de uma situação de dependência do mercado estadunidense até o florescimento de um mercado interno dentro da própria Ásia. Aqui é onde o enorme programa de modernização no interior da China –uma versão do ajuste espaço-temporal equivalente à que os EUA efetuaram internamente nos anos 50 e 60– pode desempenhar um papel importante na absorção dos capitais excedentes do Japão, Taiwan e Coréia do Sul e, portanto, diminuir os fluxos para os EUA. A diminuição do fluxo de fundos para os EUA poderia ter conseqüências calamitosas.

É neste contexto que vemos que setores das elites políticas estadunidenses buscam exercitar o músculo militar como o único poder que lhes restou, falando abertamente de Império como uma opção política (presumivelmente para obter tributos do resto do mundo) e buscando controlar a provisão de petróleo como um meio de neutralizar as ameaças de perda de poder da economia global. As tentativas dos EUA de incrementar o controle sobre as reservas petrolíferas iraquianas e venezuelanas –no primeiro caso, com a intenção de estabelecer a democracia e no segundo de destruí-la– adquirem pleno sentido. Buscam uma repetição dos acontecimentos de 1973, uma vez que a Europa e o Japão, bem como o Leste e Sudeste asiáticos, agora com a crucial inclusão da China, são ainda mais dependentes do petróleo do Golfo que os EUA. Se os EUA maquinam a derrubada de Chávez e de Saddam; se pode estabilizar ou reformar o regime saudita, armado até os dentes e atualmente assentado sobre as areias movediças do autoritarismo (com o risco iminente de cair nas mãos de muçulmanos radicalizados –isto era, depois de tudo, o objetivo básico de Osama bin Laden); se pode avançar, como parece provável, do Iraque ao Irã e consolidar sua posição na Turquia e Uzbequistão como uma presença estratégica em relação às reservas petrolíferas da bacia do Cáspio, então, os EUA poderiam esperar manter o controle efetivo sobre a economia global e assegurar sua própria posição econômica pelos próximos cinqüenta anos através do controle firme do fornecimento global de petróleo38.

Os perigos de uma estratégia deste tipo são imensos. A resistência será formidável na Europa e Ásia, e não menor na Rússia. Neste ponto, é ilustrativa a recusa de aprovar nas Nações Unidas a invasão militar dos EUA ao Iraque, particularmente por parte da França e da Rússia, as quais têm fortes conexões com a exploração de petróleo iraquiano. Particularmente, os europeus sentem-se muito mais atraídos por uma visão kautskiana do ultra-imperialismo na qual os principais poderes capitalistas supostamente colaborarão sobre uma base igualitária. Uma hegemonia estadunidense instável baseada na militarização permanente e em um aventureirismo tal que poderia ameaçar seriamente a paz global não é uma perspectiva atrativa para o resto do mundo. Isto não quer dizer que o modelo europeu seja muito mais progressista. Se Robert Cooper é crível, um consultor de Tony Blair, este modelo ressuscitaria as distin- ções entre estados civilizados, bárbaros e selvagens do século XIX, sob o disfarce de estados pós-modernos, modernos e pré-modernos, onde os pós-modernos, como guardiões da conduta civilizada descentralizada, esperaram induzir por meios diretos ou indiretos a obediência a normas universais (leia-se “ocidentais” e “burguesas”) e às práticas humanistas (leia-se “capitalistas”) ao redor do mundo39. Este foi exatamente o modo com que os liberais do século XIX, como John Stuart Mill, justificaram a manutenção da tutela da Índia e a cobrança de tributos externos ao passo que, internamente, celebravam os princípios do governo representativo. Na ausência de uma forte revitalização da acumulação sustentada através da reprodução ampliada, isto implicará num aprofundamento da política de acumulação por espoliação em todo o mundo, com o propósito de evitar a total paralisia do motor da acumulação.

Esta forma alternativa de imperialismo será dificilmente aceitável para amplas faixas da população mundial que têm vivido no marco da (e em alguns casos começando a lutar contra) acumulação por espoliação e das formas predatórias de capitalismo às quais enfrentaram durante as últimas décadas. O artifício liberal que propõe alguém como Cooper é familiar demais para os autores pós-coloniais para que seja atrativo40. E o militarismo flagrante que os EUA propõem de maneira crescente, sobre o pressuposto de que é a única resposta possível ao terrorismo global, não apenas está cheio de perigos (incluindo o arriscado precedente do “ataque preventivo”), mas também está sendo gradualmente reconhecido como uma máscara para tratar de sustentar uma hegemonia ameaçada dentro do sistema global.

Mas talvez a pergunta mais interessante se refira à resposta dentro dos EUA. Neste ponto, uma vez mais, Hannah Arendt coloca um contundente argumento: o imperialismo não pode sustentar-se por muito tempo sem repressão ativa, ou inclusive sem tirania interna41. O dano infligido às instituições democráticas internas pode ser substancial (como aprenderam os franceses durante a luta pela independência da Argélia). A tradição popular dentro dos EUA é anticolonial e antiimperialista e durante as últimas décadas foram necessários muitos ardis, quando não o engano declarado, para dissimular o papel imperial da América do Norte no mundo, ou, ao menos, para revesti-lo de intenções humanitárias grandiloqüente. Não está claro que a população estadunidense apoiará no longo prazo uma virada aberta na direção de um imperialismo militarizado (não mais que aquele que acabou avalizando a guerra do Vietnam). Tampouco é provável que aceite por longo tempo o preço –já substancial, dadas as cláusulas repressivas incluídas nos atos patrióticos e de segurança interna– que deve pagar internamente em termos de direitos e liberdades civis e gerais. Se o Império supõe anular a Carta de Direitos, então não está claro que este trato será aceito facilmente. Mas a outra face da dificuldade é que, na ausência de uma revitalização espetacular da acumulação, sustentada através da reprodução ampliada, e com possibilidades limitadas de acumular por espoliação, a economia estadunidense provavelmente se afunde numa depressão deflacionária que fará que, por comparação, a experiência japonesa da última década se desvaneça na insignificância. E se é produzida uma fuga séria com relação ao dólar, a austeridade deverá ser intensa, a menos que surja uma política de redistribuição de riqueza e ativos inteiramente diferentes (uma perspectiva que a burguesia contemplará com o mais completo horror), centralizada na total reorganização das intra-estruturas físicas e sociais da nação, que absorva o capital e o trabalho ocioso em tarefas socialmente úteis, distintas daquelas puramente especulativas.

Pelo visto, a forma que tomará um novo imperialismo está por se definir. A única coisa certa é que estamos no meio de uma transição fundamental do funcionamento do sistema global e que há uma variedade de forças em movimento que poderiam facilmente inclinar a balança em uma ou outra direção. O equilíbrio entre acumulação por espoliação e reprodução ampliada já se voltou a favor da primeira e é difícil imaginar que esta tendência faça outra coisa que se aprofundar, transformando-se no emblema daquilo que é o novo imperialismo (incluindo postulados abertos de grande significado ideológico sobre o novo imperialismo e a necessidade do império). Também sabemos que a trajetória econômica O ¨novo¨ imperialismo da Ásia é chave, e que os EUA ainda possuem o domínio militar. Como assinala Arrighi, esta é uma configuração única. Pode muito bem ser que estejamos vendo no Iraque a primeira etapa de como esta configuração poderia operar geopoliticamente no cenário mundial, em um contexto de recessão generalizada. Os EUA, cuja hegemonia durante o período imediatamente posterior ao pós-guerra baseava-se na produção, finanças e poder militar, perderam sua superioridade produtiva após os anos 70 e podem muito bem estar perdendo seu domínio financeiro ficando unicamente com o poderio militar. O que acontece dentro dos EUA é, portanto, um determinante de importância vital para definir como se poderia articular o novo imperialismo. E há, para começar, uma acumulação de forças de oposição ao aprofundamento da acumulação por espoliação. Mas as formas da luta de classes que esta provoca são de natureza radicalmente distinta que as clássicas lutas proletárias associadas à reprodução ampliada (que continuam se desenvolvendo, mesmo que de forma mais silenciosa) sobre as quais tradicionalmente repousava o futuro do socialismo. É vital impulsionar as alianças que começam a surgir entre estes diferentes vetores de luta, tanto que nelas podemos discernir os delineamentos de uma forma de globalização inteiramente diferente, não imperialista, que enfatiza o bem-estar social e os objetivos humanitários associados a formas criativas de desenvolvimento geográfico desigual acima da glorificação do poder do dinheiro, do valor do mercado acionário e da multiforme e incessante acumulação do capital através dos espaços variados da economia global por qualquer meio, mas que termina sempre por concentrar-se fortemente em uns poucos espaços de extraordinária riqueza. Este momento pode estar cheio de volatilidade e incerteza, mas isto significa que está também cheio de potencialidades e marcado pelo inesperado.

Notas:

1. H. Lefebvre, The Survival of Capitalism: Reproduction of the Relations of Production, New York: St. Martin’s Press, 1976.

2. A maioria destes ensaios dos anos 70 e 80 foram publicados novamente em David Harvey, Spaces of Capital: Towards a Critical Geography, New York: Routledge, 2001. A principal linha argumentativa também pode ser encontrada em Harvey, The Limits to Capital, Oxford: Basil Blackwell, 1982 (reimpresso em Londres:Verso Press, 1999).

3. Minha própria versão deste argumento teórico está detalhada em Harvey, Limits to Capital, capítulos 6 e 7.

4. R. Brenner, The boom and bubble: the US in the world economy, London: Verso, 2002. A teoria da sobreacumulação em Brenner é muito diferente da minha, mas acho sua evidência empírica útil, e em sua maior parte convincente.

5. P. Gowan, The Global gamble: Washington’s bid for world dominance, London: Verso, 1999.

6. Como este assunto é complexo demais para ser argüido em um artigo, prosseguirei de modo esquemático e simplificado, deixando as elaborações mais detalhadas para uma publicação posterior. D. Harvey, The New Imperialism, Oxford: Oxford University Press, a ser publicado.

7. O tópico do “novo imperialismo” foi inserido na esquerda por L. Panitch, “The New Imperial State”, New Left Review, 11(1), 2000; também confira P. Gowan, L. Panitch e M. Shaw, “The State, Globalization and the New Imperialism: A Round Table Discussion”, Historical Materialism, 9, 2001. Outros comentários de interesse estão em J. Petras e J. Veltmeyer, Globalization Unmasked: Imperialism in the 21st Century, London: Zed Books, 2001; R. Went, “Globalization in the Perspective of Imperialism”, Science and Society, 66(4), 2002-3; S. Amin, “Imperialism and Globalization”, Monthly Review, 53(2), 2001; as perspectivas conservadora e liberal foram estabelecidas em M. Ignatieff, “The Burden”, New York Times Magazine, 5 de Janeiro de 2003 e R. Cooper, “The New Liberal Imperialism”, The Observer (07/04/2002).

8. Os conceitos de Marx de “capital fixo de tipo independente” e de “capital fictício” foram explorados em Harvey, Limits, capítulos 8 e 10 respectivamente, e sua importância geopolítica foi trabalhada em Harvey, Spaces of Capital (op. cit), capítulo 15, “The Geopolitics of Capitalism”.

9. A importância da senhoriagem foi examinada em G. Carchedi, “Imperialism, Dollarization and the Euro”, Socialist Register 2002, London: Merlin Press, 2002.

10. G.W. Hegel, The Philosophy of Right, New York: Oxford University Press, 1967.

11. V.I. Lênin, “Imperialism: The Highest Stage of Capitalism”, in Selected Works, Volume 1, Moscow: Progress Publishers.

12. A história toda de uma mudança radical nas soluções dos problemas políticos e econômicos de internas para externas, como uma resposta à dinâmica da luta de classes em muitos países capitalistas, é contada em uma coleção pouco conhecida, mas muito fascinante, de C.A. Julien, J. Bruhat, C. Bourgin, M. Crouzet e P. Renouvin, Les Politiques d’Expansion Imperialiste, Paris: Presses Universitaires de France, 1949, na qual os casos de Ferry, Chamberlain, Roosevelt, Crispi e de outros são todos examinados comparativamente.

13 H. Arendt, Imperialism, New York: Harcourt Brace, 1968. Há muitas semelhanças inquietantes entre a análise de Arendt da situação no século dezenove e nossa condição contemporânea. Considere-se, por exemplo, a seguinte passagem: “A expansão imperialista foi atingida por um tipo curioso de crise econômica: a superprodução de capital e a emergência de dinheiro ‘supérfluo’, resultado do excesso de poupança, que não podia encontrar mais investimento produtivo dentro das fronteiras nacionais. Pela primeira vez, os investimentos no poder não abriram caminho para os investimentos no dinheiro, mas as exportações de poder seguiram humildemente o caminho do dinheiro exportado, dado que os investimentos sem controle em países distantes ameaçavam transformar amplas camadas da sociedade em jogadores, mudar toda a economia capitalista de um sistema de produção para um sistema de especulação financeira, e a substituir os lucros da produção pelos lucros em comissões. A década imediatamente anterior à era imperialista, os anos setenta do ultimo século, testemunhou um aumento sem precedentes nas fraudes, escândalos financeiros, e jogadas no mercado de ações” (p. 15).

14 J. Henderson, “Uneven Crises: Institutional Foundations of East Asian Economic Turmoil”, Economy and Society, 28(3), 1999.

15 Brenner, The Boom (op.cit.), tenta dar o relato mais geral e sintético dessa turbulência. Os detalhes da crise do Leste asiático podem ser encontrados em R. Wade e F. Veneroso, “The Asian Crisis: The High Debt Model versus the Wall Street-Treasury-IMF Complex”, New Left Review, 228, 1998; Henderson, “Uneven Crises”; C. Johnson, Blowback: The Costs and Consequences of American Empire, New York: Henry Holt, 2000, capítulo 9; no número especial de Historical Materialism, 8, 2001, “Focus on East Asia after the Crisis” (particularmente P. Burkett e M. HartLandsberg, “Crisis and Recovery in East Asia: The Limits of Capitalist Development”).

16 Gowan, Global Gamble (op.cit.).

17 Vários nomes foram propostos para tal. Gowan preferiu o de Regime Dólar-Wall Street, mas prefiro o de Complexo Wall-Street-TesouroFMI, sugerido por Wade e Veneroso, “The Asian Crisis”. 18 Gowan, Global Gamble (op.cit.), pp. 23, 35.

19 Editorial, The Buenos Aires Herald (31/12/2002), p. 4.

20 J. Bhagwati, “The Capital Myth: The Difference Between Trade in Widgets and Dollars”, Foreign Affairs, 77(3), 1998, pp. 7-12.

21 Gowan, Global Gamble e Brenner, The Boom oferecem interessantes relatos paralelos sem, contudo, referirem-se reciprocamente.

22 R. Luxemburgo, The Accumulation of Capital, New York: Monthly Review Press, 1968, pp. 452-3. Luxemburgo baseia sua perspectiva de uma teoria do subconsumo (falta de demanda efetiva), que possui implicações bem diferentes daquelas das teorias da sobreacumulação (falta de oportunidades para as atividades lucrativas) com as quais trabalho. Uma exploração completa do conceito de acumulação por espoliação e sua relação à sobreacumulação é apresentada na Parte Três de Harvey, The New Imperialism (op.cit.).

23 M. Perelman, The Invention of Capitalism: Classical Political Economy and the Secret History of Primitive Accumulation, Durham: Duke University Press, 2000. Há também um extensivo debate no The Commoner sobre os novos cercamentos e sobre o momento em que a acumulação primitiva deve ser entendida como um processo continuado ou puramente histórico. DeAngelis fornece um bom resumo.

24 K. Marx, Capital, Volume 1, New York: International Publishers, 1967, Part 8; F. Braudel, Afterthoughts on Material Civilization and Capitalism, Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1977.

25 Wade e Veneroso, “The Asian Crisis” (op.cit.), p. 7 propõem a seguinte definição: “ uma alta poupança familiar + altas taxas de endividamento corporativo + a colaboração entre empresas e bancos + estratégia industrial nacional + incentivos ao investimento condicionados à competitividade internacional = estado desenvolvimentista”. O estudo clássico é C. Johnson, MITI and the Japanese Miracle: The Growth of Industrial Policy, 1925-75, Stanford: Stanford University Press, 1982; enquanto o impacto empírico das políticas estatais sobre as taxas relativas de crescimento econômico foi bem documentado em M. Webber e D. Rigby, The Golden Age Illusion: Rethinking Post-war Capitalism, New York: Guilford Press, 1996.

26 Wade e Veneroso, “The Asian Crisis” (op.cit.).

27 A extensão da resistência foi indicada em B. Gills, ed., Globalization and the Politics of Resistance, New York: Palgrave, 2000; veja também J. Brecher e T. Costello, Global Village or Global Pillage? Economic Reconstruction from the Bottom Up, Boston: South End Press, 1994. Um recente e muito interessante guia da resistência pode ser encontrado em W. Bello, Deglobalization: Ideas for a New World Economy, London: Zed Books, 2002. A idéia de globalização a partir de baixo foi apresentada o mais sucintamente em R. Falk, Predatory Globalization: A Critique, Cambridge: Polity Press, 2000.

28 Arendt, Imperialism (op.cit.), p. 28.

29 De longe, a melhor apresentação é dada por P. Armstrong, A. Glyn e J. Harrison, Capitalism Since World War II: The Making and Break Up of the Great Boom, Oxford: Basil Blackwell, 1991.

30 Gowan, Global Gamble, pp. 21-2, apresenta evidências para a conivência entre Nixon e os Sauditas.

31 A esquerda, vinculada como estava (e em muitos aspectos ainda está) à política de reprodução expandida, lentamente reconheceu a importância das lutas anti-FMI e de outros movimentos contra a espoliação. Retrospectivamente, o estudo pioneiro de Walton sobre o padrão das lutas anti-FMI se distingue. Cf. J. Walton, Reluctant Rebels: Comparative Studies on Revolution and Underdevelopment, New York: Columbia University Press, 1984. Mas parece que também seria correto que fizéssemos uma análise muito mais sofisticada para determinar quem da miríade de movimentos contra a espoliação é regressivo e antimodernizadores num sentido socialista, seja qual for, e quem pode ser progressista ou ao menos ser levado à direção progressista por meio da formação de uma aliança. Como nunca, o modo com que Gramsci analisou a questão do Sul parece ter sido o estudo pioneiro desse tipo de estudos. Petras enfatizou recentemente este ponto em sua crítica de Hardt e Negri: veja J. Petras, “A Rose by Any Other Name? The Fragrance of Imperialism”, The Journal of Peasant Studies, 29(2), 2002. Camponeses ricos que lutavam contra a reforma do campo não são os mesmo que os camponeses sem-terra que lutam pelo direito de subsistir.

32 P. Anderson, “Internationalism: A Breviary”, New Left Review, 14, 2002, p. 20, nota como “algo como a visão de Kaustky” tenha acontecido e que os teóricos liberais, como Robert Keohane, também notaram a conexão. Sobre a nova arquitetura financeira internacional, ver S. Soederberg, “The New International Financial Architecture: Imposed Leadership and ‘Emerging Markets’”, Socialist Register 2002, London: Merlin, 2002.

33 Cf. Burkett e Hart-Landsberg, “Crisis and Recovery” (op.cit.).

34 Brenner, The Boom (op.cit.), p. 3.

35 G. Arrighi e B. Silver, eds., Chaos and Governance in the Modern World System, Minneapolis: University of Minnesota Press, 1999, pp. 31-3.

36 Gowan, Global Gamble (op.cit.), p. 123.

37 Arrighi não prevê nenhum desafio externo sério, mas ele e seus colegas concluem que os EUA “têm até maior capacidade de converter sua hegemonia declinante em dominação exploratória que a Grã- Bretanha tinha um século atrás. Se o sistema eventualmente entra em colapso, isso ocorrerá primeiro devido à resistência dos EUA em ajustar e acomodar. E por outro lado, o ajustamento e acomodação dos EUA ao crescente poder econômico do Leste asiático é uma condição essencial para uma transição não catastrófica para uma nova ordem mundial”. Cf. Arrighi e Silver, Chaos and Governance (op.cit.), pp. 288-9.

38 M. Klare, Resource Wars: The New Landscape of Global Conflict, New York: Henry Holt, 2002.

39 Cooper, “New Liberal Imperialism” (op.cit.).

40 A crítica formulada por U. Mehta, Liberalism and Empire, Chicago: Chicago University Press, 1999, é simplesmente devastadora quando defrontada com as formulações de Cooper.

41 Arendt, Imperialism (op.cit.), pp. 6-9; curiosamente, esta tem sido uma fonte interna persistente de preocupação contra os riscos imperiais de parte dos EUA, como William Appleman Williams aponta em seu Empire as a Way of Life, Oxford: New York, 1980.
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