17 de dezembro de 2009

A Copa do Mundo

R.W. Johnson

London Review of Books

Vol. 31 No. 24 · 17 December 2009

A Cidade do Cabo está em um estado de séria desorganização por causa da Copa do Mundo de futebol do próximo verão. O enorme novo estádio de 68.000 lugares em Green Point está praticamente concluído, mas há obras em todos os lugares, enquanto a cidade tenta cumprir seus planos de transporte público a tempo. Exceto que agora não há esperança de que isso aconteça, porque descobriu tardiamente que o alardeado sistema de Bus Rapid Transit, que deveria custar 1,5 bilhão de rands, custará quase três vezes mais, o que a cidade não tem, então todo o projeto está sendo retomado, com consequências imprevisíveis para aqueles que querem chegar ao estádio para os jogos. De certa forma, o cancelamento do BRT é um alívio, já que as associações de táxis pretos, vendo-o como uma competição indesejada, declararam guerra a ele. Isso não é uma metáfora: a julgar por seus esforços anteriores, a guerra teria envolvido ônibus com bombas incendiárias, tiroteios e granadas de mão ocasionais lançadas em filas de ônibus.

O estádio continua sendo um assunto de controvérsia com muitos moradores locais. A cidade já tem bons estádios em Newlands e Athlone, este último uma área de cor nas planícies do Cabo que precisa muito de investimento público. Então, a maioria pensou que seria melhor enfeitar os estádios existentes em vez de estragar Green Point se livrando de outras instalações comunitárias ali, acabando com seu comum e plantando um edifício enorme em cima de um grande sítio arqueológico que abriga um grande número de esqueletos da população Khoisan original. Mas a Fifa determina que as semifinais da Copa do Mundo não podem ser realizadas em estádios com menos de 65.000 assentos e não foi possível ampliar nenhum dos dois em Newlands ou o estádio Athlone para esse tamanho. A cidade também queria originalmente localizar o estádio em uma área negra ou de cor, tanto para incentivar investimentos e empregos quanto para facilitar a presença dos pobres nas partidas. Isso foi imediatamente pela janela quando a equipe de inspeção da Fifa, liderada por Franz Beckenbauer, visitou a Cidade do Cabo. Um dos critérios que eles estabeleceram foi que o estádio deveria ter "belas vistas das montanhas". A equipe visitou as áreas pobres, presumiu que a cidade estava brincando sobre escolher um lugar tão obviamente feio e inseguro, e optou por Green Point, uma área branca e rica com belas vistas do mar e das montanhas e muitos bons restaurantes. Isso não foi nenhuma surpresa. Beckenbauer é um alemão rico e alemães ricos que vêm para a Cidade do Cabo vão direto para lugares como Green Point, não para Athlone.

O conselho municipal nos deu garantias corajosas de que o estádio não se tornará um elefante branco quando a Copa do Mundo acabar, mas nenhuma delas é muito convincente. Nenhum esporte local, nem mesmo o rúgbi, pode garantir atrair multidões regulares de 70.000 ou algo parecido. Uma solução proposta é que o estádio seja convertido para uma variedade de outros usos, mas mesmo que isso acontecesse, pareceria extraordinário gastar bilhões de rands apenas para sediar oito jogos de futebol de 90 minutos e depois gastar mais uma fortuna para reformar o prédio como outra coisa. Não que a Cidade do Cabo seja única nesse aspecto. Os outros estádios novos em construção em todo o país enfrentam os mesmos problemas. Eles não eram de forma alguma necessários neste país em desenvolvimento de renda média: eles estão lá por causa de um evento que dura um mês, após o qual ninguém tem a menor ideia de como cobrir seus custos de manutenção.

A Copa do Mundo, é dito em todos os lugares, vai promover a África do Sul ao redor do mundo, criar empregos e ser altamente benéfica para o desenvolvimento do país. Na verdade, será muito para o deleite dos ricos. Pelo menos na Roma antiga, os pobres conseguiam ver as corridas de bigas e as lutas de gladiadores, mas há pouca chance de o mesmo acontecer aqui. Na prática, pode-se ter certeza, será a nova elite que irá aos jogos em seus Mercedes e BMWs. É bastante comum na África do Sul que altos funcionários públicos ou prefeitos e vereadores de áreas pobres se presenteiem com viagens para as Olimpíadas ou outros eventos internacionais, muitas vezes levando centenas de parasitas com eles, tudo pago pelo erário público. Não há dúvidas de que a Copa do Mundo, sendo local, verá mais desse tipo de coisa do que nunca.

O novo estádio Mbombela em Nelspruit, na orla do Parque Nacional Kruger, é um lugar para 43.500 pessoas, adequado apenas para partidas da primeira e segunda rodadas. Sua principal característica são 18 colunas gigantes de suporte do teto, todas construídas no formato de girafas. É bacana, pode-se dizer: os pescoços altos sustentam o teto enquanto anunciam as delícias de um safári rápido no parque entre as partidas. Este estádio, que custou mais de £ 100 milhões, está lado a lado com um grande assentamento de barracos. Apesar de 15 anos de governos do CNA que repetidamente prometeram a eles casas, empregos e serviços, os habitantes deste acampamento de invasores desfrutam de quase 100% de desemprego, não têm eletricidade e não têm nenhuma provisão para esgoto ou água encanada. Toda vez que olham para o vasto novo estádio, ele lhes diz que não foi pensado que valeria a pena gastar com eles nem mesmo uma fração do dinheiro gasto nisso.

Pior, quando o consórcio franco-sul-africano chegou para construir essa monstruosidade, eles disseram que precisavam de um ou dois prédios modernos (ou seja, prédios com eletricidade e ar condicionado, pois fica desagradavelmente quente no lowveld no verão) para abrigar seus departamentos de contabilidade, arquitetura e topografia. Os únicos dois prédios disponíveis eram as escolas locais, então elas foram tomadas e as crianças expulsas. Novas escolas foram prometidas, mas enquanto isso as crianças deveriam assistir às aulas dentro de contêineres vazios que não tinham janelas nem ar condicionado. Dois anos depois, não há sinal de novas escolas sendo construídas e ultimamente isso produziu protestos violentos e tumultos por parte dos moradores furiosos. É altamente improvável que qualquer um deles vá aos jogos no estádio, mas é certo que todos os tipos de celebridades internacionais irão, se misturando com moradores locais abastados.

Enquanto escrevo, a grande emoção é o sorteio da Copa, que organiza os 32 times nas finais em grupos e então traça os caminhos dos vencedores e segundos colocados dos grupos até a segunda fase, e daí para as quartas e semifinais e a final em si. Você pode pensar que é um evento mundano — envolve apenas tirar bolas numeradas de uma espécie de jarra de bolhas onde elas são giradas por ar quente — mas os hotéis cinco estrelas da cidade já estão lotados de autoridades da Fifa, treinadores e gerentes dos principais times de futebol do mundo e todo tipo de celebridade, desde David Beckham até Charlize Theron. Tem havido muita especulação sobre se Diego Maradona comparecerá ao sorteio. Ele foi proibido de fazê-lo após uma recente apresentação de boca suja na TV, considerada como tendo desacreditado o jogo, mas ele aparentemente está determinado a não deixar que isso o atrapalhe. Afinal, ele tem a Mão de Deus ao seu lado. A autoimportância dos altos escalões da Fifa talvez seja melhor avaliada pelo fato de que seu chefe, Sepp Blatter, tem permissão para circular pelos aeroportos sem precisar mostrar passaporte ou passar por qualquer um dos procedimentos alfandegários e de imigração usuais, um privilégio que ele compartilha apenas com o secretário-geral da ONU. Celebridades locais como Desmond Tutu foram recrutadas para um clube especial para participar do evento, com a filiação custando muitos milhares de libras.

A Cidade do Cabo em dezembro é um lugar agradável para se estar: o clima é quente, o mar é propício para nadar, as vinícolas são exuberantes e verdes e há viagens a serem feitas até a Table Mountain ou até Robben Island. Naturalmente, a cidade vê isso como uma grande oportunidade de marketing para si mesma e deu tanta importância ao sorteio que na sexta-feira muitas estradas serão fechadas para garantir que os oficiais da Fifa e seus amigos famosos possam circular livremente, mesmo que isso signifique que o resto de nós não possa. É fácil ignorar o fato de que a Copa do Mundo em si será realizada no meio do inverno da África do Sul, quando a Cidade do Cabo estará fria, ventosa e úmida, e estará congelante à noite em Joanesburgo, Pretória e no Estado Livre; a única cidade com bom tempo será Durban.

Normalmente, a Copa é realizada no verão — como na Alemanha em 2006 — e é irônico que a primeira Copa a ser realizada na África tenha o pior clima de qualquer Copa do Mundo em décadas. Os treinadores mais astutos estão divididos entre aqueles que dizem que isso deve ajudar os europeus e aqueles que querem sediar suas equipes no highveld, a 6.000 pés de altura, apesar das temperaturas congelantes, já que a final em si, e provavelmente uma semifinal também, serão realizadas lá e eles querem acostumar seus jogadores a jogar em altitude. Apenas equipes sem ambições sérias vão querer se instalar em Durban, pois embora o clima lá seja maravilhoso, isso só tornará mais difícil para as equipes que avançam para as rodadas posteriores, que, forçosamente, terão que jogar em condições muito mais difíceis em outros lugares.

Você pode pensar que as equipes que chegarão às últimas 32 seriam aproximadamente as 32 equipes mais bem classificadas do mundo, mas os caprichos da fortuna e, muito mais, os próprios agrupamentos geográficos da Fifa garantem que não seja assim. Para ter certeza, todos os sete times mais bem classificados estão aqui, e atualmente os EUA estão em 14º, a Austrália em 21º e a Argélia em 28º, então mesmo esses times, que antes seriam considerados outsiders, estão aqui por mérito. As sobrancelhas começam a se levantar somente quando você percebe que Honduras (classificada em 38º) também conseguiu, assim como o Japão (43º), a Coreia do Sul (52º) e a Nova Zelândia (77º). O verdadeiro constrangimento está com os dois últimos, no entanto: Coreia do Norte (84º) e os anfitriões, África do Sul (86º). Ninguém se importará muito se a Coreia do Norte for eliminada mais cedo, mas será um grande constrangimento se a África do Sul se tornar a primeira nação anfitriã a não passar da primeira fase, que é o que o ranking prevê. Blatter está extremamente ansioso sobre isso há muito tempo e até disse aos sul-africanos para arregaçar as mangas, pois presume-se que o torneio precisa de forte interesse local para garantir bons portões nas primeiras rodadas.

A qualquer momento, os gemidos habituais serão ouvidos de equipes que alegam que, exclusivamente, foram sorteadas em um "grupo da morte". Qual é o sentido, alguém pode perguntar, em gemer sobre um sorteio aleatório? Bem, o problema começa aí, pois o sorteio não é totalmente aleatório. Na prática, sete equipes são classificadas, de acordo com o seu desempenho em partidas internacionais, junto com uma oitava equipe, a nação anfitriã, cuja passagem para a segunda fase é, portanto, facilitada — no papel. O sorteio depende de quais bolas sobem para o topo do pote e, portanto, são retiradas primeiro; mas há rumores de que certas bolas são aquecidas em um forno antes do sorteio, garantindo assim que elas borbulhem para o topo. As duas equipes mais fracas, além da África do Sul e da Coreia do Norte, são a Coreia do Sul e a Nova Zelândia. As probabilidades são, é claro, fortemente contra quaisquer duas ou mais dessas quatro últimas se encontrarem no mesmo grupo. Se isso acontecer, teremos que desconfiar profundamente do sorteio.

Por que a África do Sul – Bafana, Bafana, como o time é chamado – é tão fraca? O país frequentemente produz jogadores talentosos. Mas os problemas parecem ser organizacionais e psicológicos. A liga de futebol sul-africana é cheia de mando e corrupção, árbitros corruptos, listas de jogos incompletas, disputas intermináveis ​​sobre o uso de jogadores inelegíveis e assim por diante. Os próprios jogadores são frequentemente mimados e indisciplinados. Há reclamações regulares sobre embriaguez ou jogadores fazendo greve por mais dinheiro na véspera de grandes partidas. Mesmo agora, com apenas alguns meses para a Copa, é rotina ouvir que este ou aquele jogador foi suspenso porque não compareceu aos treinos ou mesmo aos jogos. Não ajuda que muitas partidas contra outros países africanos sejam tão mal organizadas que Bafana, os melhores jogadores de Bafana, muitas vezes jogando por times europeus, simplesmente se recusam a comparecer. Uma grande quantidade de bruxaria ou magia negra também é empregada em tais jogos – às vezes produzindo campos que são impossíveis de jogar por causa de todos os amuletos da sorte e remédios populares que foram enfiados neles. (Atualmente, o plano é que cada jogo seja precedido pelo abate ritual de um animal – provavelmente um boi ou uma cabra – no campo. Algo muito tradicional, feito com uma faca ou azagaia. Até agora, a Fifa não disse nada.) Se o Bafana, Bafana não passar da primeira fase, a estratégia de recuo será um chamado para todos os sul-africanos apoiarem outros times africanos – afinal, Camarões agora está em 11º lugar no mundo, Costa do Marfim em 16º e Argélia apenas 12 posições atrás. Esta seria uma posição padrão melhor se eles não fossem todos países francófonos, longe do sul da África.

A ansiedade sobre Bafana, Bafana provavelmente é exagerada. A verdade é que a Fifa vai querer ver estádios cheios, mesmo que isso signifique deixar as pessoas entrarem de graça. A preocupação real deve ser que os fãs de futebol sul-africanos provavelmente não serão cosmopolitas o suficiente. Eles certamente farão fila e pagarão para assistir, digamos, Inglaterra x Brasil, mas quem se importará com EUA x Eslovênia ou Uruguai x México — mesmo que esses sejam jogos difíceis e de ponta? Na prática, o que importa para a Fifa são as enormes somas pagas pelos direitos de TV mundiais e isso não depende de forma alguma de Bafana, Bafana passar ou, na verdade, de bons portões locais. Boas multidões são importantes porque parecem muito melhores nas telas de televisão. Se a apatia sul-africana em relação aos jogos de meio de tabela é tão prevalente quanto alguns pensam que será, não duvide que a Fifa pague as pessoas para irem assistir.

Ao observar esse grande evento sendo organizado, percebe-se que o futebol se tornou uma questão de tentar desafiar a gravidade. Tudo sobre o evento – os gastos com os estádios, os enormes salários dos jogadores, as vastas somas para os direitos de TV, o brilho e glamour de todos os WAGs e celebridades, e até mesmo o raciocínio por trás do fechamento de estradas importantes da cidade para a Fifa ou Blatter – indica que concentrações extraordinárias de riqueza e poder estão envolvidas. Tudo o que sabemos sobre o comportamento humano quando ele é submetido a pressões e incentivos tão poderosos nos leva a esperar que trapaças e violência se tornem virtualmente inevitáveis. Não apenas handebol e mergulho, mas árbitros corruptos, empates corruptos e todo o resto. No entanto, também sabemos que é vital que os comentaristas de TV sejam capazes de se entusiasmar com "o belo jogo" com pelo menos uma margem de credibilidade: pense em quão desastroso foi para o críquete quando a manipulação de resultados foi exposta, ou o quão mal o Tour de France sofreu com todos os seus escândalos de doping. Na maioria dos países da África e América Latina, tais pressões levaram à ruína de ligas locais, enquanto o escândalo de manipulação de resultados atualmente sendo investigado na Alemanha sugere que os resultados de centenas de partidas na Europa Central e Oriental também foram fraudulentos. O número de países no mundo onde uma partida de futebol ainda é uma disputa justa pode ser bem pequeno.

O fato de a Copa do Mundo finalmente ter chegado à África pode ser visto, com razão, como um reconhecimento tardio dos maravilhosos talentos dos futebolistas africanos – Eto’o, Drogba e muitos outros. Mas também significa que a Fifa entrou em uma região onde o jogo praticamente entrou em colapso sob o peso da corrupção. Seria bom pensar que isso daria às autoridades uma pausa para reflexão, talvez até levasse a uma tentativa de introduzir medidas corretivas. Mas isso parece improvável. A Cidade do Cabo já está vivendo em um frenesi de exagero da mídia. E isso é só pelo sorteio, pelo amor de Deus; espere até a Copa em si. Quanto ao futebol: bem, isso está se tornando cada vez mais uma questão de suspender a descrença.

1 de dezembro de 2009

O principal servo da América? O dilema da RPC na crise global

Contra as previsões de que a China em breve substituirá os EUA como potência econômica dominante no mundo, Hung Ho-fung argumenta que o crescimento orientado para a exportação da RPC e as vastas reservas em dólares a prenderam em um papel subordinado – ao qual grande parte de sua elite continua comprometida.




NLR 60 • NOV/DEC 2009

Tradução / A crise das hipotecas subprime e o declínio global resultante levaram muitos a especular que algum desafiante poderia emergir para substituir os Estados Unidos como ator dominante na economia mundial capitalista1. Como a crise financeira nos Estados Unidos e no Norte global2 originou-se do elevado endividamento, da baixa produtividade e do consumo excessivo, parecia natural olhar para os seus opostos - a imensa acumulação de dívida americana pelos exportadores do Leste Asiático, sua capacidade produtiva e suas elevadas taxas de poupança - a fim de identificar candidatos prováveis. Imediatamente depois de o colapso do Lehman Brothers em 2008 ter revelado o início da recessão global, proclamou-se o triunfo final do modelo de desenvolvimento do Leste Asiático, sobretudo o chinês. Comentadores do establishment americano concluíram que a grande crise de 2008 seria o catalisador para um deslocamento do centro do capitalismo global dos Estados Unidos para a China3.

Mas na primavera de 2009 muitos já haviam se dado conta de que as economias do Leste Asiático não eram tão formidáveis quanto as aparências sugeriam. Enquanto a contração brusca da demanda por importações do Norte global levou os exportadores asiáticos a aterrissagens forçadas, a perspectiva de tanto o mercado de títulos do tesouro americano quanto o dólar atingirem níveis muito baixos colocou-os diante do difícil dilema de se livrar dos ativos americanos, e assim precipitar um colapso do dólar, ou comprar mais, evitando uma queda imediata mas aumentando a sua exposição a um colapso no futuro. O investimento coordenado pelo Estado, que se estendeu até o fim de 2008 sob o megaprograma de estímulo da República Popular da China (RPC), encorajou uma recuperação significativa da economia chinesa, assim como dos seus parceiros comerciais asiáticos, mas o crescimento gerado provavelmente não se sustentará sozinho. Economistas e assessores chineses têm se preocupado com a possibilidade de a RPC titubear mais uma vez quando o efeito do estímulo enfraquecer, visto que é improvável que os consumidores americanos voltem a assumir essa conta em um futuro próximo. Apesar de toda a discussão acerca da capacidade da China de destruir o status de moeda-reserva do dólar e de construir uma nova ordem financeira global, a RPC e seus vizinhos têm poucas alternativas no curto prazo, a não ser sustentar o domínio econômico americano por meio da ampliação do crédito.

Neste artigo, traço as origens históricas e sociais da dependência crescente da China e do Leste Asiático em relação aos mercados de consumo do Norte global, como fonte do seu crescimento, e aos instrumentos financeiros dos Estados Unidos, como reserva de valor de suas poupanças. Em seguida, avalio as possibilidades de superação dessa dependência em longo prazo, argumentando que, para criar uma ordem econômica mais autônoma na Ásia, a China teria que transformar um modelo de crescimento orientado para as exportações - que tem beneficiado principalmente os setores exportadores da região costeira, que o perpetuam - em um modelo impulsionado pelo consumo doméstico, por meio de uma ampla redistribuição de renda para o setor rural-agrícola. Isso não será possível, contudo, sem romper o predomínio político da elite urbana costeira.

TIGRES E GANSOS

A história da rápida ascensão do Japão e dos quatro tigres asiáticos - Coreia do Sul, Taiwan, Hong Kong e Cingapura -, no pós-guerra, é conhecida e não preciso repeti-la aqui. Mas, se sua escalada dinâmica pode ser atribuída ao direcionamento de recursos preciosos para setores industriais estratégicos pelas autoridades centralizadas, é igualmente importante reconhecer que foi a geopolítica da Guerra Fria no Leste Asiático, em primeiro lugar, que tornou possível o surgimento de estados desenvolvimentistas na região. Na verdade, durante esse período esteve em curso no Leste Asiático uma guerra quente. O apoio da China comunista às guerrilhas e seu envolvimento nas guerras da Coreia e do Vietnã levaram a região a um estado de emergência permanente, e Washington julgava o Leste Asiático o elo mais vulnerável na sua estratégia para conter o comunismo. Considerando que seus principais aliados asiáticos - o Japão e os quatro tigres - eram importantes demais para fracassarem, o governo americano lhes forneceu apoio financeiro e militar abundantes para disparar e dirigir o crescimento industrial, ao mesmo tempo que mantinha o mercado americano e o europeu escancarados para os produtos manufaturados asiáticos. Esse acesso aos mercados ocidentais constituiu uma vantagem adicional de que outros países em desenvolvimento não desfrutavam, sem a qual é inimaginável que as economias asiáticas tivessem tido tanto sucesso. Visto sob essa ótica, o rápido crescimento econômico do Leste Asiático está longe de ser um "milagre". Os Estados Unidos o projetaram como parte de um esforço para criar baluartes subordinados e prósperos contra o comunismo na região da Ásia e do Pacífico. Essas economias nunca se destinaram a desafiar os interesses geopolíticos e geoeconômicos americanos. Em vez disso, eram clientes subservientes que auxiliavam Washington a realizar seus planos para a região.

Organizados em redes produtivas de subcontratação de múltiplas camadas centradas no Japão, os exportadores asiáticos ocupavam diferentes elos da cadeia de valor, cada um se especializando em produtos com determinado nível de lucratividade e sofisticação tecnológica. O Japão focou-se nos itens com maior valor agregado; os quatro tigres, em produtos de nível intermediário; os tigres emergentes do Sudeste Asiático, em produtos de baixo custo, intensivos em trabalho. Esse famoso padrão de gansos voadores formou uma rede de fornecedores confiáveis de uma ampla gama de bens de consumo para o Primeiro Mundo.

Quando as tensões da Guerra Fria começaram a arrefecer nos anos 1980, os déficits de transações correntes e fiscais dos Estados Unidos aumentaram, como resultado de cortes de impostos neoliberais e do crescimento dos gastos militares relacionados às fases finais da Guerra Fria. Em vez de sair da órbita da hegemonia americana, no entanto, as economias asiáticas estreitaram seus laços com os Estados Unidos, financiando os seus déficits gêmeos em franca ascensão. A industrialização orientada para as exportações do Leste Asiático estivera ligada a níveis baixos de consumo doméstico. Os subsequentes superávits comerciais e altas taxas de poupança permitiram que esses estados acumulassem poder financeiro substancial na forma de grandes reservas cambiais. Considerando os títulos do tesouro americano o investimento mais seguro das finanças globais, a maioria dos exportadores do Leste Asiático despejou voluntariamente seu dinheiro acumulado em títulos de baixo retorno, tornando-se os principais credores dos Estados Unidos. Esse financiamento do déficit de transações correntes americano estimulou, então, o apetite dos Estados Unidos pelas importações asiáticas, e o crescimento adicional dos superávits comerciais asiáticos ainda aumentou as compras de títulos do tesouro. Esses processos que se alimentavam mutuamente ampliaram de forma contínua a dependência econômica e financeira do Leste Asiático em relação aos Estados Unidos, colaborando para prolongar a sua frágil prosperidade enquanto a hegemonia americana se consolidava.


A partir do anos 1980 e de forma mais acelerada nos anos 1990, as reformas de mercado da RPC transformaram-na em um tigre asiático retardatário. Muitos previram que esse país seria singularmente capaz de romper com as dependências gêmeas da Ásia em relação aos Estados Unidos, em decorrência de sua autonomia geopolítica e de sua magnitude demográfica e econômica excepcional. Mas não foi dessa vez que a China se libertou da servidão de fornecer aos Estados Unidos crédito barato e importações de baixo custo. Pior, a intensidade de seu modelo de crescimento impulsionado pelas exportações e baseado na repressão do consumo privado fez com que sua dependência econômica e financeira em relação aos Estados Unidos fosse ainda maior do que a de seus antecessores. Se compararmos os aspectos mais importantes da economia política da China com os de seus vizinhos em um estágio similar de desenvolvimento, concluímos que o modelo chinês é, em grande medida, uma réplica levada ao extremo do crescimento inicial do Leste Asiático. O Gráfico 1 mostra que a dependência comercial da economia chinesa, medida pelo valor total de suas exportações como percentual do produto interno bruto (PIB), tem crescido continuamente, atingindo um nível jamais alcançado pelas outras economias do Leste Asiático. Por outro lado, a participação percentual do consumo privado chinês no PIB tem diminuído, caindo bem abaixo da participação dos outros países durante a decolagem de suas economias (Gráfico 2). Conforme indica a Tabela 1, os Estados Unidos são, sozinhos, o mercado de exportação mais importante para a China - como foram antes para o Japão e os tigres asiáticos -, tendo sido apenas ultrapassados recentemente pela União Europeia, considerada em sua totalidade. A China já se tornou o principal fornecedor asiático dos Estados Unidos.

A drástica expansão dos setores exportadores da China não é apenas a razão por trás de seu impressionante crescimento econômico, mas também, por meio de um superávit comercial crescente, de seu poder financeiro global. Como indicado no Gráfico 3, as reservas cambiais da China atualmente excedem bastante as de seus vizinhos do Leste Asiático. Até agora, a China, como os outros exportadores, tem investido a maior parte de sua poupança em títulos do tesouro dos Estados Unidos. Às vésperas da crise das hipotecas subprime, a China emergira como o maior exportador para os Estados Unidos e, ao mesmo tempo, o seu maior credor, financiando o déficit de transações correntes americano e sustentando sua capacidade de absorver importações (Gráfico 4). Enquanto as exportações de baixo custo da China ajudaram a baixar a inflação nos Estados Unidos, sua compra espetacular de títulos do tesouro contribuiu para reduzir seu retorno e, assim, também as taxas de juros nos Estados Unidos. Dessa maneira, a China emergiu nos últimos anos como o principal suporte da vitalidade econômica americana.

CRISE AGRÁRIA

A habilidade da China de instituir uma versão extrema do modelo do Leste Asiático de crescimento impulsionado pelas exportações ao longo das últimas três décadas dependeu tanto da conjuntura global quanto da sua economia política interna. Em primeiro lugar, a decolagem com desenvolvimento intensivo em trabalho coincidiu com o início de uma expansão sem precedentes do livre-comércio global, a partir da década de 1980. Não fosse pela deslocalização [outsourcing] da indústria do Norte global e pelo crescente apetite deste para importar produtos manufaturados de baixo custo, teria sido impossível para a RPC prosperar por meio das exportações. Mas, essencialmente, a competitividade excepcional da China é, em grande parte, baseada na prolongada estagnação dos salários industriais em comparação com outros países asiáticos em estágios equivalentes de desenvolvimento.



Muitos argumentam que a competitividade salarial da China origina-se de seu regime de câmbio fixo, que subvaloriza sua moeda consideravelmente. Outros afirmam que o imenso excedente de mão de obra rural do país permitiu seu desenvolvimento, com uma oferta "ilimitada" de trabalho, por muito mais tempo que outras economias asiáticas. Mas um exame mais próximo revela que ambas as explicações são inadequadas. Em primeiro lugar, conforme indica o Gráfico 5, a diferença entre os níveis de salário da China e os de seus vizinhos é muito maior do que a que um câmbio subvalorizado poderia explicar. Mesmo que se estimasse o iuane entre 20% e 30% em relação ao dólar como defendem muitos críticos americanos da manipulação cambial chinesa -, os salários chineses ainda seriam significativamente menores. Em segundo lugar, uma oferta ilimitada de trabalho não é um fenômeno natural resultante da estrutura populacional da China, como com frequência se supõe. Na realidade, é uma consequência das políticas rurais-agrícolas do governo, que, intencionalmente ou não, faliram o campo e geraram um contínuo êxodo rural.



A relação entre essas políticas e os baixos níveis salariais pode ser ilustrada comparando-se o desenvolvimento rural da China com o do Japão, da Coreia do Sul e de Taiwan, que também dispunham de grandes populações rurais e setores agrários no início de sua decolagem econômica. No Japão do pós-guerra, o Partido Liberal Democrata, então no poder, direcionou ativamente recursos para o campo, por meio de gastos com infraestrutura rural, financiamento do desenvolvimento agrário, subsídios às propriedades rurais e tarifas sobre a produção estrangeira. Na Coreia do Sul, o regime Park lançou o Saemaul Undong [Movimento Novas Vilas] no início dos anos 1970, deslocando recursos fiscais significativos para melhorar a infraestrutura rural, financiar a mecanização agrícola e instalar instituições e cooperativas educacionais rurais. Essa iniciativa foi um sucesso notável: aumentou a renda das famílias rurais de 67% da renda urbana, em 1970, para 95%, em 1974, eliminando virtualmente a disparidade de renda rural-urbana4. Em Taiwan, o governo do Kuomintang adotou políticas similares nos anos 1960 e 1970, paralelamente a esforços conscientes para promover a industrialização rural. A estrutura descentralizada resultante da indústria taiwanesa permitiu aos agricultores trabalharem de forma sazonal nas fábricas das proximidades sem abandonar completamente a agricultura ou migrar para as grandes cidades. Isso ajudou a reter uma parcela considerável da mão de obra nas vilas, encorajando um crescimento rural-urbano mais equilibrado. Ao longo dos anos 1960 e 1970, a renda rural per capita se manteve acima de 60% do nível urbano. Sob tais políticas, não é surpreendente que o excedente de mão de obra rural tenha secado rapidamente e que os salários industriais tenham se elevado nesses países.

As razões para a adoção dessas trajetórias diferentes variaram. No Japão, a importância dos votos rurais para o sucesso eleitoral do Partido Liberal Democrata explica sua atenção ao desenvolvimento rural. Para os regimes autoritários de direita da Coreia do Sul e de Taiwan, a promoção do desenvolvimento rural-agrícola foi uma maneira de minimizar o deslocamento social que usualmente acompanha a industrialização e de se antecipar ao crescimento da influência da esquerda no campo. Foi também uma forma crucial de garantir a segurança alimentar no contexto das tensões da Guerra Fria. Em contraste, o desenvolvimento industrial da China desde meados dos anos 1980 tem sido muito mais desequilibrado do que o do Japão, o da Coreia do Sul e o de Taiwan. Ao longo dos últimos vinte anos, o governo chinês tem concentrado grande parte dos investimentos no setor urbano-industrial, particularmente nas áreas costeiras, deixando defasado o investimento rural e agrícola. Bancos públicos também focaram os seus esforços no financiamento do desenvolvimento urbano-industrial, enquanto o financiamento rural e agrícola foi negligenciado. Nas últimas duas décadas, a renda rural per capita nunca excedeu 40% do nível urbano.

Esse viés urbano emergiu, ao menos parcialmente, devido ao predomínio de uma poderosa elite urbano-industrial das regiões costeiras do sul - um segmento que germinou após a integração inicial da China na economia global, que expandiu seus recursos financeiros e sua influência política com o boom das exportações e que se tornou crescentemente adepto da prática de moldar a política do governo central a seu favor. De acordo com uma avaliação recente, a "facção elitista" do Partido Comunista Chinês (PCC) - composta de líderes antigos que construíram suas carreiras nas regiões costeiras e na administração financeira e do comércio - controla mais assentos no politburo do que a "facção populista" rival, que tem laços mais estreitos com as províncias do interior. Embora Hu Jintao, o atual chefe de Estado, seja um líder da facção populista, Xi Jinping - escolhido pelo partido para suceder Hu em 2012, em detrimento do próprio favorito de Hu - foi governador das províncias litorâneas de Fujian e Zhejiang e é um dos principais membros da facção elitista5. A crescente influência dessa facção assegurou que fosse dada mais atenção ao aumento da competitividade das exportações chinesas e da atratividade ao investimento estrangeiro em detrimento do desenvolvimento agrário. As revoltas urbanas de 1989, provocadas pela hiperinflação e pela deterioração do padrão de vida nas grandes cidades, apenas tornaram o partido estatal mais determinado a garantir nos anos 1990 a prosperidade econômica das áreas metropolitanas à custa do campo.

O resultado desse viés urbano tem sido uma relativa estagnação econômica no campo e um concomitante rigor fiscal empreendido pelos governos locais rurais. A partir dos anos 1990, a deterioração das rendas rurais e o declínio das indústrias coletivas rurais - empresas das vilas e dos municípios que costumavam ser vibrantes geradoras de empregos nos estágios iniciais das reformas de mercado - forçaram a maior parte dos jovens trabalhadores do campo a migrar para a cidade, criando um círculo vicioso que precipitou uma crise social rural. O setor agrário da China não só foi apenas negligenciado, como também explorado em benefício do crescimento urbano. Um estudo recente concluiu que houve uma transferência líquida contínua e crescente de recursos do setor rural-agrícola para o urbano-industrial, entre 1978 e 2000, tanto por meio de política fiscal (impostos e gastos do governo) quanto por meio do sistema financeiro (depósitos de poupanças e empréstimos)6. As exceções a essa tendência foram os anos em que a economia urbana passou por um declínio temporário, como ocorreu após a crise financeira asiática de 1997-1998 (ver Gráfico 6).

Esse modelo que favorece o desenvolvimento urbano em detrimento do desenvolvimento rural da RPC é, portanto, fonte da prolongada oferta "ilimitada" de trabalho chinês e, assim, da estagnação salarial que caracterizou o seu milagre econômico. Esse padrão também é responsável pelo ascendente superávit comercial da China, a fonte de seu crescente poder financeiro global. No entanto, os baixos salários e o baixo padrão de vida no campo, que resultaram dessa estratégia de desenvolvimento, limitaram o mercado de consumo doméstico chinês e aprofundaram sua dependência em relação à demanda por consumo do Norte global, a qual se sustenta cada vez mais por empréstimos substanciais da China e de outros exportadores asiáticos. Como esses outros exportadores foram integrados no motor de exportação chinês, por meio da regionalização de redes produtivas industriais, as vulnerabilidades da economia chinesa tornaram-se fragilidades do Leste Asiático como um todo.


DEPENDÊNCIA SINOCÊNTRICA

Nos anos 1990, a China se estabeleceu de forma gradual como o mais competitivo exportador asiático em vários níveis de sofisticação tecnológica. Como resultado, os outros países - incluindo o Japão e os quatro tigres originais, além de um grupo de tigres emergentes do Sudeste Asiático, como a Malásia e a Tailândia - foram colocados sob intensa pressão para se ajustar. A competitividade da RPC induziu muitos exportadores de produtos manufaturados, vindos de outros lugares da Ásia, a se mudarem para lá. Uma reportagem da Economist de 2001 notou o "temor e desespero" com o qual os vizinhos da China reagiram a sua ascensão:

O Japão, a Coreia do Sul e Taiwan temem um "esvaziamento" das suas indústrias, enquanto fábricas mudam-se para a China devido aos seus baixos custos. O Sudeste Asiático preocupa-se com o "deslocamento" dos fluxos comerciais e de investimento. [...] A China não é um ganso [voador] [...] porque fabrica tanto produtos simples quanto sofisticados, fraldas descartáveis e microchips [...] Ela fabrica produtos ao longo de toda a cadeia de valor, em uma escala determinante dos preços mundiais. Daí a ansiedade do Leste Asiático. Se a China é mais eficiente em tudo, o que resta para os seus vizinhos produzirem?7

Decerto, os vizinhos da China reestruturam meticulosamente os seus setores exportadores a fim de minimizar a competição frontal com a economia chinesa e de lucrar com a sua ascensão. Sob a antiga ordem industrial do Leste Asiático, cada economia exportava grupos específicos de bens de consumo acabados. Agora, esses países começaram a aumentar a proporção de componentes de alto valor agregado (Coreia do Sul e Taiwan) e de bens de capital (Japão) nas suas exportações para a China.

Conforme a Tabela 2 indica, as exportações da Coreia do Sul, de Hong Kong e de Taiwan para a China ultrapassaram suas exportações para os Estados Unidos ao longo da última década, enquanto as do Japão e de Cingapura para a China aproximaram-se rapidamente de suas exportações para os Estados Unidos. Até 2005, o modelo de regionalismo asiático de "gansos voadores" centrado no Japão foi substituído por uma rede produtiva sinocêntrica na qual a China exportava a maior parte dos bens de consumo para o Norte global em nome dos seus vizinhos asiáticos, que a proviam com componentes e máquinas necessários para montá-los. Essa estrutura pode ser vista como um time de funcionários, tendo a China como chefe, liderando os demais no fornecimento de exportações baratas para os Estados Unidos e na utilização de suas poupanças conquistadas arduamente para financiar as compras americanas dessas exportações.

A integração regional no Leste Asiático reflete-se claramente na correlação entre os altos e baixos dos dados de exportação da China e seus vizinhos. Por exemplo, a recuperação da Ásia da crise financeira de 1997-1998 e o crescimento renovado do Japão após 2000 podem ser atribuídos, ao menos em parte, à absorção de seus componentes manufaturados e de seus bens de capital pelo boom econômico chinês. Quando a atual crise global começou a se delinear e a demanda dos consumidores dos Estados Unidos passou a se contrair de forma abrupta no outono de 2008, as exportações asiáticas despencaram imediatamente, enquanto as da RPC encolheram na mesma proporção apenas três meses depois. A causa dessa disparidade temporal foi o fato de que a queda nas exportações asiáticas deveu-se em grande parte a um declínio das encomendas de componentes e de bens de capital realizadas pela China, antecipando a queda violenta nas encomendas por produtos acabados realizadas pelos Estados Unidos e por outros países, que ocorreria nos meses seguintes. Os limites do modelo de desenvolvimento chinês - excessiva dependência no consumo do Ocidente e crescimento letárgico do mercado doméstico - traduzem-se inevitavelmente em vulnerabilidades de seus parceiros asiáticos, deixando todas essas economias expostas a qualquer contração da demanda por consumo do Norte global. Reequilibrar o desenvolvimento da China, portanto, não é necessário apenas para a sustentabilidade de seu crescimento econômico, mas também para o futuro coletivo do Leste Asiático como um bloco econômico integrado.


OBSTÁCULOS PARA O REEQUILÍBRIO

Os governos da China e do Leste Asiático utilizaram suas reservas internacionais para comprar títulos da dívida americana não apenas em busca de retornos presumivelmente estáveis e seguros, mas também como parte de um esforço deliberado de financiar o crescente déficit em transações correntes dos Estados Unidos e, assim, assegurar um aumento contínuo da demanda americana por suas próprias exportações. Mas o déficit não se expande indefinidamente, o que pode às vezes resultar em um colapso do dólar ou do mercado de títulos do tesouro e em um salto das taxas de juros, colocando um fim à farra de consumo americana. Isso não seria somente um golpe mortal para o motor exportador da China, como também dizimaria seu poder financeiro global por meio de uma drástica desvalorização de seus investimentos preexistentes.

Antes da crise atual, o governo chinês experimentou diferentes maneiras de diversificar e ampliar os retornos sobre suas reservas internacionais. Tentou investir em ações estrangeiras e financiar a aquisição de corporações transnacionais pelas companhias estatais, mas quase todas as tentativas terminaram como fracassos constrangedores. Isso foi menos o resultado de más decisões de investimento do que dos limites impostos pela magnitude excepcional das reservas internacionais da China, tornando difícil para Pequim entrar e sair livremente de certos ativos financeiros sem desorganizar os mercados globais. Ao mesmo tempo, as compras de importantes companhias estrangeiras pelos chineses tinham grande probabilidade de incentivar reações protecionistas ou nacionalistas. Como resultado, as aquisições estrangeiras da China foram, em sua maioria, de empresas em declínio que procuravam compradores desesperadamente. Esses obstáculos para diversificar seus investimentos ficaram evidentes na compra desvantajosa, em 2005, do setor de computadores pessoais da IBM pela Lenovo, uma importante corporação de informática ligada ao governo chinês; na perda substancial incorrida no investimento de 2007 da Corporação de Investimento da China, o fundo soberano chinês, na Blackstone; e no crescimento do sentimento anti-China na Austrália, em 2009, desencadeado pela tentativa da Chinalco, uma companhia estatal gigante de recursos minerais, de ampliar significativamente sua participação na Rio Tinto, a maior companhia mineradora da Austrália. A acumulação pela China de estoques de petróleo importado e de outras mercadorias, para se proteger contra o aumento dos preços das matérias-primas, também levou a perdas substanciais quando os preços despencaram no rastro do declínio global.

Além de expor o país às vicissitudes dos mercados globais, o modelo chinês, orientado para a exportação, restringiu drasticamente o consumo. Conforme sugerido anteriormente, a competitividade das exportações chinesas foi construída sobre uma estagnação salarial de longo prazo, a qual, por sua vez, originou-se de uma crise agrária sob um regime de políticas de viés urbano. Em vez de compartilhar uma parte maior dos lucros com os empregados e melhorar seu padrão de vida, o próspero setor exportador transformou a maior parte de seu excedente em poupança corporativa, que hoje constitui uma grande proporção da poupança agregada nacional. Como indica o Gráfico 7, a partir do final dos anos 1990, o total dos salários como percentual do PIB declinou, em conjunto com a queda no consumo privado. Essas duas tendências decrescentes contrastam de forma marcante com o volume crescente dos lucros corporativos. Embora o consumo esteja aumentando em termos absolutos, ele tem crescido muito mais vagarosamente do que o investimento (ver Gráfico 8).

A restrição do consumo privado não apenas dificultou que as empresas orientadas para o mercado doméstico reduzissem os seus estoques, como também trouxe frustrações para muitas empresas estrangeiras que tinham expectativas elevadas em relação ao mercado supostamente gigante da China. Embora já consolidada como compradora importante de bens de capital, componentes manufaturados e recursos naturais do Japão, do Sudeste Asiático, do Brasil e de outros lugares, a China ainda precisa realizar seu potencial de grande importador de bens de consumo tanto do mundo desenvolvido quanto do mundo em desenvolvimento. A revista Economist tomou as dores desses desalentados investidores estrangeiros, dizendo que "o mercado se revelará menor do que o esperado e demorará mais para se desenvolver. E, como tantas empresas estrangeiras estão se acumulando, a competição deverá ser intensa [...]. Como as empresas estrangeiras poderão gerar retornos aceitáveis na China?"8. No mesmo espírito, quando ficou claro que a demanda chinesa por automóveis crescera muito mais vagarosamente do que a capacidade produtiva do setor, a revista Forbes reconheceu que a "competição crescente na China levou à sobrecapacidade industrial e ao rápido declínio das margens de lucro dos fabricantes de carros para um nível em grande parte alinhado com o resto do mundo, entre 4% e 6%"9.


Na tentativa de reequilibrar o desenvolvimento da China, caracterizado pelo premiê Wen Jiabao em 2007 como "instável, desequilibrado, descoordenado e insustentável", o governo central sob Hu Jintao e seu aliados "populistas" buscou, a partir de 2005, estimular o consumo doméstico aumentando a renda disponível de camponeses e trabalhadores urbanos. A primeira onda de tais iniciativas incluiu a abolição de impostos agrícolas e um aumento dos preços de aquisição de produtos agrícolas pelo governo. Embora essas medidas para melhorar o padrão de vida rural tenham sido apenas um pequeno passo na direção correta, seu efeito foi instantâneo. Condições levemente superiores no setor rural-agrícola diminuíram o fluxo migratório para as cidades e seguiram-se uma repentina escassez de trabalho e um salto salarial nas zonas costeiras de processamento de exportações, induzindo muitos economistas a declararem que o ponto de virada lewisiano10 - quando esgota o excedente de mão de obra rural- havia sido finalmente atingido11.





Assim como a oferta "ilimitada" de trabalho na China era mais uma consequência de políticas do que uma precondição natural de seu desenvolvimento, a chegada do ponto de virada lewisiano foi, na verdade, o resultado de tentativas estatais de reverter o viés urbano precedente, e não um processo guiado pela mão invisível do mercado. Concomitantemente à elevação da renda dos camponeses e dos salários industriais, ocorreu um crescimento sem precedentes das vendas do varejo, mesmo descontando-se a inflação (ver Gráfico 9). Mas, logo após o governo dar o primeiro passo em direção ao crescimento impulsionado pelo consumo doméstico, os interesses ligados ao setor exportador passaram a reclamar ruidosamente da deterioração de suas perspectivas. Reivindicaram-se políticas compensatórias para assegurar sua competitividade e tentou-se sabotar iniciativas adicionais para elevar o padrão de vida das classes trabalhadoras, tais como a Nova Lei do Contrato de Trabalho, que aumentaria a remuneração dos trabalhadores e dificultaria sua demissão, e a apreciação controlada do iuane.

Quando a crise global estourou, emperrando o motor exportador da China, o governo lançou imediatamente, em novembro de 2008, um megapacote de estímulo fiscal somando US$ 570 bilhões (incluindo gastos do governo e empréstimos direcionados dos bancos públicos). De início, muitos comemoraram essa intervenção substancial como uma oportunidade preciosa para acelerar o reequilíbrio da economia chinesa em direção ao consumo doméstico e torceram para que o estímulo consistisse sobretudo em gastos sociais, como financiamento de seguro de saúde e seguridade social, que poderiam elevar ainda mais a renda disponível e, assim, o poder de compra das classes trabalhadoras. No entanto, não mais do que 20% do pacote de estímulo foi alocado para despesas sociais. A grande maioria destinou-se a investimento em ativos fixos em setores já minados por sobrecapacidade, tais como aço e cimento, e na construção do maior sistema ferroviário de alta velocidade do mundo, cuja lucratividade e utilidade são incertas12. Sem fornecer muito auxílio para as instituições de bem-estar social ou para as pequenas e médias empresas de trabalho intensivo, o pacote de estímulo gerou apenas uma melhora limitada da renda disponível e do emprego. Pior, o governo central, aparentemente horrorizado com o colapso repentino do setor exportador, recuou dos seus esforços reequilibradores e retomou inúmeras medidas de promoção de exportações, como abatimentos em impostos sobre o valor adicionado das exportações e a interrupção da apreciação do iuane. Industriais desses setores valeram-se da crise para demandar, como questão de sobrevivência, uma suspensão da Nova Lei do Contrato de Trabalho, de 200713.

A despeito de seu tamanho impressionante, o estímulo fiscal fez pouco para promover o consumo doméstico e, assim, reduzir a dependência da China em relação às exportações. Ainda que uma grande quantidade de recursos tenha sido direcionada para as províncias ocidentais, para aliviar a disparidade de desenvolvimento entre o litoral e o interior, o crescimento promovido pelo estímulo, majoritariamente intensivo em capital e orientado para as cidades, na realidade agravou a polarização rural-urbana (ver Tabela 3). Enquanto o grande viés urbano do investimento em ativos fixos prosseguiu, a disparidade rural-urbana no crescimento da renda, que se reduzira após 2005, ampliou-se novamente sob esse estímulo, freando a melhora relativa do padrão de vida rural, que havia ajudado a estimular um crescimento modesto no consumo doméstico.


Os gastos substanciais na realidade logram manter a economia aquecida graças a um surto de curto prazo de investimento impulsionado pelo Estado, enquanto se aguarda mercado para as exportações melhorarem. Até o verão de 2009, os dados mostravam que o estímulo interrompera de forma bem-sucedida a queda livre da economia chinesa e encorajara uma modesta recuperação. Mas, ao mesmo tempo, quase 90% do crescimento do PIB nos primeiros sete meses de 2009 foi impulsionado somente por investimentos em ativos fixos estimulados por uma explosão de crédito e um aumento do gasto do governo14. Muitos desses investimentos são ineficientes e, em geral, não são lucrativos (ver Tabela 3). Se a recuperação do mercado para a exportação não ocorrer a tempo, o déficit fiscal, empréstimos não executáveis e uma exacerbação da sobrecapacidade vão gerar um declínio mais profundo no médio prazo. Nas palavras de um eminente economista chinês, esse megaprograma de estímulo é como "beber veneno para matar a sede"15.

PERSPECTIVAS

Nas últimas duas décadas, a China emergiu como montadora final e plataforma de exportação da rede produtiva do Leste Asiático. Ela também obteve o status de maior credor dos Estados Unidos e maior portador de reservas internacionais, e demonstrou potencial tanto para ser a fábrica do mundo como para se tornar seu maior mercado. A China está, pois, preparada para estabelecer uma nova ordem econômica regional e global, auxiliando a Ásia e o Sul global a sair de suas posições de dependência econômica e financeira em relação ao Norte em geral e aos Estados Unidos em particular.

O potencial de liderança da China, contudo, está longe de ser realizado. Até agora, a estratégia chinesa de emprestar para os Estados Unidos a fim de facilitar suas compras de exportações chinesas apenas aprofundou a dependência do país, assim como de seus fornecedores, em relação aos consumidores americanos e ao mercado de títulos dos Estados Unidos. A competitividade de longo prazo das exportações da RPC está enraizada em uma abordagem desenvolvimentista que arruína o campo e prolonga a oferta ilimitada de mão de obra migrante de baixo custo para os setores exportadores do litoral. O superávit comercial resultante, em permanente crescimento, pode inflar o poder financeiro global da China, na forma de acumulação ampliada de dívida americana, mas a repressão salarial de longo prazo limita o crescimento de seu poder de consumo. A crise financeira atual, que dizimou a demanda por consumo do Norte global e aumentou a probabilidade de um colapso do mercado de títulos dos Estados Unidos e do dólar, é um alerta tardio para a urgência de uma mudança de rumo.

Pequim sabe muito bem que a acumulação contínua de reservas internacionais é contraprodutiva, uma vez que elevaria o risco associado aos ativos que a China já detém ou então induziria um deslocamento para outros ainda mais arriscados. O governo também sabe da necessidade de reduzir a dependência do país em relação às exportações e de estimular o crescimento da demanda doméstica por meio do aumento da renda disponível das classes trabalhadoras. Tal redirecionamento de prioridades deve envolver o afastamento dos recursos e das preferências políticas das cidades litorâneas para o interior rural, onde a prolongada marginalização social e o subconsumo abriram um amplo espaço para melhorias. Mas os interesses que se enraizaram ao longo de várias décadas de desenvolvimento impulsionado pelas exportações tornam essa tarefa intimidadora. Oficiais e empresários das províncias litorâneas, que se tornaram um grupo poderoso capaz de moldar a formação e a implementação das políticas do governo central, estão até agora inflexíveis em sua resistência a tal reorientação. Essa facção dominante da elite chinesa, como exportadores e credores da economia mundial, estabeleceu uma relação simbiótica com a classe dominante americana, que tem se empenhado em manter sua hegemonia doméstica assegurando o padrão de vida dos cidadãos dos Estados Unidos, como consumidores e devedores do mundo. A despeito de rusgas ocasionais, os dois grupos da elite de ambos os lados do Pacífico compartilham um interesse em perpetuar os seus respectivos status quo doméstico, assim como o atual desequilíbrio da economia global.

A não ser que haja um realinhamento político fundamental que desloque o equilíbrio de forças da elite urbana litorânea para as forças que representam os interesses populares rurais, a China deve continuar liderando os outros exportadores asiáticos na tarefa de servir diligentemente os Estados Unidos - mantendo-se refém deles. O establishment anglo-saxão tornou-se recentemente mais respeitoso em relação aos seus parceiros asiáticos, convidando a China a se tornar uma "parte interessada" na ordem global "ChiAmericana", ou "G2". O que eles pretendem é que a China não complique a situação, mas continue contribuindo para manter a dominância econômica americana (em retorno, talvez, de mais consideração em relação às preocupações de Pequim no que diz respeito ao Tibet e a Taiwan). Isso permitiria a Washington ganhar um tempo precioso para assegurar o seu comando sobre setores emergentes da economia mundial por meio de investimentos do governo, financiados com emissão de dívida, em tecnologia verde e outras inovações, transformando, assim, sua combalida supremacia em hegemonia verde. Isso parece ser exatamente aquilo em que o governo Obama está apostando como resposta de longo prazo para a crise global e o poder americano declinante.

Se a China reorientasse o seu modelo de desenvolvimento e alcançasse um equilíbrio maior entre consumo doméstico e exportações, poderia não apenas se livrar da dependência em relação ao mercado de consumo em queda dos Estados Unidos e do vício em relação à arriscada dívida americana, mas também beneficiar em outras economias asiáticas industriais igualmente ansiosos para escapar desses perigos. Mais essencialmente, se outras economias emergentes adotassem uma reorientação similar e o comércio Sul-Sul se aprofundasse, elas poderiam, então, tornar-se consumidoras umas das outras, prenunciando uma nova fase de crescimento autônomo e justo no Sul global. Até isso ocorrer, no entanto, uma recentralização do capitalismo global do Ocidente para o Oriente e do Norte para o Sul, na sequência da crise global, é pouco mais do que uma ilusão.

[1] An earlier version of this essay was presented at the conference hosted by the Universidad Nómada and the Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, Madrid, in honour of Giovanni Arrighi on 25–29 May 2009. I am grateful for comments from other participants there.
[2] Ver Altman, Roger. "The great crash, 2008: a geopolitical setback for the West". Foreign Affairs, jan.-fev. 2009.
[3] Lie, John. "The State, industrialization and agricultural sufficiency: the case of South Korea". Development Policy Review, vol. 9, nş 1, 1991, pp. 37-51.
[4] Li, Cheng. "One party, two coalitions in China's politics". Brookings Institute, 16/08/2009.
[5] Jikun, Huang, Rozelle, Scott e Honglin, Wang. "Fostering or stripping rural China: modernizing agriculture and rural to urban capital flows". The Developing Economies, vol. 44, nş 1, 2006, pp. 1-26.
6 ‘A panda breaks the formation’, Economist, 25 August 2001.
7 ‘A billion three, but not for me’, Economist, 18 March 2004.
8 ‘Speed Bumps for Automakers in China, India’, Forbes, 26 March 2007.
[9] Fang, Cai e Yang, Du (orgs.). The China Population and Labor Yearbook . Leiden: Brill, 2009, vol. 1.
‘Siwanyi neiwai’ [Inside and outside of the four thousand billion], Caijing, 16 March 2009.
11 See ‘Jiuye xingshi yanjun laodong hetong fa chujing ganga’ [Severe unemployment jeopardizes labour contract law], Caijing, 4 January 2009.
12 ‘Zhongguo gdp zengzhang jin 90% you touzi ladong’ [Nearly 90 per cent of China’s gdp growth was driven by investment], Caijing, 16 July 2009.
13 Xu Xiaonian of the China Europe International Business School in Shanghai, quoted in ‘China Stimulus Plan Comes Under Attack at “Summer Davos”’, China Post, 13 September 2009.

Camponeses, Mao e insatisfação na China: do Grande Salto Adiante ao presente

Existem equívocos generalizados sobre vários aspectos da revolução chinesa.

Dongping Han


Monthly Review Volume 61, Number 7 (December 2009)

Tradução / Existem concepções erradas muito difundidas sobre vários aspectos da Revolução Chinesa. Entre eles, estão uma interpretação equivocada do Grande Salto Adiante, da Revolução Cultural, das “reformas” da era pós-Mao e da reação da imensa maior parte dos camponeses a esses movimentos. Ainda que os programas/movimentos revolucionários tenham resultado em dificuldades significativas – para a população rural (o Grande Salto Adiante, 1958-61) ou os intelectuais (a Revolução Cultural, 1966-76) – ambos produziram conquistas concretas no campo e levaram a ganhos impressionantes na produção agrícola e na vida das pessoas. Em contrapartida, as “reformas” da era pós-Mao resultaram até aqui em um grande crescimento da desigualdade na China, com a população rural sofrendo muito com a destruição do apoio público à saúde e à educação. Além disso, oficiais locais e regionais venderam terras agriculturáveis com fins de desenvolvimento, normalmente enchendo seus próprios bolsos e com compensação inadequada aos camponeses. Isso levou às atuais agitações massivas nas zonas rurais, envolvendo literalmente centenas de milhares de incidentes com protestos de camponeses.

O Grande Salto Adiante

O Grande Salto Adiante, segundo plano quinquenal da Revolução Chinesa, foi uma tentativa de desenvolver rapidamente tanto a indústria quanto a agricultura. Esse foi o período no qual as comunas foram formadas e por volta de 600.000 forjas “de fundo de quintal”, de pequena escala, foram construídas para abastecer as necessidades locais por todo o país. Essa foi também a era de grandes projetos de irrigação – de alcance local, regional e nacional – que resultariam em aumentos impressionantes nas colheitas nos próximos anos. No entanto, o trabalho extra que ele exigia aumentou o consumo de alimentos pela população, o que não foi acompanhado por uma ingestão de calorias suficiente.

A atual ampla insatisfação rural, assim como urbana, na China contrasta bastante com a relativa ausência de problemas durante o Grande Salto Adiante, em que a falta de grãos levou a fome severa em algumas partes da China rural, como o resultado de condições climáticas mais duras e de erros administrativos em vários níveis governamentais. Há discordâncias consideráveis quanto a se uma fome massiva aconteceu ou não e, se tiver acontecido, quantas pessoas morreram. No entanto, está claro que dificuldades consideráveis foram criadas pela falta de grãos e que ela foi induzida, pelo menos parcialmente, pelas políticas do Grande Salto Adiante. No entanto, durante minha pesquisa na China rural nos últimos vinte e cinco anos – incluindo entrevistas extensas com camponeses no município de Jimo, na província de Shandong – não encontrei um único camponês que acreditasse que Mao tenha perdido popularidade por causa do Grande Salto Adiante. Nem encontrei nenhum camponês que tivesse considerado se levantar contra o governo durante o Grande Salto Adiante, ou qualquer literatura mencionando que tivesse havido protestos reais de camponeses durante esse período (no entanto, um número significativo de camponeses, especialmente os mais jovens, expressa o seu desejo de se junta a uma rebelião agora, se houver uma contra o governo[1]). E, por mais difíceis que as coisas tenham sido durante o Grande Salto Adiante, os camponeses aparentemente não estavam nem muito debilitados, nem muito fracos para construir um grande número de projetos de irrigação nacionais, provinciais e locais.

O Partido Comunista e o povo

O partido comparava a sua relação com o povo chinês como a do peixe com a água. Os comunistas afirmavam que a água (o povo) pode viver sem o peixe (os membros do Partido Comunista). Mas o peixe não pode viver sem a água, apontando assim a importância do apoio popular para o sucesso da revolução. Essa relação especial entre os comunistas chineses e o povo chinês foi construída em um longo processo de tentativa e erro, que não foi sempre sem erros. E houve muitos erros durante o Grande Salto Adiante, o que levou a tentativas de retificação com a Campanha de Educação Socialista, em 1964, e a Revolução Cultural, em 1966.

O argumento de que as pessoas podem não ter tido outro recurso a não ser se envolver em tipos de resistência (ou de maneiras de lidar com a situação) individuais e cotidianas no contexto do Grande Salto Adiante parece convincente. Os camponeses chineses, como todas as outras pessoas, não assumiriam tranquilamente a tarefa de tentar derrubar o governo. Mas entre a escolha de passar fome até morrer e a revolta, escolher não deveria ser uma coisa difícil. Se o número de milhões de mortos afirmado pelos críticos do Grande Salto Adiante fosse real, então porque os camponeses chineses teriam se submetido à morte por uma fome lenta em vez de se rebelar e conquistar alguma esperança de sobrevivência?

Ainda que a sociedade civil estivesse desarmada durante a maior parte da história da China, isso não impediu os camponeses chineses de se rebelarem ocasionalmente com o que quer que tivessem nas mãos. O termo chinês jiegan erqi (se revoltar com varas de bambu) foi criado para descrever a rebelião camponesa durante a dinastia Qin, em particular, e outras rebeliões em geral nas quais camponeses, sob o peso da injustiça social, se revoltavam usando tudo que tivessem ao alcance das mãos. E no entanto, durante o Grande Salto Adiante a população chinesa estava mais armada do que nunca. Foi nessa época que Mao convocou uma organização em grande escala de unidades de milícias locais (daban minbingshi). Jovens camponeses nas equipes de produção foram organizados em pelotões de milícias. Em cada brigada de produção havia uma companhia de milícia. No nível da comuna, haviam batalhões de milícia. O departamento de assuntos militares no governo municipal tinha a tarefa de armar e treinar as milícias. Os camponeses chineses trabalhavam nos campos com seus rifles guardados bem perto durante os anos do Grande Salto Adiante[2]. Teria sido muito difícil para um camponês pegar um rifle, atirar no seu ou na sua líder e começar uma rebelião se ele assim desejasse?

Realizações passadas e metas futuras

Existem outros fatores que levaram à aceitação e à participação ampla e ativa dos camponeses nos projetos do Grande Salto Adiante. Um dos principais foi que os camponeses sabiam que os projetos beneficiariam a eles e a suas comunidades no futuro. Além disso, muitos camponeses receberam terras e outros recursos durante a reforma agrária e se sentiam responsáveis em relação ao governo. A maioria dos camponeses chineses se beneficiaram da reforma agrária da revolução. Por exemplo, no município de Jimo, os senhores de terras e os camponeses ricos, que eram 4% da população, perderam mais de 11.000 hectares de terra, 33.524 casas, 2.441 cavalos e outros animais de criação, 4.377 peças de implementos agrícolas e 6.891.715 quilos de grãos por causa da reforma agrária. Mas ao mesmo tempo, as unidades domésticas de camponeses pobres, que eram 60% da população total, conseguiram terras, animais de criação e casas como resultado da reforma agrária.

Escassez de alimentos

O Grande Salto Adiante ganhou seu nome em parte por causa da escala sem precedentes de seus projetos de irrigação. Esses projetos, que foram elaborados para aumentar a colheita de grãos, contribuíram, ironicamente, para a escassez de grãs a curto prazo durante o Grande Salto Adiante.

A maior parte das sociedades agrárias trabalha regulada pelo ciclo das estações. No norte da China, o ciclo das estações envolve o seguinte: uma temporada de plantação intensa no meio da primavera seguida por um fim de primavera menos intenso e uma temporada no início do verão, seguidos por um meio de verão intenso de colheita e plantação, seguido novamente por um final de verão e um começo de outono menos intensos, seguidos por uma temporada de colheita e plantação intensas no fim do outono e finalmente por um inverno ameno e uma temporada de início da primavera. Nessa região, menos de três meses são considerados temporadas intensas, e o resto do ano é considerado uma temporada “amena” ou “tranquila”.

Até recentemente, as unidades domésticas rurais na China contabilizavam seus estoques de grãos de acordo com o ciclo de seus trabalhos nos campos. Elas comiam mais e melhor quando tinham que trabalhar de maneira intensa nos campos, e comiam muito menor e em pior qualidade durante as temporadas amenas ou tranquilas. A maios parte dos camponeses no norte da China se levantava muito tarde no inverno e no início da primavera, e ia para a cama muito cedo para poupar energia. Comiam apenas duas refeições ao dia, e os alimentos que ingeriam eram na maior parte mingau e batatas-doces durante as temporadas amenas. Como resultado disso, o consumo de comida era mantido em um nível mínimo durante o inverno e o início da primavera. Durante as temporadas de muito trabalho, quando os camponeses tinham que realizar trabalhos manuais intensivos, eles comeriam tanto trigo e pão de milho quanto pudessem. Como resultado, o consumo de comida nessas estações intensas poderia ser três ou quatro vezes maior do que nas temporadas amenas.

O Grande Salto Adiante transformou temporadas amenas e tranquilas na china rural em temporadas e trabalho intenso. Durante o inverno e a primavera de 1958, 1959 e 1960, a população rural trabalhou para construir reservatórios, cavar poços, dragas o fundo de rios e construir canais de irrigação. Haviam projetos nacionais, provinciais, regionais e locais sendo construídos ao mesmo tempo. Alguns dos exemplos mais conhecidos de projetos desse tipo eram: o Reservatório Shisanling (Reservatório das Tumbas Ming); o Projeto do Rio Hai, que conectava cinco grandes rios no norte da China; o Projeto Sanmenxia do Rio Amarelo em Henan e na província Shanxi e o Projeto Liu Jaxia do Rio Amarelo. O mundialmente famoso Canal de Irrigação Bandeira Vermelha no município de Lin, Henan, foi iniciado durante o Grande Salto Adiante e só foi terminado dez anos depois[3].

No município de Jimo, província de Shandong, os camponeses passaram por vários milhões de dias de trabalho para construir quatro reservatórios médios e vários outros projetos de irrigação: o Reservatório Shipeng na parte sul do município de Jimo, o Reservatório Wangquan na parte central, o Reservatório Songhuaquan na parte centro-oeste, o Reservatório Yecheng no oeste e o Projeto de Irrigação Chahe no norte.

Além desses grandes projetos, houveram também vários projetos menores lançados por comunas e aldeias no município de Jimo. Entre eles estavam o Reservatório Xiazhang na comuna Wangcun, o Reservatório Fangjia na comuna Woli, o Reservatório Yushitou na comuna Duncun. Em 1959, o município de Jimo também cavou, pela primeira vez, trinta e três grandes e fundos poços de irrigação elétricos.

Houve, sem dúvidas, problemas de administração graves durante o Grande Salto Adiante. Se pedia que as pessoas participassem em projetos fisicamente exaustivos, mas não haviam porções extras de alimentos oferecidas de maneira suficiente. Sem esses projetos de irrigação gigantescos, provavelmente não teria havido fome em Jimo, e a escassez de grãos teria sido bem menos severa. Foi, no mínimo, exaltado desenvolver um investimento gigantesco de trabalho desse tipo em um tempo tão curto sem porções de alimento suficientes. Claramente, os líderes do governo no município de Jimo foram culpados de erros de cálculo e má administração de recursos humanos e financeiros durante o Grande Salto Adiante.

Retrospectivamente, os líderes poderiam responsabilizar o ambiente social de entusiasmo criado pelo governo central ou a pressão recebida por resultados maiores e mais rápidos de seus superiores nos governos de província e centrais. A palavra de ordem do momento era “duo kuai hao sheng de jianshe shehuizhuyi” (“construir o socialismo de uma maneira mais rápida, melhor e mais econômica”). Mas nos níveis de base, se supunha que os líderes conheciam suas condições locais melhor do que os níveis superiores do governo e que eram, ao fim, responsáveis pelas vidas da população local.

Se podemos criticar a administração dos líderes provinciais, não podemos criticar suas intenções. Havia um consenso entre os líderes do governo, líderes das comunidades locais e os camponeses comuns de que uma irrigação melhorada era necessária para aumentar a colheita de grãos. Assim, a maior parte dos camponeses via a ligação entre esses projetos de irrigação e uma vida melhor para eles mesmos em um futuro próximo. Ainda que eles tenham passado por muitas dificuldades na construção desses projetos na época, os camponeses disseram que não podiam negar o fato de que o objetivo era tornar as suas vidas melhores no futuro. Isso contrasta bastante com a atitude dos camponeses em relação aos projetos massivos de outras épocas, como quando eram mobilizados para construir palácios para a elite.

As táticas dos camponeses

Como sabemos que muitos camponeses praticaram atos individuais de sobrevivência durante o Grande Salto Adiante, como “moyanggong” (fingir trabalhar, sem fazer isso de fato) e chiqing (comer safras verdes antes que tenham amadurecido”. Como alguém que trabalhou em uma plantação coletiva durante muitos anos moyanggong e chiqing me parecem ser uma parte necessária de lidar com a vida diária durante o Grande Salto Adiante, mais do que formas de resistência individuais contra as políticas do governo e os oficiais. O que mais as pessoas poderiam fazer, quando estavam exaustas pelo trabalho mas não pensavam que era certo parar de trabalhar completamente enquanto outras pessoas trabalhavam? Era apropriado se envolver em moyanggong como uma forma de descansar enquanto outros camponeses continuavam o trabalho.

Chiqing era outra prática aceita e difundida durante o Grande Salto Adiante, tornada necessária pelas longas horas de trabalho e os estoques de comida escassos. Os camponeses comiam o que pudessem encontrar para satisfazer sua fome, não para demonstrar sua raiva ou resistir às políticas e funcionários do governo. Quanto trabalhei em uma plantação coletiva depois do Grande Salto Adiante, era um prática aceitável comer uma pequena quantidade de trigo, milho, batatas doces, amendoins, nabos e repolhos verdes. Às vezes cozinhávamos milho verde, soja e até mesmo batatas no campo. Camponeses em Shandong chamavam isso de shao pohuo (fazer uma pequena fogueira no campo). Depois começávamos um jogo de chi yao mohui (tentar sujar a o rosto do outro com nossas mãos cheias de cinza). Os garotos tentavam fazer isso com as garotas, e as garotas tentavam fazer isso com os garotos. Os líderes das equipes de produção participavam da brincadeira assim como os camponeses comuns. Sem entender o contexto social dessas práticas, é fácil vê-las como resistência cotidiana.

Apoio social aos camponeses

O clima social do momento também ajudava os camponeses a fazer a ligação entre esses projetos de irrigação e um futuro melhor. O governo deu grande atenção às zonas rurais durante o Grande Salto Adiante – se disse para toda a nação e para os membros do partido que deveriam ajudar a agricultura, as zonas rurais e os camponeses. Era uma prática comum que o governo local, trabalhadores das fábricas e da administração, unidades do exército e estudantes do ensino médio e do ensino superior viessem ajudar os camponeses durante as temporadas intensas.

Um velho camponês que entrevistei em Henan me contou com grande carinho como ele e seus companheiros camponeses ficaram empolgados em ver artistas nacionalmente famosos vir tocar para eles nos locais de irrigação durante o Grande Salto Adiante. Ele disse que suas horas de trabalho eram muitas e que a comida que comiam não era especialmente boa, mas os camponeses persistiam porque o Presidente Mao e o governo se preocupavam com os camponeses. “Esses artistas”, ele disse, “nos foram mandados pelo Presidente Mao”. Ele ouviu essas palavras dos artistas na época. Quarenta anos depois, ele usou essas palavras como se fossem as suas. Apenas na China de Mao artistas nacionalmente famosos iam tocar para os camponeses nas zonas de irrigação

As publicações pós-Mao taxaram essas iniciativas do governo de mandar artistas e intelectuais trabalharem com camponeses e operários como parte da perseguição maoista dos intelectuais. Mas essas iniciativas do governo serviram para aumentar a solidariedade o ânimo nacionais. Os camponeses que estavam na base da sociedade chinesa ganharam um sentido de sua importância e de empoderamento quanto funcionários do governo, professores e estudantes universitários estavam trabalhando lado a lado com eles. Mao e outros líderes nacionais trabalharam no Reservatório Shisanling em 25 de maio de 1958, mobilizando ondas de funcionários do governo para participar em atividades desse tipo[4]. Em 11 de outubro de 1959, 12.000 estudantes universitários e do ensino médio e professores da cidade de Qingdao vieram para o município de Jimo ajudar com as colheitas de outono e a plantação. Em setembro de 1960, 28.000 estudantes e professores de Qingdao vieram para Jimo para ajudar com as plantações.

Outro fator que ajuda a explicar o comportamento do camponeses chineses e sua atitude diante do Grande Salto Adiante foi o comportamento pessoal dos líderes. Por suas memórias, recentemente publicadas, sabemos que uma vez que o Presidente do Partido Comunista, Mao Zedong, percebeu a situação difícil da China rural durante o Grande Salto Adiante, ele abandonou o consumo de carne. Ele também se recusou a ouvir a sugestão das pessoas a sua volta de que deveriam deixar que suas filhas consumisse um pouco mais de comida. Alguns podem dizer que não era um grande sacrifício para Mao deixar de comer carne de porco enquanto centenas de milhares de camponeses estavam sofrendo por causa de suas políticas questionáveis e erros de administração. Mas a maior parte dos camponeses na época não poderia possivelmente saber o que Mao fazia ou deixava de fazer. O que os camponeses sabiam no momento era o comportamento dos líderes municipais, regionais e das comunas.

A liderança dos oficiais locais

Camponeses em Jimo acreditavam que a qualidade dos líderes nacionais era definida pela qualidade dos líderes nas bases ( guojia lingdai ren de pingde cong difang guanyuan de pingde zhong biaoxian chulai). Durante o Grande Salto Adiante, os líderes do município de Jimo, incluindo os líderes principais, o Secretário Municipal do Partido Xu Hua e o Chefe do Governo Regional, Li Anshi, e outros líderes regionais, estavam viajando pela região para trabalhar com o povo nos projetos de irrigação locais. Cada líder regional ou de comuna assumia a responsabilidade por pelo menos uma localidade. Os líderes visitavam e trabalhavam na localidade “de base” regularmente; os moradores os conheciam e eles conheciam bem os moradores. Mais importante, eles comam a mesma comida que os camponeses comuns em suas casas, e sempre pagavam o preço regular por sua comida, o que era normalmente maior do que o preço real da comida. Na hora do almoço, eles comiam na casa dos camponeses, escolhidos de maneira aleatória. Na época, os camponeses comiam na maior parte do tempo batatas doces, e Wang Shuchun comia a mesma comida que eles. Depois das refeições ele deixava trinta centavos e um cupom de grãos de tês liangs por sua refeição.

De fato, a maior parte dos líderes locais durante o Grande Salto Adiante eram ativamente presentes na vida cotidiana do povo. Eles trabalhavam nos locais de obras com os camponeses na maior parte do tempo, e comiam a mesma comida que os camponeses comuns.

O Secretário do Partido do distrito de Maqiao, Wu Changxing, trabalhou com os camponeses nos locais de irrigação dia e noite durante o Grande Salto Adiante. Ele se recusou a comer mais do que qualquer outra pessoa, e no fim morreu com uma combinação de exaustão e desnutrição – a única pessoa a morrer no local de construção do distrito de Maqiao. Outras pessoas, movidas pela fome, começaram a comer plantas verdes, mas ele sentia que, como um membro do Partido Comunista Chinês (PCCh) e o secretário partidário do distrito, ele não poderia se rebaixar a esse nível. Outras pessoas poderiam trapacear um pouco, tomando pausas maiores para o banheiro, mas ele sentia que, como um líder, ele deveria ser um modelo para os outros. Wu Changxing deixou dois filhos, e os camponeses de Maqiao cuidaram muito bem de seus filhos, por seu respeito em relação a seu líder honesto e trabalhador.

Em setembro de 1960, com estudantes, professores e outros, 2.100 funcionários provinciais e da cidade também vieram trabalhar com os camponeses em Jimo. A maior parte dos camponeses que entrevistei em Jimo ficaram contentes em ver funcionários do governo trabalhando lado a lado com eles. “Estávamos muito felizes de ver os oficiais do governo do povo e os intelectuais urbanos comerem a mesma comida e fazer o mesmo trabalho que nós. Sentíamos uma ligação muito próxima com eles naquela época.” Esse aspecto frequentemente ignorado da sociedade e da política chinesas é um fator importante por trás da elevada moral popular durante o Grande Salto Adiante.

Durante esse período, a maior parte das pessoas estava magra, e os líderes regionais e de comunas eram tão magros quanto todos os outros. Se baseando em seu tamanho corporal, era quase impossível distinguir esses líderes dos camponeses comuns. “O Secretário Regional do Partido Xu”, disse Zhang Yingfa, um camponês de Rio do Sul, “era tão alto quanto eu, mas definitivamente era mais magro do que eu quando veio trabalhar conosco na aldeia”. Isso, novamente, contrastava muito com a imagem tradicional dos oficiais de governo chineses. Os camponeses diziam que era muito difícil perceber esses oficiais comunistas como opressores e pessoas ruins. Eles simplesmente não causavam raiva entre os camponeses. Isso não quer dizer que não houvessem muitos oficiais ruins e corruptos na época. Mas aos olhos de muitos dos habitantes rurais de hoje, os oficiais de Mao eram drasticamente diferentes do tipo “jovem e mais escolarizado” de oficiais do governo chinês da época das “reformas” posteriores, que vinham aos povoados apenas em carros e que comiam grandes banquetes às custas dos camponeses. Um importante fator para evitar rebeliões camponesas durante um período d graves dificuldades era o estilo de liderança e a integridade pessoal dos oficiais comunistas.

Haviam muito poucas diferenças de renda ou de origem entre os líderes locais e o povo liderado. Os líderes dos povoados nos anos 1950 entendiam os camponeses pobres muito melhor do que seus antecessores e sucessores na história chinesa. Esse entendimento era a força do Partido Comunista, e teve um papel importante para evitar a decomposição do governo durante o Grande Salto Adiante. Os camponeses tendiam a seguir os líderes locais que vinham das mesmas origens socioeconômica que a imensa maioria deles e demonstrava preocupação em relação a suas necessidades. Mao se tornou o grande líder do povo chinês exatamente porque conseguia ver o potencial revolucionário dos líderes camponeses. Foram esses camponeses e líderes camponeses que realizaram os objetivos fundamentais da Revolução Chinesa e rejuvenesceram a sociedade chinesa.

Durante a Campanha de Educação Socialista de 1964, logo depois do Grande Salto Adiante, muitos líderes locais municipais foram acusados de corrupção comum e delitos leves, como comer mais do que sua cota de comida, roubar pequenas quantidades de dinheiro dos fundos coletivos e dividir pequenos números de grãos entre eles durante o Grande Salto Adiante. Aos olhos do Partido Comunista, que exigia que seus membros passassem pelas dificuldades primeiro e aproveitassem os benefícios depois (chi ku zai qian, xiangshou zai hou), esse tipo de desvio de comportamento não podia ser permitido. Mas julgando pelos padrões de hoje, ou pelo padrões da China tradicional, a corrupção dos líderes locais era pequena. É natural que, no meio de uma escassez de grão, as pessoas mais próximas da comida comessem um pouco mais para sobreviver.

Da Revolução Cultural às "reformas" agrárias

À luz da pequena corrupção difusa entre os líderes locais durante o Grande Salto Adiante, um dos mais importantes objetivos da Revolução Cultural era dar poder aos camponeses comuns para que participassem da política local[5]. A autoridade dos líderes locais foi bastante diminuída como resultado do desenvolvimento do poder dos camponeses comuns nesse período, e o governo local se tornou mais legítimo aos olhos do povo do que durante o Grande Salto Adiante. Os governos central, provincial, regional, distrital e da comuna deram muita atenção à agricultura, às zonas rurais e aos camponeses. Muitos camponeses foram selecionados para participar em todos os níveis de governo. Oficiais eram incentivados a trabalhar com os camponeses e a população urbana era incentivada a apoiar a população rural. Dezessete milhões de jovens urbanos, escolarizados, foram mandados para viver e trabalhar nas zonas rurais durante os anos da Revolução Cultural. Consequentemente, aos olhos dos camponeses o governo se preocupava com eles[6].

Distúrbios sociais atuais

A mídia chinesa está repleta de histórias de sucesso relativas à reforma agrária desde que o governo de Deng Xiaoping começou as “reformas” no início dos anos 1980. Os estudiosos chineses e ocidentais basicamente repetiram as declarações do governo sobre os sucessos dessas reformas rurais. De acordo com a versão oficial, as colheitas aumentaram dramaticamente e o luvro dos camponeses aumentou de maneira significativa (as colheitas de fato aumentaram, em parte por causa dos projetos de irrigação, seleção de plantas e fábricas locais de fertilizante construídas durante o Grande Salto Adiante e a Revolução Cultural). As pessoas que estudavam a China ruram levantaram a hipótese de que o aumento da colheita de grãos se devia à mudança da produção coletiva à produção privada. Também é verdade que a China não pasou por desastres naturais graves nos últimos vinte e cinco anos e que tenham tido efeitos grandes sobre a produção agrícola, e os camponeses têm à sua disposição mais grãos do que antes. Nos povoados que visitei nas províncias de Henan e Shandong, a maior parte das famílias rurais tem por volta de 1 a 1.5 toneladas métricas (dois ou três mil jin) de grãos estocados em suas casas, o que seria normalmente o suficiente para dois anos de consumo.

De acordo com a visão padrão, as revoltas rurais que estão acotnecendo na China hoje são difíceis de explicar. Em 2001, Politics in Yue Village de Yu Jianrong foi publicado, documentando os protestos rurais contemporâneos na província de Hunan. Em 2004, dois grandes protestos na província de Sichuan envolvendo centenas de milhares de camponeses chocaram o mundo. Em um incidente, mais de cem mil camponeses cercaram os prédios do governo local por três dias; mais de uma dúzia de carros de polícia foram incendiados, e o governo mandou cem mil policiais armados conterem a multidão. Em outro incidente, uma multidão irada fez o governador da província de refém por alguns dias. Desde então, ninguém mais duvida que o governo chinês enfrenta uma crise séria nas zonas rurais.

Houve uma grande mudança nas percepções dos camponeses a respeito do PCCh desde época do Grande Salto Adiante e da Revolução Cultural. Como discutimos acima, os camponeses viam, então, o PCCh e os oficiais locais, regionais e nacionais como trabalhando nos seus melhores interesses. Mas quando entrevistei pela primeira vez os camponeses em Jimo sobre a sua reação à reorganização rural em 1982, a resposta mais comum era que gongchandang bu guan women la (“o Partido Comunista não se importa mais conosco”). “Women jiuyao cheng moniangde haozila” (“vamos ficar órfãos”), um velho camponês me disse na época. Essa resposta simples estão carregada de muitas implicações. Ela quer dizer que alguns camponeses consideravam a política de produção rural coletiva do governo como uma indicação de que o Partido Comunista se preocupava com as suas condições de vida. Mas como resultado das “reformas” agrária, o governo não podia mais ser visto como estando do seu lado – ele poderia, na melhor das hipóteses, ser visto como neutro. Essa mudança na percepção das políticas e ações do PCCh pelos camponeses, junto com a mudança nos estilos de liderança dos oficiais comunistas nos vários níveis de governo, tem tido um grande impacto na maneira como os camponeses percebem e interagem com o Estado.

Privatização, corrupção, desigualdade e crime

No processo da reorganização rural, alguns meios de produção de propriedade coletiva acabaram nas mãos dos antigos líderes locais. No município de Jimo, a maior parte das empresas industriais de propriedade coletiva foram primeiro concedidas a seus administradores e depois vendidas a eles. A fábrica do povoado que administrei antes de ir para a universidade em 1978 foi vendida para o seu administrador seguinte, Liu Dunxiao. Em menos de vinte anos, Liu e sua família lucraram mais de 200 milhões de yuans (mais ou menos 30 milhões de dólares). O irmão mais novo de Liu, com a sua ajuda, controla o sistema de transporte público no distrito, e tem também um patrimônio de bilhões de yuans. O mesmo processo transferiu muitas empresas de propriedade estatal e coletiva para a propriedade privada em um sistema de fisiologismo. O povo chiês agora se refere a esse processo como o pecado original da classe capitalista chinesa, classe que ascendeu desde o meado dos anos 1980. Essa aquisição de recursos de propriedade coletiva ou estatal era inconstitucional e ilegal. Ela também violava o sentido de justiça social amplamente aceito pelos camponeses chineses. Um capitalista já me disse, em entrevista, que a maior parte da classe capitalista chinesa tinha uma origem criminosa, o que é como ter uma espada pendurada sobre as suas cabeças. Muitos camponeses agora colocam em questão a legitimidade política do governo que encorajou essa aquisição criminosa de propriedades coletivas e meios de produção estatais.

Desde as reformas agrárias, os diferentes níceis do governo não organizam mais projetos de irrigação de grande escala na China e a presença do governo na vida dos camponeses se tornou mínima. Os governos municipais agora só fazem duas coisas: coletar os impostos sobre os grãos e reforçar as políticas de planejamento familiar. Os camponeses acreditam que os governos municipais só querem o seu dinheiro (impostos) e as suas vidas (planejamento familiar) (yao qian he yao ming).

O recuo do governo nacional nas zonas rurais é considerado um progresso pela mentalidade econômica liberal dos livres mercados. Parece que o Estado está dando à sociedade em geral e à população rural em particular o poder para assumir o controle de sua própria vida. Os camponeses deveriam ter recebido bem essa reorganização rural. Mas a realidade é mais complicada.

Durante a era coletivista, os líderes das comunas viviam nas zonas rurais em que trabalhavam. Eles ia para os povoados de bicicleta. Hoje, os líderes dos governos municipais são mas escolarizados e não querem viver nas zonas rurais. Eles construíram casas luxuosas no estilo ocidental nas capitais distritais. Portanto, o governo municipal tem que comprar um carro para cada um dos quatro oficias maiores do governo: o secretário municipal do partido, o secretário distrital do partido, o líder do governo municipal e o líder do governo distrital. Eles também precisam de motoristas para levá-los para o trabalho todos os dias. Como não têm muito o que fazer, estão sempre entediados. E assim, visitam restaurantes e pontos de lazer. “Os restaurantes rurais nas áreas do entorno”, disse um camponês, “começaram a oferecer serviços de xiaojie (prostitutas) porque os líderes do governo local querem”.

Enquanto os gastos do governo local aumentam, as maneiras de extrair dinheiro dos camponeses se multiplicam, agora que o imposto agrário foi eliminado. Muitos governos locais usam o planejamento familiar como uma maneira de tirar mais dinheiro dos camponeses. Para conseguir uma permissão para ter um filho, os camponeses têm que subornar os oficiais de governo do município e do povoado. Alguns lideres municipais e dos povoados vendem permissões de parto para camponeses que têm dinheiro. Em alguns lugares, os oficiais locais chegam até a encorajar os camponeses ricos a terem mais filhos para que possam ganhar com as “multas” por eles. Em contexto social desses, os camponeses questionam a legitimidade política do governo central, assim como dos funcionários regionais e locais. Outra maneira de fazer dinheiro é o confisco de terras pelos funcionários regionais e locais, que então vendem a terra para fins de “desenvolvimento”, sem compensar os camponeses por isso – aumentando, assim, muito a tensão nas zonas rurais.

A mudança na percepção dos camponeses em relação à legitimidade do governo e ao comportamento dos oficiais transformou a interação dos camponeses com o Estado. O entrevistados no povoado Rio do Sul, no município de Jimo, me relataram que os camponeses se recusaram a saquear os reservatórios de grãos desprotegidos perto de seu povoado durante a falta de grãos no Grande Salto Adiante. Mas agora, eles começaram a se envolver em todos os tipos de atividades ilegais e ilícitas. Muitos camponeses foram presos por roubar em mercados e de outros camponeses. Eles lutam contra os fiscais do governo. Em um incidente, dois irmãos agrediram um coletor de impostos e acabaram na prisão por dois anos.

Alguns indivíduos mais ousados organizaram uma gangue de ladrões, roubando em grande escala. Eles construíram uma rede de colaboradores nas cidades grandes, que identificam os alvos: na maior parte das vezes, casas de oficiais corruptos e empresários ricos. Eles vêm à cidade grande, cometem seus crimes com precisão e então retornam para suas cidades e dividem os ganhos com seus colaboradores urbanos. Dessa maneira, conseguem viver uma “boa vida” e reduzir o risco de serem pegos. A maior parte das pessoas, até mesmo a polícia local, sabem como essas pessoas ganham a vida.

Outro grupo de camponeses organizou uma sociedade secreta que se envolve em contrabando e oferece assassinos de aluguel. Eles matam ou ferem pessoas pelo preço certo. Alguns desses camponeses, que eram tímidos e obedientes durante o Grande Salto Adiante, trabalhadores mas agressivamente ativos politicamente durante a Revolução Cultural, se tornaram bandidos, ladrões e agressores durante o período das reformas.

A sociedade chinesa durante o Grande Salto Adiante e a Revolução Cultural era relativamente pobre. As pessoas mal tinham o que comer e vestir. Mas muitos camponeses se lembram desses tempos com afeto. Havia uma igualdade geral das condições de vida, muito pouca corrupção, muitos poucos crimes, não haviam drogas nem prostituição.

Hoje, a maior parte das pessoas na China rural se tornaram mais ricas. No município de Jimo, a área principal de minha pesquisa, algumas pessoas têm bastante dinheiro. Alguns lares dizer ter milhões. Mas, ao mesmo tempo, a vida das pessoas está repleta de crime, corrupção, prostituição e abuso de drogas – e existe um grande abismo entre ricos e pobres.

A resposta do governo às condições rural e aos distúrbios

O governo chinês começou a admitir, pela primeira vez desde a reforma agrária dos anos 1980, que ele encaram uma séria tripla crise, quanto à agricultura, as zonas rurais e os camponeses (san nong wenti). Estudiosos e oficiais do governo começaram a discutir a crise abertamente. O livro Yucun Politics (Yuecun Zhengzhi) de Yu Jianrong descreve um incicente em Hunan e, que mais de dez mil camponeses invadiram o prédio do governo municipal. Um camponês de sessenta e dois anos quebrou seis placas do governo no prédio do governo municipal, citando as palavras de Mao Zedong: “rebelar-se é justo”. Cheng Guili e Chun Tao, em seu Zhongguo Nongmin Diacha (Investigando os camponeses chineses), registra vários casos de opressão oficial contra os camponeses.

A diretiva número um do governo central em 2004 tinha o objetivo de aumentar a renda da população rural. Para isso, o governo chinês, no verão de 2006, eliminou completamente os impostos agrícolas para a população rural.

No entanto, a crise que o governo chinês encara na China rural não simplesmente uma crise para o aumento da renda dos camponeses. É uma questão muito complexa, envolvendo a legitimidade do governo, a conduta dos oficiais e muitas outras questões. Enquanto muitas pessoas aplaudem a eliminação dos impostos agrícolas pelo governo chinês, essa ação é mais sensacional do que efetiva, e pode ser até perigosa. A eliminação dos impostos agrícolas enfraquece ainda mais a presença do governo nas zonas rurais. Mas a China rural, hoje, precisa de uma presença governamental mais forte, e não mais fraca. As zonas rurais precisam quem o governo ofereça educação gratuita e cuidados de saúde. Os camponeses precisam que o governo os proteja dos capitalistas ambiciosos – apoiados pelos oficiais locais – que tomam terras camponesas. A China rural precisa de impostos progressivos – impostos sobre os ricos para proteger os fracos e os pobres. Simplesmente eliminar todos os impostos leva a mais corrupção, porque os oficiais locais inventam outras maneiras de ganhar dinheiro.

O governo central chinês culpou os oficiais locais pelos problemas na China rural. De maneira semelhante, a mídia chinesa fez dos oficiais de governo municipais os bodes expiatórios para a tensão crescente entre o governo e os camponeses na China. Um dos oficiais de governo municipal que entrevistei me disse que sentia que era ao mesmo tempo fácil e arriscado usas os oficiais municipais como bodes expiatórios: eles eram o sintoma, e não a causa do problema, que é sistêmico e muito mais profundo do que o governo central imagina. Culpas os oficiais municipais é apenas esconder o problema real e levar a mais distúrbios sociais. E, uma vez que a população rural se levantar, eles não irão pensar cuidadosamente contra quem vão se levantar. Essa é a natureza dos levantes populares.

Olhando novamente para Mao

Depois que o III Encontro Plenário do Décimo Primeiro Comitê Central PCCh (Dezembro de 1978) passou a resolução de criticar os erros de Mao durante o Grande Salto Adiante e a Revolução Cultural, a mídia chinesa, controlada pelas elites anti-maoistas, não hesitou em publicar livros denunciando tanto o Grande Salto Adiante quanto a Revolução Cultural. Pelos últimos trinta anos, os sentimentos anti-Mao, anti-Grande Salto Adiante e anti-Revolução Cultural dominaram o discurso intelectual chinês. No entanto, muitas pessoas escreveram suas próprias memórias em um esforço para reunir memórias culturais e históricas do Grande Salto Adiante. Em essência, esses autores – cujos ensaios contradizem diretamente as denuncias oficiais – protestaram contra a “reescrita da história” pelos oponentes de Mao.

Em dezembro de 2006, Deng Pufang respondeu a um repórter da Reuters, dizendo que a Revolução Cultural foi desastrosa não apenas para ele e sua família, mas também para a nação chinesa. No entanto, essa caracterização quase rotineira da época disparou uma avalanche de comentários do povo chinês, gerando, em pouco mais de um mês, mais de 35.000 objeções na internet. A imensa maioria desses comentários aplaudia a contribuição de Mao para o povo chinês e criticava as graves consequências causadas pelas reformas rurais que Deng Xiaoping introduziu. Algumas pessoas comentaram que a nova elite deveria “parar de mentir sobre o Presidente Mao. As pessoas estão acordando, e não se pode mais enganar o povo com mentiras sobre o Presidente Mao”. Muitos disseram que a “história é escrita pelo povo, e não pelas elites”. Para muitos chineses, “o Presidente Mao trabalhou pelo povo chinês toda a sua vida e continua a viver no coração do povo”. Parece que os esforços do governo e das elites para desacreditar os legados de Mao saíram pela culatra, com implicações importantes para a política chinesa no futuro.

Como é possível explicar a grande estima que muitos no povo chinês têm por Mao – muito depois de sua morte – apesar do massacre oficial e semioficial a seu legado e sua imagem? As elites chinesas e os inimigos de Mao produziram várias publicações para desacreditar Mao. Mas se os sofrimentos e brutalidades supostamente impostos aos camponeses chineses pelo governo de Mao são verdadeiros, os camponeses teriam sido os primeiros a saber deles. Por que, então, muitos camponeses ainda penduram uma fotografia de Mao em suas casas, guardam suas memórias com carinho e, em alguns lugares, constroem templos para louvá-lo?

Esses camponeses me lembram de meus colegas e estudantes nos EUA, que vieram para a China comigo para os cursos de estágio mundiais de minha universidade. As longas filas fora do mausoléu de Mao na Praça Tiananmen sempre os surpreenderam. Os operários e camponeses, que perderam os benefícios que tinham conquistado com as políticas socialistas de Mao, vinham mostrar seu respeito ao seu líder, muitas vezes com lágrimas nos olhos. Essa é mais uma indicação da contínua popularidade de Mao entre a classe trabalhadora chinesa.

Conclusão

Como se explica a mudança na interação entre o Estado e a sociedade do Grande Salto Adiante e da Revolução Cultural à época das reformas? Mencius uma vez disse Yi shi dao shi min, sui ku er bu yuan, yi sheng dao sha ren, sui si er bu yuan (o povo não irá reclamar se o governante emprega o povo com boas intenções, e o povo não irá reclamar se o governante leva o povo a morrer com a intenção de garantir a sua sobrevivência). Isso quer dizer que, quando um governo é considerado legítimo e a conduta oficial se alinha com essa legitimidade, o povo irá seguir as políticas do governo e suportar as dificuldades. Assim, o governo irá sobreviver através dos desafios e das dificuldades. No entanto, quanto a legitimidade do governo está em questão ou a conduta oficial é repulsiva, o povo estará menos disposto a seguir as políticas do governo e, quando a crise chegar, estará mais disposto a se rebelar. A grande quantidade de distúrbios camponses na China de hoje é o resultado de uma perda da legitimidade do governo. Para inverter essa tendência, o governo precisa fazer mais do que simplesmente aumentar a renda dos camponeses.

O governo chinês pode conter a corrupção oficial nas zonas rurais de duas maneiras. Ele pode ressuscitar os mecanismos de auto-crítica e disciplina do Partido Comunista dos velhos tempos, em que os líderes e os membros da base do partido mantém encontros regulares para examinar seu próprio comportamento e acordo com as políticas e regulações do partido. Ao mesmo tempo, o governo pode dar poder aos camponeses comuns encorajando-os a criticar os oficiais do governo e suas políticas de diferentes maneiras, incluindo os grandes cartazes que foram amplamente usados durante o Grande Salto Adiante e a Revolução Cultural, e se mostraram efetivos para conter a corrupção oficial. Mais importante, o governo precisa selecionar mais camponeses para posições de governo e encorajar os oficias locais a viver e trabalhar com os camponeses sempre que possível.

O abismo entre ricos e pobres se tornou um grande problema na China, especialmente nas zonas rurais, e causou muitos problemas sociais sérios, como o aumento do crime. Uma distância muito grande entre ricos e pobres irá desintegrar a sociedade chinesa e ameaçar a estabilidade da China. Práticas mais igualitárias melhorariam a coerência interna da China e tornariam possível que o país lidasse mais diretamente com seus desafios.

Notas

[1] O alcance dos protestos rurais na China raramente é noticiado de maneira coerente pela mídia ocidental. Mas de acordo com a reportagem publicada pela agência de notícias chinesa Xinhua publicada no Diário do Povo (“China grapples with thorny issue of rural land rights”, disponível em http://www.gov.cn/english/2006-09/01/content_375653.htm), houveram 87.000 protestos, revoltas e outros “incidentes de massa” relacionados a perda da terra em 2005, 6% a mais do que em 2004 e 50% a mais do que em 2003. Assim, só nesses três anos aconteceram bem mais de 100.000 ações desse tipo! O artigo aponta que “antes uma base de apoio do Partido Comunista da China, que conquistou amplo apoio no campo seis décadas atrás, muitos camponeses chineses agora se sentem alienados de suas próprias terras, antes frutos da revolução”. Nos sete anos antes da notícia de janeiro de 2006 ser escrita, mais ou menos 6.7 milhões de hectares agriculturáveis (5% do território agriculturável chinês) foram convertidos para outros usos – estradas, fábricas, etc. As pessoas também protestam contra a poluição industrial do ar, da água e do solo. Em 2007, o último ano em que o governo chinês liberou dados sobre os "incidentes de massa", protestos envolvendo mais de cem pessoas, houveram 80.000 acontecimentos do tipo.

[2] New China News Agency: “National Militia Work Conference was held in Beijing on February 8, to Discuss and Study the Experiences and Accomplishments of Large Scale Organization of Militia Divisions since 1958.” Zhonghua renmin gongheguo dashiji, The Chronology of People’s Republic of China, (Beijing: Xinhua Press, 1982), 282.

[3] The Chronology of People’s Republic of China, 209, vol. 1 (Beijing: Xinhua Press, 1982), 210-14.

[4] The Chronology of People’s Republic of China, 209, vol. 1, p. 208.

[5] Para uma discussão detalhada da mudança e do progresso nas zonas rurais durante a Revolução Cultural, ver Dongping Han, The Unknown Cultural Revolution: Life and Change in a Chinese Village (Nova York: Monthly Review Press, 2008).

[6] Ver Dongping Han, “Hukou System and China’s Rural Development,” Journal of Developing Areas, primavera de 1999, e “Impact of the Cultural Revolution on Rural Education and Economic Development,” Modern China 27, no. 1, janeiro de 2001.

Dongping Han é professor de história e ciência política no Warren Wilson College, na Carolina do Norte. Suas publicações incluem vários artigos de periódicos e The Unknown Cultural Revolution (Garland Publishing, republicado pela Monthly Review, 2008). Ele vem de um ambiente rural na China. A maior parte da pesquisa para este artigo foi realizada por meio de entrevistas nas áreas rurais discutidas.

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