13 de dezembro de 2011

Quatro futuros

Uma coisa que podemos ter certeza é que o capitalismo vai acabar.

Peter Frase

Jacobin


No seu discurso para o acampamento “Occupy Wall Street” no Parque Zuccotti, Slavoj Žižek lamentou que “é fácil imaginar o fim do mundo, mas não conseguimos imaginar o fim do capitalismo”. É uma paráfrase de um comentário que Fredric Jameson fez há alguns anos, quando a hegemonia do neoliberalismo ainda parecia absoluta. Mesmo assim, a própria existência de “Occupy Wall Street” sugere que o fim do capitalismo tornou-se um pouco mais fácil de imaginar nos últimos tempos. No início, esse cenário tomou uma forma deprimente e distópica: no auge da crise financeira, com a economia global aparentemente em colapso total, o fim do capitalismo parecia ser o início de um período de violência e miséria anárquicas. E ainda pode ser, com a zona do euro balançando à beira do colapso enquanto escrevo. Mas, mais recentemente, a propagação de protestos globais de Cairo a Madri a Madison a Wall Street deu à Esquerda algum motivo para timidamente elevar suas esperanças para um futuro melhor depois do capitalismo.

Uma coisa que podemos ter certeza é que o capitalismo vai acabar. Talvez não em breve, mas provavelmente não daqui a muito tempo; a humanidade nunca conseguiu criar um sistema social eterno, afinal, e o capitalismo é uma ordem notoriamente mais precária e volátil do que a maioria daquelas que a precederam. A questão, então, é o que virá a seguir. Rosa Luxemburgo, reagindo ao início da Primeira Guerra Mundial, citou uma frase de Engels: “A sociedade burguesa está numa encruzilhada, ou transita para o socialismo, ou regride para a barbárie”. Nesse espírito, proponho um experimento mental, uma tentativa de dar sentido aos nossos possíveis futuros. Estes são alguns dos socialismos que podemos alcançar se uma Esquerda ressurgente for bem-sucedida, e os barbarismos a que podemos ser relegados se falharmos.

Grande parte da literatura sobre as economias pós-capitalistas está preocupada com o problema da gestão do trabalho na ausência de chefes capitalistas. No entanto, vou começar por ignorar esse problema, a fim de melhor iluminar outros aspectos da questão. Isso pode ser feito simplesmente extrapolando a tendência do capitalismo em direção à crescente automação, o que torna a produção cada vez mais eficiente enquanto que simultaneamente desafia a capacidade do sistema de gerar empregos e, portanto, sustentar a demanda pelo que é produzido. Este tema, ultimamente, tem sido ressurgente no pensamento burguês: em setembro de 2011, Farhad Manjoo da revista Slate escreveu uma longa série sobre “A Invasão dos Robôs”, e logo depois dois economistas do MIT publicaram Race Against the Machine [N.T. Corrida Contra a Máquina, em tradução literal], um e-book em que argumentavam que a automação estava ultrapassando rapidamente muitas das áreas que até recentemente serviram como os maiores motores de criação de emprego da economia capitalista. De fábricas totalmente automáticas a computadores que podem diagnosticar condições médicas, a robotização está ultrapassando não apenas a manufatura, mas também grande parte do setor de serviços.

Levada ao seu extremo lógico, essa dinâmica nos leva ao ponto em que a economia não exige trabalho humano nenhum. Isso não leva automaticamente ao fim do trabalho ou do trabalho assalariado, como tem sido incorretamente previsto repetidamente em resposta aos novos desenvolvimentos tecnológicos. Mas isso significa que as sociedades humanas enfrentarão cada vez mais a possibilidade de libertar as pessoas do trabalho involuntário. Se aproveitaremos essa oportunidade e como o faremos, depende de dois fatores principais, um material e outro social. A primeira questão é a escassez de recursos: a capacidade de encontrar fontes baratas de energia, extrair ou reciclar matérias-primas e, em geral, depender da capacidade da Terra de fornecer um alto padrão material de vida a todos. Uma sociedade que tem tanto a tecnologia de substituição do trabalho e recursos abundantes pode superar a escassez de maneira mais completa de uma forma que uma sociedade com apenas o primeiro elemento não pode. A segunda pergunta é política: que tipo de sociedade seremos? Uma em que todas as pessoas são tratadas como seres livres e iguais, com igual direito de participar da riqueza da sociedade? Ou uma ordem hierárquica em que uma elite domina e controla as massas e seu acesso aos recursos sociais?

Há portanto quatro combinações lógicas das duas oposições, abundância de recursos versus escassez e igualitarismo versus hierarquia. Para colocar as coisas em termos um tanto vulgares-marxistas, o primeiro eixo dita a base econômica do futuro pós-capitalista, enquanto o segundo se refere à superestrutura sócio-política. Dois futuros possíveis são socialismos (apenas um dos quais eu chamarei por este nome), enquanto os outros dois são sabores contrastantes do barbarismo.

Igualitarismo e abundância: Comunismo

Há uma passagem famosa no terceiro volume de O Capital, em que Marx distingue entre um “reino da necessidade” e um “reino da liberdade”. No reino da necessidade nós devemos “lutar com a natureza para satisfazer [nossos] desejos, para manter e reproduzir a vida “, por meio do trabalho físico na produção. Esse reino de necessidade, diz Marx, existe “em todas as formações sociais e sob todos os modos possíveis de produção”, presumivelmente incluindo o socialismo. O que distingue o socialismo, então, é que a produção é planejada racionalmente e organizada democraticamente, ao invés de operar ao capricho do capitalista ou do mercado. Para Marx, porém, esse nível de sociedade não era o verdadeiro objetivo da revolução, mas apenas uma pré-condição para “o desenvolvimento da energia humana, que é um fim em si mesmo, o verdadeiro reino da liberdade, que, no entanto, só pode florescer com este reino da necessidade como sua base”.

Em outro lugar, Marx sugere que um dia poderemos libertar-nos completamente do reino da necessidade. Em Critique of the Gotha Program (Crítica ao Programa de Gotha), ele imagina que:

“Numa fase mais elevada da sociedade comunista, após a subordinação escravizante do indivíduo à divisão do trabalho, e com isso também o desaparecimento da antítese entre o trabalho mental e o trabalho físico; depois que o trabalho tornar-se não só um meio de vida, mas o desejo primordial da vida; depois que as forças produtivas também aumentarem com o desenvolvimento integral do indivíduo e todas as fontes de riqueza cooperativa fluírem mais abundantemente – então, só então, o estreito horizonte do direito burguês pode ser cruzado em sua totalidade e a sociedade inscrever em suas faixas: De cada um de acordo com sua capacidade, a cada um de acordo com suas necessidades!”

Os críticos de Marx têm frequentemente voltado esta passagem contra ele, retratando-a como uma utopia irremediavelmente improvável. Que possível sociedade poderia ser tão produtiva que os seres humanos estariam totalmente liberados de ter que realizar algum tipo de trabalho involuntário e insatisfatório? No entanto, a promessa de uma automatização generalizada é a de que ela poderia decretar precisamente tal libertação, ou pelo menos se aproximar dela — se, isto é, nós encontrarmos uma maneira de lidar com a necessidade de gerar energia e garantir recursos. Mas os avanços tecnológicos recentes não ocorreram apenas na produção de commodities, mas na geração da energia necessária para operar as fábricas automáticas e as impressoras 3-D do futuro. Assim, um possível futuro pós-escassez combina a tecnologia de economia de trabalho com uma alternativa ao atual regime energético, que é em último caso limitado por ambos, a escassez física e a destruição ecológica dos combustíveis fósseis. Isso está longe de ser garantido, mas há indicadores esperançosos. O custo de produção e operação de painéis solares, por exemplo, vem caindo dramaticamente na última década; No ritmo atual, seriam mais baratos do que nossas fontes de eletricidade atuais até 2020. Se energia barata e automação forem combinadas com métodos de fabricação ou reciclagem eficientes de matérias-primas, então realmente teremos deixado para trás “a economia” como um mecanismo social para administrar a escassez. O que está por trás desse horizonte?

Não é que todo o trabalho cessaria, no sentido de que todos nós apenas poderíamos nos sentar em libertinagem e torpor. Pois, como dizia Marx, “o trabalho tornou-se não só um meio de vida, mas o desejo primordial da vida”. Quaisquer que fossem as atividades e projetos que empreendêssemos, participaríamos deles porque os acharíamos inerentemente gratificantes, não porque precisaríamos de um salário ou devêssemos nossas horas mensais para a cooperativa. Isso não é tão implausível, considerando o grau em que as decisões sobre o trabalho já são motivadas por considerações não-materiais, entre aqueles que são privilegiados o suficiente para ter a opção: milhões de pessoas escolhem fazer uma pós-graduação ou se tornarem assistentes sociais ou iniciar pequenas fazendas orgânicas, mesmo quando carreiras muito mais lucrativas estão disponíveis para eles.

O fim do trabalho assalariado pode parecer um sonho distante hoje. Mas em uma época muito distante — antes que o movimento trabalhista recuasse da demanda por horas mais curtas e antes da estagnação e reversão da longa tendência por semanas de trabalho reduzidas — as pessoas realmente se preocupavam com o que faríamos depois de sermos liberados do trabalho. Em um ensaio sobre “Possibilidades econômicas para nossos netos”, John Maynard Keynes previu que dentro de algumas gerações, “o homem será confrontado com o seu real, seu permanente problema — como usar sua libertação das preocupações econômicas urgentes, como ocupar o tempo livre, que a ciência e os juros compostos terão conquistado para ele, para viver sabiamente e agradavelmente e bem”. E em uma discussão recentemente publicada, de 1956, Max Horkheimer começa por comentar casualmente para Theodor Adorno que “hoje em dia nós temos bastante por meio das forças produtivas; é óbvio que poderíamos abastecer o mundo inteiro com bens e então poderíamos tentar abolir o trabalho como uma necessidade para os seres humanos”.

E Keynes e Adorno viveram em um mundo onde a indústria só parecia possível em uma escala muito grande, seja em fábricas capitalistas ou empresas estatais; essa forma de indústria implica em hierarquia, não importa em qual formação social ela está inserida. Mas os avanços tecnológicos recentes sugerem a possibilidade de retornar a uma estrutura menos centralizada, sem reduzir drasticamente o padrão de vida material: a proliferação de impressoras 3-D e de “laboratórios de fabricação” em pequena escala está tornando cada vez mais possível reduzir a escala de pelo menos alguma produção sem sacrificar completamente a produtividade. Assim, na medida em que algum trabalho humano ainda é exigido na produção em nosso futuro comunista imaginário, ele poderia assumir a forma de pequenos coletivos em vez de empresas capitalistas ou estatais.

Contudo, a superação econômica do trabalho assalariado também significa superá-lo socialmente, e isso implica em mudanças profundas em nossas prioridades e no nosso estilo de vida. Se quisermos imaginar um mundo onde o trabalho não é mais uma necessidade, é provavelmente mais proveitoso recorrer à ficção do que à teoria. De fato, muitas pessoas já estão familiarizadas com a utopia de um comunismo pós-escassez, porque ela foi representada em uma das nossas obras mais conhecidas da cultura popular: Star Trek. A economia e a sociedade desse programa baseiam-se em dois elementos técnicos básicos. Uma é a tecnologia do “replicador”, que é capaz de materializar qualquer objeto do nada, apenas pressionando um botão. O outro é uma fonte de energia, confusamente descrita, aparentemente gratuita (ou quase gratuita), que faz funcionar os replicadores, bem como todo o resto no programa.

O caráter comunista do universo de Star Trek é muitas vezes obscurecido porque os filmes e programas de TV são centrados na hierarquia militar da Frota Estelar, que explora a galáxia e entra em conflito com as raças alienígenas. Mas mesmo isso parece ser, em grande parte, uma hierarquia voluntariamente escolhida, atraindo aqueles que buscam uma vida de aventura e exploração; na medida em que vemos vislumbres da vida civil, esta parece na maior parte não ser perturbada pela hierarquia ou compulsão. E, na medida em que o show sai da utopia comunista, é porque seus escritores introduzem a ameaça externa de raças alienígenas hostis ou recursos escassos para produzir tensão dramática suficiente.

Não é necessário, contudo, conjurar naves espaciais e alienígenas a fim de imaginar as tribulações de um futuro comunista. A novela de Cory Doctorow, Down and Out in the Magic Kingdom [N.T. Na Rua e Sem Teto no Reino Mágico), imagina um mundo pós-escassez que está inserido numa extrapolação reconhecível dos Estados Unidos atuais. Assim como em Star Trek, a escassez material foi superada neste mundo. Mas Doctorow compreende que dentro das sociedades humanas, certos bens imateriais serão sempre inerentemente escassos: reputação, respeito, estima entre pares. Assim, o livro gira em torno das tentativas de vários personagens para acumular “whuffie”, que são uma espécie de pontos virtuais que representam a boa vontade que você acumulou dos outros. Whuffie, por sua vez, é usado para determinar quem detém a autoridade em qualquer iniciativa coletiva voluntária — como, nesta ficção, administrar a Disneyland.

O valor do livro de Doctorow, em contraste com Star Trek, é que ele trata um mundo pós-escassez como um mundo com as suas próprias hierarquias e conflitos, ao invés de um em que todos vivem em perfeita harmonia e a política está pausada. A reputação, como o capital, pode ser acumulada de forma desigual e autoperpetuante, como também aqueles que já são populares ganham a habilidade de fazer coisas que lhes dão mais atenção e os torna ainda mais populares. Tal dinâmica é facilmente observável hoje, como em blogs e outras mídias sociais que produzem influenciadores populares que são capazes de determinar quem recebe atenção e quem não, de uma forma que não é completamente uma função de quem tem dinheiro para gastar. Organizar a sociedade de acordo com quem tem mais “likes” no Facebook tem certas desvantagens, para dizer o mínimo, mesmo quando desalojado de seu invólucro capitalista.

Mas se não é uma visão de uma sociedade perfeita, esta versão do comunismo é, pelo menos, um mundo no qual o conflito não se baseia mais na oposição entre trabalhadores assalariados e capitalistas ou em lutas por recursos escassos. É um mundo em que nem tudo se resume a dinheiro. Uma sociedade comunista certamente teria hierarquias de status — como têm todas as sociedades humanas, assim como o capitalismo. Mas no capitalismo, todas as hierarquias de status tendem a estar alinhadas, embora de modo imperfeito, com uma hierarquia mestra de status: a acumulação de capital e dinheiro. O ideal de uma sociedade pós-escassez é que os vários tipos de estima sejam independentes, de modo que a estima que alguém possui como músico seja independente da admiração que alguém alcance como ativista político e onde não se possa usar um tipo de status para comprar outro. Em certo sentido, então, é um equívoco referir-se a isso como uma configuração “igualitária”, já que não é um mundo sem hierarquias, mas um de muitas hierarquias, nenhuma das quais é superior a todas as outras.

Hierarquia e abundância: Rentismo

Dadas as premissas técnicas de automação completa e energia gratuita, a utopia de Star Trek do comunismo puro torna-se uma possibilidade, mas dificilmente uma inevitabilidade. A elite burguesa dos dias de hoje não tem apenas acesso privilegiado aos escassos bens materiais, afinal; eles também gozam de status exaltado e poder social sobre as massas trabalhadoras, o que não deve ser desconsiderado como uma fonte de motivação capitalista. Ninguém pode realmente gastar um bilhão de dólares em si, afinal, e ainda há gestores de fundos de investimento hedge que fazem isso em um único ano e depois voltam por mais. Para essas pessoas, o dinheiro é uma fonte de poder sobre os outros, um marcador de status e uma maneira de manter a pontuação — não muito diferente do whuffie de Doctorow, exceto que é uma forma de status que depende da privação material dos outros. Portanto, é de se esperar que, mesmo que o trabalho se tornasse supérfluo na produção, as classes dominantes se esforçariam por preservar um sistema baseado em dinheiro, lucro e poder de classe.

A forma embrionária do poder de classe em uma economia pós-escassez pode ser encontrada em nossos sistemas de direito de propriedade intelectual. Enquanto defensores contemporâneos da propriedade intelectual gostam de falar dela como se ela fosse amplamente análoga a outros tipos de propriedade, ela é realmente baseada em um princípio completamente diferente. Como observam os economistas Michele Boldrin e David K. Levine, os direitos de PI vão além da concepção tradicional de propriedade. Eles não apenas garantem “o seu direito de controlar a sua cópia da sua ideia”, da maneira que eles protegem o meu direito de controlar os meus sapatos ou a minha casa. Em vez disso, eles dão aos detentores de direitos a capacidade de dizer aos outros como usar cópias de uma ideia que eles “possuem”. Como Boldrin e Levine dizem: “Este não é um direito ordinariamente ou automaticamente concedido aos proprietários de outros tipos de propriedade. Se eu produzir uma xícara de café, tenho o direito de escolher se vou ou não vendê-lo para você ou beber eu mesmo. Mas o meu direito de propriedade não é um direito automático para ambos, tanto vender-lhe a xícara de café como dizer-lhe como beber.”

A mutação da forma de propriedade, de real para intelectual, catalisa a transformação da sociedade em algo que não é reconhecido como capitalismo, mas é, contudo, igualmente desigual. O capitalismo, em sua raiz, não é definido pela presença dos capitalistas, mas pela existência do capital, que por sua vez é inseparável do processo de produção de mercadorias por meio do trabalho assalariado, M-C-M’. Quando o trabalho assalariado desaparece, a classe dominante só pode continuar a acumular dinheiro se mantiver a capacidade de apropriar-se de um fluxo de rendas, que resultam do seu controle da propriedade intelectual. Assim surge um rentista, ao invés da sociedade capitalista.

Suponha, por exemplo, que toda a produção seja feita por meio do replicador de Star Trek. A fim de ganhar dinheiro com a venda de itens replicados, as pessoas devem de alguma forma ser impedidas de apenas fazer o que quiserem de graça, e esta é a função da propriedade intelectual. Um replicador só está disponível a partir de uma empresa que licencie para você o direito de usar um, uma vez que quem tentar te dar um replicador ou fazer um com seu próprio replicador estaria violando os termos de sua licença. Além disso, toda vez que você fizer algo com o replicador, você deverá pagar uma taxa de licenciamento para seja lá quem possuir os direitos dessa coisa em particular. Neste mundo, se o capitão de Star Trek Jean-Luc Picard quiser replicar seu amado “chá, Earl Grey, quente”, ele teria que pagar à empresa que detém os direitos autorais do padrão para o replicador do chá quente Earl Grey.

Isso resolve o problema de como manter uma empresa com fins lucrativos, pelo menos nas aparências. Qualquer pessoa que tente suprir suas necessidades a partir de seu replicador sem pagar os cartéis de direitos autorais se tornaria um fora-da-lei, como os compartilhadores de arquivos online de hoje. Apesar de seu absurdo, este arranjo provavelmente teria defensores entre alguns críticos contemporâneos da cultura de compartilhamento da Internet; por exemplo, You Are Not a Gadget (N.T. Você Não É Um Gadget, em tradução livre), de Jaron Lanier, que pede explicitamente a imposição de “escassez artificial” no conteúdo digital para restaurar seu valor. As consequências de tais argumentos já aparecem nos processos judiciais da indústria discográfica contra os desafortunados que fazem downloads de mp3 e na contínua intensificação do estado de vigilância sob o pretexto de combater a pirataria. A extensão deste regime à microfabricação de objetos físicos só irá piorar o problema. Mais uma vez, a ficção científica é esclarecedora, neste caso a obra de Charles Stross. Accelerando nos mostra um futuro no qual os infratores de direitos autorais são perseguidos por assassinos, enquanto o Halting State (N.T. Estado Hesitante, em tradução livre) retrata os “fabbers” de becos furtivos que rodam suas impressoras 3-D um passo à frente da lei.

Mas uma economia baseada na escassez artificial não é apenas irracional, mas também é disfuncional. Se todo mundo está constantemente sendo forçado a pagar dinheiro em taxas de licenciamento, então eles precisam de alguma forma de ganhar dinheiro, e isso gera um novo problema. O dilema fundamental do rentismo é o problema da demanda efetiva: ou seja, como garantir que as pessoas sejam capazes de ganhar dinheiro suficiente para poderem pagar as taxas de licenciamento da qual depende o lucro privado. Evidentemente, isso não é tão diferente do problema que confrontou o capitalismo industrial, mas torna-se mais severo à medida que o trabalho humano é cada vez mais espremido do sistema, e os seres humanos tornam-se supérfluos como elementos de produção, mesmo que permaneçam necessários como consumidores. Então, que tipo de empregos ainda poderiam existir nessa economia?

Algumas pessoas ainda seriam necessárias para sonhar coisas novas para serem replicadas, e assim haveria um lugar para uma pequena “classe criativa” de designers e artistas. E à medida que suas criações se acumulassem, o número de coisas que poderiam ser replicadas em breve superaria amplamente o tempo e o dinheiro disponível para apreciá-las. A maior ameaça aos lucros de uma determinada empresa não seria o custo de mão-de-obra ou matérias-primas — ambos mínimos ou inexistentes — mas sim a perspectiva de que as licenças que possuem iriam perder popularidade para os concorrentes. Marketing e propaganda, então, continuariam a empregar números significativos. Junto com os profissionais de marketing, haveria também um exército de advogados, uma vez que os litígios de hoje sobre a violação de patentes e direitos autorais incha para abranger todos os aspectos da atividade econômica. E finalmente, como em qualquer sociedade hierárquica, deveria haver um aparato de repressão para impedir os pobres e impotentes de tomar uma parte de volta dos ricos e poderosos. Fazer cumprir a lei de propriedade intelectual draconiana exigiria grandes batalhões do que Samuel Bowles e Arjun Jayadev chamam de “trabalho de guarda”: “Os esforços dos monitores, guardas e pessoal militar… dirigidos não para a produção, mas para a execução de reivindicações resultante de trocas e a busca ou prevenção de transferências unilaterais de propriedade”.

No entanto, manter o pleno emprego em uma economia rentista será uma luta constante. É improvável que as quatro áreas que acabamos de descrever possam substituir completamente todos os trabalhos perdidos pela automação. Além disso, esses trabalhos são, eles próprios, sujeitos a inovações que economizam trabalho. O marketing pode ser feito com mineração de dados (data mining) e algoritmos; muita coisa da rotina do negócio de advocacia pode ser substituída por software; o trabalho de guarda pode ser realizado por drones de vigilância em vez de policiais humanos. Até mesmo um pouco do trabalho da invenção de produto poderia um dia ser dado aos computadores que possuem alguma inteligência criativa artificial rudimentar.

E se a automação falhar, a elite de rentistas pode colonizar nosso tempo de lazer para extrair o trabalho gratuito. O Facebook já depende de seus usuários para criar conteúdo de graça, e a moda recente da “gamificação” sugere que as empresas estão muito interessadas em encontrar maneiras de transformar o trabalho de seus funcionários em atividades que as pessoas vão achar prazerosas e, assim, fazer gratuitamente com o seu próprio tempo. O cientista da computação Luis von Ahn, por exemplo, se especializou no desenvolvimento de “jogos com um propósito”, aplicações que se apresentam aos usuários finais como diversões agradáveis ao mesmo tempo que executam uma tarefa computacional útil. Um dos jogos de von Ahn pedia aos usuários que identificassem objetos em fotos e os dados eram então retornados a um banco de dados usado para pesquisar imagens. Esta linha de pesquisa evoca o mundo da ficção “Ender’s Game” (N.T. O Jogo de Ender, em tradução livre) de Orson Scott Card, em que as crianças lutam de forma remota uma guerra interestelar através do que eles pensam ser jogos de vídeo game.

Tudo isso significa que a sociedade do rentismo provavelmente estaria sujeita a uma tendência persistente para o subemprego, que a classe dominante teria que encontrar alguma forma de conter para manter o sistema unido. Trata-se de perceber uma visão que o falecido André Gorz tinha da sociedade pós-industrial: “a distribuição dos meios de pagamento deve corresponder ao volume de riqueza socialmente produzida e não ao volume de trabalho realizado”. Isso poderia envolver taxar os lucros das empresas lucrativas e redistribuir o dinheiro de volta para os consumidores — possivelmente como uma renda garantida sem nenhuma contrapartida e, possivelmente, em troca da realização de algum tipo de trabalho sem significado. Mas mesmo que a redistribuição seja desejável do ponto de vista de classe como um todo, surge um problema de ação coletiva; qualquer empresa individual ou pessoa rica ficará tentada a pegar carona sobre os pagamentos de outros, e, portanto, resistirão aos esforços para impor um imposto redistributivo. O governo também poderia simplesmente imprimir dinheiro para dar à classe trabalhadora, mas a inflação resultante seria apenas uma forma indireta de redistribuição e também seria resistida. Finalmente, existe a opção de financiar o consumo através do endividamento dos consumidores — mas os leitores no início do século XXI presumivelmente não precisam ser lembrados das limitações inerentes a essa solução.

Dado todos esses problemas, alguém pode perguntar por que a classe rentista iria se incomodar tentando extrair lucros das pessoas, uma vez que poderiam apenas replicar o que quisessem, de qualquer maneira. O que impede a sociedade de simplesmente se dissolver no cenário comunista da seção anterior? Pode ser que ninguém fique com licenças suficientes para atender a todas as suas necessidades, então todo mundo precisa de receitas para pagar seus próprios custos de licenciamento. Você pode possuir o padrão replicador para uma maçã, mas apenas ser capaz de fazer maçãs não é o suficiente para sobreviver. Nesta leitura, a classe rentista são apenas aqueles que possuem licenças suficientes para cobrir todas as suas próprias taxas de licença.

Ou talvez, como observado no início, a classe dominante guardaria a sua posição privilegiada, a fim de proteger o poder sobre os outros concedido apenas aos que estão no topo de uma sociedade dividida em classes. Isso sugere outra solução para o problema de subemprego do rentismo: contratar pessoas para realizar serviços pessoais pode se tornar um marcador de status, mesmo que a automação o torne, estritamente falando, desnecessário. A ascensão tão anunciada da economia de serviço evoluiria em uma versão futurista da Inglaterra do século XIX ou partes da Índia de hoje, onde a elite pode se dar ao luxo de contratar um grande número de criados.

Mas essa sociedade só pode persistir enquanto a maioria das pessoas aceitar a legitimidade da sua hierarquia governante. Talvez o poder da ideologia seja suficientemente forte para induzir as pessoas a aceitar o estado das coisas aqui descrito. Ou talvez as pessoas começassem a se perguntar por que a riqueza do conhecimento e da cultura estava sendo contida dentro de leis restritivas, quando, para usar um slogan recentemente popular, “outro mundo é possível” para além do regime de escassez artificial.

Igualitarismo e escassez: Socialismo

Vimos que a combinação de produção automatizada e recursos abundantes nos dá ou a pura utopia do comunismo ou a absurdista distopia do rentismo; mas e se a energia e os recursos continuarem escassos? Nesse caso, chegamos a um mundo caracterizado simultaneamente pela abundância e escassez, em que a liberação da produção ocorre paralelamente a um planejamento e gestão intensificados dos insumos para essa produção. A necessidade de controlar o trabalho ainda desaparece, mas a necessidade de gerenciar a escassez permanece.

A escassez nos insumos físicos à produção deve ser entendida como englobando muito mais do que commodities específicas como petróleo ou minério de ferro — o maléfico efeito do capitalismo sobre o meio ambiente ameaça causar danos permanentes aos climas e aos ecossistemas dos quais depende grande parte de nossa economia atual. As mudanças climáticas já começaram a causar estragos no sistema mundial de alimentos, e gerações futuras podem olhar a variedade de alimentos disponíveis hoje como um tempo dourado insustentável. (As gerações anteriores de escritores de ficção científica às vezes imaginavam que um dia escolheríamos consumir toda a nossa nutrição sob a forma de uma pílula sem sabor, o que podemos acabar fazendo por necessidade). E sob as projeções mais severas, muitas áreas que agora estão densamente povoadas podem tornar-se inabitáveis, impondo severos custos de remanejamento e reconstrução para nossos descendentes.

Nosso terceiro futuro, então, é aquele em que ninguém precisa realizar o trabalho, e ainda assim, as pessoas não são livres para consumir tanto quanto quiserem. Algum tipo de governo é necessário, e o comunismo puro é excluído como uma possibilidade; o que temos em vez disso é uma versão do socialismo, e alguma forma de planejamento econômico. Contrastando com os planos do século XX, no entanto, estes planos do futuro com recursos limitados estão principalmente preocupados com a gestão do consumo, em vez da produção. Ou seja, ainda assumimos o replicador; a tarefa é gerenciar as entradas que o alimentam.

Isso parece menos que promissor. O consumo, afinal, era precisamente a área em que o planejamento soviético era o mais deficiente. Uma sociedade que pode armar-se para a guerra com os nazistas, mas é então sujeita a uma interminável escassez e filas para o pão, é dificilmente um modelo inspirador. Mas a verdadeira lição da URSS e de seus imitadores é que o tempo do planejamento ainda não havia chegado — e quando começou a surgir, a esclerose burocrática e as deficiências políticas do sistema comunista se mostraram incapazes de acomodá-la. Nas décadas de 1950 e 1960, os economistas soviéticos tentaram heroicamente reconstruir sua economia em uma forma mais viável — uma das principais figuras neste esforço foi o ganhador do prêmio nobel Leonid Kantorovich, cuja história é contada em forma fictícia no recente livro de Francis Spufford Red Plenty (N.T. – Bastante Vermelho, em tradução livre). O esforço encalhou não porque o planejamento era impossível a princípio, mas porque era tecnicamente e politicamente impossível na URSS daquela época. Tecnicamente, porque o poder de computação necessário ainda não estava disponível, e politicamente porque a elite burocrática soviética não estava disposta a abrir mão do poder e privilégio concedido a eles sob o sistema existente.

Mas os esforços de Kantorovich e dos teóricos contemporâneos do planejamento, como Paul Cockshott e Allin Cottrell, sugerem que alguma forma de planejamento eficiente e democrático é possível. E isso será necessário num mundo de recursos escassos: enquanto a produção capitalista privada tem sido muito bem sucedida em incentivar a inovação tecnológica que poupa o trabalho, provou ser terrível na conservação do meio ambiente ou no racionamento de recursos escassos. Mesmo em um mundo pós-capitalista, pós-trabalho, algum tipo de coordenação é necessária para garantir que os indivíduos não tratem a Terra de uma forma que, como um todo, seja insustentável. O que é necessário, como disse Michael Löwy, é algum tipo de “planejamento democrático global” enraizado no debate pluralista e democrático ao invés de governado por burocratas.

No entanto, deve ser feita uma distinção entre o planejamento democrático e uma economia completamente sem-mercado. Uma economia socialista poderia empregar o planejamento racional enquanto ainda apresenta uma troca de mercado de algum tipo, junto com dinheiro e preços. Essa era, de fato, uma das idéias de Kantorovich; em vez de acabar com os sinais dos preços, ele queria fazer dos preços mecanismos que tornassem as metas de produção planejadas em realidades econômicas. As tentativas atuais de colocar um preço sobre as emissões de carbono por meio de esquemas de “cap-and-trade” apontam nesse sentido: enquanto elas usam o mercado como um mecanismo coordenado, elas também são uma forma de planejamento, uma vez que o passo chave é a decisão sem-mercado sobre que nível de emissões de carbono é aceitável. Esta abordagem poderia parecer muito diferente do que é hoje, se generalizada e implementada sem relações de propriedade capitalista e desigualdades de riqueza.

Suponhamos que todos recebessem um salário, não como retorno do trabalho, mas como um direito humano. O salário não compraria os produtos do trabalho dos outros, mas sim o direito de usar uma certa quantidade de energia e recursos como se fossemos usar os replicadores. Os mercados podem desenvolver-se na medida em que as pessoas optassem por trocar um tipo de autorização de consumo por outro, mas isso seria o que o sociólogo Erik Olin Wright chama de “capitalismo consentido entre adultos”, ao invés da participação involuntária no trabalho assalariado impulsionado pela ameaça de fome.

Dada a necessidade de determinar e atingir níveis estáveis de consumo — e, assim, fixar os preços — o Estado não pode desaparecer inteiramente, como acontece no cenário comunista. E onde há escassez, certamente haverá conflito político, mesmo que este não seja mais um conflito de classes. Conflitos entre locais, entre gerações, entre aqueles que estão mais preocupados com a saúde a longo prazo do meio ambiente e aqueles que preferem mais consumo material no curto prazo — nenhum destes será fácil de resolver. Mas, pelo menos, teremos chegado ao outro lado do capitalismo como uma sociedade democrática, e mais ou menos inteiros.

Hierarquia e escassez: Exterminismo

Mas se não chegarmos como iguais, e os limites ambientais continuarem a nos pressionar, chegaremos ao quarto e mais perturbador de nossos futuros possíveis. De certa forma, ele se assemelha ao comunismo com que começamos — mas é um comunismo para poucos.

Uma verdade paradoxal sobre aquela elite global que aprendemos a chamar de “um por cento” é que, enquanto ela é definida pelo controle de uma grande faixa da riqueza monetária do mundo, ela é ao mesmo tempo o fragmento da humanidade cuja vida diária é menos dominado pelo dinheiro. Como Charles Stross escreveu, os mais ricos habitam uma existência em que a maioria dos bens mundanos são, na verdade, gratuitos. Ou seja, sua riqueza é tão grande em relação ao custo de alimentos, habitação, viagens e outras amenidades que eles raramente têm de considerar o custo de alguma coisa. O que quer que eles queiram, eles podem ter.

O que quer dizer que, para os muito ricos, o mundo já é algo como o comunismo descrito anteriormente. A diferença, claro, é que sua condição de pós-escassez é possível não apenas por máquinas, mas pelo trabalho da classe operária global. Mas uma visão otimista dos desenvolvimentos futuros — o futuro que descrevi como comunismo — é que acabaremos por chegar a um estado no qual todos nós somos, em certo sentido, o um por cento. Como celebremente observou William Gibson, “o futuro já está aqui; só está distribuído de forma desigual”.

Mas e se os recursos e a energia são simplesmente muito escassos para que todos possam desfrutar do padrão material de vida dos ricos de hoje? E se chegarmos a um futuro que já não exige o trabalho em massa do proletariado na produção, mas não é capaz de fornecer a todos um padrão arbitrariamente alto de consumo? Se chegamos a esse mundo como uma sociedade igualitária, então a resposta é o regime socialista de conservação compartilhada descrito na seção anterior. Mas e se, pelo contrário, continuarmos a ser uma sociedade polarizada entre uma elite privilegiada e uma massa oprimida, então a trajetória mais plausível leva a algo muito mais sombrio; vou chamá-la pelo termo que E. P. Thompson usou para descrever uma distopia diferente, durante o pico da guerra fria: exterminismo.

O grande perigo posto pela automação da produção, no contexto de um mundo de hierarquia e de recursos escassos, é que ela torna a grande massa de pessoas supérflua do ponto de vista da elite dominante. Isso contrasta com o capitalismo, onde o antagonismo entre capital e trabalho se caracterizava por um choque de interesses e uma relação de dependência mútua: os trabalhadores dependem dos capitalistas enquanto não controlam os próprios meios de produção, enquanto que os capitalistas precisam de trabalhadores para fazer funcionar suas fábricas e oficinas. É como a letra de “Solidarity Forever” (N.T. – Solidariedade Eterna, em tradução livre): “Eles têm tomado milhões incalculáveis que nunca trabalharam para ganhar / Mas sem o nosso cérebro e músculos nem uma única roda pode girar”. Com a ascensão dos robôs, a segunda estrofe deixa de existir.

A existência de uma turba empobrecida e economicamente supérflua representa um grande perigo para a classe dominante, que naturalmente teme uma expropriação iminente; confrontados com esta ameaça, vários cursos de ação se apresentam. As massas podem ser compradas com algum grau de redistribuição de recursos, com os ricos dividindo sua riqueza na forma de programas de bem-estar social, pelo menos se as limitações de recursos não forem muito restritivas. Mas, além de potencialmente reintroduzir a escassez na vida dos ricos, esta solução é propensa à conduzir a uma maré crescente de exigências por parte das massas, levantando assim o espectro da expropriação mais uma vez. Isso é essencialmente o que aconteceu na maré alta do estado de bem-estar social, quando os patrões começaram a temer que os lucros e o controle sobre o local de trabalho estivessem escorrendo de suas mãos.

Se comprar a multidão irritada não é uma estratégia sustentável, uma outra opção é simplesmente fugir e se esconder dela. Essa é a trajetória do que o sociólogo Bryan Turner chama de “sociedade de enclave”, uma ordem na qual “governos e outras agências buscam regular espaços e, quando necessário, imobilizar fluxos de pessoas, bens e serviços” por meio de “confinamento, barreiras burocráticas, exclusões legais e cadastramentos”. Comunidades fechadas, ilhas privadas, guetos, prisões, paranoia terrorista, quarentenas biológicas; juntas, estas equivalem a um gulag global invertido, onde os ricos vivem em pequenas ilhas de riqueza espalhadas ao redor de um oceano de miséria. Em Tropic of Chaos (N.T. – Trópico do Caos, em tradução livre), Christian Parenti argumenta que já estamos construindo essa nova ordem, já que a mudança climática traz o que ele chama de “convergência catastrófica” da ruptura ecológica, da desigualdade econômica e do fracasso do Estado. O legado do colonialismo e do neoliberalismo é que os países ricos, juntamente com as elites dos países mais pobres, têm facilitado uma desintegração em violência anárquica, uma vez que várias facções tribais e políticas lutam pela porção diminuta de ecossistemas danificados. Diante dessa realidade desanimadora, muitos dos ricos — que, em termos globais, incluem muitos trabalhadores nos países ricos — resignaram-se a se fechar em suas fortalezas, a serem protegidas por drones não tripulados e por militares privados contratados. O trabalho de guarda, que encontramos na sociedade rentista, reaparece de forma ainda mais malévola, uma vez que poucos afortunados são empregados como guardas e protetores dos ricos.

Mas isso também é um equilíbrio instável, pela mesma razão básica que a compra das massas é. Enquanto as hordas de pobreza existirem, existe o perigo de que um dia se torne impossível mantê-las à distância. Uma vez que o trabalho em massa se torne supérfluo, uma solução final espreita: a guerra genocida dos ricos contra os pobres. Muitos chamaram o recente veículo de promoção de Justin Timberlake, In Time, um filme marxista, mas é mais precisamente uma parábola da estrada para o exterminismo. No filme, uma pequena classe dominante literalmente vive para sempre em seus enclaves fechados devido à tecnologia genética, enquanto todos os outros estão programados para morrer aos 25, a menos que possam implorar, emprestar ou roubar mais tempo. A única coisa salvando os trabalhadores é que os ricos ainda têm alguma necessidade pelo seu trabalho; quando essa necessidade expirar, o mesmo acontece com a própria classe trabalhadora, presumivelmente.

Daí o exterminismo, como uma descrição desse tipo de sociedade. Tal fim genocida pode parecer um bizarro, nível de vilão de história em quadrinhos, barbarismo; Talvez não seja razoável pensar que um mundo marcado pelo holocausto do século XX poderia novamente afundar em tal depravação. E então, novamente, os Estados Unidos já são um país onde um candidato sério à Presidência se deleita em executar os inocentes, enquanto que o Comandante em Chefe em exercício ordena casualmente o assassinato de cidadãos americanos sem ao menos fingir o devido processo, para difusão de aplausos liberais.

Essas quatro visões são tipos ideais abstraídos, essências platônicas de uma sociedade. Eles deixam de fora muitos dos complicados detalhes da história e ignoram a realidade de que a escassez-abundância e igualdade-hierarquia não são dicotomias simples, mas sim escalas com muitos possíveis pontos intermediários. Mas a minha inspiração, ao desenhar esses retratos simplificados, foi o modelo de uma sociedade puramente capitalista que Marx perseguiu em O Capital: um ideal que nunca pode ser perfeitamente refletido nos complexos agrupamentos da história econômica real, mas que ilumina elementos únicos e fundamentais de uma ordem social específica. Os socialismos e barbarismos aqui descritos devem ser pensados como estradas que a humanidade deve percorrer, mesmo que sejam destinos que nunca alcancemos. Com algum conhecimento sobre o que está no final de cada estrada, talvez nós estaremos mais capacitados para evitarmos sair na direção errada.

5 de dezembro de 2011

A ungida

Uma ex-radical política pode liderar o Brasil em seu boom econômico?

Nicholas Lemann


Até o ano passado, Dilma Rousseff nunca havia se candidatado a um cargo público, mas foi escolhida para a presidência por seu carismático antecessor. Ilustração de Philip Burke

Tradução / Perto do final de "Viagens de Gulliver", Lemuel Gulliver passa alguns anos agradáveis na terra dos Houyhnhnms antes de retornar para a Inglaterra. Houyhnhnms são, vocês se lembram, essencialmente cavalos, que são servidos por criaturas semelhantes aos humanos, chamados Yahoos. Gulliver descreve para seus incrédulos anfitriões a situação em sua terra natal, onde os Yahoos governam sobre os Houyhnhnms. Como pode ser isso, eles querem saber, se os Yahoos caminham sem estabilidade sobre dois pés ao invés de firmemente em quatro, tem os dois olhos na frente da cabeça, de maneira que não podem ver o que há em cada lado sem precisar se virar, e precisam vestir roupas, porque seus pés não suportam o chão duro e sua pele não os protege do frio?

Se você está visitando o Brasil vindo dos Estados Unidos ou da Europa Ocidental, é difícil evitar o sentimento de ser um Yahoo na terra dos Houyhnhnms. Até recentemente, o Brasil tem sido um dos países mais rudes (em termos de educação) e economicamente instáveis do mundo. Agora sua economia cresce mais rapidamente que a dos Estados Unidos, e não foi atingido duramente pela Grande Recessão. O intervalo entre ricos e pobres nos EUA vem crescendo alarmantemente, enquanto no Brasil começa a diminuir. Vinte e oito milhões de brasileiros saíram da pobreza extrema na última década, ao mesmo tempo em que a pobreza nos EUA atinge seu maior percentual em anos O Brasil está em paz. Baniu qualquer tentativa de obter armas nucleares. Tem um orçamento equilibrado, dívida pública baixa, nível de emprego quase pleno, e inflação baixa. É, caoticamente, democrático. A imprensa é livre. O Brasil tem um quarto da terra agricultável no mundo. E há cinco anos o que parece ser um dos maiores campos de petróleo do mundo foi descoberto em suas águas. Brasileiros usualmente posicionam-se no topo dos indicadores de otimismo de seus cidadãos quanto ao futuro de seu país.

Segundo as rígidas regras de americanos e europeus desde o colapso do comunismo, nada disso deveria estar acontecendo. E isso não apenas porque o Brasil tem sido comandado por ex-revolucionários que nunca se arrependeram de suas ações, muitos dos quais – a presidente entre eles – ficaram presos durante anos por serem terroristas. O Brasil seguiu caminhos que fomos condicionados a pensar que são imcompatíveis com uma sociedade livre. Assim como os Houyhnhnms governam sobre os Yahoos, no Brasil o Estado controla o mercado. Ninguém fala de oportunidades individuais como o mais sagrado valor de uma sociedade. O governo central é muito mais poderoso e intrusivo do que é nos Estados Unidos; gasta pesadamente num programa extremamente popular que dá dinheiro aos muito pobres – a versão brasileira do programa que o Bill Clinton eliminou em 1996, quanto ele concorreu à eleição. O governo é bem mais corrupto. No Brasil, a criminalidade é alta, as escolas são fracas, as estradas são ruins e os portos mal funcionam. E mesmo assim, situado entre as grandes potências, conseguiu uma tripla proeza: alto crescimento econômico (diferentemente dos EUA e Europa), liberdade política (diferentemente da China) e queda na desigualdade (diferentemente de quase toda parte). Como isso pode acontecer?


Em Brasília, que eu visitei no verão passado, há dois palácios presidenciais, ambos projetados pelo arquiteto modernista Oscar Niemeyer. Em virtude da Casa Branca ter sido projetada principalmente como uma residência, o espaço dos escritórios na Ala Oeste parece um viveiro de coelhos. No Brasil, a presidente, Dilma Rousseff, vive com sua mãe e sua tia no Palácio da Alvorada, situado à margem de um pequeno lago, e trabalha no Planalto, no coração do bairro governamental. O Planalto é grandioso, com escritórios amplos e vastos espaços interiores com piso de pedra polida. Rousseff é uma presença vigorosa. Da mesma forma que a maioria das lideranças políticas do país, ela cresceu durante a ditadura que assumiu o poder com o golpe em 1964 e governou por vinte e um anos. Como integrante da organização VAR-Palmares, ela passou anos numa prisão e foi submetida a tortura. Hoje ela desenvolveu uma maneira eficaz de lidar com seu passado: ela é cândida e não se arrepende do que fez, mas vaga e lacônica.

No início da minha visita, Rousseff apresentou sua segunda principal iniciativa presidencial. A sua primeira iniciativa, o Brasil sem Miséria, anunciado em junho, era um programa de erradicação da miséria. Rousseff estabeleceu uma linha de pobreza, assim como fazem os EUA, e prometeu trazer todos que estão abaixo dela – dezesseis milhões de pessoas – para o outro lado até o fim de seu mandato, em 2014. Essa é uma promessa bem mais ambiciosa que a declaração de guerra de Lyndon Johnson contra a pobreza, em 1964, que muitos políticos americanosa consideravam inalcançável. Sob Rousseff, o objetivo principal do governo é reduzir a pobreza, e ela entende a promoção de um ambiente de prosperidade econômica como a melhor forma de fazer isso. Como Rousseff respondeu via email, a uma sequência de perguntas que eu lhe fiz através de seus assistentes, “O principal objetivo do desenvolvimento econômico deve ser sempre a melhora das condições de vida. Você não pode separar os dois conceitos. A criação e distribuição de riqueza eleva os padrões de vida; da mesma forma, a melhora das condições de vida leva à prosperidade econômica.”

A segunda iniciativa foi o que os americanos chamariam, com desprezo, de política industrial: o governo como orientador da economia de uma forma que os EUA, mesmo no auge do desespero de uma crise financeira, jamais considerariam.

O imenso espaço aberto do Planalto foi desenhado como uma espécie de auditório, ocupado por cadeiras dobráveis e um estrado. Os assentos plenos de repórteres, membros do Congresso Nacional e ministros de menor importância. Após alguns minutos, Rousseff irrompeu de cima por uma rampa branca espiralada que serve de escada entre o auditório e o andar de cima, seguida pelos ministros do alto escalão e uma penca de lideranças da indústria, todos envolvidos em negócios com o governo. A repórter a meu lado na seção de imprensa, Angela Pimenta, me cutuca e sussurra, “a gente chama esse grupo de O PIB”.

Após as autoridades tomarem seus lugares, o programa tem início, com um açucarado vídeo sobre o compromisso do Brasil com o crescimento e a inovação. Um desfile de ministros sobe no altar e anunciam um programa abertamente protecionista: tarifa sobre as importações, subsídios para os exportadores, favorecimentos especiais para as indústrias domésticas. A presidente Dilma Rousseff, trajando um vestido azul escuro, monárquica e impassiva, espera o fim dos discursos e aí se levanta e fala, com uma voz grave e sonora. Em sua juventude, Rousseff teve sua foto impressa em cartazes da polícia, usando óculos de lentes grossas e uma cabeleira escura e ondulada. Hoje ela está mais para austera, alguém que prende a atenção mas sem aquele ar natural dos políticos que sabem exatamente o que a audiência quer ouvir. “O momento atual exige coragem e ousadia”, diz ela. “Precisamos proteger nossa economia, nosso mercado de consumo, nossos empregos. É imperativo proteger a indústria brasileira da concorrência desleal da guerra cambial. Nossas fábricas e nossos trabalhadores precisam saber que o governo está a seu lado. Assim como não imaginamos nosso desenvolvimento sem inclusão social, não podemos imaginá-lo sem uma indústria inovadora, forte e competitiva”.

A principal preocupação de Rousseff é com a queda nas taxas de crescimento e o aumento da inflação. Os Estados Unidos parece estar sempre em sua lembrança; é um exemplo de como não reagir à crise financeira global, e como um competidor econômico que, na sua visão, está deixando o dólar se desvalorizar para invadir o Brasil e outros países com seus produtos irresistivelmente baratos. A nova política econômica de Rousseff tem como objetivo afastar os efeitos da crise, e provar que o Brasil não será afetado pelas extravagâncias do país mais poderoso do Hemisfério Ocidental. Ela conclui o discurso com uma citação de um proeminente economista brasileiro: “Nossa economia não é mais liderada de fora mas de dentro para fora. Temos em nossas mãos as ferramentas da autodeterminação que no passado esteve em mãos das nações ricas”. O público aplaude de pé, polidamente, e ela deixa o palco.


A política no Brasil gira em torno de uma grande figura, e não é Dilma Rousseff. É seu predecessor, Luis Inácio Lula da Silva, conhecido pelos brasileiros e pelo resto do mundo, simplesmente como Lula. Quando ele terminou seu mandato, em janeiro, Lula tinha uma aprovação superior a oitenta por cento. (A equipe de Rousseff faz pesquisas constantemente e diz que, em menos de um ano de gestão, ela tem setenta por cento de aprovação). Nos últimos cinco dos oito anos de presidência de Lula, Rousseff trabalhou como ministra da Casa Civil, uma posição sem correspondência nos EUA; é uma espécie de primeiro ministro de todas as funções internas do governo, e a quem os outros gabinetes devem se reportar. Lula ungiu-a como sucessora em 2010, um ano após ela conseguir curar-se de um linfoma, e fez campanha para ela. Rousseff jamais havia disputado um cargo eletivo. Ele é presidente hoje graças à determinação de Lula de fazê-la presidente. Sua vitória precisou de um segundo turno, porque ela não obteve os cinquenta por cento dos votos no primeiro round, e ganhou apenas em função do impressionante apoio que recebeu da parte do Brasil para quem Lula é quase um deus – os pobres, afro-brasileiros do Nordeste. Ela perdeu no sul, onde passou a maior parte de sua vida.

Comparados à Lula, os presidentes norte-americanos de origem humilde parecem aristocratas. Ele nasceu de um pai alcóolatra que teve duas famílias em diferentes cidades – vinte e dois filhos no total. Lula deixou a escola na quarta série. Começou a trabalhar como torneiro-mecânico aos catorze, e perdeu um dedo num acidente quando tinha dezenove anos. A sua primeira mulher adoeceu gravemente durante a gravidez do que seria seu primeiro filho; ela morreu porque não teve acesso a um tratamento decente.

Lula se tornou altamente bem sucedido por os padrões de sua família, quando ele obteve um emprego como metalúrgico numa fábrica da Volkswagen em São Paulo. Ele era ativo no sindicato dos metalúrgicos, e tornou-se uma autoridade sindical, liderando greves e fazendo oposição ao regime militar. Passou um breve período na prisão. No fim dos anos 70, ele ajudou a fundar o Partido dos Trabalhadores, que todos chamam PT. É o partido de Rousseff também, embora ela só tenha se tornado um membro a partir de 2000.

Em 1985, a ditadura militar acabou. Em 1989, Lula, naquela época um membro do congresso nacional, participou da primeira eleição direta desde o fim da ditadura, e perdeu. O Brasil ainda engatinhava como democracia. Em função de um complicado sistema de voto proporcional, mais de vinte partidos estavam representados no congresso. O PT era um partido atípico em sua ambição de governar o país; a maioria dos outros era o que os brasileiros chama de “fisiológicos”, significando que eles não fingiam nenhuma ideologia além de seus interesses regionais. Existem trinta e oito ministérios, a maioria dos quais funciona como máquinas clientelistas para os pequenos partidos, em troca de seu apoio à coalizão governamental. (A que apoia o PT atualmente engloba dezesseis partidos.)

No início dos anos 90, o Brasil tinha uma das mais altas taxas de inflação do mundo: em 1993, a inflação era de mais de dois mil por cento ao ano. A reduzida classe média estava relativamente protegida de seus efeitos, porque todo contrato, salário, e benefícios, eram ajustados automaticamente pela taxa de inflação. Mas os pobres tinham que gastar seu salário imediatamente após recebê-lo, antes da alta no preço dos alimentos. “Dinheiro era como gelo derretendo em seus bolsos”, diz Arminio Fraga, um economista que então trabalhava para o governo.

Depois de uma série de batalhas perdidas contra a inflação, um presidente chamado Itamar Franco trouxe para o ministério da Fazenda Fernando Henrique Cardoso, um aristocrático acadêmico (na verdade um sociólogo, não economista) com a reputação de ser levemente esquerdista. Cardoso desenvolveu um plano anti-inflação que finalmente deu certo, através sobretudo da eliminação do sistema monetário corrente e sua substituição pelo Real. O sucesso do Real fez de Cardoso um herói. Como Fraga explica, “ficou muito claro que aquele que matasse o dragão, poderia desposar a princesa.”

Cardoso elegeu-se presidente em 1994 e foi reeleito em 1998. Ele manteve a inflação baixa e privatizou uma série de empresas controladas pelo governo. Antes dele assumir o cargo, o governo possuía a companhia telefônica e demorava-se mais de dois anos para conseguir instalar uma linha telefônica em sua residência, a menos que você se dispusesse a comprar a linha de alguém por milhares de reais. As políticas de Cardoso tornaram possível ao Brasil participar da economia global.

O adversário de Cardoso em suas duas eleições foi Lula. Eles conheciam-se um ao outro desde os anos 70, e tiveram um relacoinamento conturbado. Lula concorreu duas vezes contra Cardoso como o candidato da esquerda, acusando-o de ser uma marionete dos mercados e oferecendo, por sua vez, o clássico programa político latino anti-capitalista de aplicar moratória na dívida pública, nacionalizar a indústria e romper com o Funo Monetário Internacional. Esse programa tornou-o insuportável aos empresários e à classe média, que receava que Lula, se presidente, se espelharia em Fidel Castro. Ele perdeu feio nas duas vezes. Cardoso escreveu em suas memórias que os dois pararam de conversar um com outro por cinco anos, e numa ocasião Cardoso processou Lula por difamação.

Em 2002, Cardoso retirou-se da disputa, e Lula mais uma vez disputou a presidência. Desta vez, ele fixou-se ao centro. No verão anterior às eleições, ele divulgou uma Carta aos Brasileiros, onde se comprometia a continuar o programa econômico de Cardoso (sem dar crédito por tê-lo criado). Quando ganhou, vencendo o candidato escolhido por Cardoso, os mercados brasileiros entraram em pânico. Mas Lula seguiu o caminho que havia prometido.

Enquanto manteve a política fiscal e monetária ainda mais disciplinada do que os EUA durante o mesmo período, ele simultaneamente pegou alguns programas sociais do governo anterior e ampliou-os a uma escala muito maior, e rebatizou-os como Bolsa Família. O Bolsa Família afeta diretamente um quarto da população brasileira – cinquenta milhões de pessoas – seja dando dinheiro para as famílias mais pobres ou pagando aos pais de baixa renda um estipênio, sob condição de que eles vacinassem suas crianças e as mandassem à escola. Ele também presidiu a criação do primeiro sistema crédito voltado aos trabalhadores, chamado crédito consignado, dando aos bancos o direito de deduzir empréstimos diretamente de seus contracheques. Nenhum desses planos poderia ter funcionado se Cardoso não tivesse domado a inflação, mas foi Lula que levou a fama.

Em 2005, os jornais brasileiros descobriram um monstruoso escândalo, chamado “mensalão”; o PT vinha fazendo pagamentos regulares a seus aliados para manter a política e coalizão. O escândalo derrubou os dois aliados mais importantes de Lula, que eram seus sucessores em potencial: Antonio Palocci, seu ministro da Fazenda, e o principal responsável por manter as orientações econômicas de Cardoso; e José Dirceu, seu chefe de gabinete, outro ex-radical que havia sido preso nos anos 60. (Seus colegas sequestraram o embaixador americano no Brasil e conseguiram, como resgate, liberar Dirceu e outros prisioneiros. Dirceu então mudou-se para Cuba, fez cirurgia plástica para disfarçar o rosto, e, poucos anos depois, retornou secretamente ao Brasil sob um nome falso). A queda de Palocci e Dirceu foi a razão da ascensão de Dilma Rousseff.

As políticas de Lula foram tão bem aceitas que ele se reelegeu em 2006, apesar do escândalo do mensalão. Durante o segundo termo, num período de altos preços para commodities, o Brasil se tornou o principal fornecedor de alimentos e minério de ferro para a China, e a China ultrapassou os EUA como maior parceiro comercial do Brasil.

A confiança de Lula em sua habilidade de reunir gente não se limitaria às fronteiras do Brasil. Como presidente, ele viajou o mundo, tornando-se amigo de parceiros comerciais e chefes de Estado como Hugo Chávez, Fidel Castro, Muammar Qaddafi, Bashar al-Assad e Mahmoud Ahmadinejad. Em 2004, ele enviou tropas brasileiras ao Haiti depois de um golpe. Lula foi a Ramallah e tentou trazer a paz entre Israel e Palestina. Ele foi a Ankara e negociou um acordo pelo qual a Turquia iria trocar urânio não-enriquecido iraniano por urânio enriquecido de outros países, supostamente para fins pacíficos. Ele também manteve um caloroso relacionamento com George W.Bush, o que o próprio Cardoso não foi capaz de fazer.

Em 2001, o economista da Goldman Sachs, Jim O’Neill, inventou o acrônimo BRIC, para designar as economias emergentes do mundo: Brasil, Rússia, Índia e China. Lula adorou a ideia, e em 2006, ele ajudou a criar uma associação formal BRIC, que agora inclui a África do Sul. É fácil tirar sarro das aventuras globais de Lula, mas o seu país colheu enormes vantagens. Brasil é agora a sétima maior economia do planeta e deve ultrapassar em breve a França e o Reino Unido e tornar-se a quinta. “Esta é a primeira vez na história que uma nação de porte continental tenta se projetar no mundo através de um poder pacífico”, disse-me Thomas Shannon, o embaixador americano em Brasília. “No passado, as nações tornavam-se potências globais através de calamidades”.


Cardoso reclama, em suas memórias, que em função de Lula estar sempre em movimento, ninguém jamais sabe onde ele está. Minha própria experiência foi que Lula é acessível, através de seus assessores, mas fluido. Foi combinado que nós encontraríamos muito antes d’eu saber exatamente onde e quando. O encontro teve lugar ao final da tarde, no início de agosto, num novo Sofitel em São Paulo, uma das muitas manifestações da nova prosperidade do Brasil pós-Lula. Dois membros da equipe aguardavam-me na melhor suíte do hotel, junto com Lula: seu jovem assessor de imprensa, José Chrispiniano, e Ottoni Fernandes, outro ex-guerrilheiro, que hoje trabalha como seu assessor de comunicação.

Lula é um homem baixo e atarracado, com cabelos grisalhos e uma barba cheia. Ele vestia um terno cinza de listras finas e uma camisa preta de seda. Seus assessores me contaram que esta seria a sua primeira entrevista longa desde que ele havia deixado a presidência, em janeiro. (No momento, Lula está sendo tratado de um câncer de garganta e está inacessível).

Lula começou anunciando que ele iria fazer o cafezinho, um ritual que inicia qualquer encontro no Brasil. Mesmo funcionários subalternos tem assistentes para trazer café numa bandeja, então, preparando ele mesmo o café, Lula me enviava uma mensagem do tipo de homem ele era. “Eu vou fazê-lo entre o brasileiro e o americano”, ele disse, com um grande sorriso. “O brasileiro é muito forte e o americano é muito fraco”. Ele me passou a xícara. “Ótimo!” Ele olhou ao redor e disse, dirigindo-se de lado a qualquer um, “eu nunca sei como é o café antes”.

Sentamo-nos em torno de uma grande mesa numa sala de reunião. Lula não fala inglês, então eu havia trazido uma intérprete, Elisabeth Bastos, comigo. Ela deu a Lula e a mim aparelhos de ouvido de maneira que ela podia fazer uma tradução simultânea, aos moldes da Assembléia Geral das Nações Unidas. Depois de um momento, porém, Lula começou a se incomodar e tirou o aparelho. Ele pegou sua cadeira e a pôs junto a mim, de forma que nossos joelhos quase se tocavam, e pediu a Bastos para sentar-se um pouco atrás dele; depois da minha pergunta, ela poderia apenas sussurrar a tradução em seu ouvido. Como fazem os melhores políticos, Lula gosta de estabelecer uma relação física quando está falando com uma pessoa. Seu rosto largo, rude e triangular estava bem diante de mim. Enquanto falava, seus olhos castanhos se arregalavam, suas sobrancelhas remexiam-se, suas pernas agitavam-se, seu indicador curto e grosso cutucava meu joelho.

Lula explicou que quando era presidente ele não conseguiu agir apenas segundo as regras constitucionais para as relações entre o Executivo, partidos e Congresso. “Aqui é bem mais difícil”, ele disse. “É o que chamaríamos de democracia direta. Quero dizer que eu trabalhei junto com a sociedade civil para que esta produzisse políticas públicas que interessavam ao governo. Todas as grandes questões foram debatidas a nível local, a nível estadual e a nível nacional. Poucos governos no mundo praticam a democracia do jeito que fazemos. No auge da crise de 2008, ouvimos os homens de negócio e ouvimos os trabalhadores”. Ele sugeria que o governo americano não havia feito consultas tão amplas durante a crise. "Todo ano, eu tinha um encontro com as pessoas que viviam nas ruas".

No início de sua trajetória, disse Lula, ele pensava em si mesmo como representando apenas os trabalhadores, mas desde então ele desenvolveu a visão universal que ele tem hoje. “Vou te contar uma história”, ele disse. “Eu era contra a política. Quando fizemos nossas primeiras greves”, no final dos anos 70, “eu não gostava de política, e não gostava das pessoas que gostavam de política. Eu achava que isso era sabedoria. Hoje, eu vejo que era ignorância. Os militares criaram categorias de profissões essenciais que não podiam fazer greves: professores, bancários, bombeiros, frentistas. Quando eu fui à Brasília pela primeira vez para falar ao Congresso, eu descobri que dos quinhentos e treze membros do Congresso havia apenas dois trabalhadores. Dois! Em 15 de julho de 1978, eu tive a ideia de criar o PT. Em novembro, eu, que não gostava nem um pouco de política, já estava fazendo campanha para o candidato a senador Fernando Henrique Cardoso”, significando que ele havia transcendido o paroquialismo para ajudar alguém que não era um companheiro-trabalhador. “Por que eu quis me tornar um político? Porque eu estava certo que eu podia fazer o que eu estava esperando que outros fizessem por mim. E nós fizemos mais do que estava em nossos planos”.

Se tivéssemos continuado as políticas de FHC, o Brasil teria quebrado”, diz Lula. “O Brasil deu certo apenas porque mudamos suas políticas. A única coisa que mantivemos foi a responsabilidade fiscal. Uma coisa – foi tudo. O que aconteceu depois de domada a inflação? Nós éramos muito ativos em política internacional. Por muitos anos, o Brasil não teve política de investimento. Não havia habilidade para gerar empregos. Nenhuma política para redistribuir a renda. E eu tive uma outra ideia, Nicholas: eu tive a ideia de que não havia sido eleito para brigar com meu antecessor. Eu não tinha tempo para brigar com ele, então eu decidi governar o país.”

Eu perguntei a Lula se a sua visão política havia mudado enquanto ele era presidente, especialmente na questão do manejamento da economia. “Eu acho que mudou”, ele disse. “Mudaram porque, uma vez que você se torna presidente, é como ser pai. Quando você é filho, você acha que seu pai tem todo o dinheiro do mundo para te dar. Quando você é oposição, ou líder sindical, você acha que o governo tem todo o dinheiro do mundo. Quando você se torna governo, você descobre que o governo não tem todo aquele dinheiro que você achava que tinha, e você tem contas que são vinte vezes o que você pode pagar. Então eu vi que a economia não era tão fácil como eu pensava quando eu era um líder sindical, mas eu também descobri que não era tão difícil como algumas lideranças políticas diziam. A gente tinha que distribuir a renda para poder crescer. Os economistas não achavam que isso era possível. Nós provamos que era possível crescer, distribuir riqueza, e fazer isso com inclusão social sem inflação. Hoje o Brasil tem trezentos e cinquenta bilhões de dólares em reservas. Não devemos um centavo ao FMI e o FMI nos deve catorze bilhões.”

Sobre o papel do Brasil nas questões internacionais, “eu descobri uma coisa em política: uma grande ciumeira entre os políticos”, disse Lula, sacudindo tristemente a cabeça. “Aqueles que já estão sentados à mesa, tomando parte num banquete, não querem que ninguém mais possa desfrutar do banquete”. Logo após a sua posse, ele disse, ele discursou sobre a fome no sul do Brasil e depois foi a Davos, Suíça, para a convenção anual dos senhores da economia global. “Eu fiz o mesmo discurso sobre a fome. Eu sou possivelmente o único político que expressou a mesma mensagem no Fórum Social e no Fórum Econômico em Davos, e quando eu voltei pra casa eu tisse a meu ministro de Relações Exteriores que a gente precisava trabalhar duro para mudar a geografia comercial e política do mundo.

Nós tomamos a decisão de fortalecer nossas relações com o Oriente Médio, China, Índia e África, sem cortar nossas boas relações com EUA e Europa. Nossa ideia era diversificar nossas relações o máximo possível; queríamos fazer negócio com muitos países. Eu queria ser como vendedor de rua, um camelô. No Brasil, nós o chamamos Turcos. Eles levam mercadorias numa mala e tapetes e roupas sob seus braços”.

Ele rapidamente representou o personagem de um Turco: ele inclinava-ser sob o peso de uma sacola imaginária, com seu rosto vincado por uma expressão de grande esforço, e deu a volta em torno de sua cadeira. “Eu tinha a imagem de minha mãe comprando produtos em sua porta. Eu pensei que o Brasil tinha certas limitações perto dos EUA, que tem mais tecnologia que o Brasil e compete com nosso setor agrícola. Então o que tínhamos que fazer? Olhar para os parcerios que eram semelhantes ao Brasil. O vendedor de rua não vai vender seus produtos na avenida mais sofisticada ou no bairro mais rico de Nova York.

Ele vai aos quarteirões mais pobres, assim como se faz no Brasil. Então a gente foi à América Latina, África, Oriente Médio, e Ásia. Esse ano, se tudo for bem, estaremos exportando trezentos bilhões de dólares.” Seu dedo cutuca meu joelho. “O Brasil tem a oportunidade de crescer em parceria com países parecidos ao Brasil”.

Lula disse que o Brasil deveria ser aceito como membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas, o pequeno corpo que detêm as principais cartas nas deliberações da ONU. Esta parece ser a mesa onde os políticos ciumentos se sentam, a que ele se referia antes, da qual o Brasil e outros países como ele são excluídos.

“Nós não temos o direito de manter a mesma visão do mundo que tínhamos em 1948”, ele disse. Ele se recosta um momento e procura ver se os seus assessores concordam. Eles concordam. “Como é que em 1948, a ONU foi sábia o bastante para criar o Estado de Israel, e em 2011 não o é para criar o Estado da Palestina? Como é que a ONU permitiu que a Otan fizesse o que fez na Líbia, em vez de trazer a Líbia à mesa”.

Ele volta sua atenção para mim. “Eu vou te contar um episódio sobre o Irã”, ele disse. “Eu vou lembrar disso pelo resto da minha vida. Eu nunca havia falado com Ahmadinejad. Ele pediu para me encontrar em Nova York. Depois de nossa conversa, a primeira pergunta que fiz ele foi: Sr.Presidente, é verdade que você não acredita no Holocausto? Se sim, você é o único que não acredita. E o que ele disse foi: O que eu quis dizer foi, na Segunda Guerra Mundial, setenta milhões de pessoas morreram, e os judeus pensam que eles foram os únicos que morreram. Eu disse: Se é isso que você quer dizer, então diga isso. Setenta milhões de pessoas morreram. Os seis milhões de judeus não morreram simplesmente. Foi um genocídio. Eles não estavam na guerra. Então, no encontro do G-20, eu falei com Obama, Sarkozy, Merkel, Brown, Berlusconi.” Ele cutucou meu joelho de novo. “Eu disse: porque vocês não falam com Ahmadinejad? Vocês não podem fazer política se não falam com as pessoas”. Eu viajei ao Irã, contra a vontade de muitos amigos e presidentes, e o que aconteceu? Eles assinaram um compromisso sobre proliferação nuclear, justamente como o Conselho de Segurança queria que eles fizessem. Mas para minha surpresa, eles decidiram manter as sanções, como punição ao Irã. Por quê? Porque não foram eles que levaram adiante o acordo? Essa foi a primeira vez que eu tive o sentimento que o ciúmes em política é um assunto muito delicado”. Outra cutucada. “Eu falei muitas vezes com Bush e Obama. Eu dizia: Como vocês não vêem que a América Latina hoje é diferente de como era nos anos 60? Eu não acredito que vocês não tenham ideia de como é o Brasil agora! Eu escuto políticos dizendo que devíamos tratar o Brasil da mesma maneira que tratamos qualquer outro país pequeno. Mas todos devem ser tratados com respeito.” Lula balançou a cabeça. “Talvez eu não tenha alcançado meu objetivo. O jogo internacional, não é fácil.”

Eu perguntei a Lula sobre o tema que estava na cabeça de todo mundo na política brasileira: quais eram seus planos? Ele evitou a questão, e listou os possíveis sucessores que ele considerou antes de escolher Dilma. “Eu conheci Dilma Rousseff um pouco antes da minha eleição em 2002”, ele disse. “A primeira vez que conversamos, quando eu estava esboçando meu plano energético, eu decidi que ali estava minha ministra de Energia. José Dirceu é um amigo, um companheiro fundador do PT, presidente do partido. Um camarada. Antonio Palocci é um dos caras mais inteligentes que eu conheci. Ele cometeu erros que não deveria ter cometido. Ambos estão temporariamente fora da política, e Dilma é nossa presidente. Eu os respeito a todos, e quanto a Dilma, eu admiro a sua competência, sua lealdade, e sua determinação.” Hoje, Dirceu é advogado no Rio de Janeiro, oficialmente banido da política até 2015. Palocci, que não sofreu nenhum banimento, entrou no mundo dos negócios.

Quando eu perguntei a Lula se ele poderia considerar concorrer à presidência novamente, ele disse: “Não existe isso de ficar fora da política para sempre. Apenas depois de morto, um político pode sair da política para sempre. Olhe para Jimmy Carter: ele falhou como presidente, e agora ele é o melhor ex-presidente em política. Eu o admiro enormemente. E Clinton – ele nunca perderá sua importância. Então o que acontecerá no futuro? Eu não sei. Eu já desempenhei meu papel no Brasil. Assim como eu não tenho coragem de dizer que eu irei concorrer a algum cargo em determinado momento, eu não coragem de dizer que não vou. Se a presidente Dilma quiser concorrer à reeleição, é seu direito. Ninguém pode negar a ela esse direito. Existe apenas uma maneira dela não fazê-lo: se ela não quiser. Nós temos muitos jovens no Brasil que estão no momento certo para concorrer à presidência. Eu permanecerei na política. Eu vou continuar viajando. Eu estive em vinte e um países somente este ano. Eu vou a mais vinte três até dezembro.” O diagnóstico de câncer impediu Lula de atinir esse objetivo. “Eu não nasci político. Eu estive fora da política até os 31 anso. Mas eu sei que irei morrer como político. Essa é minha sina.”

Os assessores de Lula tentaram concluir a entrevista, mas Lula não parecia afim de parar. Finalmente, ele se levantou e me deu um abraço: não um desses cuidadosamente calculado entre conhecidos sem intimidade, mas um longo, apertado, usando os dois braços, barriga contra barriga. A gente conversou um pouco mais enquanto eu me despedia. Lula disse que ainda era muito cedo para escrever suas memórias presidenciais. Em vez disso, ele iria publicar uma coletânea de cinquenta memórias, escritas por pessoas que participaram de sua administração. Empresários iriam contribuir, e gays e índios e mesmo Bill Gates, se ele quisesse. E depois Lula pensa em criar um museu da democracia. Além disso, há dois documentários sobre a sua presidência em andamento. Ele me deu outro abraço e dissemos adeus.


Nos próximos anos, o governo brasileiro terá uma série de oportunidades de alto nível de ganhar projeção ou embaraçar-se. A conferência Rio + 20 sobre desenvolvimento sustentável será realizada em junho, no aniversário da Eco 92. Depois virá a Copa do Mundo, em 2014, e as Olimpíadas, em 2016, ambas no Rio de Janeiro. O charme da cidade é bem conhecido, assim como seus problemas: aeroportos inadequados, trânsito terrível e chocantes índices de pobreza e criminalidade nas favelas, que se estendem pelas montanhas que cortam toda a cidade. Não há um serviço de trem entre Rio e São Paulo, que estão entre as maiores cidades do mundo e ficam mais próximas que Nova York e Washington DC. Uma dúzia de estádios e vários novos museus deverão supostamente estar prontos antes que o mundo inteiro chegue – bilhões de dólares em projetos.

O governador do estado do Rio de Janeiro, que encampa a cidade e o interior, é Sérgio Cabral, um político em ascenção que é frequentemente mencionado como um potencial futuro presidente do Brasil. Cabral governa de um amplo e murado complexo dentro da capital. O dia em que eu o visitei, ele estava trabalhando até tarde. Lula estava na cidade e eles participaram de um evento juntos, após o qual Cabral deu uma carona a Lula em seu helicóptero. Cabral, filho de um jornalista que foi preso na ditadura, é um político nato, mas, diferente de Lula, que faz o tipo íntimo, Cabral faz o tipo exuberante. Ele é um belo homem, agitado, com uma vasta cabeleira e um peito inflado. Ele sabia que seu papel era me contar sobre os planos que ele e a presidente Dilma tinham para melhorar o Rio – ele fala inglês entusiasticamente, embora nem sempre de maneira muito correta – mas ainda estava emocionado com seu recente encontro com Lula. “O Presidente Lula é incrível!”, declarou.

Um assistente nos trouxe café. Na mesa de Cabra, olhando para seus visitantes, havia fotos dele com o presidente Obama e com Lula. “Ele escolheu uma mulher, uma mulher forte, para concorrer à presidência – pela primeira vez na história”, disse Cabral. “Todos os ministros – finanças, infra-estrutura – obedecem a ela. Ele nunca havia participado de uma eleição em sua vida. Ela tem uma linda trajetória, uma história”. Ele estava se referindo às suas atividades como militante e seu tempo de prisão. “Ela arriscou sua vida em prol da democracia. Mas ela nunca concorreu!” Cabral não mostrava, obviamente, que isso tivesse grande importância no currículo de Dilma.

“Eu concorri à reeleição junto com sua campanha – incrível!”, ele disse. “Ela não parecia inexperiente. Não! Eu a acompanhei em muitos debates – incrível! Ela aprendia tudo rápido”. Ele descreveu um desses terrivelmente chatos eventos de campanha que se arrastavam interminavelmente. “Ela saía?”, ele disse. “Não. Ela gostava! Assim como eu, ela tem um forte respeito pelo presidente Lula. Ela é grata a ele”.

Cabral, assim como a maioria dos políticos brasileiros que encontrei, queria se vangloriar de como o Brasil vem manejando bem a sua economia. “É muito importante não termos problemas como o que Obama está tendo com a dívida pública”, disse. “A oposição republicana é diferente da oposição aqui. Eu acho que o ódio contra um homem negro ocupando a presidência não deveria ser razão para pôr o país em perigo. Eles desrespeitam Obama por causa da sua raça. E isso não é ruim apenas para Obama, mas para o país. No Brasil, a oposição tentou dar umas rasteiras em Lula, mas o povo se manteve solidário com Lula. O trabalhador, o negro, o operário, a mulher. O mundo está mudando. Graças a Deus.”

Neste momento, numa grande tela na parede, um website informou que Lula fez a mesma observação à imprensa que ele havia feito a mim: a única razão para Dilma não ser candidata em 2014 seria se ela não quisesse ser – uma afirmação em código, eu pensei. Mas Cabral declarou que esta era, como sempre, uma magnífica demonstração de apoio de Lula à sucessora escolhida. Cabral tinha que sair, mas antes ele se virou para mim e declarou: "Lula é nosso líder! Lula é meu líder!"


Mais tarde, eu fui conhecer uma clásssica favela carioca, o Santa Marta, que se tornou mundialmente famosa quando Spike Lee fez o clipe de Michael Jackson, “They Don’t Care About Us”, em 1996. Você vai ao Santa Marta pegando um teleférico que o leva até o alto da montanha. No topo, há uma estação de polícia onde consta uma placa com uma homenagem a Cabral e seus colegas. A estação de polícia foi construída originalmente para ser uma creche, mas o índice de violência era tão alto que os pais tinham medo de deixar as crianças por lá.

Em 2008, o governo decidiu usar o Santa Marta para implementar sua nova política de combate ao crime. Um batalhão de centenas de policiais ocupou a favela e a “pacificou”. As paredes da estação policial ainda tem marcas de balas, uma lembrança das batalhas entre a polícia e a gangue que dominava a favela. Gradualmente, conforme a situação foi se normalizando e a a gangue se dissolveu, a ocupação se tornou num tipo mais sofisticado de ocupação policial. Mais de cem policiais estão permanentemente entre as dez mil pessoas que vivem na favela. Por toda a comunidade, cabos de eletricidade e tv são instalados e paredes de concreto são levantadas. Há muitas igrejas (treze pentecostais, uma católica), centros de assistência social, policiais especialmente treinados fazendo rondas, e pequenos bares, restaurantes e outros negócios – tudo graças a algum tipo de subsídio governamental.

Há atualmente dezenove unidades de pacificação em favelas do Rio; o governo objetiva fazer um total de quarenta até 2014. Isso vai requerer milhares de novos oficiais de polícia. A maior favela do Rio, Rocinha, foi ocupada por três mil soldados no mês passado. O projeto nas favelas é um impressionante exemplo da ambição, poder e determinação do governo brasileiro de representar um bom papel para a Copa do Mundo e Olimpíadas, e da enorme necessidade de recursos se for dar o próximo passo para o desenvolvimento nacional.


Dilma Rousseff, agora com sessenta e três, é a segunda criança do segundo casamento (com uma brasileira bem mais jovem) do ex-comunista bulgariano chamado Petar Russev. Ele fugiu da Europa para o Brasil nos anos 30, mudou seu nome para Pedro Rousseff, tornou-se um empresário de sucesso, e criou seus três filhos numa atmosfera de riqueza, cultura e boa educação. (O irmão mais velho de Dilma, Igor, é um advogado; sua irmão mais nova, Zana, morreu há mais de trinta anos.) Dilma era uma estudante universitária durante o golpe de 1964 que impôs uma ditadura militar no Brasil, e rapidamente se radicalizou. Ao final dos anos 60, ela era casada com outro militante, Cláudio Galeno Linhares. Eles viviam escondidos, guardando e transportando armas, bombas e dinheiro roubado, planejando e executando “ações”.

Dilma jamais negou seu passado, mas ela raramente o discutiu em detalhes e hoje não toca no assunto. Em 2003, ela deu um depoimento a uma repórter da Folha de São Paulo, maior jornal do país, sobre um incidente no qual ela e uma colega chamada Maria Celeste Martins (então colegas de militância, depois colegas de governo) tiveram que esconder armas com urgência: “Celeste e eu entramos com um balde; eu me lembro bem deste balde porque ele tinha munição. As armas a gente enrolara num edredon. A gente levou tudo para uma pensão e colocamos embaixo da cama. Havia tanta coisa que levantava a cama do chão. Foi difícil para a gente dormir ali, muito desconfortável. Os rifles automáticos leves, dos quais tínhamos tantos, estavam todos ali. Tínhamos uma metralhadora automática, e explosivos plásticos. Falando disso hoje, eu pareço não ser a mesma pessoa”. (Rousseff insiste que ela nunca participou pessoalmente de ações violentas durante seus anos de militância.)

Ao final dos anos 60, Rousseff deixou Galeno por Carlos Araújo, outro proeminente militante. Ele ficaram juntos por vinte e cinco anos; sua filha, agora com mais de trinta, é uma promotora pública. Em 1994, quando Rousseff descobriu que Araújo tivera um filho com outra mulher, o casamento se rompeu, mas hoje eles mantêm uma relação cordial. Ela e Araújo são conhecidos por terem (supostamente) planejado a operação mais bem sucedida, financeiramente, da resistência ao regime: o roubo, em 1969, de dois milhões e meio de dólares de um cofre na casa da amante do ex-governador de São Paulo. No início dos anos 70, os militares finalmente a capturaram. Ela passou três anos na prisão, onde foi sujeita a toda espécie de torturas.

Depois que foi libertad, e já recuperada psicologicamente, Rousseff graduou-se em Economia e depois trabalhou numa consultoria. Ela juntou-se ao principal partido do Rio Grande do Sul, o Partido Democrático Trabalhista, o PDT, e logo começou a assumir posições no governo em Porto Alegre, onde sua filha vive hoje. Nos anos 80, estava claro que ela havia encontrado sua vocação como burocrata. Ela ascendeu à posição de secretaria de Energia no governo estadual do Rio Grande do Sul, onde ela conheceu Lula e o impressionou tão fortemente que ele decidiu nomeá-la Ministra de Energia em sua administração.

Perto do final da presidência de FHC, havia frequentes “apagões” no país, uma das razões pelas quais ele jamais seria tão popular como Lula seria. Quando Dilma Rousseff foi Ministra de Energia no governo Lula, não houve mais apagões. Ela fez uma série de ousadas intervenções na logística do setor, com resultados impressionantes. Rousseff é uma ávida consumidora de alta cultura – ópera, literatura (ela fez uma visita certa feita a casa de Marcel Proust, no interior da França), artes, filosofia, teatro – mas ela ascendeu no poder porque era inteligente e durona e podia fazer as coisas acontecerem no Brasil.

Dilma é tão diferente de Lula quanto Lula era de FHC. Lula não prestava atenção aos detalhes; Dilma conhece os detalhes de tudo. Ele era mais político, ela é mais diplomática. Como Paulo Sotero, que dirige o Instituto Brazil do Centro de Estudos Woodrow Wilson, em Washington DC, define: “Dilma compreende tudo em que Lula acredita”. David Rothkopf, um consultor americano de política externa, que participou de encontros com Dilma, me disse que “ela comanda a sala. As pessoas a obedecem. Ela está acostumada a isso. Ela sempre vem preparada. Você sabe para onde as coisas vão. E tem uma reputação algo intimidante.” Glauco Arbix, que dirige uma agência governamental chamada Finep (a principal ferramenta de financiamento para pesquisas em inovação científica e tecnológica, uma tarefa que os americanos nunca confiariam a uma agência governamental), e que trabalhou com Lula e com Dilma, observa: “Ela tem um estilo diferente, totalmente diferente. Ela é uma economista por prática. Ela tem uma metodologia; ela procura coerência, razão. Eu não sei se essas qualidades são de grande valia para um presidente. Elas reduzem a sua flexibilidade. ” Ele acrescentou, sobre Lula, “se ele gostasse de voce, e você lhe apresentasse um projeto, ele diria: vai em frente, meu filho. Ela quer saber como você vai organizar as coisas, quais as suas expectativas, como você medirá os resultados.”

Lula tinha uma poderosa e natural conexão com os brasileiros pobres que formam três quartos da população. Como um ex-membro do governo me disse, “eles olham para ele e pensam: esse cara podia ser eu”. Dilma, que as pessoas frequentemente descrevem como alguém sem muito carisma, teve que ser treinada para falar em público e socialização política. Ela é uma mulher educada de classe média. Lula pode falar com total convicção sobre como foi emocionante comprar sua primeira televisão e seu primeiro ar-condicionado. Ele lutou contra a ditadura, e sua administração propôs a criação de uma comissão da verdade para investigar os abusos cometidos no passado. Mas foi Dilma quem assinou oficialmente a sua criação.

João Moreira Salles, um documentarista que passou bastante tempo com Lula em 2002, me disse, “O dia que Lula podia trocar seu macacão por um terno foi muito feliz para ele. Ele disse, ‘vestir um macadão só é legal se você não é obrigado a vesti-los’. Dilma, pode-se dizer, é mais de esquerda. Lula, estou seguro, acredita em Deus. Eu tenho dúvidas se Dilma acredita.”

Após assumir, Dilma começou a se distanciar das iniciativas exóticas de Lula no campo da política externa. Ela declarou que, como alguém que havia sido torturado, ela tinha uma preocupação especial com um governo que tortura, e isso influenciaria a parceria diplomática com o Irã. Ela tirou as tropas brasileiras do Haiti. Tudo isso não por causa de uma postura mais humilde perante o mundo, mas em busca de mais eficiência e menos excentricidade.

A grande determinação de Dilma parece voltar-se para o esforço de fazer do Brasil – sempre em linha com sua ideologia e de seu governo de pôr o governo o primeiro lugar, e o mercado em segundo – um país mais importante. A primeira potência visitada foi a China, não os EUA. O presidente Obama visitou Dilma em Brasília antes dela ir à Washington. A ocasião foi um pouco desastrada: Obama e a Otan haviam acabado de decidir o bombardeio da Líbia, um ato que o Brasil não apoiara, e Dilma e seu ministro de Relações Internacionais, Antonio Patriota, tiveram seu encontro com Obama interrompido por meia hora por um assunto urgente que Obama teve de resolver. Ainda sim, a mensagem da visita foi inequívoca.


Durante o verão e o outono, uma série de escândalos dominou Brasília. A Folha revelou que Antonio Palocci, que havia sido gerente de campanha de Dilma e era seu chefe de gabinete [na verdade, ministro da Casa Civil], aumentara seu patrimônio líquido vinte vezes através de uma firma de consultoria que ele dirigia enquanto trabalhava na campanha e também como deputado. (No Brasil, deputados tem permissão para obter ganhos externos, mas a prosperidade de Palocci levantou suspeitas). Embora Palocci jamais foi oficialmente acusado de nada, ele renunciou, assim como tinha feito cinco anos antes, durante a gestão Lula, por ocasião do escândalo do mensalão.

O ministro dos Transportes, Alfredo Nascimento, demitiu-se após reportagens em jornais sobre corrupção em sua pasta; vários funcionários do ministério saíram junto com ele. O ministro da Defesa, Nelson Jobim, demitiu-se após ter concedido uma entrevista a uma revista na qual ele chamava outro ministro de “fraco”. Os ministros da Agricultura, do Turismo, e dos Esportes, demitiram-se após acusações de corrupção. O ministro do Trabalho está sob acusações similares. Todos eles negaram os malfeitos. O resumo da situação, enviado pelo gabinete de Dilma para mim, foi esse: “Corrupção, infelizmente, é um mal que assola todos os países. A luta contra ela deve ser constante, é uma batalha diária.”

A atitude da classe política brasileira frente a esses escândalos é complicada. Ninguém acredita que Dilma seja corrupta: ela tem mostrado muito mais intolerância para com a corrupção do que os presidentes anteriores. Mas ela trabalhou por anos com a maioria das pessoas que pediram demissão. Ela sabia que Palocci era um príncipe das trevas, e mesmo assim ela lhe deu a posição mais alta de seu governo. Algumas pessoas acham que a sua faxina é uma maneira de demonstrar sua independência em relação a Lula (quando o escândalo de Palocci estourou, ele veio à Brasília para assegurar aos membros do Congresso que as coisas iriam se ajustar). Marina Silva, outra protegida de Lula, que rompeu com ele por causa da política ambiental leniente de seu governo, comparou a situação em Brasília à história do “Real Lear”. Lula é Lear, e a questão é saber qual das filhas de Lear Dilma irá se tornar, se a cândida Cordélia ou uma de suas dúplices irmãs Regan e Goneril.

Outros acham que Dilma, uma hiper-racional, caxias, minuciosa gerente, estaria reagindo exageradamente aos escândalos de uma maneira que iria lhe prejudicar politicamente. Cada um dos ministros caídos em descrédito pertenciam a partidos da coalizão liderada pelo PT, e sendo publicamente humilhados, esses partidos poderiam decidir deixar a nave mãe.

Lula took power in a country of poor people whom Cardoso had prepared for progress. Rousseff rules a country whose center of gravity has moved to what Brazilians call “Classe C”—the lower-middle class—thanks to the success of the Bolsa Família, general economic growth, and other social programs. Brazil has a population of a hundred and ninety million. Ten years ago, perhaps forty million of them were arguably middle class or working class; today, it’s a hundred and five million. But the Brazilian political and economic system is built to serve poor people and big government-connected businesses. Less than ten per cent of the population pays income tax. The majority receive some form of direct benefits from the government. The government development bank, bndes, is by far the biggest and best domestic source of low-interest credit to businesses.

In a middle-class country, people demand more from government than protection from poverty, hunger, crime, and disease. They want modern schools and infrastructure, a more advanced, higher-paying economy, and cleaner politics. Rousseff’s first announced task may be eliminating poverty, but her real job as President is to begin building a government for a middle-class nation. It requires at least some signalling about fiscal austerity, to keep business happy and to play to the middle class’s sensitivity about government waste. (Rousseff has already announced two rounds of significant budget cuts, something Lula never stressed.) And, most of all, she has to satisfy rising public demand for goods, services, and continuing prosperity.

Back in her days as Energy Minister and as civil minister, Rousseff repeatedly tangled with environmentalists over the construction of new power plants in the Amazon, which she approved in order to keep the electricity flowing to booming urban Brazil. In 2008, Marina Silva, then Lula’s Minister of the Environment, resigned in protest. In 2010, Silva ran against Rousseff as the Green Party candidate, and surprised everyone by finishing third, with nineteen per cent of the vote. Early this year, Rousseff severely disappointed environmentalists by approving construction of the Belo Monte dam, a hydroelectric power facility that will flood a large swath of rain forest. Indigenous people from the Amazon recently staged protests against it.

Rousseff has to keep revving the engine of prosperity for ordinary Brazilians, and make sure people know who’s responsible for it. During the 2010 campaign, she and her opponents competed over who could promise the biggest increase in the Bolsa Família. (Since Rousseff took office, the average grant has increased by twenty-four per cent.)

In the United States, during the second half of the twentieth century, this kind of political apparatus fell victim to its own success. Policies that succeed in creating a middle-class nation can generate their own opposition, because the people they’ve helped tend to become hostile to the kind of governance they used to want. If this happened in Brazil, it would feel, at least to the country’s current cadre of leaders, as if, by effectively promoting economic progress, they had used their time in power to turn the country over from the Houyhnhnms to the Yahoos. While I was in Brasília, I spoke with an economist named Ricardo Paes de Barros, a Ph.D. from the University of Chicago. He is the under-secretary of a new government agency that is charged with long-term planning, called the Secretariat for Strategic Affairs. He was organizing a workshop, at which the President was scheduled to give the opening remarks, on the politics of the new Brazilian middle class. “This new middle class, they talk a lot about meritocracy,” he said, disapprovingly. “They forget that a lot of their success was based on solidarity. Suddenly, now I’m not so concerned about inequality. They start talking about merit. Wow, it’s a big problem. People are very concerned. Very, very concerned. It will have very important political implications.”


Dilma Rousseff reabilitou Cardoso, seu antecessor afastado, que não era bem-vindo em Brasília quando Lula era presidente. Em março, quando o presidente Obama visitou, ela convidou Cardoso para se sentar à mesa principal no almoço oficial. Quando a notícia chegou a Lula, ele percebeu que sua agenda não lhe permitiria estar em Brasília naquele dia. Em junho, quando Cardoso comemorou seu octogésimo aniversário, Dilma Rousseff tornou pública uma floreada e graciosa carta de parabéns a ele. Homenagear Cardoso envia um sinal poderoso para as classes bancárias e empresariais do Brasil, que o reverenciam.

Cardoso lives in a modern apartment building in a wealthy section of São Paulo, more in the manner of a retired senior academic than of a former head of state. On the day I saw him, he had just returned from a long European trip. He has a full head of snow-white hair and wears wire-rimmed glasses; he had on a tweed jacket, slacks, and soft leather loafers. We sat and talked in his living room, drinking the inevitable small cups of coffee that his maid brought in on a tray. He speaks perfect English, among several other languages. Cardoso has spent his life analyzing Brazilian society. He has an ability, rare in a politician, to pull back emotionally from the field of play. In his memoirs, he says that he first discovered that poverty existed, as a child growing up in an overwhelmingly poor country, by reading John Steinbeck’s “The Grapes of Wrath.” But distance isn’t the same as dispassion. Another anecdote has George W. Bush, in one of their talks, asking him, “Do you have blacks in Brazil?” Cardoso was shocked. About half of Brazil’s population is made up of people of African descent.

The health of the Brazilian political system matters greatly to Cardoso. He wrote, “I would never have imagined what a disappointment Lula would be as president.” In his view, Lula operated government as a cash dispensary and did nothing to reinforce the fundamental strength of the economy. Nevertheless, in 2002 Cardoso arranged for a daylong tutorial for a Brazilian minister at the Bush White House on orderly Presidential transitions. In the past half century, Brazil had not been able to manage one.

I asked Cardoso to describe the current Brazilian model of government and politics. “I’m not sure,” he said. “We don’t know yet to what extent competitive capitalism is making progress or the old model of bureaucratic capitalism is still alive. It’s a mix between these two. Since China is such an attractive model, and China has this aspect of state control of the economy, this justifies it in Brazil to many people. But in our case it’s kind of a backward movement toward more control of the economy and society by the state. It would be difficult for Brazil to take in its entirety the American model. The idea that the individual is really the essence of society is more vigorous in America than in Brazil. We are more collectivist. We believe the state is important. And I don’t know to what extent the American model remains as it was in the past. You have two different visions. It might be the first time since Roosevelt that you have so profound a division in American society.”

We got onto the subject of the corruption scandals in Brasília. Before Rousseff took office, Cardoso said, whenever the press revealed an official’s misdeeds, “President Lula would say, ‘It’s not like that—he’s a good guy.’ President Dilma does not have the same position. I don’t know if she will have the strength to go ahead. She starts by saying it’s the moment to clean up, to clear everything, but I don’t know if she realizes how difficult it will be to clean up, because the system is so entrenched, this sharing of power by different groups and parties. Power means control of government benefits. It’s very difficult to control one part without destroying the system. Lula was advising her not to go very fast. Realistically, perhaps he was right.”

The greatest challenge for Rousseff, he said, will be loosening the government’s hold on the economy so that Brazil can keep moving forward. Why is that so difficult? “This is her heart,” Cardoso said, meaning her mistrust of the market. “Because of her past. But she is intelligent enough to know this can be done moderately.”


Uma tarde, eu estava sentado em uma sala de espera no Planalto entre os compromissos quando a ministra da Comunicação Social, Helena Chagas, que durante semanas foi agradavelmente evasiva sobre exatamente quando e onde eu poderia falar com Dilma Rousseff, irrompeu e disse que a presidente queria me ver. Ela me levou a um vasto escritório guardado por um soldado. Dilma Rousseff veio até a porta, deu um aperto de mão firme e me levou para dentro. A presidente estava sentada de frente para nós — minha tradutora, Hilda Lemos, alguns assessores e eu, sentados em cadeiras e sofás. Eu faria uma pergunta em inglês; Rousseff acenava com a cabeça e respondia em português. Rousseff é alta, tem testa alta e olhos grandes e brilhantes. Quando ela fala, ela tende a dar uma palestra, gesticulando com as mãos e olhando em volta para se certificar de que o que está dizendo é registrado.

She began by talking about Brazil’s economy. “We are in a situation in Latin America that is different from the situation in the U.S. and the E.U.,” she said. “You had, in 2008, a crisis in the very core of your economy. In our view, seeing it from the outside, you did not succeed in overcoming the causes of the crisis. One of the things that amazes us is why the American economy cannot recover, considering that it plays a very important role in the international scene.” She paused to let her small audience wonder for a moment, and then delivered her answer: “It seems that the benefits went to those who caused the crisis—large banks, mainly—and consumers had to pay the price of the subprime bubble in order to keep their homes and recover their consumption capacity. The reaction of the U.S. and the E.U. has been to export the crisis. They flooded the market with excessive liquidity.”

She was talking, in part, about the Federal Reserve Board’s policy of quantitative easing, which she dislikes because it causes the real to be too strong relative to the dollar and so hurts Brazilian companies that want to sell their goods abroad and compete with American products at home. (The Brazilian industrial sector has had two straight quarters of negative growth.) “Of course, it benefits American exports, but it’s no less true that in countries like Brazil it creates an imbalance. It’s not that our countries are less competitive. It’s because the system creates false incentives.”

Rousseff knows that protectionism has a bad reputation, especially in the United States. “We are not vulnerable to going back to the favoritism of the nineteenth and twentieth centuries,” she said. “They did not work. We have to use the mechanisms we have. We have cheap products, but we are dealing with an unrealistic exchange rate. We need to keep the economy growing, without inflation, and generate revenue to continue our income-distribution policy. We have raised millions of Brazilians into our middle class. We created our own market, with huge effort. It could not have grown without our reducing inequality.” In this there was some mixture of defensiveness, competitiveness, and a conviction that Brazil had pulled ahead of the United States in its understanding of economic management in the twenty-first century. “We have always defended free trade with rules,” she said. “It’s important for the U.S. and European recovery. Every day, I root for the U.S. to recover its employment. We do not have a vision of Brazil as isolated. We have a vision of Brazil and the U.S. as part of the world.”

I asked Rousseff whether her distant past as a militant is relevant to her life as President. She unhesitatingly said that it is. “We always change. You acquire more experience. The experiences of the past were extremely enriching to me. I would not have been able to come as far as I have if I had not had those experiences. They gave me the generosity of wanting to have a developing country, a sovereign country. Things are much more complex now than they were then.”

A Brazilian who was once seated next to Rousseff at a dinner told me that he had asked her about her livro de cabeceira—Portuguese for the “book on the bedside table.” She said that at that moment it was “The Education of Henry Adams.” Adams has always struck me as magnificently dour and disapproving about the supplanting of the old American aristocracy by a new social and political order built around industrial capitalism. So I asked Rousseff about it. She had an entirely different interpretation.

“I like the book very much,” she said. “I got to it because I read some books of American history, but it was not first on my list. I read about John Adams. From there I got to Henry Adams—one of the most interesting figures in American history. There’s a side of him that’s very intriguing. First, because of the reflection: a literary reflection about himself and the influence of his father, as a chancellor representing the United States during the Lincoln Administration. I saw very clearly there was a very serious issue”—in the coming of the Civil War. “Not only slavery but the division of the United States.”

Ela se levantou da cadeira. Ela precisava voltar sua atenção para assuntos mais urgentes, mas primeiro ela tinha um ponto a fazer. Ela levantou um dedo no ar, como um professor universitário, e disse: "Mas essa não é a questão mais interessante. A questão mais interessante é entender a elite política e financeira dos Estados Unidos e por que eles viram que seriam uma grande nação. Por que eles adotaram um homem, um voto. Havia o aspecto paternal de Boston: os Adams contra os Quincys, que eram mais aristocráticos." Rousseff estava pensando, claramente, que a América de Henry Adams representava o triunfo dos Adams sobre os Quincys: uma nação escolhendo trocar seu passado aristocrático por um sistema mais democrático, não tanto para ser mais justo quanto para ser mais significativo. Os americanos podem ver Adams como uma repreensão patrícia, mas Rousseff claramente o via como alguém que passou sua carreira participando da criação de uma potência mundial - exatamente o que ela queria fazer. "O que eu vi no livro, olhando para o Brasil, é que eles" – Henry Adams e seus associados - "viram que para construir uma grande nação tinha que ser construída com base na educação. E devo dizer que o invejei."

Publicado na versão impressa da edição de 5 de dezembro de 2011.

Nicholas Lemann é redator da The New Yorker e professor da Escola de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade de Columbia. Seu livro mais recente é “Transaction Man: The Rise of the Deal and the Decline of the American Dream”.

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