29 de agosto de 2012

China em Revolta

Poucos no Ocidente estão cientes do drama que se desenrola no atual “epicentro da agitação do trabalho global”. Um acadêmico, cujo objeto de estudo é a China, expõe as suas tumultuosas políticas de trabalho e respetivas lições para a Esquerda. 

Eli Friedman

Jacobin


Tradução / A classe operária chinesa interpreta um papel semelhante ao de Janus no imaginário político do neoliberalismo. Por um lado, é concebida como a competitiva vencedora da globalização capitalista, a potência conquistadora cuja ascensão representa a derrota das classes trabalhadoras do mundo desenvolvido. Que esperança há para as lutas dos trabalhadores de Detroit ou Rennes quando o migrante do Sichuan se contenta em trabalhar por uma fração do preço?

Ao mesmo tempo, os trabalhadores chineses são representados como as pobres vítimas da globalização, como a consciência pesada dos consumidores do Primeiro Mundo. Na sua labuta, passivos e explorados, sofrem estoicamente pelos nossos iPhones e toalhas de banho. E apenas nós podemos salvá-los, absorvendo a sua torrente de exportações, ou benevolamente promovendo campanhas pelo seu tratamento humanamente digno às mãos das “nossas” multinacionais.

Para algumas das partes da esquerda do mundo desenvolvido, a moral destas narrativas que se opõem é que, nas nossas sociedades, a resistência laboral foi remetida à lata de lixo da história. Tal resistência é, antes de mais, perversa e decadente. O que legitima as significativas reivindicações dos mimados trabalhadores do Norte, com os seus “problemas do Primeiro Mundo”, exigindo de um sistema que já tanta abundância lhes oferece, concedida pelos desgraçados da Terra? E, em qualquer dos casos, a resistência contra tão representativa ameaça competitiva será, certamente, fútil.

Representando os trabalhadores chineses como os Outros - enquanto subalternos abjetos ou antagonistas competitivos - este retrato falha totalmente na exposição da realidade do trabalho na China atual. Longe de serem vencedores triunfantes, os trabalhadores chineses sofrem as mesmas pesadas pressões competitivas que os trabalhadores ocidentais, frequentemente às mãos dos mesmos capitalistas. Mais importante ainda, é dificilmente o seu estoicismo que os distingue de nós.

Hoje, a classe operária chinesa está em luta. Em mais de trinta anos do projeto de reforma de mercado do Partido Comunista, a China é, inquestionavelmente, o epicentro da agitação do trabalho global. Apesar de não haver estatísticas oficiais, é certo que milhares, se não mesmo dezenas de milhares de greves têm lugar todos os anos. Todas elas são greves arriscadas - o conceito de greve legal é inexistente na China. Assim, num dia típico, qualquer coisa como meia dúzia a várias dúzias de greves terão, provavelmente, lugar.

É da maior importância salientar que os trabalhadores estão a ganhar, com muitos grevistas a conquistar grandes aumentos salariais acima e para além de quaisquer requisitos legais. A resistência operária tem sido um sério problema para o Estado e capital chineses e, como nos Estados Unidos em 1930, o governo central viu-se obrigado a aprovar uma série de leis de trabalho. Os salários mínimos têm tido aumentos na casa dos dois dígitos em várias cidades do país e muitos trabalhadores estão a receber os pagamentos de seguros sociais pela primeira vez.

A agitação laboral tem registado crescimento nas duas últimas décadas, e os últimos dois anos, por si só, representaram um avanço qualitativo na natureza das lutas laborais.

Mas se há lições para a esquerda do norte na experiência dos trabalhadores chineses, encontrá-las exige um exame das condições únicas que estes trabalhadores enfrentam - condições que hoje são causa tanto para um grande otimismo, como para um grande pessimismo.


Ao longo destas duas décadas de insurgências, um catálogo relativamente coerente de táticas de resistência laboral emergiu. Quando surge uma queixa, o primeiro passo dos trabalhadores é frequentemente o de falar diretamente com as administrações. Estas solicitações são quase sempre ignoradas, especialmente quando se encontram relacionadas com questões salariais.

As greves, por outro lado, funcionam. Mas estas nunca são organizadas pelos sindicatos chineses oficiais, que se encontram formalmente subordinados ao Partido Comunista, sendo geralmente controlados pela administração ao nível da empresa. Todas as greves na China são organizadas de forma autônoma e frequentemente em oposição direta ao sindicato oficial, que encoraja os trabalhadores a resolver as suas queixas através dos mecanismos legais.

O sistema legal, que compreende mediação do local de trabalho, intermediação e processos judiciais, tenta individualizar o conflito. Este fato, combinado com o conluio entre estado e capital, traduz-se na incapacidade geral do sistema na resolução das queixas dos trabalhadores. Está projetado, em grande medida, para prevenir as greves.

Até 2010, o motivo mais comum de greve era o não-pagamento dos salários. A reivindicação nestas greves é clara e direta: paguem-nos os salários a que temos direito. As reivindicações de melhorias acima e para além da lei existente eram raras. Sendo que as violações legais eram e continuam a ser endêmicas, tem havido solo fértil para a existência destas lutas defensivas. 

As greves começam geralmente com os trabalhadores a pousar os seus instrumentos de trabalho e a permanecer dentro da fábrica, ou pelo menos nas suas imediações. Surpreendentemente, os fura-greves são pouco utilizados na China, e por isso os piquetes raramente são usados.*

Quando confrontados com uma administração recalcitrante, ocasionalmente os trabalhadores demarcam-se levando a luta para a rua. Esta tática é dirigida ao governo: afetando a ordem pública, atraem imediatamente a atenção do Estado. Por vezes os trabalhadores marcham até às instalações do governo local ou simplesmente bloqueiam a rua. Tais táticas são arriscadas, uma vez que o governo pode até apoiar os grevistas, mas com igual frequência recorre à violência. Mesmo que seja atingido um compromisso, as manifestações públicas resultarão frequentemente na detenção, espancamento e prisão dos organizadores da greve.

Mais arriscado, e ainda comum, é a sabotagem e destruição de propriedade, a organização de motins, o assassínio dos patrões e confrontos físicos com a polícia. Tais táticas parecem ter uma maior prevalência na resposta a despedimentos em massa ou falências. Uma série de confrontos particularmente intensos teve lugar em finais de 2008 e inícios de 2009, em resposta a despedimentos em massa no setor de processamento de exportações, devido à crise econômica ocidental. Como explicarei mais adiante, os trabalhadores poderão estar agora a desenvolver uma consciência antagônica em relação à polícia.

Mas o item menos espetacular deste catálogo de resistência constitui o pano de fundo essencial a todos os outros: os migrantes têm vindo a recusar, em número crescente, os maus empregos nas zonas de processamento de exportações no sudeste, aos quais costumavam acorrer em massa.

Uma insuficiência na mão-de-obra verificou-se pela primeira vez em 2004, e num país que continua a ter mais de 700 milhões de residentes rurais, muitos assumiram que se trataria de uma casualidade de curto-prazo. Oito anos depois, é clara a ocorrência de uma mudança estrutural. Os economistas lançaram-se num intenso debate acerca das causas desta insuficiência, debate esse que não recapitularei aqui. Será suficiente dizer que uma grande parte dos fabricantes nas províncias costeiras, tais como Guangdond, Zheijang e Jiangsu, não têm sido capazes de atrair e manter trabalhadores.

Independentemente de razões específicas, o ponto a salientar é que esta insuficiência conduziu a um aumento salarial e consolidou o poder dos trabalhadores no mercado - vantagem essa que estes têm vindo a explorar.


Um ponto de viragem foi registado no verão de 2010, marcado por uma importante onda de greves que se iniciou numa fábrica de transmissão da Honda em Nanhai.

Desde então, tem havido uma mudança na natureza da resistência laboral, desenvolvimento esse notado por muitos analistas. Ainda mais importante, as reivindicações dos trabalhadores passaram a ser feitas de uma perspetiva mais ofensalariais acima e para além daquilo a que legalmente têm direito e em muitas greves têm começado a exigir a eleição dos seus representantes sindicais. Não têm sido convocados sindicatos independentes não pertencentes à Federação de Sindicatos da China, uma vez que tal certamente incitaria repressão estatal. Mas a insistência na exigência de eleições representa o germinar de reivindicações políticas, ainda que esta reivindicação seja feita apenas ao nível da empresa.

A onda de greves explodiu em Nanhai, onde durante semanas os trabalhadores tinham vindo a queixar-se dos baixos salários, discutindo a ideia de uma paralisação. A 17 de maio de 2010, quase todos desconheciam que um único empregado-o qual vários relatos entretanto apelidaram de Tan Zhiqing, um pseudônimo - convocaria a greve por sua própria iniciativa, premindo, muito simplesmente, o botão de paragem de emergência, desligando ambas as linhas de produção da fábrica.

Os trabalhadores saíram da fábrica. Nessa mesma tarde, a administração suplicava-lhes que voltassem ao trabalho e abrissem negociações. A produção foi, de fato, retomada nesse dia. Mas os trabalhadores haviam formulado a sua reivindicação inicial: um aumento salarial de 800 renminbis por mês, correspondente a um aumento de 50% para os trabalhadores permanentes.

Mais exigências se seguiram: a “reorganização” do sindicato oficial da empresa, que na prática não oferecia qualquer apoio à luta dos trabalhadores, bem como a readmissão de dois trabalhadores despedidos. Aquando das negociações, os trabalhadores saíram novamente para a rua, e, após uma semana de greve, todas as fábricas de montagem da Honda na China tinham fechado devido à falta de peças.

Entretanto, as notícias da greve de Nanhai começaram a gerar uma onda de agitação que se alastrou aos trabalhadores industriais de todo o país. As manchetes dos jornais chineses contaram a história: “Uma Onda é Maior que a Próxima, a Greve irrompe também na fábrica de Fechaduras da Honda”; “Onda de Greves em Dalian com 70 Mil Participantes, Afetando 73 Empresas, Termina Com Aumentos Salariais na Ordem dos 34,5%”; “Greves Salariais na Honda São um Choque para o Modelo de Fabricação Barata.” Em cada greve, a principal reivindicação foi a de aumentos salariais, embora em muitos casos tenham sido ouvidas exigências no sentido da reorganização sindical - um desenvolvimento político de grande importância.

Uma destas greves de contágio foi especialmente notável pela sua militância e organização. Durante o fim-de-semana de 19 a 20 de junho, um grupo de cerca de duzentos trabalhadores da Denso, uma empresa de peças automóveis detida por particulares japoneses, fornecedora da Toyota, encontrou-se secretamente para debater planos de ação. Nesta reunião, delinearam a estratégia dos “três nãos”: durante três dias não haveria trabalho, exigências ou representantes.

Estes trabalhadores sabiam que interrompendo a cadeia de abastecimento, a fábrica de montagem da Toyota seria obrigada a fechar numa questão de dias. Comprometendo-se a fazer greve durante três dias sem exigências, previram perdas crescentes para as maiores cadeias de produção, tanto da Denso como da Toyota. O seu plano funcionou. Na segunda-feira de manhã, iniciaram a greve saindo da fábrica e impedindo a saída dos camiões da mesma. À tarde, outras seis fábricas na mesma zona industrial tinham fechado e, no dia seguinte, a falta de peças forçou ao encerramento da fábrica de montagem da Toyota.

No terceiro dia, tal como haviam planejado, os trabalhadores elegeram vinte e sete representantes e entraram em negociações com a exigência central de um aumento salarial de 800 renminbis. Após três dias de conversações, onde o CEO da Denso, vindo do Japão, esteve envolvido, foi anunciada a conquista do aumento salarial de 800 renminbis. 

Se o verão de 2010 foi caracterizado pela resistência radical mas relativamente ordeira ao capital, o verão de 2011 gerou duas insurreições massivas contra o Estado.

Na mesma semana, em Junho de 2011, enormes motins de trabalhadores agitaram as áreas fabris suburbanas de Chaozhou e Guangszhou, em ambos os casos conduzindo a uma alargada e altamente direcionada destruição de propriedade. Na cidade de Guxiang, Chaozhou, um trabalhador do Sichuan exigindo a devolução de salários foi brutalmente atacado por mercenários portadores de armas brancas e pelo seu ex-patrão. Reagindo a isto, milhares de outros migrantes começaram a manifestar-se junto das instalações do governo local, muitos dos quais haviam sofrido anos de discriminação e exploração por parte de patrões que trabalhavam em conluio com oficiais.

O protesto foi, supostamente, organizado por uma “associação cidadã” de pessoas do Sichuan, vagamente organizada - uma dessas organizações tipo máfia que proliferam em ambientes onde a associação livre não é permitida. Após terem cercado as instalações governamentais, os migrantes rapidamente dirigiram a sua fúria contra os residentes locais, sentindo que estes os haviam discriminado. Após terem incendiado dúzias de carros e saqueado lojas, a polícia armada foi forçada a abafar o motim e dispersar os locais que se haviam organizado em grupos de vigilância.

Apenas uma semana mais tarde, uma insurreição ainda mais surpreendente teve lugar nos subúrbios de Guangzhou em Zengcheng. Uma mulher grávida do Sichuan, apregoando mercadorias na rua, foi abordada pela polícia e violentamente atirada ao chão. Os rumores de que ela teria sofrido um aborto em consequência da altercação começaram a circular imediatamente entre os trabalhadores fabris da zona; a veracidade ou não destes rumores rapidamente se tornou irrelevante.

Enraivecidos por outro incidente de agressão policial, os trabalhadores indignados amotinaram-se por toda a parte em Zengcheng durante vários dias, incendiando uma esquadra, enfrentando a polícia de choque, e bloqueando uma autoestrada nacional. Segundo relatos, outros migrantes do Sichuan da área de Guangdong afluíram a Zengcheng para se juntar aos motins. No final, o Exército de Libertação Popular foi convocado para pôr um fim à insurreição, disparando munições reais sob as pessoas que protestavam. Apesar de o governo o negar, é provável que tenha havido vítimas mortais.

Em apenas alguns anos, a resistência laboral passou de defensiva a ofensiva. Incidentes aparentemente insignificantes desencadearam insurreições em massa, indicativas da cólera generalizada. E a continuada falta de mão-de-obra nas áreas costeiras aponta para mudanças estruturais mais profundas que provocaram, também elas, mudanças na dinâmica das políticas laborais. 

Tudo isto constitui um sério desafio ao modelo de desenvolvimento baseado nas exportações e repressão salarial que caracterizou a economia política das regiões costeiras do sudeste chinês durante mais de duas décadas. Por volta do fim da onda de greves de 2010, os comentadores dos media Chineses declaravam que a era do trabalho barato tinha chegado ao fim.


Embora vitórias tão significativas sejam motivo de otimismo, a despolitização enraizada significa que os trabalhadores não podem extrair muita satisfação das mesmas. Qualquer tentativa de articulação de uma política explícita por parte dos trabalhadores é instantaneamente esmagada efetivamente pela Direita e pelos seus aliados estatais, através da ameaça do espectro do “Senhor do Desgoverno”: querem mesmo regressar ao caos da Revolução Cultural?

Se no Ocidente “não há alternativa”, na China as duas alternativas oficiais são uma tecnocracia capitalista eficiente e sem obstáculos (a fantasia de Singapura) ou uma violência política absoluta, selvagem e profundamente irracional. Como resultado, os trabalhadores submetem-se conscientemente à segregação das lutas políticas e econômicas imposta pelo Estado, apresentando as suas reivindicações como econômicas, legais e de acordo com a embrutecedora ideologia de “harmonia”. Agir de outra maneira desencadearia uma dura repressão estatal.

Talvez os trabalhadores consigam um aumento salarial numa fábrica, seguros sociais noutra. Mas esta espécie de insurgência dispersa, efémera e não-subjetivada falhou na cristalização de formas duradouras de organização contra-hegemônica, capaz de coagir o Estado ou o capital ao nível da classe.

O resultado é que, quando o Estado intervém em nome dos trabalhadores - quer através do apoio de reivindicações imediatas durante as negociações da greve, quer através da aprovação de legislação que vise a melhoria das suas condições materiais - a sua imagem de “leviatã benevolente” é reforçada: agiu de tal maneira não porque os trabalhadores assim o exigiram, mas porque se preocupa com os “grupos frágeis e em desvantagem” (assim são designados os trabalhadores no léxico oficial).

No entanto é apenas através da separação ideológica ao nível simbólico entre a causa e o efeito que o Estado é capaz de manter a farsa de que os trabalhadores são, de facto, “fracos”. Dado o relativo sucesso deste projeto, a classe trabalhadora é política, mas é alienada da sua própria atividade política.

É impossível compreender como é que esta situação se mantém sem entender a posição política e social da atual classe trabalhadora. O trabalhador chinês de hoje em dia está longe dos proletários heróicos e hiper-masculinizados dos cartazes de propaganda da Revolução Cultural. No setor público, os trabalhadores nunca foram realmente “donos da empresa”, como é alegado pelo Estado. Mas era lhes garantido emprego duradouro e a sua unidade de trabalho suportava também o custo de reprodução social, providenciando habitação, educação, assistência médica, pensões e até serviços fúnebres e de casamento.

Nos anos 90, o governo central deu início a um esforço massivo de privatização, redução ou cortes da subsidiação de muitas empresas detidas pelo Estado, o que conduziu a importantes deslocações sociais e económicas na zona industrial do nordeste chinês (“Rust Belt”). Embora as condições materiais para os trabalhadores nas empresas ainda detidas pelo Estado continuem a ser melhores em termos relativos, hoje a gestão dessas firmas encontra-se em crescente concordância com a lógica de maximização de lucros.

De maior interesse imediato é a nova classe trabalhadora, composta por migrantes rurais que acorreram em massa às cidades do sudeste chinês (“Sun Belt”). Com a transição para o capitalismo iniciada em 1978, os agricultores obtiveram, a princípio, bons resultados, uma vez que o mercado atribuía preços mais elevados do que o Estado aos bens agrícolas. Porém, em meados dos anos 80, estes ganhos começaram a ser arrasados pela inflação desenfreada, começando a população rural a procurar novas fontes de rendimento. À abertura da China à produção orientada para a exportação nas regiões costeiras do sudeste, correspondeu a transformação destes agricultores em trabalhadores migrantes.

Ao mesmo tempo, o Estado descobriu que uma série de instituições herdadas da economia de comando eram úteis ao reforço da acumulação privada. Entre estas, a que mais se destacava era o sistema de registo de residência (hukou), que vinculava os benefícios sociais do indivíduo a um determinado local. O hukou é um instrumento de administração complexo e cada vez mais descentralizado, mas o aspeto a sublinhar é que institucionaliza uma separação geográfica e social entre as atividades produtivas e reprodutivas do trabalhador migrante - entre a sua vida profissional e a sua vida doméstica e familiar.

Esta separação modelou todos os aspetos das lutas laborais dos trabalhadores migrantes. Os migrantes jovens vão para as cidades trabalhar em fábricas, restaurantes, locais de construção, para se envolver na delinquência, vender comida nas ruas ou ganhar a vida como trabalhadores sexuais. Porém, o Estado nunca fingiu que estes migrantes são formalmente iguais aos residentes urbanos, ou que são bem-vindos a longo prazo. Os migrantes não têm acesso a nenhum dos serviços públicos a que os residentes urbanos têm direito, incluindo assistência médica, habitação e educação. Necessitam de permissão oficial para estar na cidade, e durante os anos 90, início dos anos 2000, houve várias ocorrências de migrantes detidos, espancados e “deportados” por não terem documentos.

Durante pelo menos uma geração, o principal objetivo dos trabalhadores migrantes foi o de ganhar o máximo possível de dinheiro antes de regressar à sua aldeia, com 20 e poucos anos, para casar e constituir família.

Outras disposições formais asseguram que os migrantes não sejam capazes de ter uma vida na cidade. O sistema de seguros sociais (incluindo seguros de saúde, pensões, seguro de desemprego, seguro de maternidade e seguro de acidentes no trabalho) é organizado ao nível municipal. Isto significa que os migrantes que têm a sorte suficiente de possuir um seguro social suportado pela entidade empregadora - uma pequena minoria - pagam por um sistema ao qual jamais terão acesso. Se as pensões não são transferíveis, porque é que um migrante exigiria o seu aumento? As reivindicações dos trabalhadores focam-se muito racionalmente, portanto, nas questões salariais mais imediatas.

Assim, subjetivamente, os migrantes não se referem a si próprios como “trabalhadores”, nem pensam em si como pertencendo à “classe trabalhadora”.

São, isso sim, mingong, ou trabalhadorescamponeses, e dedicam-se a “vender trabalho” (dagong), ao invés de terem uma profissão ou carreira. O carácter temporário desta relação com o trabalho é, talvez, a norma sob o signo do capitalismo neoliberal, mas as taxas de rotação em muitas fábricas chinesas são surpreendentes, excedendo muitas vezes os 100% por ano.

As implicações para a dinâmica da resistência laboral têm sido enormes. Por exemplo, há poucos registos de lutas relacionadas com a duração do dia de trabalho. Porque é que os trabalhadores quereriam passar mais tempo numa cidade que os rejeita? O “equilíbrio entre vida profissional e vida pessoal” inerente a este tipo de discurso nada significa para um trabalhador migrante de 18 anos labutando numa fábrica suburbana de Shanghai. Na cidade, os migrantes vivem para trabalhar - não no sentido de auto-realização mas no sentido literal. Se um trabalhador assume que está apenas a ganhar dinheiro para eventualmente o levar de volta para casa, há poucas razões (ou oportunidades) para pedir mais tempo na cidade.

Outro exemplo: todos os anos, imediatamente antes do Ano Novo Chinês, o número de greves no sector de construção explode. Porquê? Este feriado é a única altura do ano em que a maior parte dos migrantes regressa às suas terras de origem, e é geralmente a única altura em que podem ver os seus familiares, muitas vezes incluindo cônjuges e filhos. Os trabalhadores do sector de construção são geralmente pagos apenas quando um projeto é terminado, mas o não-pagamento de salários tem sido endémico desde a desregulação da indústria nos anos 80. A ideia de regressar à terra-natal de mãos a abanar é inaceitável para os trabalhadores, uma vez que a única razão pela qual partiram para a cidade foi a promessa de salários marginalmente mais altos. Daí as greves.

Por outras palavras, os trabalhadores migrantes não têm tentado ligar as lutas na esfera da produção a lutas relativas a outros aspetos da sua vida ou problemas sociais mais vastos. Encontram-se separados da comunidade local e não têm qualquer direito a falar enquanto cidadãos. As reivindicações salariais não se multiplicaram em reivindicações por menos tempo de trabalho, por melhores serviços sociais, ou por direitos políticos.


O capital, entretanto, tem confiado em vários métodos comprovados para melhorar a rentabilidade. 

No espaço da fábrica, o maior desenvolvimento dos últimos anos será, certamente, sombriamente familiar aos trabalhadores americanos, europeus ou japoneses: o crescimento explosivo de vários tipos de trabalho precário, incluindo trabalhadores temporários, estudantes estagiários e, sobretudo, “trabalhadores temporários.”

Os trabalhadores temporários são empregados diretamente por uma empresa contratante - muitas das quais são detidas pelas agências de emprego locais - que depois os “enviam” para os locais onde serão postos a trabalhar. Isto tem o efeito óbvio de obscurecer a relação de emprego e melhorar a flexibilidade para o capital. O trabalho temporário constitui agora uma enorme percentagem da força de trabalho (muitas vezes superior a 50% num dado local de trabalho) numa amostra incrivelmente diversa de indústrias, incluindo indústrias de transformação, energia, transportes, operações bancárias, assistência médica, saneamento, e serviços. A tendência emergiu em empresas estrangeiras e internas privadas, empreendimentos conjuntos e empresas detidas pelo estado.

No entanto, a grande história dos últimos anos tem sido a da deslocação do capital industrial das regiões costeiras para a China central e ocidental. Há enormes consequências sociais e políticas que ocorrem deste “ajuste geográfico”, concedendo à classe trabalhadora uma nova e potencialmente transformadora série de possibilidades. A realização ou não destas possibilidades é obviamente uma questão que só poderá ser resolvida na prática. O caso da Foxconn, a maior empregadora privada da China, é instrutivo neste aspeto. A Foxconn mudou-se do seu local de origem na Tailândia para a costeira Shenzhen há mais de uma década, mas na sequência dos suicídios de trabalhadores em 2010 e do continuado escrutínio público do seu ambiente laboral altamente militarizado e alienante, é agora forçada a mudar-se uma vez mais. A empresa encontra-se atualmente no processo de redução da sua força de trabalho em Shenzen, tendo construído novas instalações massivas nas províncias do interior. As duas maiores situam-se nas capitais de província Zhengzhou e Chengdu. Não é difícil compreender o poder de atração que o interior exerce sobre tais companhias. Embora os salários em Shenzhen e outras áreas costeiras continuem a estar bastante abaixo dos padrões globais (menos de 200 dólares por mês), os salários nas províncias do interior como Henan, Hubei e Sichuan podem atingir quase metade desse valor. Muitos empregadores assumem também, e talvez corretamente, que mais migrantes se encontrarão disponíveis perto da fonte de origem, e um mercado de trabalho menos regulado tem também vantagens políticas imediatas para o capital.

Também esta é uma história familiar do capitalismo: o historiador do trabalho Jefferson Cowie identificou um processo de trabalho semelhante na história da “procura de 70 anos por trabalh barato” da industrial de eletrÔnica RCA - uma procura que levou a companhia de Nova Jérsia para  Indiana, de Indiana para o Tennessee e, finalmente, do Tennessee para o México.

Se a região costeira chinesa facultou condições sociais e políticas extremamente favoráveis ao capital transnacional nas duas últimas décadas, as coisas serão diferentes no interior. O antagonismo entre trabalho e capital poderá ser universal, mas o conflito de classes avança no terreno das particularidades. Então quais são as particularidades do interior chinês, e porque poderão elas constituir razão para um otimismo cauteloso? Enquanto que os migrantes nas regiões costeiras são necessariamente temporários - e as suas lutas, portanto, efémeras - no interior têm a possibilidade de estabelecer uma comunidade resistente e duradoura. Teoricamente, isto significa que há uma maior possibilidade de fundir as lutas nas esferas da produção e da reprodução, algo que não era possível quando estas duas arenas se encontravam geograficamente separadas.

Consideremos a problemática do hukou, o registo de residência. As enormes megalópoles do leste para as quais os migrantes acorreram em massa no passado têm restrições muito fortes na obtenção de residência local. Mesmo os trabalhadores em cargos de administração e gestão com graus académicos poderão ter dificuldades em obter um hukou em Pequim.

Porém, as cidades mais pequenas no interior colocaram a fasquia muito mais baixa na obtenção de residência local. Apesar de ser assumidamente especulativo, vale a pena refletir nas mudanças que este fator pode trazer às dinâmicas de resistência laboral. Se antes a suposta trajetória de vida do migrante era a de ir trabalhar para a cidade durante uns anos para ganhar dinheiro antes de regressar a casa e começar uma família, os trabalhadores no interior poderão ter em seu poder uma perspetiva bem diferente. Subitamente já não estão apenas a “trabalhar”, mas também a “viver” num determinado lugar.

Isto implica que os migrantes se encontrarão muito mais propensos à instalação permanente nos seus locais de trabalho. Quererão encontrar cônjuges, ter a sua própria habitação, ter filhos, mandá-los para a escola - em suma, dedicar-se à reprodução social. Anteriormente, os empregadores não eram obrigados a pagar aos trabalhadores migrantes um salário que lhes permitisse sobreviver condignamente, não havendo quaisquer pretensões de que isto devesse ser esperado, sendo claro que os trabalhadores regressariam às suas aldeias e aí se instalariam. Mas no interior, os migrantes exigirão muito provavelmente tudo aquilo que é necessário à condução de uma vida decente - habitação, assistência médica, educação, e alguma proteção contra os riscos de desemprego e na velhice. Poderão também querer tempo para si próprios e para a sua comunidade, uma exigência que tem estado conspicuamente ausente até hoje.

Isto levanta a possibilidade da politização da agitação laboral. Serviços públicos decentes nunca foram uma expectativa realista dos migrantes na costa. Porém, se conseguirem estabelecer direitos de residência no interior, as reivindicações por serviços sociais poderão facilmente generalizar-se, concedendo a oportunidade de escapar ao isolamento das lutas no local de trabalho. As reivindicações de proteção social são, por natureza, mais propensas a ser direcionadas ao estado do que a empregadores individuais, estabelecendo a base simbólica para um confronto passível de generalização. Embora seja fácil romancear a corajosa e por vezes espetacular resistência dos trabalhadores migrantes, a realidade é que a resposta mais frequente às más condições de trabalho tem sido simplesmente a demissão e procura de um novo emprego, ou mesmo o regresso a casa. Também isto se poderá alterar se trabalharem onde vivem. Estas novas condições poderão ser propícias à resistência e luta dos migrantes pela comunidade e na comunidade, ao invés de simplesmente procederem à fuga.

A biografia dos trabalhadores no interior poderá também apresentar oportunidades para uma militância reforçada. Muitos destes migrantes têm experiência prévia de trabalho e luta em regiões costeiras. Trabalhadores mais velhos poderão carecer da paixão militante da juventude, mas a sua experiência em lidar com patrões exploradores e os seus aliados estatais poderá ser um recurso de valor inestimável.

Finalmente, os trabalhadores terão recursos sociais mais alargados ao seu dispor. Em grandes cidades costeiras, seria pouco provável que conseguissem granjear a simpatia dos residentes locais, um facto tornado dolorosamente claro nos motins de Guxiang. No interior, porém, os trabalhadores poderão ter a família e os amigos perto, pessoas que não estão apenas predispostas a tomar o partido do trabalho mas que poderão depender de forma muito direta do aumento dos salários e melhoria dos serviços sociais. Este facto concede a possibilidade de expandir as lutas para além do local de trabalho, incorporando problemas sociais mais alargados.

Poderá haver quem na Esquerda seja acérrimo defensor da resistência permanente em e por si mesma. E a disposição formal de conflitos de classe que tem prevalecido na China tem causado consideráveis ruturas na acumulação de capital.

Mas os trabalhadores são alienados da sua própria atividade política. Uma assimetria profunda existe: os trabalhadores resistem intermitentemente e sem qualquer estratégia, enquanto que o Estado e o capital reagem a esta crise de forma autoconsciente e coordenada.

Até ver, esta fragmentada e efémera forma de luta tem sido incapaz de produzir qualquer mossa considerável nas estruturas básicas do partido único e da sua ideologia dominante. E o capital, enquanto tendência universal, tem provado a sua habilidade na subjugação de particularidades de militância vezes sem conta.

Se a resistência laboral militante força simplesmente o capital a destruir uma classe trabalhadora e a produzir uma outra (antagonista) em qualquer outro lugar, poderemos realmente considerar isto uma vitória? A nova fronteira da acumulação de capital apresenta à classe trabalhadora chinesa oportunidades para o estabelecimento de formas de organização mais resistentes, capazes de expandir o domínio da luta social e de formular amplas reivindicações políticas. Mas até isso acontecer, permanecerá meio passo atrás do seu - e nosso - antagonista histórico.

* Não é imediatamente perceptível porque é que os empregadores raramente recorrem à utilização dos fura-greves. Uma explicação possível é que o governo não apoiaria tal medida, uma vez que poderia aumentar tensões e conduzir a violência ou maiores rupturas sociais. Outro fator poderá ser, muito simplesmente, a curta duração das greves (raramente duram mais do que um ou dois dias), uma vez que os grevistas não têm o apoio institucional de um sindicato e são muitas vezes submetidos a pressões intensas por parte do Estado. O resultado é que talvez haja menos precisão de fura-greves por parte dos empregadores.

Colaborador

Eli Friedman é professor assistente no Departamento de Trabalho Internacional e Comparado da Universidade de Cornell, nos Estados Unidos.

28 de agosto de 2012

Lincoln e Marx

A convergência transatlântica de dois revolucionários.

Robin Blackburn

Abraham Lincoln, como presidente, optou por responder a um “Discurso” da International Workingmen’s Association, com sede em Londres. O “Discurso”, redigido por Karl Marx, parabenizou Lincoln por sua reeleição para um segundo mandato. Em alguns parágrafos ressonantes e complexos, o “Discurso” anunciava o significado histórico-mundial do que se tornara uma guerra contra a escravidão. O “Discurso” declarava que a vitória do Norte seria um ponto de inflexão para a política do século XIX, uma afirmação do trabalho livre e uma derrota para os capitalistas mais reacionários que dependiam da escravidão e da opressão racial.

Lincoln viu apenas uma pequena seleção da avalanche de correspondência que foi enviada, empregando várias secretárias para lidar com ela. Mas o embaixador dos Estados Unidos em Londres, Charles Francis Adams, decidiu encaminhar o “Discurso” a Washington. Encorajar todos os sinais de apoio à União foi fundamental para a missão de Adams. A Proclamação de Emancipação de janeiro de 1863 tornou essa tarefa muito mais fácil, mas ainda havia muitos setores da elite britânica que simpatizavam com a Confederação e alguns eram a favor de conceder-lhe reconhecimento diplomático apenas se a opinião pública pudesse ser levada a aceitar isso.

O “Discurso” trazia, além da de Marx, as assinaturas de vários sindicalistas britânicos proeminentes, bem como socialistas franceses e social-democratas alemães. O Embaixador escreveu ao IWA, explicando que o presidente havia lhe pedido para transmitir sua resposta ao “Discurso”. Ele agradeceu o apoio e expressou sua convicção de que a derrota da rebelião seria de fato uma vitória para a causa da humanidade em todos os lugares. Ele declarou que seu país se absteria de "intervenção ilegal", mas observou que "Os Estados Unidos consideraram sua causa no presente conflito com os insurgentes escravistas como a causa da natureza humana, e obtiveram novo incentivo para perseverar a partir do testemunho dos trabalhadores da Europa.”

Lincoln gostaria de agradecer aos trabalhadores britânicos, especialmente aqueles que apoiaram o Norte, apesar da angústia causada pelo bloqueio do Norte e a resultante "fome do algodão". O aparecimento dos nomes de vários revolucionários alemães não o teria surpreendido; a derrota das revoluções de 1848 na Europa havia aumentado o fluxo de imigrantes alemães que chegavam à América do Norte. Em uma data anterior — em 1843 — o próprio Marx havia pensado em imigrar para o Texas, chegando ao ponto de solicitar ao prefeito de Trier, sua cidade natal, uma autorização de imigração.

Que caminho a história mundial teria tomado se Marx tivesse se tornado texano? Nunca saberemos. O que sabemos é que Marx manteve contato com muitos dos exilados. Seu famoso ensaio sobre “O 18 Brumário de Luís Bonaparte” foi publicado pela primeira vez em Nova York em alemão. Nem todos os emigrados alemães eram radicais, mas muitos eram. Com suas cervejarias, canções patrióticas e jardins de infância, eles ajudaram a ampliar a cultura distintamente puritana do republicanismo. Eles foram educados para desprezar a posse de escravos e, por fim, quase duzentos mil germano-americanos se ofereceram para o exército da União.

Havia uma afinidade entre o nacionalismo democrático alemão de 1848 e a doutrina do trabalho livre do recém-estabelecido Partido Republicano dos Estados Unidos, então não é surpreendente que vários amigos e camaradas de Marx não apenas tivessem se tornado defensores ferrenhos da causa do Norte, mas recebecessem altas comissões. Joseph Weydemeyer e August Willich, ambos ex-membros da Liga Comunista, foram promovidos primeiro à categoria de coronel e depois a general.

Lincoln pode ter reconhecido o nome Karl Marx quando leu o “Discurso” da IWA, já que Marx havia sido um colaborador prolífico do New York Daily Tribune, o jornal republicano mais influente da década de 1850. Charles A. Dana, editor do Tribune, conheceu Marx em Colônia em 1848, quando ele editava o amplamente lido Neue Rheinische Zeitung. Em 1852, Dana convidou Marx para se tornar correspondente do Tribune. Na década seguinte, ele escreveu - com a ajuda de seu amigo Engels - mais de quinhentos artigos para o Tribune. Centenas dessas peças foram publicadas sob o nome de Marx, mas oitenta e quatro apareceram como editoriais não assinados. Ele escreveu sobre uma variedade global de tópicos, às vezes ocupando duas ou três páginas de um jornal de dezesseis páginas.

Depois que a Guerra Civil começou, os jornais americanos perderam o interesse na cobertura estrangeira, a menos que estivesse diretamente relacionada à guerra. Marx escreveu vários artigos para jornais europeus explicando o que estava em jogo no conflito e contestando a afirmação, amplamente ouvida nas capitais europeias, de que a escravidão nada tinha a ver com o conflito. Seções importantes das elites britânica e francesa tinham fortes laços comerciais com o sul dos Estados Unidos, comprando grandes quantidades de algodão cultivado por escravos. Mas alguns liberais europeus sem vínculo direto com a economia escravagista argumentaram que a secessão dos estados do sul deveria ser aceita por causa do princípio da autodeterminação. Eles atacaram a opção do Norte pela guerra e seu fracasso em repudiar a escravidão.

Aos olhos de Marx, os observadores britânicos que alegavam deplorar a escravidão, mas apoiavam a Confederação, eram simplesmente farsantes. Ele atacou a hostilidade visceral ao Norte evidente no Economist e no Times (de Londres). Esses jornais afirmavam que a verdadeira causa do conflito era o protecionismo do Norte contra o livre comércio favorecido pelo Sul. Marx refutou seus argumentos em uma série de artigos brilhantes para o Die Presse, uma publicação vienense, que demoliu causticamente seu determinismo econômico e, em vez disso, esboçou um relato alternativo — sutil, estrutural e político — das origens da guerra.

Marx insistiu que a secessão foi motivada pelos temores políticos da elite sulista. Eles sabiam que o poder dentro da União estava se voltando contra eles. O Sul estava perdendo o controle sobre as instituições federais por causa do dinamismo do Noroeste, destino de muitos novos imigrantes. À medida que o Território do Noroeste amadureceu em estados livres, o Sul se viu em menor número; o Norte relutava em reconhecer quaisquer novos estados escravistas. Os senhores de escravos haviam alienado os nortistas ao exigir que prendessem e devolvessem os escravos fugitivos, mas sabiam que precisavam do apoio sincero de seus concidadãos se quisessem defender sua “instituição peculiar”. A eleição de Lincoln foi vista como uma ameaça mortal porque ele não devia nada aos sulistas e havia prometido se opor a qualquer expansão da escravidão.

Marx deu total apoio à causa da União, embora Lincoln inicialmente se recusasse a fazer da emancipação um objetivo de guerra. Marx estava confiante de que o choque de regimes sociais rivais, baseados em sistemas de trabalho opostos, mais cedo ou mais tarde viria à tona como a verdadeira questão. Embora apoiasse consistentemente o Norte, ele escreveu que a União só triunfaria se adotasse as medidas revolucionárias antiescravistas defendidas por Wendell Phillips e outros abolicionistas radicais. Ele ficou particularmente impressionado com os discursos de Phillips em 1862 pedindo para acabar com todos os compromissos com a escravidão. Ele citou com aprovação o ditado de Phillips de que “Deus colocou o raio da emancipação” nas mãos do Norte e eles deveriam usá-lo.

Marx continuou a se corresponder com Dana e lhe enviou seus artigos (Dana era fluente em alemão). A essa altura, Dana havia deixado o mundo do jornalismo para se tornar os “olhos e ouvidos” de Lincoln como comissário especial no Departamento de Guerra, percorrendo as frentes e relatando à Casa Branca que Ulysses Grant era o homem a apoiar. Marx argumentou no Die Presse em março de 1862 que os exércitos da União deveriam abandonar sua estratégia de cerco e tentar cortar a Confederação em duas. Dana deve ter notado que Grant havia chegado à mesma conclusão por instinto e experiência. Em 1863, Dana tornou-se secretário adjunto do Departamento de Guerra.

Marx ficou encantado quando Lincoln — encorajado pela campanha abolicionista e pela radicalização da opinião no Norte — anunciou sua intenção de emitir uma Proclamação de Emancipação em janeiro de 1863. A Proclamação tornaria difícil para os governos britânico ou francês conceder reconhecimento diplomático à Confederação. Também permitia o alistamento de libertos no exército da União.

Marx e Lincoln tinham opiniões muito divergentes sobre corporações comerciais e trabalho assalariado, mas, da perspectiva atual, eles compartilhavam algo importante: ambos detestavam a exploração e consideravam o trabalho como a principal fonte de valor. Em sua primeira mensagem ao Congresso em dezembro de 1861, Lincoln criticou o “esforço para colocar o capital em pé de igualdade com, senão acima, o trabalho na estrutura do governo”. Em vez disso, ele insistiu, “o trabalho é anterior e independente do capital. O capital é apenas o fruto do trabalho... O trabalho é superior ao capital e merece muito mais consideração.”

Lincoln acreditava que na América o trabalhador assalariado era livre para ascender por seus próprios esforços e poderia se tornar um profissional, ou mesmo um empregador. Marx sustentava que esse quadro de mobilidade social era uma miragem e que apenas um punhado poderia conseguir a independência econômica.

Para Marx, o trabalhador assalariado era apenas parcialmente livre, pois tinha que vender seu trabalho a outro para que ele e sua família pudessem viver. Mas, como não era escravo, o trabalhador livre podia se organizar e agitar por, digamos, uma jornada de trabalho mais curta e educação gratuita. Weydemeyer havia lançado uma Federação Trabalhista Americana em 1853 que apoiava esses objetivos e declarava suas fileiras abertas a todos “independentemente de ocupação, idioma, cor ou sexo”. Esses temas se tornaram centrais para a política dos seguidores de Marx na América.

O assassinato de Lincoln levou Marx a escrever um novo “Discurso” da IWA para seu sucessor, com uma homenagem exagerada ao presidente morto. Nesse texto, Marx descreveu Lincoln como “um homem que não se deixa intimidar pela adversidade, nem se embriagar pelo sucesso, avançando inflexivelmente para seu grande objetivo, nunca o comprometendo por uma pressa cega, amadurecendo lentamente seus passos, nunca os refazendo... fazendo seu trabalho titânico tão humilde e modestamente quanto os governantes nascidos no céu fazem pequenas coisas com a grandiloquência da pompa e do estado. Tal era, de fato, a modéstia deste grande e bom homem, que o mundo só o descobriu como herói depois de ter caído como mártir.” No entanto, a trágica perda não impediu que a vitória do Norte abrisse caminho para uma “nova era de emancipação do trabalho”.

Marx e Engels logo ficaram preocupados com as ações de Andrew Johnson, o novo presidente. Em 15 de julho de 1865, Engels escreveu a seu amigo atacando Johnson: “Seu ódio aos negros vem à tona cada vez mais violentamente... Se as coisas continuarem assim, em seis meses todos os velhos vilões da secessão estarão sentados no Congresso em Washington. Sem sufrágio das pessoas de cor, nada pode ser feito lá”. Os republicanos radicais logo chegaram à mesma conclusão.

Logo após a guerra, e em parte graças à publicação dos discursos da IWA, a Internacional atraiu muito interesse e apoio nos Estados Unidos.

Marx estava dando os toques finais em O Capital: Volume I em 1866-67, e incluiu uma nova seção nesta fase tardia sobre os determinantes da duração da jornada de trabalho. O apelo por um dia de oito horas emergiu como uma demanda importante em vários estados dos EUA. Em 1867, a IWA deu as boas-vindas ao surgimento de um Sindicato Nacional dos Trabalhadores nos Estados Unidos, formado para difundir a demanda como um objetivo unificador.

Em sua primeira conferência, o NLU declarou: “O Sindicato Nacional dos Trabalhadores não conhece norte, nem sul, nem leste, nem oeste, nem cor nem sexo, na questão dos direitos do trabalho”. No espaço de um ano, oito diferentes estados do Norte adotaram a jornada de oito horas para funcionários públicos.

As regiões dos Estados Unidos ofereciam possibilidades muito diversas de ação política. Apenas a presença de tropas da União no Sul impediu que vigilantes brancos, muitos deles veteranos confederados, aterrorizassem os libertos. No Tennessee, na Carolina do Sul e na Louisiana, houve congressos negros que redigiram uma “Declaração de Direitos e Erros”, insistindo que a liberdade seria uma zombaria se não implicasse acesso igualitário a ônibus, trens e hotéis, escolas e universidades.

No norte e no oeste, os radicais mais ousados organizaram seções da Internacional; no final da década de 1860, havia cerca de cinquenta seções e talvez cinco mil membros. Em dezembro de 1871, a IWA em Nova York organizou uma demonstração de solidariedade de setenta mil pessoas pelas vítimas massacradas na repressão da Comuna de Paris. A multidão destacava uma milícia negra chamada Skidmore Guards; muitos sindicalistas com suas bandeiras; Victoria Woodhull e as líderes feministas da Seção 12; uma banda irlandesa; e um contingente marchando atrás da bandeira cubana. Muitos dos sindicatos fundados nessa época incluíam a palavra “Internacional” em seu nome.

Mas no início da década de 1870, o apoio do Norte à Reconstrução, com sua dispendiosa ocupação do Sul e suas ousadas afrontas ao preconceito racial, estava começando a diminuir. Uma onda de escândalos de corrupção minou a moral republicano. O verdadeiro problema, no entanto, era que o programa republicano havia se desintegrado. Lincoln esperava construir um governo federal forte e autoritário em Washington e, assim, obter respeito pelo estado de direito em toda a União restaurada. Aos olhos de Marx, Lincoln teria construído o tipo de “república democrática burguesa” que permitiria o surgimento de um partido trabalhista dedicado à educação gratuita, tributação progressiva e jornada de trabalho de oito horas.

Essas esperanças foram frustradas. O assassinato de Lincoln, o caos e a reação da presidência de Johnson e o fracasso de Ulysses Grant, seu sucessor, em impor liderança moral, tudo isso minou ou comprometeu a promessa de um governo federal autoritário e indivisível. Marx não se surpreendeu com o surgimento de capitalistas “barões ladrões”, nem com a amarga luta de classes que eles desencadearam. Ele esperava — na verdade previu — muita coisa disso.

Mas o fracasso do estado federal em impor sua autoridade ao Sul era outra questão, assim como a capacidade dos chefes do Norte de esmagar greves mobilizando milhares de policiais especiais e homens da Pinkerton.

O fim da escravidão certamente validou o alinhamento momentâneo de Lincoln e Marx. Durante a Reconstrução (aproximadamente 1868-1876), os libertos podiam votar, seus filhos podiam ir à escola e havia muitos eleitos negros. No Norte, houve ganhos para o movimento das oito horas e as primeiras tentativas de regularizar as corporações ferroviárias.

Mas algo do espírito conservador da república antebellum, com sua aversão à tributação federal, persistiu na fraqueza do poder federal. Em um desenvolvimento ameaçador, a Suprema Corte declarou que o imposto de renda progressivo, introduzido pelo governo Lincoln em 1862, era inconstitucional. Sem o imposto de renda, pagar pela guerra seria muito mais difícil e a futura redistribuição impossível.

Outro passo retrógrado foi uma decisão da Suprema Corte que interpretou a promessa de tratamento igualitário para “todas as pessoas” na Décima Quarta Emenda de 1868 — uma medida introduzida para proteger os libertos — como uma proteção às novas corporações, uma vez que também se considerava que gozavam a condição de “pessoas”. O resultado direto dessa decisão foi tornar muito mais difícil para as autoridades federais ou locais regular as corporações (a decisão ainda está em vigor).

A reconstrução terminou com um acordo entre republicanos e democratas que resolveu o impasse do Colégio Eleitoral de 1876, confirmando a autoridade fragmentada do estado. Esse acordo permitiu que o candidato com menos votos entrasse na Casa Branca, ao mesmo tempo em que exigia a retirada de todas as tropas federais do Sul. Isso deu rédea solta às turbas de linchamento.

Em poucos meses, reclamou o próprio Grant, as tropas federais que haviam sido impedidas de enfrentar a Ku Klux Klan foram enviadas contra os ferroviários durante a Grande Greve de 1877, suprimindo-a à custa de cem vidas. Os trabalhadores americanos lutaram tenazmente, mas muitas vezes em uma base regional ou estado por estado.

Para muitos, o sindicalismo fazia mais sentido do que o partido trabalhista que Marx e Engels defendiam, embora a análise penetrante de Marx sobre o capitalismo ainda tivesse um impacto em pessoas tão diversas como Samuel Gompers (fundador da AFL), Lucy Parsons (sindicalista, feminista, fundadora da o IWW) e Eugene Debs (socialista).

A derrota da visão de Lincoln de uma república unificada, democrática e autoritária foi uma derrota também para os socialistas. Não foi a última vez que a genialidade da Constituição dos EUA, com seus múltiplos freios e contrapesos, frustrou os planos dos progressistas.

Colaborador

Robin Blackburn leciona na Universidade de Essex e é autor de Age Shock: How Finance is Failing Us.

1 de agosto de 2012

Janízaros democráticos? O papel da Turquia na primavera Árabe

A Turquia foi saudada no Ocidente como um modelo democrático para o mundo islâmico. Cihan Tuğal dá uma olhada legal no histórico de política interna e externa do governo de Erdoğan, desde a diplomacia de "problemas zero" até o bloqueio da Líbia e a guerra suja em Damasco, ataques aéreos contra curdos turcos e silêncio no Bahrein.

Cihan Tuğal


NLR 76 • JULY/AUG 2012

Tradução / Os levantes políticos da Primavera Árabe e as vitórias eleitorais de partidos islâmicos trouxeram de volta à tona o debate a respeito do "modelo turco" — que "integra Islã, democracia e economia vibrante de maneira bem-sucedida", de acordo com um artigo efusivo de 2011 do New York Times , que saudou o primeiro-ministro da Turquia Recep Tayyip Erdoğan como "provavelmente a figura mais influente do Oriente Médio". Funcionários da Casa Branca enfatizaram o exemplo positivo que a Turquia poderia dar como país muçulmano que mantém relações diplomáticas com Israel; em 2009, Obama, em uma visita a Ancara muito anunciada, saudou o governo do Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP) como um "parceiro-modelo" e um dos pilares da Otan. O International Crisis Group descreve a Turquia como "objeto de inveja do mundo árabe", usufruindo "uma democracia sólida, um líder legitimamente eleito que parece representar o ânimo popular, produtos populares do Afeganistão ao Marrocos — inclusive dezenas de seriados televisivos dublados em árabe que estão em televisores em toda parte — e uma economia que vale cerca de metade de todo o mundo árabe". Turistas de outros lugares da região acorriam para testemunhar "uma sociedade muçulmana em paz com o mundo, economicamente avançada e onde tradições islâmicas coexistem com os padrões de consumo ocidentais"1.

O louvor é ecoado por Tariq Ramadan, que declarou a visita de Erdoğan ao Egito, à Tunísia e à Líbia, em setembro de 2011, "um imenso sucesso popular" — "árabes e muçulmanos olhavam com espanto e admiração" enquanto Erdoğan falava em favor do direito dos palestinos à existência. "Ele está do lado certo da História", proclamou Ramadan. "A Turquia pode e deve desempenhar um papel importante", ajudando "a reconciliar os muçulmanos com confiança, autonomia, pluralismo e sucesso"2. Enquanto isso, o ministro das Relações Exteriores da Turquia Ahmet Davutoğlu se orgulhava de trazer uma nova pax ottomana para a região, uma abordagem "zero problemas com os vizinhos" que expandiria a influência de Ancara no Cáucaso e no mar Negro, no Oriente Médio e no Mediterrâneo, ao mesmo tempo ajudando a intermediar relações melhores entre Israel e os Estados árabes. Essa visão nega quaisquer ambições imperiais neo-otomanas; antes, é descrita por seus proponentes como uma questão de "soft power ", sublinhando o rosto sorridente que desejam associar a ela. Como uma estrutura emergente de sentimento, a pax ottomana foi abraçada por camadas da intelligentsia e pela cultura popular, indo muito além das fileiras do AKP3. A nostalgia por tudo que é ottomanesque arrastou até a Turquia secular, levando a taxas de audiência recordes para uma novela sobre o sultão Süleyman e as intrigas de seu harém; formas banalizadas e sexualizadas de esplendor imperial tornaram-se parte do ar que se respira.

Depois de uma década de governo do AKP, um consenso internacional tem retratado a Turquia de Erdoğan como a alternativa "bem-sucedida" tanto ao autoritarismo árabe secular quanto ao islamismo revolucionário do Irã. Pesquisas de opinião revelam uma aceitação mais cautelosa: relata-se que cerca de 60% dos árabes veem a Turquia como um modelo. Até que ponto um exame de cabeça fria da política externa e do histórico doméstico do AKP sustenta essas afirmações?

A NOVA OSTPOLITIK

O AKP assumiu o governo em novembro de 2002 como um partido outsider , capitalizando a crise do sistema político depois dos colapsos da economia turca em 1999 e 2001. Suas origens estavam em um movimento social conservador, construído com base em política de rua, escolas religiosas e mobilizações populares; sua ideologia combinava ética empresarial, devoção religiosa e parlamentarismo com uma linha pró-muçulmana convencional, portanto pró-Palestina, opondo-se à intervenção militar anglo-americana na região. Mas a nova liderança do AKP — Erdoğan, Abdullah Gül, Bülent Arınç — também era veementemente pró-União Europeia (UE) e fazia visitas frequentes aos Estados Unidos4. Nas eleições de novembro de 2002, o AKP amealhou 60% das cadeiras do Meclis, o parlamento turco, ainda que com apenas 34% dos votos. Seu primeiro teste de política externa aconteceu na primavera de 2003 com a invasão do Iraque pelos Estados Unidos — que teve a oposição de uma esmagadora maioria da população turca. Os resultados das três votações no Meclis sobre a guerra quase nem precisam ser relembrados. Em fevereiro de 2003, os deputados do AKP apoiaram uma decisão de permitir que bases americanas na Turquia fossem reforçadas, em preparação para a invasão. A segunda votação, realizada na ausência de Erdoğan, em março de 2003, assistiu a uma rebelião dos deputados do AKP, que se juntaram à oposição do Partido Republicano do Povo (PRP) para derrotar a moção do governo que permitia que tropas americanas lançassem a invasão a partir do solo turco. No momento da terceira votação, algumas semanas depois, Erdoğan tinha disciplinado seu partido: uma maioria maciça de deputados do AKP votou a favor da guerra — e do envio de forças turcas para apoiar a ocupação anglo-americana do Iraque (além das tropas que tinham patrulhado por muito tempo a região curda do Iraque sob a zona de exclusão aérea anglo-americana).

No fim, a utilização do exército turco como parte da força de ocupação no Iraque foi bloqueada pelo líder curdo iraquiano Massoud Barzani, e talvez também pelo governo Bush, como punição pela curta rebelião do Meclis. O mais impressionante, no entanto, e que dá uma medida da hegemonia que o AKP usufruía, foi o nível de apoio popular para a posição pró-Bush de Erdoğan, que foi entendida como um golpe de mestre estratégico: uma concessão a curto prazo que garantiria apoio americano para a Turquia e recompensas importantes a longo prazo. A terceira votação foi também saudada pelos liberais atlanticistas da Turquia como um bem-vindo passo na direção de uma participação mais plena nas intervenções militares da "comunidade internacional", principalmente em antigas terras otomanas. Esse apoio foi vantajoso para o governo Erdoğan quando ele emprestou apoio a intervenções militares ocidentais bem-sucedidas em países muçulmanos. Assim, em 2006, quando a população turca condenou quase unanimemente a invasão do Líbano e o bombardeio do sul de Beirute por Israel, Erdoğan e Gül, então ministro das Relações Exteriores, insistiram na participação turca na força da onu enviada para conter o Hezbollah, o que as forças de defesa israelenses evidentemente não tinham conseguido fazer, com a justificativa de "socorrer" as vítimas libanesas.

De forma semelhante, o vice-primeiro-ministro Bülent Arınç explicou que o exército turco está no Afeganistão para ajudar a Otan a "proteger a paz". Quando doze soldados turcos foram mortos lá recentemente em um acidente de helicóptero, os apoiadores liberais do governo — com destaque para o ex-maoísta Şahin Alpay — se apressaram a apontar a indissociabilidade entre os interesses turcos e os interesses "globais", em resposta a um questionamento contundente do novo líder, pró-esquerda, do PRP, Kemal Kılıçdaroğlu, sobre se as tropas turcas estavam no Afeganistão "para defender os interesses da nossa nação". Conservadores islâmicos, entretanto, argumentam que o contingente turco da ISAF [Força Internacional de Assistência à Segurança, da Otan] está lá para proteger os afegãos dos excessos do imperialismo ocidental — uma desculpa usada com frequência quando se defende a participação da Turquia em ocupações lideradas pelos Estados Unidos5. Eles também enfatizam a necessidade de proteger o modelo turco do Islã contra uma suposta versão al-Qaeda. A participação da Turquia na ISAF , junto com a da Jordânia e a dos Emirados Árabes Unidos, tem claramente valor simbólico, e não militar, para os Estados Unidos: a presença de tropas de países predominantemente muçulmanos supostamente prova que essa não é uma cruzada cristã contra o Islã. Na verdade, ela ajuda a manter a Turquia presa em seu papel costumeiro de "ponte" entre o imperialismo ocidental e o mundo muçulmano — uma ponte para a travessia das forças da Otan. Uma minoria de forças islâmicas mais radicais, junto com a esquerda, muito reduzida, ainda resiste ao envolvimento, orientado pelo Ocidente, da Turquia na região e exige uma ação diplomática e militar independente. Mas um número muito maior de intelectuais e ativistas islâmicos apoia o governo em sua tentativa de afirmar a liderança islâmica e ao mesmo tempo permanecer uma extensão do Ocidente.

NEO-OTOMANO?

Uma vez que o objetivo da política externa central do AKP de entrada na ue tinha sido adiado — depois da rejeição pelos eleitores cipriotas do plano de Kofi Annan para contornar o fato flagrante de quarenta anos de ocupação militar da ilha pela Turquia —, a ostpolitik de Ancara adotou uma nova ênfase. Em 2007, quando líderes franceses e alemães fizeram discursos de campanha eleitoral sobre a "Europa cristã", Erdoğan, Gül e Davutoğlu puderam apontar para o novo papel da Turquia no Oriente. Durante a Guerra Fria, os esforços da política externa de Ancara tinham sido quase exclusivamente voltados para o Oriente (se é que as antigas relações com Israel podem ser incluí­das nessa expressão). A desintegração do Império Otomano tinha deixado um legado de desconfiança mútua em toda a região até então governada de Istambul. Os turcos acusavam os árabes de "apunhalá-los nas costas" ao cooperar com potências ocidentais após a Primeira Guerra Mundial; a modernização (e turquificação) kemalista visava a uma ruptura decisiva com a cultura islâmica e árabe, incluindo a romanização do alfabeto e a "purificação" desarabizante da língua. Similarmente, a dominação turca histórica era um leitmotiv negativo para os Estados árabes, fossem repúblicas seculares, fossem monarquias conservadoras; livros didáticos árabes se referiam aos turcos, não apenas aos otomanos, como imperialistas. Assim como os kemalistas atribuíam o "atraso" turco à influência decadente da cultura árabe, os nacionalistas árabes culpavam o colonialismo e a exploração otomanos pelos baixos níveis de desenvolvimento econômico de seus países. É verdade que alguns islamitas árabes detectavam aspectos virtuosos no passado otomano, enquanto alguns islamitas turcos também tinham nostalgia pelos tempos em que turcos, árabes e outros coexistiam sob o estandarte do Islã. Mas, se havia uma compaixão generalizada em relação aos sofrimentos dos palestinos, havia pouca solidariedade prática pró-árabe entre os islamitas turcos, e a mais influente organização religiosa do país, a comunidade Gülen — dirigida pelo clérigo Fethullah Gülen de seu exílio autoimposto na Pensilvânia —, defende uma agenda cultural explicitamente nacionalista turca6.

No início dos anos 2000, porém, três desenvolvimentos estavam começando a colocar a Turquia sob uma luz mais positiva, ainda que com alguns pontos escuros, para o mundo árabe. Em primeiro lugar, o país tinha combinado sua adesão ao neoliberalismo com uma democratização parcial, enquanto regimes árabes neoliberalizantes insistiam no autoritarismo, justificando seus aparatos de segurança repressivos para a elite global como um baluarte contra o islamismo radical, e para as massas árabes como uma defesa contra a ameaça israelense7 (uma desculpa ridícula, já que os governantes árabes sistematicamente fecharam os olhos para as depredações praticadas por Israel nos territórios ocupados, contentando-se com demagogia antissionista). Em segundo lugar, quando sua recuperação econômica do crash de 2001 ganhou fôlego, a Turquia passou a contar com entradas recordes de investimento estrangeiro direto, principalmente de países do Golfo, e começou a exibir números de crescimento mais altos — embora também desigualdades que se ampliavam rapidamente. Em terceiro lugar, o advento do governo do AKP despertou a curiosidade do mundo árabe: a tradição kemalista da Turquia era habitualmente retratada como ateia e antiárabe, mas os líderes do AKP eram aparentemente devotos e, no caso de Erdoğan, tinham um toque popular. Assim, enquanto a brutalidade da polícia, a pobreza, a desigualdade e o desemprego se intensificavam sob regimes árabes neoliberais autoritários, a Turquia reemergia na imaginação popular árabe como uma entidade ambivalente. O governo Erdoğ an se tornava um símbolo de força muçulmana, mas também evocava inquietação com a arrogância imperial dos turcos.

Essa arrogância foi amplamente exibida no tratamento dado pelo governo Erdoğan aos curdos da Turquia. Desde 1984, o Estado turco matou um número estimado em 40 mil de seus cidadãos curdos — comparável pelo menos às mortes atribuídas a Bashar Assad — e a repressão da língua e da cultura curdas foi mais selvagem na Turquia do que na Síria, no Iraque ou no Irã8. Nos dois primeiros anos de governo, o AKP introduziu algumas medidas descriminalizando a cultura curda, entre elas a permissão para transmissões limitadas de tv e ensino privado em língua curda, embora estas ficassem aquém do que os curdos vinham reivindicando. Mas, em 2005, o AKP começou a tomar um rumo estridentemente nacionalista turco, intensificando a repressão militar no sudeste e envolvendo as cidades em gigantescas bandeiras turcas. Ao mesmo tempo, e encorajado pela região curda autônoma de fato criada sob os auspícios da ocupação dos Estados Unidos no norte do Iraque, o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) encerrou seu cessar-fogo de cinco anos. A Turquia intensificou devidamente seus ataques aéreos a campos do PKK no Iraque, irritando o governo regional de Massoud Barzani. O governo Bush interveio para repreender severamente seus aliados em janeiro de 2005 e novamente em outubro de 2007, intermediando acordos pelos quais a mão de Barzani seria molhada por empresas de construção turcas, enormes contratos de infraestrutura seriam concedidos ao governo no Curdistão iraquiano, entre eles o do aeroporto Sulaymaniyah, de US$ 40 milhões, enquanto o exército turco era autorizado a bombardear livremente militantes do PKK abrigados no norte do Iraque9. Depois de sucessivas ondas de prisões, os ativistas estimam que haja agora pelo menos três mil estudantes turcos-curdos na prisão, assim como jornalistas e professores universitários, nem todos eles curdos, acusados de "propaganda terrorista" ou de "insultar a nação turca".

"ZERO PROBLEMAS"

Foi nesse contexto que Erdoğan, Gül e Davutoğlu lançaram a iniciativa diplomática que batizaram de "zero problemas com os vizinhos", com o objetivo de impressionar os Estados do Oriente Médio com a influência de Ancara em Washington, e Washington com sua nova influência no Oriente Médio. Muito dinheiro foi gasto na melhoria de embaixadas turcas, e muito tempo e energia em viagens diplomáticas pela região. A política de "zero problemas" tinha um componente comercial substancial. Economicamente, a Turquia permanece predominantemente orientada para o Norte e o Oeste: em 2010, o comércio turco com a ue foi de quase US$ 125 bilhões (exportações turcas de US$ 52,7 bilhões, importações de US$ 72,2 bilhões), enquanto o comércio com a Rússia e outras ex-repúblicas soviéticas foi de US$ 35,1 bilhões. Em contraste, o comércio com o GCC (Gulf Cooperation Council) e o Iêmen foi de US$ 10,3 bilhões (US$ 6,7 bilhões de exportações, US$ 3,6 bilhões de importações); o comércio com o Norte da África foi de US$ 8,2 bilhões; com o Egito, de US$ 3,2 bilhões; com a Síria, de US$ 2,5 bilhões, dos quais três quartos compostos de exportações turcas. No entanto, em 2010 o comércio com o Oriente Médio e o Norte da África foi substancialmente maior do que tinha sido em 2002 — até o triplo com a Síria, quase o quádruplo com o Norte da África, o quíntuplo com o GCC e o Iêmen e o séptuplo com o Egito10. Grande parte disso foi representada pela indústria da construção civil turca, com projetos muitas vezes facilitados por empréstimos de bancos turcos; empresas de alimentos e têxteis turcas investiram no Egito, na Síria e no Golfo. A diplomacia "zero problemas" de Davutoğlu também levou a um bem-vindo relaxamento das restrições para vistos de entrada de visitantes de Estados árabes na Turquia, colocando-os em pé de igualdade com turistas da UE e da Rússia. As exigências de visto para marroquinos e tunisianos foram atenuadas em 2007, e para sírios, libaneses, jordanianos e líbios em 2009. No ano seguinte, a Turquia amarrou um acordo com Síria, Líbano e Jordânia para criar uma zona de livre-comércio com quatro países, a Associação Econômica e Comercial de Vizinhos Próximos. A ofensiva diplomática da Turquia envolveu naturalmente relações mais cordiais com os governantes do Golfo, Mubarak, Ben Ali, Assad, Kadafi, e assim por diante. Em 2010, Erdoğ an voou para Trípoli para ser reverenciado pelo líder líbio com o Prêmio de Direitos Humanos Al-Kadafi daquele ano.

"Zero problemas" com Israel era um elemento central da política de Davutoğlu. O comércio bilateral com Israel quase triplicou no governo do AKP, passando de US$ 1,3 bilhão, em 2002, para US$ 3,4 bilhões, em 2010. A Turquia fez grandes compras de armas israelenses, os exercícios militares conjuntos foram ampliados e ofereceu-se à Força Aérea israelense o livre uso do espaço aéreo sobre Konya para suas missões de treinamento. Davutoğlu e Erdoğan investiram muito esforço na tentativa de mediar as relações entre Israel e seus vizinhos. Erdoğan estava particularmente encantado com o papel que imaginou para si de "facilitador" em uma nova iniciativa de paz sírio-israelense em 2008. De acordo com diplomatas locais, suas inúmeras viagens entre Bashar Assad e Ehud Olmert permitiam que "a Turquia se sentisse importante" e que Israel demonstrasse suas "intenções pacíficas". Relatou-se que Erdoğan se sentiu "chocado e traído no que ele achava serem compromissos pessoais de Olmert" quando o primeiro-ministro israelense lançou a ofensiva da Operação Chumbo Fundido em Gaza no fim de dezembro de 2008, cerca de um dia depois de uma aconchegante discussão com jantar de cinco horas com Erdoğan, durante a qual o líder turco fizera um longo telefonema para Assad. Naturalmente Olmert não fizera nenhuma menção aos planos das forças de defesa israelenses para Gaza. Esse foi o pano de fundo do protesto de Erdoğan em Davos algumas semanas depois, quando, ao participar de um painel com Shimon Peres, leu críticas de Avi Shlaim e outros ao ataque a Gaza e deixou a plataforma no momento em que o moderador tentou fazer com que ele resumisse sua fala. Isso rendeu a Erdoğan elogios abundantes na imprensa árabe por "enfrentar Israel", embora os exercícios da Força Aérea israelense no espaço aéreo turco continuassem, e, em 2010, Tel Aviv cumprisse devidamente a entrega de tanques M-60 recondicionados e drones Heron, para que o regime do AKP os utilizasse contra o PKK no norte do Iraque11.

As relações turco-israelenses foram ainda mais tensionadas pelo caso Flotilha da Liberdade, em maio de 2010, quando comandos israelenses mataram nove ativistas turcos a bordo do Mavi Marmara quando este navegava na direção de Gaza para romper o embargo israelense-egípcio. Muitos dos ativistas a bordo eram filiados à IHH, uma organização de auxílio islâmica que fornece ajuda a muçulmanos afligidos pela guerra. Na partida do navio houvera uma manifestação em grande escala organizada pelo Partido da Felicidade, o remanescente do agrupamento islâmico mais intransigente do qual Erdoğan e os outros líderes do AKP haviam se separado em 2001, e que desde então tem sido apenas um ator político menor. Vários parlamentares do AKP aparentemente também tinham tentado ir a bordo, mas o governo os havia mandado voltar pouco antes de o Mavi Marmara iniciar sua jornada fatídica. Embora comentaristas na Turquia especulassem que a rota do navio fora aprovada pelo governo, o AKP negou qualquer ligação. Enquanto isso, em uma rara declaração à imprensa para o Wall Street Journal , Fethullah Gülen, o líder islâmico mais influente da Turquia, acusou os ativistas da flotilha de "desafiar a autoridade", um pecado grave para intérpretes conservadores do Islã12. Na verdade, o AKP conseguiu satisfazer aos dois lados: em resposta aos críticos israelenses e americanos que disseram que ele deveria ter impedido o navio de navegar, pôde argumentar que não tinha nenhum controle sobre a situação; entre seu eleitorado islâmico e os muçulmanos em todo o mundo, no entanto, ele pôde ganhar crédito por uma tentativa de romper o embargo a Gaza. Alinhado com essa abordagem, Gül pediu um inquérito oficial da onu sobre o destino da Flotilha da Liberdade. Como era previsível, o relatório da onu, presidido pelo ex-primeiro-ministro da Nova Zelândia Geoffrey Palmer, concluiu que o bloqueio de Gaza — uma população de quase 2 milhões de pessoas presas em condições semelhantes às de um gueto, com suprimentos dependentes do capricho de Israel — era perfeitamente aceitável sob a legislação internacional13.

PRIMAVERA ÁRABE

A diplomacia "zero problemas" do AKP foi ainda mais desorganizada pelas revoltas árabes de 2011. Assim como os Estados Unidos e a maior parte da UE, o governo turco permaneceu em silêncio em janeiro de 2011, enquanto protestos contra o regime de Ben Ali cresciam na Tunísia, em contraste com o apoio imediato ao movimento oferecido, por diferentes motivos, pelo Qatar, pelo Irã e pelo Hezbollah. Erdoğan fez uma intervenção mais notável no Egito. Falando na tv turca em 1º de fevereiro de 2011, uma semana após o primeiro "dia de fúria", ele aconselhou Mubarak a "atender ao desejo de mudança do povo, sem hesitação" — "você deve ser o primeiro a dar um passo para a paz, a segurança e a estabilidade no Egito, sem permitir que exploradores, círculos corruptos e círculos que têm cenários sombrios para o Egito tomem a iniciativa"14. Isso estava amplamente alinhado com o apelo do governo Obama, em 30 de janeiro, a uma "transição ordeira", e na verdade seguiu-se ao anúncio de Mubarak de que ele não concorreria à eleição presidencial marcada para setembro de 2011. Mas serviu para posicionar Erdoğ an como um amigo da praça Tahrir.

Como Washington, mais uma vez, Ancara silenciou quando protestos irromperam no Bahrein em meados de fevereiro e fechou os olhos quando manifestantes foram atingidos com tiros e bombas de gás lacrimogêneo na Praça da Pérola. Em 20 de março, apenas uma semana depois de tanques sauditas terem rolado pela calçada para esmagar os manifestantes pela democracia, Erdoğan anunciou que a Turquia e a Arábia Saudita "dão uma contribuição importante para a paz e a estabilidade regionais, e exibem um modelo de cooperação"15. De fato, Erdoğan e Davutoğlu agiram para consolidar as relações turcas com a Arábia Saudita à medida que a Primavera Árabe se enfraquecia, trabalhando para fortalecer a sectarização — sunitas contra xiitas e alauitas — da região. Ancara, prudentemente, também se calou sobre o levante no Iêmen, onde interesses sauditas e americanos poderiam ter sido ameaçados se as demandas por empregos, padrão de vida e democratização fossem atendidas. Quando a repressão se acirrou, as divisões dentro da elite tribal governante assumiram maior relevância, por fim lançando tribo contra tribo, em vez de ativistas contra a ditadura16. Negociações tribais acabaram levando à remoção do presidente Saleh sem nenhuma grande mudança no aparelho do Estado, que se manteve adequado aos propósitos dos sauditas e do governo Obama17.

A geopolítica da Primavera Árabe sofreu uma mudança decisiva com a militarização da revolta líbia, sob os auspícios das potências da Otan. Em 17 de março de 2011, a "comunidade internacional" autorizou-se a impor uma zona de exclusão aérea — de fato, uma guerra aérea contra o regime de Kadafi — e tomar "todas as medidas necessárias", nos termos da Resolução 1973 do Conselho de Segurança da onu. Nesse caso, o governo Erdoğan se dividiu18. A princípio o próprio Erdoğan havia se oposto à intervenção da Otan, deixando consternados seus apoiadores liberal-atlanticistas. Em 15 de março, ele anunciou em uma entrevista na tv que havia telefonado pessoalmente a Kadafi e o aconselhado a ouvir o povo e nomear um novo presidente. Seguiram-se muitas guinadas depois que a operação da Otan foi posta em prática. Em 25 de março, uma força naval turca foi enviada para impor o bloqueio de portos controlados por Kadafi. O Meclis aprovou o envio de mais forças, inclusive tropas, se necessário. Representantes turcos protestaram contra o fato de a Operação Harmattan, da França, se aproveitar secretamente da ação combinada das potências da Otan, e a base aérea de Izmir foi oferecida para o bombardeio. Os franceses contra-argumentaram que Erdoğan e Davutoğlu estavam ressentidos por não terem sido convidados para a reunião de cúpula que Sarkozy havia convocado após a aprovação da Resolução 1973 do Conselho de Segurança da onu. Sarkozy agiu para impedir que a Turquia desempenhasse um papel de liderança no ataque. Isso não foi difícil, dados os sentimentos ambíguos e as divisões internas entre as forças pró-governo na Turquia. Erdoğan e Davutoğlu decidiram a contragosto dar apoio logístico à Otan. No início de julho de 2011, Davutoğlu voou para Bengasi para encontrar os líderes do Conselho Nacional de Transição (CNT) e anunciar o reconhecimento pela Turquia do CNT como legítimo representante do povo líbio.

Essas incoerências foram em boa parte causadas pelas dificuldades de conciliar a abordagem "zero problemas" de Davutoğlu com as realidades das alianças ocidentais da Turquia, no contexto do que era, para Washington, Paris e Londres, uma guerra periférica de menor importância. Junto com os Estados Unidos e outros importantes Estados ocidentais, a Turquia tinha desenvolvido não só boas relações diplomáticas, mas também bons negócios com Kadafi, lucrando em especial com o boom de construção líbio após 2009. Não estava claro que a derrubada violenta do regime beneficiaria a Turquia, ao passo que as potências ocidentais, que tinham mais controle sobre a transição, poderiam contar com sua capacidade de dividir e manipular os novos detentores do poder líbio. Mas as guinadas do governo turco tinham outra fonte: os ideólogos e militantes de formação islâmica, que ainda constituíam as vértebras ideológicas do AKP, haviam combatido ditaduras; mas tinham também se oposto à ação militar ocidental na região, que desde 1990 adotara, ainda que seletivamente, a agenda da derrubada de ditadores. Como vimos, muitos desses apoiadores do AKP estavam agora fazendo as pazes com o papel subimperial da Turquia na região, como um baluarte da ordem da Otan. Essa era a dimensão diplomática e geopolítica de um processo mais amplo de absorção que descrevi em outro lugar como uma "revolução passiva"19. Em maio de 2011 — um mês em que mais de setecentos civis líbios foram mortos por ataques aéreos da Otan, de acordo com Trípoli —, Davutoğ lu resumiu a posição desses ex-anti-imperialistas islâmicos em relação às revoltas radicais da Primavera Árabe:

Um espírito revolucionário, uma cultura de rebelião se desenvolveu nesta região [...] Se eu não estivesse neste cargo, ou se fosse jovem, eu entoaria "Vida longa à revolução". Mas, como a grande potência [ büyük devlet] que guarda a estabilidade na região, temos de assegurar que as pessoas sejam prejudicadas o mínimo possível20.

Uma empatia "desencantada" e madura com a juventude e a rebeldia combinada a um elogio da ordem e da estabilidade; uma "ética de responsabilidade" que defende o Estado como o protetor de populações indefesas, ao mesmo tempo que seus mísseis chovem sobre elas; tais são as realizações do modelo turco do AKP. Claro, pode-se apontar para conversões semelhantes em Paris, Londres e Berlim.

GUERRA A DAMASCO

Até certo ponto, a resposta do governo Erdoğan à revolta na Síria seguiu um caminho semelhante. Aqui, as próprias políticas de livre mercado que Erdoğan e Davutoğlu vinham promovendo por meio da Associação Econômica e Comercial regional haviam ajudado a piorar a má situação da juventude nas cidades agrícolas decaídas, de Daraa, no sul, a Homs, Hama e Idlib, que seriam o centro da revolta, enquanto uma minúscula elite tinha ficado espetacularmente rica. Inicialmente, no fim de março e em abril de 2011, enquanto o regime de Damasco enfrentava manifestações com gás lacrimogêneo e canhões de água, Erdoğan buscou de novo se posicionar como mediador, tentando persuadir Assad a negociar com o braço político da Irmandade Muçulmana síria e marcar eleições. Ao mesmo tempo que navios de guerra turcos eram preparados para a operação da Otan contra Kadafi, Erdoğan informava à imprensa internacional que havia insistido para que Assad adotasse uma abordagem "positiva, reformista" — "é nosso desejo sincero que não haja aqui eventos dolorosos como na Líbia"21. O objetivo de Ancara era uma transição democrática administrada que ampliasse a base do regime de Assad — uma estratégia de revolução passiva que reconhecia que, para que permanecessem as mesmas, as coisas teriam de mudar22.

Isso estava em nítido contraste com a linha de Riad, tal como transmitida a um ex-operador do Departamento de Estado americano por um "alto funcionário saudita", que observou que "desde o início da revolta síria, o rei acreditou que a mudança de regime seria extremamente benéfica para os interesses sauditas, em particular vis-à-vis a ameaça iraniana. 'O rei sabe que, afora o colapso da própria República Islâmica, nada enfraqueceria mais o Irã do que perder a Síria'"23. À medida que a posição da Arábia ganhava força em Washington, no entanto, a linha turca também começou a mudar24. Embora mantendo contato com o regime de Assad, o governo Erdoğan permitiu que o líder da ala militar da Irmandade Muçulmana síria desse uma entrevista coletiva à imprensa em maio de 2011 em Istambul; em junho de 2011, a Turquia organizou uma conferência da oposição síria. Em julho de 2011, o Exército Livre da Síria (ELS), visando a derrubada militar do regime de Assad, foi criado na província meridional turca de Hatay, com apoio logístico dos Estados Unidos e dinheiro e armas sauditas; líderes do ELS receberam a proteção da polícia turca. Isso só poderia servir para confirmar a decisão fatalmente destrutiva de Assad, baseada na visão baathista de islamitas sunitas sírios de que deviam fidelidade a potências do Golfo, de tentar manter a ordem existente pela força. A principal demanda do ELS era uma zona de exclusão aérea; ou seja, o bombardeio ocidental de defesas sírias. Suas campanhas, concentradas principalmente nos arredores de Homs, eram travadas de olho nos meios de comunicação ocidentais incorporados em suas fileiras; quanto maior a atrocidade, mais provável era criar pressão internacional a favor de ataques aéreos americanos. O número de mortos subiu devidamente, enquanto forças sírias bombardeavam posições do ELS em áreas residenciais, e uma multidão de milícias sectárias, tanto alauitas como sunitas, saqueava e matava em meio à destruição.

Na Turquia, o ufanismo da imprensa islâmica liberal e conservadora cresceu regularmente até o início de 2012. Pedidos de intervenção turca também vinham de forças conservadoras no mundo árabe, particularmente do diário Sharq al-Awsat , sediado em Londres, cuja principal precondição era que deveria haver de antemão a aprovação ocidental. A Irmandade Muçulmana e outras forças islâmicas haviam jogado de bom grado a carta anti-imperialista quando Erdoğ an falara em separar a religião do Estado, mas jogaram a carta da intervenção humanitária quando quiseram se livrar de um regime. No momento em que escrevo, nem a Turquia nem os Estados Unidos estão prontos para uma incursão terrestre — descrita eufemisticamente como uma "zona-tampão" — ou um bombardeio aéreo, também conhecido como zona de exclusão aérea. Isso parece ser conveniente também para Israel. Argumentou-se que:

Um regime de Assad enfraquecido mas estável, em comparação com um regime sob "domínio islâmico", parece preferível para os dirigentes israelenses [...] Embora Israel veja vantagens em uma redução da influência iraniana na Síria, também vê um futuro sombrio em uma Síria pós-Assad, em que grupos islâmicos poderiam ganhar proeminência. Como consequência, o endosso pouco entusiasmado de Israel à queda de Assad ajudou a reduzir o senso de urgência entre os dirigentes americanos25.

Em meio a essa incerteza, a ala mais pró-ocidental do governo turco acompanhou as iniciativas americanas. No início de março de 2012, Gül era favorável à "via iemenita" para a Síria: Assad devia nomear um de seus assessores, como Saleh havia feito, e se afastar, deixando as estruturas de governo intactas; a notoriamente dividida oposição síria ainda não estava pronta para governar o país. Na semana seguinte, ele alertou contra a intervenção militar, pedindo uma "solução política" e uma reunião ampliada dos "Amigos da Síria" em Ancara que incluísse a Rússia, descartando, assim, uma opção militar26. Durante o mesmo período, Erdoğan deu as costas às exigências da Liga Árabe, que significativamente incluíam um "corredor humanitário" — significando uma invasão terrestre por parte da Turquia, o que levaria inevitavelmente a um conflito armado com o regime de Assad. Portanto, apesar de suas pretensões à liderança regional, a Turquia não conseguiu articular uma posição própria coerente. O melhor que Erdoğan foi capaz de propor foi contrabalançar a posição de Gül com a da Liga Árabe, ou seja, uma versão limpa da posição de Riad. A Turquia não liderou, seguiu atrás. A falta de clareza do governo permite interpretações conflitantes de suas ações. Mesmo entre os colunistas do diário pró-governo Yeni Şafak , alguns veem ampla "prova" de que o AKP está tentando tirar Assad do poder o mais depressa possível, enquanto outros acreditam que a prioridade do governo é a estabilidade em suas fronteiras e um rápido cessar-fogo27.

COMUNALISMO SUNITA

No geral, a imprensa turca islâmica foi muito mais receptiva à ideia de intervenção na Síria do que na Líbia, e pelo pior dos motivos. Além da simpatia pela Irmandade Muçulmana e por outras forças islâmicas na Síria, fortemente visadas historicamente pelo regime baathista, há uma identificação com os sunitas contra os xiitas sírios (nenhum desses motivos tinha impedido o AKP de desenvolver laços estreitos com Assad). Vozes pró-Turquia argumentaram que as divisões sectárias ou tribais presentes na sociedade da Líbia, do Bahrein, do Iêmen ou da Síria tornam o modelo parlamentar-constitucionalista moderadamente islamizado da Turquia ainda mais desejável, mostrando um caminho para sair do atoleiro. Mas, em vez de ficar acima dessas cisões, a Turquia se afundou ainda mais em seu próprio cenário étnico e sectário complexo, à medida que a turbulência política se aproximava de suas fronteiras. A hegemonia pacífica do AKP se baseia principalmente no fato de que a Turquia tinha extirpado à força seus 20% de população cristã, por meio do extermínio dos armênios e da expulsão dos gregos, entre 1915 e meados da década de 1950; esse não é um modelo muito bom a ser seguido por sírios e libaneses. E, apesar de os marginalizados e empobrecidos alevitas da Turquia terem práticas religiosas diferentes das dos alauitas sírios, e muito poucos laços com eles, o ódio dos sunitas sírios pelo governo da minoria alauita em Damasco pode ser facilmente reproduzido contra eles. O movimento islâmico turco foi liderado, ocupado e esmagadoramente apoiado pelos sunitas, apesar da existência no país de uma considerável minoria sectária muçulmana. Em 2012, os alevitas turcos mais uma vez encontraram marcas de giz em suas portas, que lembravam as da década de 1970, quando turbas sunitas — lideradas pelos nacionalistas de extrema-direita Lobos Cinzentos, mas atraindo conservadores e islamitas — executaram grandes massacres sectários.

O conflito sírio tem implicações complexas para a Turquia. Os dois países têm uma fronteira muito extensa; a Síria é uma importante rota de comércio turca para a região central árabe, e os turcos sunitas têm muitas relações comerciais ao longo do caminho. Acima de tudo, o possível nascimento de mais um pequeno Estado curdo assombra a ordem dominante da Turquia. No norte da Síria, o Partido da União Democrática (PYD), a ala síria do PKK, é a mais bem implantada e a mais organizada das forças curdas. No verão de 2011, quando o governo Erdoğan deu seu apoio ao ELS, Assad ofereceu um acordo de cidadania aos curdos sírios e parou de compartilhar informações sobre o PKK com a Turquia. Ancara tentou levar Barzani, o governante do Curdistão iraquiano, a impor sua hegemonia sobre os curdos sírios, mas os resultados tiveram curta duração. Quando Assad retirou suas forças das fronteiras norte e sul para expulsar o ELS de Aleppo, em julho de 2012, o PYD foi deixado no controle de uma série de cidades fronteiriças curdas: Ayn al Arab, partes de Qamishli, Efrin, Amude. De modo danoso para a exemplaridade da Turquia, os protestos dos curdos sírios contra o papel de Ancara foram um dos motivos para as altercações no Conselho Nacional Sírio, o agrupamento de oposição apoiado pelo Ocidente, junto com diferenças sobre a intervenção externa e a democracia interna28. Na verdade, enquanto prisioneiros políticos eram libertados no Egito e na Tunísia, prisioneiros civis curdos — bem como jornalistas, estudantes e professores não curdos — continuavam a povoar prisões turcas. Em dezembro de 2011, agindo com base em informações obtidas por drones dos Estados Unidos, jatos turcos lançaram um ataque aéreo contra um grupo de curdos pobres que carregavam cigarros contrabandeados através das montanhas perto da fronteira com o Iraque, matando três dúzias deles. Como poderia um país que tratava seus próprios cidadãos curdos dessa forma servir como um modelo para aqueles de seu vizinho?

MIRANDO O IRÃ

Finalmente, qualquer revisão das relações da Turquia com a Síria também significa uma redefinição das relações com outro vizinho, o Irã. Nos anos que antecederam a Primavera Árabe houvera uma aproximação importante entre Ancara e Teerã, apesar do ceticismo americano (e israelense). O surgimento do Curdistão iraquiano ajudou os governantes de ambos os países a convergir na luta contra a insurgência curda. O comércio bilateral aumentou significativamente nos últimos dez anos; o Irã é hoje o segundo maior fornecedor de gás natural da Turquia, só ficando atrás da Rússia29. Em maio de 2010, a Turquia e o Brasil intermediaram um acordo de processamento de urânio de baixo teor com o Irã, ambos aparentemente pensando que tinham sinal verde de Washington. Em setembro de 2011, porém, a Turquia havia concordado em instalar um sistema de radar de defesa contra mísseis da Otan perto de sua fronteira com o Irã, alegando que não haveria nenhuma menção ao programa nuclear do Irã como justificativa. Joost Lagendijk, ex-codiretor da delegação de parlamentares Turquia-ue, sugeriu que os Estados Unidos "precisam da Turquia" não apenas para derrubar Assad, mas também para desafiar o controle iraniano sobre o Iraque30.

No rescaldo da ocupação do Iraque pelos Estados Unidos, a campanha de longa data de Israel para manter seu monopólio nuclear na região se amalgamou à hostilidade saudita ao Irã e ao "crescente xiita" que, aos olhos de Riad, se estende desde o Irã, através do Iraque de Maliki, até a Síria e o sul do Líbano controlado pelo Hezbollah. Com a sectarização crescente, a Turquia parece estar desempenhando um papel cada vez mais aberto em uma coalizão sunita apoiada pelo Ocidente cujo alvo final é o Irã. Se havia rumores de descontentamento nos Estados Unidos, e entre círculos seculares e conservadores na Turquia, de que Ancara estava ficando muito íntima do Irã e até do próprio Ahmadinejad em 2009-2010, o pêndulo agora oscilou de volta, ganhando mais impulso da base sunita do AKP e do movimento islâmico em geral. Há conversas crescentes sobre uma possível guerra com o Irã, em especial se a Turquia decidir enviar tropas para a Síria. Ao mesmo tempo, a imprensa árabe sunita tem celebrado, com alguma cautela, o advento da "Turquia sunita". Comentaristas árabes, e alguns de seus colegas turcos, gostam de invocar as rivalidades históricas entre os impérios Otomano e Persa, como se o regime do AKP precisasse inflar suas pretensões imperiais31. Alguns intelectuais islâmicos afirmam que jáhá uma guerra sectária em curso, e que o Irã, o Iraque e a Síria a começaram. Eles estão embarcando na onda de sectarização, alegando que não podemos ignorar esse "fato" e que a Turquia deveria estar se preparando para travá-la como uma guerra sunita-xiita32.

No Iraque, sugere-se, isso poderia significar uma coalizão de sunitas iraquianos e forças curdas, com maior apoio sunita árabe e turco, alinhados contra o governo dominado por xiitas de Maliki em Bagdá. Houve uma insinuação disso em abril de 2012, quando o vice-presidente (sunita) do Iraque, Tariq Hashemi, se refugiou na Turquia depois de primeiro "visitar", ou fugir para, o Qatar e a Arábia Saudita, após o regime de Maliki ter emitido um mandado de prisão contra ele33. O governo iraquiano reagiu com um ataque verbal, e a Turquia revidou na mesma moeda. No meio dessa disputa de gritos transfronteiriça, Massoud Barzani decidiu visitar a Turquia e as tensões aumentaram ainda mais. Apesar da posição oficial do AKP contra a divisão do Iraque em três Estados, especulações febris proliferaram: o verdadeiro projeto de Erdoğan era a criação de uma confederação curda, sob tutela turca34? Não havia dúvida de que o governo do AKP descera de seu trono suprassectário autoatribuído quando decidiu abrigar uma figura destacada acusada internacionalmente de massacres sectários, mesmo que algumas das acusações sejam forjadas (e que outras possam ser atribuídas a Maliki). O regime confirmou, mais uma vez, a autoidentificação sunita do Estado turco.

RETROCESSOS

A Turquia precisa enfrentar seus próprios problemas de repressão sectária e étnica, coerção estatal e desigualdade econômica antes que possa se oferecer como um modelo para qualquer outro país. Não se pode esperar que as bolhas imobiliária e de crédito que elevaram suas taxas de crescimento nos últimos anos durem; sua oferta de serviços sociais é escassa, e sua distribuição de renda é a mais desigual da OCDE, pior que a do Egito ou a da Tunísia35. No front das liberdades civis, é verdade que o AKP travou uma luta decidida contra os enormes poderes que o Alto Comando militar usufruía sob o antigo regime; mas esta tem cada vez mais tomado a forma de substituir o militarismo kemalista por um novo Estado policial. A mais poderosa organização religiosa da Turquia, a fechada comunidade Gülen, exerce vasta influência na polícia e no Judiciário; alguns sugerem que ela agora está sendo estendida ao mit, o serviço de inteligência. Acredita-se que Gülen seja o responsável pela prisão de vários jornalistas críticos ao longo dos últimos dois anos36. Em 2010, o governo Erdoğ an forçou a aprovação de um conjunto notavelmente ambíguo de emendas à autoritária Constituição de 1980, mantendo alguns de seus componentes mais nacionalistas e repressivos: "insultar a nação turca", prontamente estendido a qualquer crítica ao Estado, continua a ser uma ofensa criminosa.

Em 2002, muitos liberais turcos tinham imaginado que o AKP era a melhor aposta do país para a "modernização" e a "integração com o mundo", e especialmente para o ingresso na UE. Círculos intelectuais da "esquerda libertária", ou özgürlükçü sol , desempenharam um papel decisivo no reforço da aprovação ao projeto de liberalização conservadora do AKP. Eles se lançaram atrás do AKP durante sua luta com as forças armadas, e por um longo período estenderam esse apoio incondicional também a outras políticas do governo, inclusive a suas emendas constitucionais. Intelectuais liberais influentes comemoraram o papel da polícia na "democratização" da Turquia — leia-se, retirar gradualmente o poder dos militares — e descobriram a face humana dos novos quadros da polícia. Essa ingenuidade traía uma leitura reducionista do Estado turco, cujo autoritarismo era atribuído à "tutela militar", e uma incapacidade de analisá-lo como um conjunto diferenciado de instituições e atores sociais com preocupações e interesses ora coincidentes, ora conflitantes. A estratégia dos liberais de ignorar as tendências autoritárias do governo Erdoğan se voltaram contra eles quando as emendas constitucionais foram seguidas pela mais pesada onda de repressão em muitos anos. Alguns agora se tornaram críticos do regime AKP-Gülen.

Internacionalmente, os defensores de um modelo turco para o mundo islâmico frequentemente o contrapõem aos exemplos do Irã ou da Arábia Saudita, situados no extremo oposto do espectro. Os eventos de 2011 sugerem um quadro diferente. As principais linhas de demarcação na região estão ficando menos ideológicas e já não são traçadas entre "islâmicos moderados" e conservadores. A exacerbação do conflito sírio começou a cristalizar diferenças sectárias supostamente "primordiais". Por mais dessemelhantes que possam ser em alguns aspectos, Arábia Saudita e Turquia encontram-se agora no mesmo campo, com o Irã como o inimigo comum. Mas, ainda que a situação possa mudar, é a Arábia Saudita, com apenas um terço da população da Turquia, que parece estar tendo o maior sucesso na moldagem do atual fluxo político a seus próprios interesses. Nem um murmúrio é emitido pela "comunidade internacional" quando ela submete sua população xiita ao mesmo tratamento que Assad dá aos manifestantes sírios. Erdoğan fez grande estardalhaço de sua turnê em setembro de 2011 pelas capitais do Egito, da Tunísia e da Líbia, acompanhado de 280 empresários turcos dispostos a aproveitar fontes baratas de mão de obra e declarando sua intenção de triplicar o investimento turco37. Mas a visita também demonstrou os limites da influência turca. A Irmandade Muçulmana não tinha nenhuma objeção a citar a Turquia do AKP como um modelo econômico, mas a demanda de Erdoğ an de um Estado secular incitou uma amarga resposta "anti-imperialista" dos Irmãos: a organização disse a ele que não se intrometesse nos assuntos internos do Egito. Enquanto isso, a primeira visita externa do presidente Morsi foi a Riad.

A política de "zero problemas com os vizinhos" do AKP está arruinada, enquanto a campanha insultuosa do rei Abdullah contra o Irã está agora na ordem do dia, promovida não só por Washington, Israel, o mundo sunita e a UE, mas também por Wall Street, com apenas a Rússia e a China resistindo à rixa internacional. Embora a convulsão da Síria confronte Ancara com o repentino fortalecimento de seu inimigo interno, o PKK, a Família Saud pode esperar ver o Líbano voltar ao seu bolso se o Hezbollah for debilitado pela fraqueza ou queda de Assad. Além disso, a liderança turca tem demonstrado constantemente sua vontade de priorizar a realpolitik sectária em detrimento dos princípios da democratização e da autodeterminação. Bahrein, com sua maioria xiita e sua monarquia autocrática sunita, serviu como um teste decisivo. Não só a Turquia fechou os olhos quando a monarquia esmagou violentamente os protestos; nos primeiros meses de 2012, como um prelúdio a uma crescente cooperação com os regimes do Golfo, Gül visitou os Emirados Árabes Unidos e exigiu democracia para a Síria durante seus encontros amigáveis com os autocratas lá. Nada poderia ilustrar melhor a natureza dos compromissos de Ancara com a democracia e a não intervenção na região. Ao longo da Primavera Árabe, a Turquia só fez solidificar suas relações com os sauditas; está seguindo de perto não apenas as políticas de Washington e Israel, mas também as de Riad — reforçando ainda mais as forças da reação na região.

Notas

[1] "In Turkey's example, some see map for Egypt".
New York Times , 5/02/2011. Ver também International Crisis Group (icg). "Turkey and the Middle East: ambitions and constraints", 7/04/2010, p. 20. Eu gostaria de agradecer a Aynur Sadet por comentários sobre o texto.
[2] Ramadan, Tariq. "Democratic Turkey is the template for Egypt's Muslim Brotherhood". New Perspectives Quarterly, vol. 28, nº 2, 2011.
[3] Cagaptay, Soner. "The empires strike back". New York Times, 14/01/2012.
[4] Ver Tuğal, Cihan. "NATO's Islamists". New Left Review, 44, mar.-abr.
[5] Laçiner, Sedat. "Neden Afganistan'dayız?. Star, 22/03/2012.
[6] Kösebalaban, Hasan. "Making of enemy and friend: Fethullah Gülen's national-security identity". In: Yavuz, M. Hakan e Esposito, John L. (orgs.). Turkish Islam and the secular state: the Gülen Movement. Syracuse: Syracuse University Press,
[7] Ver, por exemplo, Stepan, Alfred e Robertson, Graeme. "An 'Arab' more than 'Muslim' democracy gap". Journal of Democracy, vol. 14, nş 3,
[9] Em 2010, o comércio da Turquia com o Iraque havia subido para US$ 7,4 bilhões, dos quais US$ 6 bilhões correspondiam a exportações turcas, quase todas para o Curdistão iraquiano, onde a Turquia controla agora 95% do mercado de construção. Ver Kiri şci, Kemal. "Turkey's 'demonstrative effect' and the transformation of the Middle East". Insight Turkey, vol. 13, nş 2, 2011,
[12] "Reclusive Turkish imam criticizes Gaza Flotilla". Wall Street Journal, 4/06/2010.
[13] A coordenação entre as forças aéreas turca e israelense foi suspensa, mas reiniciada no fim de 2011: "Turkey, Israel reinstate air force coordination mechanism". Today's Zaman, 22/12/2011.
Para comentários internacionais sobre o Mavi Marmara, ver Baruh, Lemi e Popescu, Mihaela. "Communicating Turkish-Islamic identity in the aftermath of the Gaza flotilla raid". New Perspectives on Turkey, 45, 2011, pp. 76-
[14] "Erdoğan's Cairo speech". Blog da Foreign Policy, postado em 2 de fevereiro de 2011,
[15] "Erdoğan: 'Suudi Arabistan'la tam bir iş birligği içindeyiz'". Milliyet, 20/03/2011.
[16] Fattah, Khaled. "Yemen: A social intifada in a republic of dheikhs". Middle East Policy, vol. 18, nş 3, 2011,
[17] "US teaming with new Yemen government on strategy to combat Al Qaeda". New York Times, 26/02/2012.
[19] Tuğal, Cihan. Passive revolution: absorbing the Islamic challenge to capitalism. Stanford: Stanford University Press,
[20] Aydınta şbaş, Aslı. "Davutoğlu'yla zor sohbet". Milliyet, 5/05/2011.
[21] Strauss, Delphine. "Erdoğan urges Assad to hasten reform". Financial Times, 28/03/2011.
[22] Cebeci, Erol e Üstün, Kadir. "The Syrian quagmire: what's holding Turkey back?". Insight Turkey, vol. 14, n ş 2, 2012,
[23] Hannah, John. "Syria: the king's statement, the president's hesitation". Blog da Foreign Policy, 9 de agosto de 2011.
[24] Em abril de 2011, Hannah escreveu, com referência ao homem de Riad em Washington, o príncipe Bandar bin Sultan: "Trabalhando em conjunto com os Estados Unidos, Bandar [...] pôde se revelar um grande trunfo nos esforços para moldar as revoltas do Oriente Médio de 2011, em uma direção que serve aos interesses dos eua [...] Bandar trabalhando sem referência aos interesses dos eua é claramente motivo de preocupação. Mas Bandar trabalhando como um parceiro de Washington contra um inimigo comum iraniano é um grande trunfo estratégico. Baseando-se em recursos e prestígio sauditas, a engenhosidade e a inclinação de Bandar para uma atuação ousada poderiam ser utilizadas de forma excelente em toda a região de maneiras que reforcem a política e os interesses dos eua: através de medidas econômicas e políticas que enfraqueçam os mulás iranianos [e] solapem o regime de Assad". Hannah, John. "Bandar's return". Foreign Policy, 22/04/2011.
[26] "Suriye'ye Yemen modeli". Sabah, 3/03/2012;
Mu'arada Tunisiyya-Turkiyya li ay Tadakhkhul min Kharij al-Mintiqa fi Suriyya. Sharq al-Awsat, 9/03/2012.
[27] Ver Karagül, İbrahim. "Suriye için 'Misak-ı milli'. Yeni Şafak, 27/03/2012;
e Emre, Akif. "S uriye açmazında yeni dönemeç. Yeni Şafak, 27/03/2012.
[28] "Akrad Suriyya yatawaqq'un fashal mu'tamar Istanbul al-muqbil", Sharq al-Awsat, 29/03/2012.
[29] McCurdy, Daphne. "Turkish-Iranian relations: when opposites attract". Turkish Policy Quarterly, vol. 7, n ş 2,
[30] Lagendijk, Joost. "Using Turkey's expertise to deal with Iran". Today's Zaman, 29/02/2012.
[31] 'Adil al-Tarifi, "Turkiyya 'al-Sunniyya' [...] wa Fashal siyasa al-Ihtiwa". Sharq al-Awsat, 25/04/2012.
[32] Por exemplo, ver Karagül, İbrahim. "Korkulan oldu, bölündük...", Yeni Ş
afak; Ünal, Ali. "Terör ve dış gelişmeler". Zaman, 26/03/2012.
[33] "Baghdad turji' muhakama al-Hashemi mujaddadan". Sharq al-Awsat, 11/05/2011.
[34] Çakır, Ru şen. "Özal'ın hayali gerçekleşiyor mu?", Vatan, 24/04/ 2012.
[35] "Social Justice in the oecd How do the member states compare?". Gütersloh,
[36] A comunidade Gülen recebeu cobertura notavelmente simpática nos principais meios de comunicação ocidentais. Ver, por exemplo, "Turkish schools offer Pakistan a gentler vision of Islam". New York Times, 4/05/2008;
Global Muslim networks: how far they have travelled. Economist, 6/03/2008;
Meet Fethullah Gülen, the world's top public intellectual. Foreign Policy, 4/08/2008.
[37] "Turkey, Egypt form strategic cooperation council". Today's Zaman, 13/09/2011.

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