29 de outubro de 2013

Reivindicando o companheiro Orwell

George Orwell se tornou um espelho no qual qualquer posição política pode olhar e se ver olhando de volta. Mas não se engane – Orwell pertence à Esquerda.

Scott Poole

Jacobin

Vernon Richards Estate / the Guardian

Tradução / Durante a primeira semana de revelações sobre o programa “Prism” da Agência de Segurança Nacional (NSA), George Orwell virou moda.

Ou, mais precisamente, ler (ou pelo menos possuir) 1984 de Orwell virou moda. As vendas do clássico dispararam acima de 7000% no Amazon poucos dias após a liberação dos primeiros relatos sobre a nova e sinistra forma de nossa cultura de vigilância.

A súbita popularidade de Orwell tem um custo para o legado do autor. Ler 1984 e A Revolução dos Bichos fornece apenas uma introdução simplista a um pensador complexo. Além disso, sua escrita e ação no meio de lutas mortíferas dentro da Esquerda tornaram seu legado difícil de entender sem uma análise detalhada de sua vida e obras.

Orwell se tornou um espelho em que todo tipo de posições políticas pode olhar e, sem falhar, se ver olhando de volta. Já passou do tempo de recuperar Orwell como um companheiro na luta por um mundo melhor.

Infelizmente, há mais do que alguns cultistas do Ron Paul, anarquistas de alcance abrangente e hacktivistas libertários que vêem 1984 como um tipo de volume de companhia para A Revolta de Atlas. Mesmo Glenn Beck freqüentemente cita partes selecionadas de Orwell. O falecido Christopher Hitchens deixou as águas ainda mais turvas, usando Orwell como um arquétipo para seu próprio abandono da Esquerda no fim da vida e subsequente apoio à “Guerra ao Terror” de George W. Bush.

A Revolução dos Bichos em si merece atenção especial, uma vez que se tornou um documento importante para os apologistas do capital e conhecido o bastante para que eles possam citá-lo sem lê-lo. Orwell enfrentou dificuldades para publicar o livro – menos por causa de seu conteúdo anti-stalinista, e mais porque as editoras acreditavam que sua mensagem glorificava as intenções e objetivos originais de Outubro de 1917. O poeta profundamente reacionário T.S. Eliot, por exemplo, desgostou intensamente do livro, porque acreditava que A Revolução dos Bichos sugeria que a resposta ao comunismo era “mais comunismo”.

Obscurecendo mais ainda as questões, o conhecimento do público geral do livro vem em grande parte de uma animação de 1954, que como Daniel J. Leab mostra em seu excelente Orwell Subverted, recebeu financiamento da CIA. Feito vários anos após a morte de Orwell, o filme representa uma revisão grave do romance, sugerindo não que a Revolução Russa tivesse dado errado, mas que simplesmente nunca deveria ter ocorrido. As representações positivas de Leon Trotsky (“Bola de Neve” no livro) são suprimidas ou suavizadas. “Velho Major”, o filósofo envelhecido que é uma mistura de Marx e Lenin no romance, é feito para parecer gordo, estúpido e ridículo no filme.

Nos últimos anos de sua vida, o próprio Orwell contribuiu para a confusão sobre sua visão política. Firmemente à Esquerda, ele se associou aos socialistas anticomunistas que se tornaram profundamente desencantados com o curso da política externa soviética. Trabalhando com a Partisan Review, Orwell tornou-se um firme defensor da Oposição de Esquerda anti-stalinista.

Nos últimos meses de sua vida, ele também tomou a fatídica decisão de redigir uma lista de 35 nomes de simpatizantes stalinistas e apologistas liberais burgueses dos “julgamentos” de Stalin. Deve-se notar que Orwell esperava que o governo britânico usasse isso principalmente para propaganda; este não era o tipo de “lista” tão familiar no Comitê de Atividades Antiamericanas que assombra os Estados Unidos. Ainda assim, foi uma decisão indefensável para um moribundo que tinha um arquivo robusto no MI5 detalhando suas atividades e associados “comunistas”.

A prolífica escrita de Orwell nos fornece uma melhor compreensão desses fatos isolados sobre sua biografia. De sua caneta (e do cano de sua arma na Guerra Civil Espanhola), o fascismo raramente teve um inimigo maior, e o socialismo poucos campeões maiores.

Tomemos, por exemplo, o seu Road to Wigan Pier, uma das declarações mais fortes já escritas para a posição socialista. A primeira metade do livro apresenta um retrato profundamente comovente das condições de emprego e da experiência crua da vida, entre os mineiros de carvão no norte da Inglaterra. Ele recria o mundo “daqueles pobres burros de carga subterrâneos, enegrecido até os olhos, com suas gargantas cheias de poeira de carvão, empurrando suas pás para a frente com músculos de aço dos braços e barriga.”

A segunda metade do livro constitui uma defesa vibrante da posição de extrema esquerda. Depois de dar uma das mais completas e elegantes análises de atitudes de classe já escritas em inglês, Orwell diz essencialmente que nenhuma pessoa sã pode deixar de ver o socialismo como a única resposta real a esses problemas; apenas aqueles com a “motivação corrupta” de “se apegar ao sistema social atual” poderiam ficar em oposição a isso.

E, no entanto, Orwell sendo Orwell, boa parte da segunda parte não poupa nenhum soco na sua crítica ao marxismo como expresso na política. Ele é impiedoso em sua crítica de “esnobes bolcheviques”, que são susceptíveis de se casar com ricos e acabar conservadores quando tiverem trinta e cinco anos. Não tem paciência para intelectuais comunistas que falam para a classe trabalhadora apenas na linguagem abstrusa da teoria. Poderíamos passar, diz ele, “com um pouco menos de conversa sobre ‘capitalista’ e ‘proletário’ e um pouco mais sobre os ‘ladrões’ e os ‘roubados’”.

Em geral, Orwell via o socialismo em sua época como falhando em sua tarefa mais básica: ajudar a promover a consciência de classe. Que diferença faz, ele se pergunta em A Caminho de Wigan, quando um burguês se junta ao Partido Comunista Britânico? Não muita, conclui, como por vezes demais o cheiro de diletantismo poderia ser detectado.

O que é necessário, ele acreditava, é um compromisso inabalável com a luta de classes e não o tipo de progressismo vago que muitas vezes prejudica a construção de um movimento de massas do povo. Este ódio às panelinhas esquerdistas e ao jargão de clubes às vezes levou Orwell a uma retórica facilmente levantada hoje por charlatões conservadores. Os vegetarianos o deixavam irritado. O ethos masculino que ele compartilhava com os colegas socialistas Jack London e Ernest Hemingway o cegou às conexões entre a disponibilidade de controle de natalidade e justiça econômica. Seu tom estentóreo sobre tais assuntos surgiu de sua insistência na centralidade da luta de classes. No fim, a luta de classes significava exatamente isso: uma guerra entre os ladrões e os roubados, e não uma subcultura de escolhas políticas peculiares. Os socialistas, ele sugere, são muitas vezes a pior propaganda do socialismo.

Orwell também se prova presciente em sua discussão sobre redefinir categorias marxistas para o novo mundo que assistiu nascer. Se preocupava com o fato de que muita propaganda socialista representava o “trabalhador mítico” como o pedreiro ou mineiro corpulento em seu macacão. Ele sabia que “o trabalhador”, saído direto do Realismo Soviético, seria cada vez mais substituído por um novo tipo de proletariado trabalhando sob uma nova fase do capitalismo.

“E o exército desgraçado de balconistas e lojistas?”, ele pergunta. Sua ideia pressagia nossa consciência atual das possibilidades de construir um movimento que inclua trabalhadores de cubículo e empregados de call center, os “colaboradores” de Walmarts e trabalhadores de redes de fast food. Orwell sabia que se usarmos a linguagem de explorador e explorado, a Esquerda pode defender seus argumentos. Aqueles que enfrentam a natureza viciosa do capitalismo através das longas horas de trabalho de cada dia conhecem a exploração em primeira mão. Eles não são diletantes e, Orwell nos lembra, a revolução pertence a eles.

A luta para criar uma esquerda relevante dependerá da capacidade de falar uma linguagem de luta de classes sem cair no obscurantismo teórico comum aos marxistas na sociedade ocidental de hoje. A trincheira de Orwell em Road to Wigan Pier estaria ainda mais firme se tivesse visto o destino do marxismo nas últimas décadas. Nos Estados Unidos, o “marxista” aparece mais freqüentemente como um elemento nas subculturas acadêmicas da moda do que na ideologia de um movimento de massas.

O primeiro passo para recuperar Orwell é ler Orwell. Road to Wigan Pier e Homage to Catalonia são lugares óbvios para começar. Este último, tratando das suas experiências na guerra civil espanhola lutando com trotskistas, coloca em contexto sua posição veementemente anti-stalinista.

Também vale a pena lembrar que, antes de mais nada, Orwell era um ensaísta inveterado, um dos mais prolíficos resenhadores de livros, filmes, peças de teatro e ideias que o século XX produziu. Ensaios como “Socialistas Podem Ser Felizes?” E até peças aparentemente não relacionadas sobre Charles Dickens, Tolstoi e sobre beber chá estão cheios de análises de classe e críticas ao capitalismo industrial que ele conheceu bem.

O nome de Orwell e 1984 continuam a ter uma ressonância tão poderosa que não é de se surpreender que tantos busquem sua sanção. E, como acontece com todos os pensadores complexos, é possível encontrar o que soa como citações de apoio em sua escrita e experiência de vida para uma série de ideologias.

Usos mercenários de pedaços do trabalho de Orwell se destinam a apropriá-lo para fins reacionários, e não para os objetivos pelos quais ele passou sua vida lutando. Glenn Beck, embora um sem-vergonha, deveria ficar envergonhado. Christopher Hitchens fez um desserviço tentando reivindicá-lo como seu santo padroeiro. George Orwell pertence ao povo.

Sobre o autor

Scott Poole é o autor de "Monsters in America" e do próximo "Vampira". Ele ensina história cultural no College of Charleston.

Capitalismo, classe e universalismo: Escapando ao beco sem saída da teoria pós-colonial

A teoria pós-colonial se apresenta não apenas como uma crítica à tradição do iluminismo radical, mas como sua substituição. Neste ensaio, examinarei criticamente a base da reivindicação da teoria pós-colonial de ser uma estrutura orientadora para a política radical. Mostrarei que, ironicamente, são os próprios elementos de sua estrutura que os teóricos pós-coloniais apresentam como avanços genuínos que a consideram uma teoria política séria.

Vou argumentar, em particular, que as restrições contra categorias universalizantes devem ser rejeitadas. Mostrarei que elas são incorretas e contraditórias. Meu argumento não é, é claro, que todas as reivindicações universalizantes são defensáveis. Elas podem ou não ser, e algumas delas serão bastante problemáticas. Meu argumento, em vez disso, é que existem algumas categorias universais que são defensáveis. Mais importante, sugerirei que certos conceitos-chave que os teóricos pós-coloniais questionam ou rejeitam não são apenas legítimos, mas essenciais para qualquer política progressista. Esses são conceitos que estão no cerne da política radical desde o nascimento da esquerda moderna – e são aqueles que, após um longo hiato, ressurgiram na organização global contra a austeridade nos últimos anos.

Vivek Chibber


Vol. 50: Socialist Register 2014: Registering Class

Tradução / Depois de um longo e aparentemente interminável hiato, parece que estamos a assistir ao ressurgimento de uma resistência global ao capitalismo, pelo menos na sua roupagem neoliberal. Passaram mais de quatro décadas desde a última vez em que os movimentos anticapitalistas explodiram com uma tal força à escala global. Sem dúvida, houve abalos, de vez em quando, breves episódios que descarrilaram temporariamente o projeto neoliberal que vai varrendo o globo. Mas nada como o que temos testemunhado na Europa, no Médio Oriente e nas Américas nos últimos dois anos. Até que ponto se irão desenvolver, quão profundos serão os seus impactos, é ainda impossível de prever. Mas eles já mudaram a compleição do discurso de esquerda. De repente, a questão do capital da classe social está de volta à agenda, não como uma discussão abstrata ou teórica, mas como uma questão política urgente.

Mas a reemergência dos movimentos revelou que o retrocesso das últimas três décadas teve os seus custos. Os recursos políticos disponíveis para os trabalhadores são os mais fracos das últimas décadas. As organizações de esquerda - sindicatos e partidos políticos - foram esvaziadas ou, pior ainda, tornaram-se cúmplices na gestão da austeridade. Mas a fraqueza da esquerda não é apenas política ou organizacional - ela também se estende à teoria. As derrotas políticas das últimas décadas foram acompanhadas por uma agitação dramática na frente intelectual. Não é que tenha havido uma fuga da teoria radical ou de compromissos para com uma agenda intelectual radical. Os autodenominados intelectuais progressistas ou radicais ainda são muito impressionantes em número, em muitas universidades, pelo menos na América do Norte. É, ao contrário, que o próprio significado do radicalismo mudou. Sob a influência do pensamento pós-estruturalista, os conceitos básicos da tradição socialista são considerados suspeitos ou rejeitados. Para dar apenas um exemplo, a ideia de que o capitalismo tem uma estrutura real que impõe compulsões reais aos atores, que a classe social está enraizada em relações reais de exploração, ou que o trabalho tem um interesse real na organização coletiva - todas estas ideias, que foram o senso comum da esquerda durante quase dois séculos, são consideradas inapelavelmente ultrapassadas.

Embora estas críticas ao materialismo e à Economia Política tenham saído, em geral, do meio pós-estruturalista, encontraram uma expressão particularmente nítida num produto mais recente dessa corrente, que passou a ser conhecido como teoria pós-colonial. Nas últimas duas décadas, não foi a tradição filosófica francófona que foi o porta-estandarte do ataque ao materialismo ou à Economia Política. É, curiosamente, uma geração recente de teóricos do Sul da Ásia e de outras partes do Sul Global que tem liderado o ataque. Talvez os mais conspícuos e influentes deles sejam Gayatri Chakravarty Spivak, Homi Bhabha, Ranajit Guha e o grupo dos Estudos Subalternos, mas também se devem incluir o antropólogo colombiano Arturo Escobar, o sociólogo peruano Anibal Quijano e o teórico literário argentino Walter Mignolo, entre outros. O alvo mais comum de suas críticas é a teoria marxista, é claro, mas a sua ira se estende à própria tradição iluminista. De todas as fraquezas do radicalismo do Iluminismo, o que mais agita os teóricos pós-coloniais são as suas tendências universalizantes, ou seja, as suas proclamações de validade para certas categorias, independentemente da cultura e do lugar. O marxismo figura na sua análise como a teoria que mais claramente expressa este aspeto da mortal herança intelectual do Iluminismo.

Os marxistas insistem que certas categorias como classe, capitalismo, exploração e similares têm validade transcultural. Essas categorias descrevem práticas económicas que ocorrem não apenas na Europa cristã, mas também na Índia hindu e no Egito muçulmano. Para os teóricos pós-coloniais, esse tipo de zelo universalizante é profundamente problemático - como teoria e, igualmente importante, como um guia para a prática política. Ele é rejeitado não apenas por estar errado, mas também porque supostamente priva os atores dos recursos intelectuais vitais para a prática política eficaz. Faz isso de duas maneiras: porque, ao ser enganoso, é um guia questionável para a ação - qualquer teoria que esteja errada terá um mau desempenho na direção da prática política. Mas também porque se recusa a reconhecer a autonomia e a criatividade dos atores, na sua localização particular. Em vez disso, estas teorias universalizantes violentam o local e o particular enformando-o nas categorias rígidas que derivam da experiência europeia. Negam aos agentes locais o reconhecimento da sua prática e, ao fazê-lo, marginalizam a sua verdadeira agência. Essa preocupação com o uso de categorias universalizantes é tão forte que muitas vezes aparece, não como uma crítica de generalizações ilícitas ou insensatas, mas como uma injunção geral contra os universalismos.

A teoria pós-colonial apresenta-se não apenas como uma crítica à tradição do Iluminismo radical, mas como a sua substituição. Neste ensaio, examinarei criticamente a base da pretensão da teoria pós-colonial a ser um quadro orientador para a política radical. Mostrarei que, ironicamente, são os próprios elementos do seu enquadramento que os teóricos pós-coloniais apresentam como avanços genuínos que a desacreditam como uma teoria política séria.

Vou argumentar, em particular, que as admoestações contra a universalização de categorias devem ser rejeitadas. Vou mostrar que elas são ao mesmo tempo incorretas e contraditórias. O meu argumento não é, naturalmente, que todas as reivindicações universalizantes sejam defensáveis. Elas podem ou não sê-lo, e algumas delas serão mesmo bastante problemáticas. O meu argumento, pelo contrário, é que existem algumas categorias universais que são defensáveis. Mais importante ainda, vou sugerir que alguns dos conceitos-chave que os teóricos pós-coloniais questionam ou rejeitam são não apenas legítimos, mas essenciais para qualquer política progressista. Estes são conceitos que têm estado no cerne da política radical desde o nascimento da esquerda moderna - e são aqueles que, após um longo hiato, ressurgiram na organização global contra a austeridade nos últimos anos.

A viragem contra o universalismo

Num dos textos mais utilizados em estudos pós-coloniais, os editores explicam a motivação por detrás da viragem contra a universalização das categorias. Aconteceria que a dominação europeia do mundo colonial se baseou, em parte, apenas neste tipo de conceitos. “A assunção do universalismo", dizem-nos, "é uma característica fundamental da construção do poder colonial, porque as características «universais» da humanidade são as características daqueles que ocupam posições de domínio político". O mecanismo através do qual o universalismo promove a dominação colonial consiste em elevar alguns factos muito específicos sobre a cultura europeia ao estatuto de descrições gerais da humanidade, válidas à escala global. As culturas que não correspondem a estas descrições muito específicas são então remetidas para o estatuto de atrasadas, necessitadas de tutoria em civilização, incapazes de se governarem a si próprias. Tal como os editores o descrevem, "o mito da universalidade é, assim, uma estratégia primária de controlo imperial... com base no pressuposto de que «europeu» equivale a «universal»" (1).

Vemos neste argumento dois dos pontos de vista mais comuns entre os teóricos pós-coloniais. Um deles é uma ideia formal, meta-teórica - que as reivindicações de universalidade são intrinsecamente suspeitas porque ignoram a heterogeneidade social. É por isso que, nos textos pós-coloniais, encontramos frequentemente críticas ao universalismo sacadas por conta dos seus efeitos homogeneizadores e niveladores. A preocupação é que ele ignora a diversidade e, ao fazê-lo, marginaliza qualquer prática ou convenção social que não esteja em conformidade com o que está sendo elevado ao universal. E o ato de marginalização é um ato de supressão, de exercício de poder. A segunda visão é substantiva - a de que a universalização é cúmplice da dominação europeia em particular. Isto porque, no mundo intelectual, as teorias ocidentais são totalmente dominantes. Na medida em que são os quadros que orientam a investigação intelectual, ou as teorias que informam a prática política, elas imbuem-na de um eurocentrismo duradouro. Os quadros e teorias herdados do Iluminismo ostentam a marca da sua origem geográfica. Mas a marca não é facilmente discernida. Funciona insidiosamente, como a premissa oculta destas doutrinas. A tarefa da crítica pós-colonial é expurgá-la, expondo a sua presença e realçando os seus efeitos.

Devido à suposta cumplicidade do universalismo com a dominação colonial, o antiuniversalismo tornou-se uma palavra de ordem entre os teóricos pós-coloniais. E devido à enorme influência da teoria pós-colonial na cultura académica, tornou-se o senso comum de muitos à esquerda. O mesmo acontece com a hostilidade às "grandes narrativas" associadas ao marxismo e ao liberalismo progressista. Hoje em dia, a ação está no "fragmento", no marginal, nas práticas e convenções culturais que são exclusivas de um determinado contexto e não podem ser subsumidas numa análise generalizada - como Dipesh Chakrabarty as descreve, as "heterogeneidades e incomensurabilidades" do local (2). É aqui que somos conduzidos para procurar uma agência política.

A hostilidade às teorias universalizantes tem algumas implicações interessantes. A tradição radical, desde o tempo de Marx e Engels, baseou-se em duas premissas fundamentais para toda a sua análise política. A primeira é que, à medida que o capitalismo se expande por todo o mundo, ele impõe certas restrições económicas - poderíamos até mesmo chamá-las de compulsões - aos atores que o rodeiam. Assim, ao enraizar-se na Ásia, na América Latina, em África e noutros lugares, a produção económica em todas estas regiões é forçada a respeitar um conjunto de regras comuns. A forma como as regiões se desenvolvem, o ritmo do crescimento não será idêntico - ele avançará de forma desigual, a ritmos diferentes, com variações institucionais consideráveis. Não serão todos iguais. Mas suas diferenças serão trabalhadas em resposta a um conjunto comum de compulsões, provenientes da estrutura capitalista subjacente. Do outro lado da análise, dá-se por garantido que, como o capitalismo impõe a sua lógica aos atores, ao exercer a sua dominação económica e política, irá suscitar uma resposta dos agrupamentos laboriosos. Resistirão às suas depredações, para defender o seu bem-estar. Isto será verdade independentemente da identidade cultural ou religiosa destes grupos. A razão de sua resistência é que, quaisquer que sejam os factos sobre a sua cultura local, quaisquer que sejam as suas "incomensurabilidades" em relação a outras formas de ser, o capitalismo gera um ataque a algumas necessidades básicas que todas as pessoas têm em comum. Assim como impõe uma lógica comum de reprodução entre regiões, o capitalismo também suscita uma resistência comum por parte do trabalho. Mais uma vez, a resistência não assumirá a mesma forma, não será ubíqua, mas o potencial para o seu exercício será universal, porque a fonte que a gera - o impulso dos trabalhadores para defender o seu bem-estar - é comum a todas as culturas.

Essas duas crenças têm sido fundamentais para muitas das análises e práticas radicais por mais de um século. Mas se aceitarmos as injunções da teoria pós-colonial contra o universalismo, ambas devem ser rejeitadas, pois ambas são descaradamente universalísticas. As implicações são profundas. O que restará da análise radical se expulsarmos o capitalismo da sua caixa de ferramentas teóricas? Como é que analisamos a depressão global desde 2007, como é que damos sentido ao impulso de austeridade que varreu o mundo atlântico, se não traçando a lógica das economias orientadas para o lucro e a luta implacável para maximizar os lucros? E como encarar a resistência global a estas imposições, como entenderemos o facto de que as mesmas palavras de ordem podem ser encontradas no Cairo, Buenos Aires, Madison e Londres, se não através de alguns interesses universais que estão sendo exprimidos através delas? De facto, como gerar qualquer análise do capitalismo sem recorrer pelo menos a algumas categorias universalizantes?

As compulsões universais do capital

Sendo as apostas bastante elevadas, poder-se-ia pensar que os teóricos pós-coloniais poderiam conceder amnistia a conceitos como o capitalismo ou os interesses de classe. Talvez estes sejam exemplos de universalização de categorias que têm alguma justificação, e podem, portanto, escapar à acusação do eurocentrismo. Mas, na realidade, não só esses conceitos estão incluídos na lista dos infratores, como são mesmo apontados especificamente como exemplos de tudo o que é suspeito na teoria marxista. Gyan Prakash expressa bem esse sentimento num de seus amplos ataques contra o pensamento Iluminista (por exemplo, marxista). Analisar formações sociais através do prisma do capitalismo, ou desenvolvimento capitalista, sugere ele, leva inevitavelmente a algum tipo de reducionismo. Faz com que todos os fenómenos sociais pareçam ser apenas reflexos das relações económicas. Daí, argumenta ele, "fazer do capitalismo o tema fundamental [das análises históricas] equivale a homogeneizar as histórias que permanecem heterogéneas dentro dele" (3). Esta tendência cega os marxistas para a especificidade das relações sociais locais. Eles ou não conseguem notar práticas e convenções que são independentes da dinâmica capitalista, ou simplesmente assumem que qualquer independência que elas tenham se dissolverá em breve. Mais ainda, a própria ideia de que as formações sociais podem ser analisadas através da lente de sua dinâmica económica - seu modo de produção - não é apenas equivocada, mas também eurocêntrica e cúmplice da dominação imperial. “Como muitas outras ideias europeias do século XIX", observa Prakash, "a encenação da narrativa eurocêntrica do modo de produção como sendo história deve ser vista como um análogo do imperialismo territorial do século XIX (4).

Dipesh Chakrabarty deu a este argumento alguma estruturação no seu influente livro, Provincializing Europe (2007). A ideia de um capitalismo universalizante, argumenta ele, é culpada de dois pecados. O primeiro é que ela nega às sociedades não-ocidentais a sua história. Isso faz-se apertando-as num esquema rígido importado da experiência europeia. Em vez de respeitar a autonomia e a especificidade das experiências regionais, os marxistas transformam as histórias regionais em tantas variações sobre um mesmo tema. Cada país é categorizado na medida em que se conforma ou se afasta de um conceito idealizado de capitalismo. Ao fazê-lo, as histórias regionais nunca conseguem escapar de serem notas de rodapé para a experiência europeia. O telos de todas as histórias nacionais permanece o mesmo, com a Europa como seu ponto de chegada. O segundo erro associado à ideia do capitalismo é que ele evacua toda a contingência do desenvolvimento histórico. A fé que os marxistas depositam na dinâmica universalizante do capitalismo cega-os para a possibilidade de "descontinuidades, roturas e mudanças no processo histórico", como diz Chakrabarty (5). Liberto da interrupção pela agência humana, o futuro torna-se uma entidade conhecível, aproximando-se de um fim determinável.

Chakrabarty está cristalizando uma visão defendida por muitos teóricos pós-coloniais, de que se eles permitirem que categorias como capitalismo ocupem um lugar central em seu kit de ferramentas, eles também se comprometerão com uma teleologia histórica. Tomadas em conjunto, as duas críticas que delineei sugerem que os pressupostos universalizantes de conceitos como o capitalismo não são apenas equivocados, mas politicamente perigosos. Eles negam às sociedades não-ocidentais a possibilidade da sua própria história, mas também desacreditam a possibilidade de que elas possam criar os seus próprios futuros. Ao fazê-lo, eles impugnam o valor da agência política e da luta.

O facto de os teóricos pós-coloniais incluírem o conceito de capitalismo na sua lista de ideias ofensivas legadas pelo Iluminismo parece gerar um enigma. Certamente não há como negar o facto de que, ao longo do século passado, o capitalismo realmente se espalhou pelo globo, imbricando-se em quase todo o mundo pós-colonial. E se se enraizou em algumas áreas, seja na Ásia ou na América Latina, também deve ter afetado a composição institucional real dessas regiões. Suas economias foram transformadas pelas pressões da acumulação de capital, e muitas das suas instituições não económicas foram alteradas para acomodar-se à sua lógica. Há, portanto, um fio condutor comum que atravessa essas regiões, ainda que elas permaneçam muito diversas, e esse fio condutor as une de alguma forma. Por falar diretamente nisso, a categoria de capitalismo certamente tem alguma pertinência na análise de sua evolução económica e política. Para que tal análise seja levada a sério, ela tem que reconhecer esse facto simples e básico - porque ele é um facto. Mas a retórica da teoria pós-colonial parece perigosamente perto de negar esse mesmo facto, quando reprova os marxistas por estes prestarem vassalagem a conceitos 'universalizantes' como o capitalismo. O enigma, então, é o seguinte: a teoria pós-colonial parece estar negando a realidade do capitalismo que se espalhou pelo mundo; e se ela não a está negando, então quais são os fundamentos sobre os quais ela pode criticar os marxistas por insistirem que o conceito tem validade transcultural?

Em Provincializing Europe, Chakrabarty afirma que o capitalismo, de fato, globalizou-se durante o século passado ou assim. Mas, embora ele reconheça o facto da sua globalização, ele nega que isso equivalha à sua universalização (6). Isso lhe permite, e aos teóricos que seguem essa linha de pensamento, afirmar o facto óbvio de que a dependência do mercado se espalhou até aos confins do mundo, enquanto, ainda assim, persiste em negar que a categoria do capitalismo possa ser usada para sua análise (7). Para Chakrabarty, um capitalismo devidamente universalizante é aquele que subordina todas as práticas sociais à sua própria lógica. Pode-se dizer que um capitalismo que se espalha por qualquer canto do mundo se globalizou. Mas não pode ter-se universalizado, a menos que transforme todas as relações sociais para refletir suas próprias prioridades e valores. Na medida em que há práticas ou relações sociais que permanecem independentes, que interrompem seu impulso totalizante, sua missão permanece incompleta. Na verdade, pode ser considerado como tendo falhado. “Nenhuma forma histórica de capital, ainda que global ao seu alcance", argumenta Chakrabarty, "pode jamais ser um universal. Nenhum capital global, ou mesmo local, pode representar a lógica universal do capital, pois qualquer forma de capital historicamente disponível é um compromisso provisório" entre o seu impulso totalizante, por um lado, e a obstinação dos costumes e convenções locais, por outro (8). A ideia básica aqui é que a lógica abstrata do capital é sempre modificada de alguma forma pelas relações sociais locais; na medida em que ela é forçada a ajustar-se a estas, de alguma forma, a descrição do capitalismo que está contida em teorias abstratas e gerais não mapeará a forma como as pessoas estão realmente vivendo suas vidas no terreno. Haverá sempre uma lacuna entre a descrição do capitalismo abstrato e o capitalismo realmente existente em uma determinada região. É assim que ele pode se globalizar, mas sem nunca se universalizar a si mesmo - poder-se-ia dizer que ele se universalizou apenas se tivesse universalizado devidamente certas propriedades.

Em termos puramente formais, os argumentos de Chakrabarty são sólidos. É um argumento inteiramente justificado insistir que um objeto deve ser classificado como pertencente a um determinado tipo de coisa, ou a uma categoria, apenas se ele exibir as propriedades associadas a esse tipo de coisa. Se o que chamamos de capitalismo, em sua instância peruana, não tem as mesmas propriedades que em seus exemplos clássicos, então podemos dizer, justificadamente, que classificar o que encontramos no Peru como "capitalista" é enganoso, e que a categoria é potencialmente enganosa. A questão, é claro, é se as propriedades que estamos identificando com o universal podem ou não ser justificadas. Pode ser que Chakrabarty esteja formalmente correcto, mas substantivamente errado. Ele tem razão em insistir que o capitalismo deve transmitir adequadamente para novas regiões certas propriedades, para se poder dizer que se universalizou - mas ele pode estar enganado nas propriedades nas quais baseia os seus julgamentos. E isto é, de facto, o que mostrarei a seguir.

Toda a posição de Chakrabarty repousa sobre uma questão: é de facto justificado exigir que todas as relações sociais fiquem subordinadas ao capitalismo, para que possamos utilizar a categoria de capital? O argumento de Chakrabarty não é assim tão idiossincrático. Ele baseia-se numa tradição dentro da própria teorização marxiana, que tem consistentemente descrito o capitalismo como um sistema totalizante, impulsionado a expandir-se, a subordinar todas as relações sociais à sua própria lógica. Mas uma coisa é apontar para o efeito corrosivo dos capitalismos nas convenções sociais. É algo de bem diferente constituir a versão mais forte dessa observação na nossa definição do próprio capitalismo. Os teóricos pós-coloniais cometem um erro sutil, mas crucial. Aceitam a descrição do capitalismo de Marx, na qual ele o caracteriza como sendo dotado de um impulso interno de auto-expansão. Assim, Ranajit Guha resume Marx como argumentando o seguinte:

“Esta tendência [universalizante] deriva da auto-expansão do capital. Sua função é criar um mercado mundial, subjugar todos os modos de produção antecedentes e substituir todos os concomitantes jurídicos e institucionais de tais modos e, em geral, todo o edifício das culturas pré-capitalistas, por leis, instituições, valores e outros elementos de uma cultura adequada ao domínio burguês” (9).

Marx faz aqui duas afirmações: primeiro, que o capitalismo é impulsionado a se expandir, e é essa pressão implacável para pressionar em direção a regiões sempre novas que está por trás de sua universalização; segundo, que o impulso universalizador também o impele a desmantelar quaisquer convenções jurídicas ou culturais que sejam inimigas de seu domínio. Os teóricos pós-coloniais tendem a centrar-se na segunda cláusula desta passagem - a ideia de que o capitalismo, ao universalizar-se, irá substituir "todo o edifício" dos valores e leis pré-capitalistas por novos. É isto o que está por trás da negação de Chakrabarty de que o capital se universalizou, uma vez que é claro, para ele, existirem muitas instituições no capitalismo, especialmente nas sociedades não ocidentais, que não podem ser derivadas da lógica do capital, e que, na verdade, têm uma integridade reprodutiva própria. Assim sendo, não é legítimo concluir que a universalização fracassou?

Pode ser que haja aqui uma fixação demasiado estreita na caracterização de Marx. Uma maneira de proceder, se quisermos rejeitar o argumento de Chakrabarty, é simplesmente deixar de lado a passagem de Marx e defender um novo critério para uma universalização bem sucedida. Mas pode-se argumentar que, mesmo esta passagem, não se presta à leitura dela feita pelos teóricos pós-coloniais. Marx não está argumentando que o capital requer uma transformação radical de todas as instituições, mas que as instituições existentes serão, por fim, aquelas que são "apropriadas para o governo burguês". É verdade que isso pode exigir o desmantelamento de muitas partes das convenções legais e normativas pré-capitalistas - mas se o faz ou não, e até onde vai o apelo ao desmantelamento, será decidido pelo que é necessário para que o capitalismo se reproduza - para que sua auto-expansão prossiga. É inteiramente possível que essa expansão da acumulação possa prosseguir, deixando intactos muitos aspetos do antigo regime. Pelo menos, esta é uma leitura possível da passagem.

É também esta uma maneira mais plausível de entender o que está envolvido na expansão do capitalismo. Ninguém, incluindo Chakrabarty, Guha e outros teóricos pós-coloniais, contesta que o capitalismo é, em primeira instância, uma forma de organizar as atividades económicas - a produção e distribuição de bens. Numa economia organizada segundo linhas capitalistas, as unidades económicas são obrigadas a concentrar-se exclusivamente na expansão das suas operações, num ciclo interminável de acumulação. Os capitalistas buscam lucros porque se as suas empresas não o produzirem, serão ultrapassados por seus rivais no mercado. Onde quer que o capitalismo vá, também lá chega este imperativo. É a isto que Marx se estava referindo na primeira parte da passagem citada acima e nem Guha nem Chakrabarty o questionam. Tudo o que é necessário para que o capitalismo se reproduza é que este imperativo seja seguido pelos atores económicos - o imperativo para que as empresas busquem maiores mercados, mais lucro, superando os seus rivais.

Ora, se os capitalistas são obsessivamente levados a acumular, então a sua atitude em relação às instituições culturais e legais será instrumental para a realização desse objetivo. Se as instituições existentes inibirem a acumulação de capital, se não respeitarem a propriedade privada ou se dispensarem o trabalhador da obrigação de ter de procurar trabalho assalariado, então essas instituições serão muito provavelmente atacadas, como sugere Marx. O capital realizará uma campanha para derrubá-las. Mas e se as instituições existentes não entrarem em conflito com a acumulação? E se elas forem neutras em relação aos interesses capitalistas? Esta é a questão crucial, que Chakrabarty simplesmente ignora. No seu argumento, um capitalismo universalizante deve internalizar todas as relações sociais existentes na sua própria lógica. Deve ser um sistema totalizante, que se recusa a permitir qualquer autonomia a outras relações sociais. Chakrabarty indica mesmo uma razão para isso. Enquanto as práticas sociais se recusarem a conformar-se com as necessidades diretas do capital, enquanto se recusarem a refletir os próprios valores e prioridades do capital, elas carregam em si uma ameaça de perturbar a sua reprodução. Incorporam "outras formas de estar no mundo", para além de ser portador de força de trabalho ou consumidor de mercadorias (10). O capital não pode tolerar a possibilidade de "formas de estar no mundo" que não estejam alinhadas com a sua própria lógica. Procura, portanto, aquilo a que ele chama a sua "subjugação/destruição" (11).

Todo este argumento se baseia na suposição de que, se uma prática não promove diretamente a reprodução do capitalismo, fazendo parte do que Chakrabarty chama de seu "processo de vida", então ela deve suscitar uma resposta hostil do capital. Mas, poderíamos perguntar, por que diabo isso seria assim? Voltando à pergunta que fiz no parágrafo anterior, se uma prática é simplesmente neutra em relação à acumulação, a resposta natural do capital não seria de indiferença? Chakrabarty faz parecer que os gestores capitalistas andam por aí com seus próprios contadores políticos Geiger, medindo a compatibilidade de cada prática social com suas próprias prioridades. Mas certamente o quadro mais razoável é o seguinte: os capitalistas procuram expandir as suas operações, obter o melhor retorno possível dos seus investimentos e, enquanto as suas operações estiverem funcionando sem problemas, eles simplesmente não se importam com as convenções e costumes do ambiente circundante. O sinal, para eles, de que algo precisa de ser mudado é quando aspetos do ambiente perturbam as suas operações - estimulando conflitos trabalhistas, ou restringindo mercados, e assim por diante. Quando isso acontece, eles entram em ação e marcam as práticas culpadas, destinando-as à mudança. Mas quanto a outras práticas - que podem muito bem incorporar outras "formas de estar no mundo" - os capitalistas seriam simplesmente indiferentes.

Enquanto os costumes locais não inibirem ou minarem a acumulação de capital, os capitalistas não verão qualquer razão para os derrubar - esta é a conclusão a que chegámos. Isto tem duas implicações imediatas. A primeira tem a ver com os fundamentos de Chakrabarty para negar a universalização do capital. Em seu argumento, a razão pela qual não podemos aceitar que ele tenha sido universalizada é que a lógica pura do capital é modificada pelos costumes locais das regiões em que se espalha. Mas acabamos de ver que uma mera modificação de uma prática não constitui fundamento para rejeitar sua viabilidade. Enquanto suas regras e compulsões básicas permanecerem intactas, justifica-se considerá-la como uma espécie de seu antepassado anterior, não modificado. Portanto, segue-se - e este é o meu segundo ponto - que, se o que foi realmente globalizado são as relações económicas capitalistas, então não faz sentido negar que essas relações também foram universalizadas. Podemos rejeitar a afirmação de Chakrabarty de que a globalização não implica universalização. Como poderia não o fazer? Se as práticas que se espalharam globalmente podem ser identificadas como capitalistas, então elas também foram universalizadas. É o facto de podermos reconhecê-las como distintamente capitalistas que nos permite pronunciar a globalização do capital. Se podemos afirmar que elas são de facto capitalistas e que, portanto, têm as propriedades associadas ao capitalismo, como poderemos então negar sua universalização? A própria ideia parece bizarra.

Os fundamentos universais para a resistência

O capitalismo se espalha por todos os cantos do mundo, impulsionado pela sua insaciável sede de lucro e, ao fazê-lo, ao colocar sob sua influência uma proporção cada vez maior da população mundial, cria uma história verdadeiramente universal, uma história do capital. Os teóricos pós-coloniais muitas vezes prestam, pelo menos, um reconhecimento formal deste aspecto do capitalismo global, ainda que negando a sua substância. O que os torna ainda mais desconfortáveis é o segundo componente de uma análise materialista, que tem a ver com as fontes de resistência. Não há disputa em torno da ideia de que, à medida que o capitalismo se espalha, ele encontra resistência - dos trabalhadores, dos camponeses lutando pela sua terra, das populações indígenas, etc.. Na verdade, a celebração destas lutas é uma espécie de cartão de visita para os teóricos pós-coloniais. Nisso, eles parecem estar em sintonia com o entendimento marxista mais convencional da política capitalista. Mas a semelhança nas abordagens está apenas na superfície. Enquanto os marxistas têm entendido a resistência vinda de baixo como uma expressão dos verdadeiros interesses dos grupos trabalhadores, a teoria pós-colonial, tipicamente, afasta-se de qualquer conversa sobre interesses objetivos e universais. As fontes de luta são consideradas locais, específicas da cultura dos grupos trabalhadores, um produto da sua localização e história muito particulares - e não a expressão de interesses ligados a certas necessidades básicas universais.

A hostilidade às análises que vêm a resistência como uma expressão de impulsos universais comuns, é devida a que elas supostamente atribuem aos agentes uma consciência que é peculiar ao Ocidente desenvolvido. Ver as lutas como emanando de interesses materiais é "investir [os trabalhadores] com uma racionalidade burguesa, uma vez que é apenas num tal sistema de racionalidade que a "utilidade económica" de uma ação (ou de um objeto, relação, instituição, etc.) define a sua razoabilidade" (12). Tudo isto faz parte da fuga à essencialização das categorias transmitidas pelo pensamento iluminista, iniciada pela filosofia pós-estruturalista. Como explica Arturo Escobar, "com a teoria pós-estruturalismo do sujeito somos... compelidos a abandonar a ideia liberal do sujeito como um indivíduo autolimitado, autónomo, racional. O sujeito é produzido por/em discursos históricos e práticas numa multiplicidade de domínios” (13).

Assim, enquanto as teorias tradicionais marxistas e materialistas derivam de alguma conceção das necessidades humanas, que constitui a base sobre a qual a resistência é construída, os atuais avatares do pós-estruturalismo - sendo a teoria pós-colonial a mais ilustre - rejeitam esta ideia em favor de uma em que os indivíduos são inteiramente constituídos por discurso, cultura, costumes, etc.. Na medida em que existe resistência ao capitalismo, esta deve ser entendida como uma expressão de conceções locais muito particulares de necessidades - não apenas construídas por histórias geograficamente restritas, mas trabalhando através de uma cosmologia que resiste à tradução. Na expressão de Chakrabarty, o que impulsiona a luta contra o capital são os "incomensuráveis infinitos" das culturas locais (14) - algo que ele coloca fora das narrativas universalizantes do pensamento iluminista.

A questão, então, é se será injustificado atribuir alguns interesses e necessidades universais a agentes, distribuídos por diversas culturas e épocas. Não há dúvida de que, na sua maioria, as coisas que os agentes valorizam e perseguem são culturalmente construídas. Nisso, os teóricos pós-coloniais e os progressistas mais tradicionais são unânimes. Mas Escobar terá razão ao argumentar que os agentes não são apenas influenciados, mas inteiramente produzidos pelo discurso e costume? Certamente, podemos reconhecer a construção cultural de muitos, até mesmo da maioria dos nossos valores e crenças, enquanto também reconhecemos que há um pequeno núcleo destas últimas que os seres humanos têm em comum em todas as culturas. Para dar um exemplo central, não há cultura no mundo, nem nunca houve, em que os agentes não tenham considerado o seu bem-estar físico. Uma preocupação com certas necessidades básicas - alimentação, abrigo, segurança, etc. - faz parte do repertório normativo dos agentes em todas as localidades e eras. Nunca houve uma cultura que tenha perdurado ao longo do tempo que apagasse ou ignorasse a valorização das necessidades básicas, uma vez que a satisfação dessas necessidades é uma pré-condição para a reprodução da cultura. Assim, podemos afirmar que existem alguns aspetos da ação humana que não são inteiramente construção da cultura local, se com isso queremos dizer que eles são específicos dessa cultura. Esses aspetos estão enraizados em aspetos da psicologia humana que se estendem pelo tempo e pelo espaço - eles são componentes da nossa natureza humana.

Agora, dizer que os agentes sociais estão orientados para dar a devida atenção ao seu bem-estar físico não é insistir que a cultura não tem influência neste domínio. O que consomem, os tipos de habitação que preferem, as suas inclinações estéticas - tudo isto pode ser moldado pelos costumes locais e pelas contingências da história. É comum encontrar teóricos culturais que apontam a variabilidade das formas de consumo como evidência de que as necessidades são construções culturais. Mas este é um argumento falso. O facto de que a forma de consumo é moldada pela história - o que pode bem ser o caso, até certo ponto - não é prova contra a convicção de que há uma necessidade de sustento básico. Elas são, afinal, apresentadas como formas de algo. A linguagem é um sinal para o fator comum - rotulá-las como formas de consumo é dizer que elas são espécies de um género comum. A questão é se a superior necessidade de subsistência é, em si mesma, uma construção cultural. Ou, correspondentemente, se a cultura pode apagar o reconhecimento das necessidades básicas. Chegar a colocar a questão mostra logo até que ponto ela é absurda (15).

É a preocupação agencial com o bem-estar que ancora o capitalismo em qualquer cultura onde ele se implanta. Como Marx observou, uma vez que as relações capitalistas estejam em vigor, uma vez que os agentes estejam subsumidos sob seus imperativos, a "compulsão rotineira das relações económicas" é tudo quanto é preciso para induzir os trabalhadores a se oferecerem para a exploração. Isto é verdade independentemente da cultura e da ideologia - se eles estão na posição de ser um trabalhador, eles vão se tornar disponíveis para o trabalho. Esta afirmação pressupõe os factos sobre a natureza humana que acabo de defender, nomeadamente, que os agentes de qualquer cultura estão motivados a defender o seu bem-estar físico. A razão pela qual colocam a sua força de trabalho à disposição dos empregadores é que essa é a única opção que têm à disposição para manterem o seu bem-estar. São livres de recusar, naturalmente, se a sua cultura lhes disser que tais práticas são inaceitáveis - mas, como Engels salientou nos seus primeiros escritos, isso significa apenas que são livres para passar fome (16). Eu sublinho este ponto apenas pela seguinte razão: os teóricos pós-coloniais não podem afirmar a globalização do capital, a disseminação do trabalho assalariado pelo mundo, ao mesmo tempo que negam a realidade das necessidades básicas e do respeito das pessoas pelo seu próprio bem-estar físico. Se continuam a insistir numa visão integralmente construcionista, têm de explicar por que razão a "compulsão rotineira das relações económicas" consegue ser eficaz onde quer que as relações de classe capitalistas estejam asseguradas, independentemente da cultura, ideologia ou religião.

Ora, embora este específico aspecto da natureza humana seja o fundamento sobre o qual assenta a exploração, é também uma fonte central de resistência. A mesma preocupação com o bem-estar que empurra os trabalhadores para os braços dos capitalistas também os motiva a resistir aos termos da sua exploração. A busca incessante do lucro por parte dos empregadores tem como expressão mais direta a busca constante de minimizar os custos de produção. O mais óbvio desses custos, é claro, são os salários. Mas a redução dos salários, enquanto condição para o aumento das margens de lucro, significa necessariamente um aperto nos padrões de vida dos trabalhadores - e, portanto, um assalto, em diferentes graus de intensidade, ao seu bem-estar. Para alguns trabalhadores em sectores de topo de gama ou sindicalizados, o aperto pode ser contido dentro de limites toleráveis, de modo que equivale a lutar em torno do seu nível de vida, mas não necessariamente em torno das suas necessidades básicas. Mas para grande parte do Sul global e para uma gama crescente de setores no mundo desenvolvido, o que está em jogo é muito mais. Acrescente-se agora a isto a necessidade de os empregadores gerirem outros custos associados à produção - tentar espremer tempo extra à maquinaria obsoleta, aumentando assim o risco de lesão dos trabalhadores, a vontade de acelerar o ritmo e a intensidade do trabalho, o prolongamento da jornada de trabalho, o assalto às pensões e às prestações de reforma, etc. - e podemos ver como a acumulação é sistematicamente contrária ao interesse dos trabalhadores pelo seu bem-estar. Os movimentos dos trabalhadores serão muitas vezes orientados apenas para assegurar as condições básicas para a sua reprodução, e não níveis de vida mais elevados.

A preocupação com o seu bem-estar é, portanto, a razão pela qual os proletários se oferecem para a exploração, e porque, depois de o terem feito, passam a lutar em torno dos seus termos. Este aspeto particular da sua natureza humana prende-os a uma condição de interdependência antagónica com o capital. É do seu interesse procurar emprego, a fim de se reproduzirem; mas a condição para garantir o emprego é que se submetam à autoridade do seu empregador, que é levado a minar o seu bem-estar, mesmo quando utiliza a sua atividade laboral. A primeira dimensão deste processo - a sua submissão ao contrato de trabalho - explica por que razão o capitalismo pode criar raízes e consolidar-se em qualquer canto do globo. A segunda dimensão - da luta em torno dos termos da sua exploração - explica por que razão a reprodução de classes gera luta de classes em todas as regiões onde o capitalismo se estabelece (17). A universalização do capital tem como seu duplo a luta universal dos trabalhadores para a defesa do seu bem-estar.

Na nossa conceção, ambos estes universalismos derivam de um único componente da natureza humana. Isto não sugere, de forma alguma, que isso seja tudo o que há a dizer sobre essa natureza. A maioria dos pensadores progressistas tem acreditado que existem outros componentes da natureza humana, outras necessidades, que atravessam as culturas regionais. Assim, por exemplo, existem as necessidades de autonomia ou liberdade de coerção, de expressão criativa, de respeito - só para citar algumas. O meu ponto de vista não é que a natureza humana possa ser reduzida a uma necessidade básica, biológica. É, sim, que essa necessidade existe, mesmo que seja menos exaltada do que algumas outras; e, mais importante ainda, que ela pode ser responsável por uma gama surpreendente de práticas e instituições com as quais os radicais têm de estar envolvidos. É um sinal de quão baixo decaiu o pensamento de esquerda, de quão degenerada se tornou a cultura intelectual, de que seja mesmo necessário defender a sua existência (18).

Conclusão

Quaisquer que tenham sido as suas muitas discordâncias ao longo do século passado, os radicais e os progressistas quase sempre concordaram em dois postulados básicos - que, à medida que o capitalismo se expande, ele subordina todas as partes do mundo a um conjunto comum de compulsões; e que, onde quer que se implante, aqueles que ele submete e explora terão um interesse comum em lutar contra ele, independentemente das suas culturas ou crenças. Houve já algum tempo em que ambas estas afirmações tenham sido mais obviamente verdadeiras? Há mais de cinco anos, uma tremenda crise económica tem assolado os mercados globais e convulsionado as economias nacionais dos Estados Unidos da América à Ásia Oriental, da Europa do Norte à África Austral. Se alguma vez houve dúvidas de que o capital se universalizou, certamente podemos colocá-las agora de parte. Correspondentemente, movimentos contra o neoliberalismo eclodiram em todo o mundo, organizados em torno de um conjunto de reivindicações que convergem em torno de um conjunto surpreendentemente pequeno de preocupações - pela segurança económica, maiores direitos, pela proteção dos serviços básicos e pelo alívio das imposições implacáveis do mercado. Esta é talvez a primeira vez, desde 1968, que há um vislumbre real de um movimento global emergindo novamente. É apenas um indício, é claro, do que muitos de nós esperamos que se possa tornar. Mas é mais do que temos tido, há já algum tempo.

Parece bastante bizarro, num momento como este, vermo-nos sobrecarregados com uma teoria que fez o seu nome ao desmantelar alguns dos próprios pilares conceptuais que nos podem ajudar a compreender a atual conjuntura política e a conceber uma estratégia eficaz. A teoria pós-colonial obteve alguns ganhos reais em certos domínios, especialmente na sua transversalização da literatura proveniente do Sul global. Ao longo dos anos 1980 e 1990, desempenhou um papel importante na manutenção em vida da ideia de anticolonialismo e anti-imperialismo; e, claro, fez do problema do eurocentrismo uma palavra de ordem entre os intelectuais progressistas. Mas estas conquistas vieram com um preço muito elevado. Abandonar o conceito de universalismo, como têm feito muitas das principais luminárias deste movimento teórico, dificilmente será um passo em direção à teorização mais adequada nos tempos em que vivemos.

Mostrei que os argumentos contra o universalismo - pelo menos os que são mais correntes - não têm mérito. Os dois universalismos mais salientes do nosso tempo - a difusão das relações sociais capitalistas e o interesse que os trabalhadores têm em resistir a essa difusão - afirmam-se. Os teóricos pós-coloniais derramaram muita tinta investindo contra moinhos de vento da sua própria criação. Ao fazê-lo, também deram pretexto para um ressurgimento massivo do nativismo e do orientalismo. Não se trata apenas que eles enfatizam o local sobre o universal. A sua valorização do local, a sua obsessão pelas particularidades culturais e, acima de tudo, a sua insistência na cultura como fonte de agência, deram passagem livre ao próprio exotismo que a esquerda outrora abominava nas representações coloniais do não-ocidental.

Ao longo do século XX, a âncora dos movimentos anticoloniais foi, pelo menos para a esquerda, uma crença de que a opressão era errada onde quer que fosse praticada, porque era uma afronta a algumas necessidades humanas básicas - à dignidade, à liberdade, ao bem-estar básico. Mas agora, em nome do anti-eurocentrismo, a teoria pós-colonial ressuscitou o próprio essencialismo cultural que os progressistas viam - com razão - como a justificação ideológica para a dominação imperial. Que melhor desculpa para negar aos povos os seus direitos do que contestar a própria ideia de direitos e interesses universais, como sendo culturalmente tendenciosa? Mas se este tipo de manobra ideológica deve ser rejeitado, é difícil ver como o poderá ser, a não ser abraçando o próprio universalismo que os teóricos pós-coloniais nos pedem para evitar. Nenhum ressurgimento de uma esquerda internacional e democrática é possível se não limparmos estas teias de aranha, afirmando assim os dois universalismos - a nossa humanidade comum, e a ameaça que lhe é colocada por um capitalismo viciosamente universalizante.

Notas:

(1) Bill Ashcroft, Gareth Griffiths e Helen Triffin (eds.), The Postcolonial Studies Reader, London: Routledge, 1995, p. 55.

(2) Dipesh Chakrabarty, Provincializing Europe, Princeton: Princeton University Press, 2007 (segunda edição), p. 95.

(3) Gyan Prakash, ‘Postcolonial Criticism and Indian Historiography’, Social Text, N.º 31/32, 1992, p. 13.

(4) Prakash, ‘Postcolonial Criticism’, p. 14.

(5) Chakrabarty, Provincializing Europe, p. 23.

(6) Chakrabarty, Provincializing Europe, p. 71.

(7) Chakrabarty não é o único a argumentar pelo fracasso da universalização do capital ou para a natureza suspeita da estrutura universalizante do marxismo. Mas é um dos mais influentes. Para uma análise mais detalhada do trabalho de Chakrabarty e de outros teóricos associados ao projeto de Estudos Subalternos, ver o meu livro Postcolonial Theory and the Specter of Capital, London: Verso, 2013.

(8) Chakrabarty, Provincializing Europe, p. 70. Este argumento está incorporado numa discussão complicada de dois tipos diferentes de histórias - História1, que encarna o impulso universalizante do capital, e História2, que encarna as práticas que conseguem manter a sua própria integridade. Eu abstive-me de usar este jargão porque complicaria desnecessariamente a exposição, sem adicionar nenhum conteúdo. Para uma discussão e crítica alargada das conclusões que Chakrabarty tira do duplo História1/História2, ver o meu Postcolonial Theory, ob. cit., especialmente o Capítulo 9.

(9) Dominance without Hegemony, Princeton: Princeton University Press, 2000, pp. 13-14.

(10) Chakrabarty, Provincializing Europe, p. 66.

(11) Chakrabarty, Provincializing Europe, p. 67.

(12) Dipesh Chakrabarty, Rethinking Working Class History: Bengal 1890-1940, Princeton: Princeton University Press, 1989, p. 212, sublinhado acrescentado.

(13) Arturo Escobar, ‘After Nature: Steps to an Anti-essentialist Political Ecology’, Current Anthropology, 40 (1), February 1999, p. 3.

(14) Chakrabarty, Provincializing Europe, p. 254.

(15) Outro argumento contra as necessidades básicas é que consumimos tipicamente uma grande quantidade de coisas que não tem ligação com as nossas necessidades. Isso é claro que é verdade, mas ainda mais tolo do que a objeção que descrevi no texto principal. O facto de que muito do que consumimos é desnecessário, ou é culturalmente moldado, dificilmente reverte o facto de que ainda precisamos de ter algumas necessidades básicas atendidas para poder sobreviver.

(16) Frederick Engels, The Condition of the Working Class in England, New York: Penguin Books, 1987 [1844].

(17) Para ser preciso, o que gera é a motivação para lutar. Se a motivação gera ou não resistência real, na forma de ação coletiva, depende de uma série de fatores adicionais e contingentes.

(18) O mais chocante de tudo é encontrar autodenominados marxistas que negam a universalidade das necessidades básicas como componente da natureza humana. Isso foi objeto de alguma controvérsia na década de 1980, e poderíamos ser perdoados por pensar que a questão havia sido resolvida. Mas, talvez devido à influência contínua (e bastante desconcertante) de Althusser, especialmente entre os intelectuais mais jovens, as negações persistem. Para a evidência textual definitiva sobre Marx, ver Norman Geras, Marx and Human Nature: Refutation of a Legend, Londres: Verso, 1983. Mais recentemente, ver sobre o jovem Marx, o magnífico estudo de David Leopold, The Young Karl Marx: German Philosophy, and Human Flourishing, Cambridge: Cambridge University Press, 2007; mais globalmente, ver John McMurtry, The Structure of Marx's World-View, Princeton: Princeton University Press, 1978. A única tentativa séria e recente que conheço de levantar dúvidas sobre o compromisso de Marx com a natureza humana é Sean Sayers, Marxism and Human Nature, New York: Routledge, 1998, mas Sayers qualifica seu argumento negando categoricamente o argumento de um Marx anti-humanista (o Marx de Althusser) e afirmando que "o marxismo... não rejeita a noção de uma natureza humana universal" (p. 159).

Sobre o autor

Vivek Chibber (n. 1965) é um académico, editor, teórico social e ativista, nascido na Índia, residente nos E.U.A. desde os anos 1980 e aí naturalizado. Completou uma licenciatura (BA) em Ciência Política em 1987 na Northwestern University e, em 1999, concluiu seu doutorado em Sociologia na Universidade de Wisconsin, onde a sua dissertação foi supervisionada por Erik Olin Wright. É atualmente professor de Sociologia na New York University (NYU). Desde 2017 é editor, com Robert Brenner, da revista de debate e intervenção Catalyst. Desempenhou também atividades editoriais em diversas outras publicações, incluindo Socialist Register, Journal of Agrarian Change, Historical Materialism, American Journal of Sociology, The Journal of Peasant Studies, Politics & Society, British Journal of Sociology e Sociological Theory. Publicou dois livros: Locked in Place: State-Building and Late Industrialization in India, Princeton University Press, 2003 e Postcolonial Theory and the Specter of Capital. London: Verso, 2013.

16 de outubro de 2013

Ameaça fascista na Grécia

O partido fascista Aurora Dourada tem empurrado o partido do Governo da Grécia mais para a direita - e abriu espaço para medidas de austeridade mais profundas.

Katy Fox-Hodess



Tradução / O cada vez mais ousado Aurora Dourada precipitou uma crise política em Atenas, cuja resolução está longe de ser certa. Aurora Dourada, o maior partido fascista na Europa e o terceiro maior partido na Grécia, tem crescido rapidamente durante a crise económica, tanto por usar os imigrantes, minorias étnicas e pessoas queer como bode expiatório, como por oferecer bens essenciais como comida para os cidadãos gregos empobrecidos pelo programa de austeridade do país.

Até este mês, tem operado com o consentimento implícito do governo de coligação liderado pelo Nova Democracia, de centro-direita, apesar das muitas provas de que militantes do partido têm usado violência para aterrorizar aqueles/as que vivem à margem da sociedade grega.

Mas o partido parece ter cruzado uma linha vermelha neste mês. Em meados de setembro, cerca de cinquenta "gorilas" da Aurora Dourada agrediram membros do Partido Comunista (KKE) que colavam cartazes políticos num subúrbio operário de Atenas. Na semana seguinte, Pavlos Fyssas, um cantor de hip-hop anti-fascista, foi assassinado por um membro assumido do Aurora Dourada no bairro operário de Keratsini.

O assassinato de Fyssas, um cidadão grego, que vem na esteira dos espancamentos de membros gregos do KKE, conseguiu o que os espancamentos e assassinatos de imigrantes por parte dos membros da Aurora Dourada não tinham no passado: a indignação pública generalizada e mobilizações de massa contra o partido. Os primeiros protestos foram organizados em menos de 24 horas, culminando numa marcha de 50.000 pessoas em direcção à sede do Aurora Dourada, na semana seguinte. Hoje em dia, o centro de Atenas está coberto de cartazes políticos e graffiti antifascistas.

Por altura do último fim-de-semana, o líder do partido, Nikolaos Michaloliakos, juntamente com outros deputados do Aurora Dourada e os militantes-chave do partido, tinham sido presos e acusados de pertencer a uma organização criminosa. Dependendo dos resultados dos julgamentos, o Aurora Dourada poderá vir finalmente a ser declarado um partido ilegal.

No entanto, se é verdade que a reviravolta no destino político do Aurora Dourada, após uma mobilização em massa impressionante, pode vir a alegrar a esquerda grega, o clima em Atenas na semana passada era de incerteza. A um nível mais imediato, os radicais receiam que a repressão do governo sobre o partido possa mais tarde ser usada como pretexto para reprimir os partidos de esquerda, uma preocupação fundada no facto de a retórica de centro-direita equiparar a violência da ultra-direita fascista com as mobilizações de esquerda.

E a ameaça do fascismo dificilmente é derrotada. Um cartoon político que circula on-line capturou o sentimento geral sobre a esquerda, mostrando o presidente do partido Nova Democracia, Antonis Samaras, arrancando do solo uma pequena planta com a forma do símbolo do Aurora Dourada, enquanto um enorme sistema de raízes em forma de suástica permanece enterrado.

A actual crise económica e política na Grécia tem suas raízes na crise económica mundial de 2008. Tal como a maioria da Europa mediterrânica - em particular Espanha, Portugal e Chipre - a economia da Grécia sofreu um grave choque com a crise global. Isto criou uma abertura para o capital global, e em particular capital europeu, pudesse renegociar condições mais favoráveis de acumulação no sul da Europa ao concordar em socorrer as economias do sul, em troca de um pacote de medidas de profunda e grave reestruturação económica. O abalo político e económico não têm servido tanto para reestruturar o capitalismo no continente, como têm revelado uma verdade que tinha estado coberta por um longo período de prosperidade baseada na dívida: apesar de duas décadas de integração europeia na zona euro, a Europa continua a estar dividida entre um norte rico e um sul subdesenvolvido. Como me disse um amigo grego, como é possível que a Suécia e a Grécia sejam parte de uma mesma união económica e política?

Os três organismos internacionais responsáveis ​​pela negociação do resgate, a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional, são conhecidos colectivamente na Grécia (e por todo o sul da Europa) como a "troika", uma frase que evoca intencionalmente memórias de ditadura. De facto, a troika atua em grande medida como uma ditadura, operando através do governo grego, que se tornou uma espécie de estado fantoche, alienando muita da soberania política e económica do país no memorando que determina as condições do resgate de 110 biliões de euros, e tentando gerir a caos social em que veio por arrasto.

Nos termos do memorando, a Grécia concordou em vender empresas públicas rentáveis ​​e cortar duramente nos gastos sociais para pagar sua dívida e equilibrar o orçamento (uma exigência a que os governos do norte da Europa, incluindo a Alemanha, não se impuseram). Um importante terminal de contentores no Porto de Pireus, por exemplo, foi vendido à companhia de navegação Cosco, detida pelo Estado chinês, sem os regulamentos sociais que têm acompanhado as privatizações de portos noutros países europeus. A sindicalização é agora quase impossível, e os trabalhadores são empregados numa base diária com os salários baixos, poucos benefícios e as condições de saúde e segurança que seriam de outra forma impensáveis no país.

Este processo é muitas vezes descrito pelo termo "austeridade", um termo ideologicamente mistificador destinado a encobrir a realidade grega de 30% de desemprego geral, desemprego de 60-70% por cento entre os jovens, e cortes salariais do sector público à volta de 35-50% - além ao aumento da mortalidade infantil, a insegurança alimentar, trabalho sexual, uso de drogas, as taxas de infecção de VIH / SIDA, crime, e outros sinais de desespero económico e miséria social. Aspectos adicionais da mistificação ideológica comummente empregues no Norte da Europa para justificar a acumulação por expropriação no Sul incluem uma série de preconceitos que retratam os gregos e europeus do sul em geral como preguiçosos, irresponsáveis ​​e incapazes de se auto-governarem.

A vaga inicial de protestos anti-austeritários contínuos, a partir de maio de 2010, seguiu-se à assinatura do primeiro memorando. Seguiu-se uma enorme manifestação de meio milhão de pessoas no centro de Atenas e uma série de manifestações e greves gerais. A segunda vaga começou em 2011, durante a onda mundial de protestos de ocupação que se estenderam desde a Praça Tahrir no Egipto até à Plaza del Sol em Madrid passando pela Oscar Grant Plaza, em Oakland. Manifestantes na Grécia seguiram o exemplo com ocupações massivas de praças públicas, incluindo a Praça Syntagma, no centro de Atenas. Esta vaga durou até 2012, mas, posteriormente, houve uma relativa acalmia no movimento até este verão, despoletando um período de reflexão por parte da esquerda grega sobre como avançar na luta. Mas desde a Primavera, com a frustração de uma tentativa de privatizar a estação de televisão pública grega, o movimento tem vindo a a despertar novamente, precipitado pelo assassinato de Fyssas e pelo crescimento do movimento anti-fascista.

Abundam teorias entre a esquerda grega sobre o tipo e a extensão da ligação entre o Aurora Dourada, a Nova Democracia e a polícia, mas o que é claro é que o partido tinha até este mês conseguido operar com quase total impunidade. As autoridades policiais estão a ser investigadas por supostas ligações com "gorilas" do Aurora Dourada, diz-se que oficiais se juntaram ao partido em números assustadoramente grandes. No entanto, a crítica mais incisiva ao Aurora Dourada, da parte da esquerda, diz respeito às razões por detrás da tolerância do governo ao partido. Falei com militantes de esquerda de uma ampla gama de organizações, na semana passada em Atenas e, embora tenham sido enfatizados diferentes aspetos da situação, há um forte consenso sobre a existência de uma linha única que atravessa a crise económica, a troika, o governo austeritário e os fascistas.

Eles observaram, por exemplo, que ataques contra imigrantes não têm sido apenas prerrogativa dos fascistas, mas têm também sido levados a cabo aberta e legalmente pelo governo da Nova Democracia através de uma ampla campanha de discriminação racial e encarceramento de imigrantes sem documentos, tudo ao serviço de um objetivo declarado de deportações em massa. Estes ataques não só são legalmente sancionados pelo governo grego, como são implicitamente sancionados pelos países do norte da UE, que permitem que o Estado grego ataque imigrantes sem papéis (95% dos quais, pensa-se, entram na Europa através da Grécia) sem levantar qualquer objeção.

Na mesma linha, o governo da Nova Democracia tem realizado políticas profundamente misóginas, homofóbicas e transfóbicas tendo como alvo profissionais do sexo e pessoas VIH / SIDA, incluindo a deportação de imigrantes seropositivos/as, de volta para países onde não poderão receber tratamento adequado, e publicação online de fotos de profissionais do sexo seropositivos/as.

O Aurora Dourada, que tem profundas raízes organizacionais em muitos bairros operários pobres nos arredores de Atenas, tem sido capaz de aproveitar o espaço aberto pelas políticas odiosas adoptadas pelo governo do Nova Democracia. As duas organizações políticas têm-se desenvolvido simbioticamente, com a Nova Democracia a representar a face legal da violência racista e da opressão e a Aurora Dourada representando a face oculta, criminal. Muitos argumentam que a Aurora Dourada tem sido tolerado porque tem sido eficaz na sua organização e na mobilização do país para a direita ao nível das bases, limitando-se a levar a lógica das políticas da Nova Democracia à sua extrema conclusão.

Um segundo argumento relativo à ligação entre o Aurora Dourada e o governo da Nova Democracia enfatiza como o aumento da violência fascista fornece uma espécie de distracção conveniente, protegendo o governo de ter de enfrentar as mobilizações contra suas contínuas e duras políticas de austeridade, que têm resultado em pobreza e miséria. Quando os imigrantes, pessoas queer e esquerdistas estão literalmente a ser espancados e esfaqueado nas ruas, focar-se na luta contra os fascistas torna-se uma questão de sobrevivência. Enquanto a troika tem evitado em grande medida a discussão do caos social gerado pelas suas duras exigências, o assassinato de Fyssas atraiu críticas públicas por funcionários fora da Grécia, que sentem que ter neo-nazis a assassinar esquerdistas impunemente nas ruas de Atenas poderá vir a minar a hegemonia ideológica dos estados do norte e o capital forjado durante a crise. Mesmo continuando a diminuir proteções sociais, a Europa neoliberal deve pelo menos manter um compromisso ostensivo às normas básicas de direitos humanos para legitimar novas medidas de austeridade.

As próximas semanas e meses serão críticos para a esquerda grega, que, apesar da sua energia renovada depois da mobilização contra o Aurora Dourada, permanece dividida por velhas diferenças sobre questões como a viabilidade de uma via parlamentar de socialismo e a compatibilidade do socialismo num país com uma economia de mercado integrado na Europa. Dentro da esquerda parlamentar, a questão mais imediata diz respeito a quando convocar eleições, com alguns argumentando que as eleições antes do final do ano permitirão à esquerda capitalizar da indignação pública dirigida ao Aurora Dourada, enquanto outros argumentam que é necessário mais tempo para granjear mais apoio. Enquanto os esquerdistas de todo o espetro estão unidos na luta contra o fascismo, a questão da estratégia socialista continua a ser vexante.

Em particular, os esquerdistas fora da coligação de esquerda radical Syriza (bem como alguns dos seus próprios membros) têm questionado se será possível reverter a austeridade sob um governo Syriza sem sair da zona euro, dada a dependência económica e política do Estado grego face à troika. Esta questão tornou-se um ponto central de discórdia dentro da esquerda, atraindo críticas de alguns setores da liderança do Syriza. Ao mesmo tempo, os líderes do Syriza têm enfatizado a necessidade de se construir uma base de apoio mais ampla, para além da extrema-esquerda, apelando aos setores da classe média que permanecem ligados ao projecto europeu, a fim de disputar efectivamente o governo de centro-direita nas próximas eleições.

Questões de estratégia socialista à parte, a nível prático há uma necessidade urgente de mobilizar esforços para organizar meios de apoio e mobilização dos trabalhadores urbanos e dos desempregados de modo a neutralizar o sucesso do Aurora Dourada, que criou raízes profundas em alguns dos distritos de Atenas através de, entre outras coisas, programas de distribuição de alimentos "só para gregos". Num país onde a segurança alimentar se tornou uma preocupação real, é fácil entender porque é que essa tática tem sido bem-sucedida. Ao mesmo tempo, mais trabalho precisa de ser feito para tornar explícitas as relações entre a ascensão do fascismo e o programa de austeridade, para que as mobilizações anti-fascistas possam ser aprofundadas e ampliadas, gerando um movimento anti-capitalista revitalizado.

Socialismo ou barbárie é a ordem do dia.

Sobre o autor


14 de outubro de 2013

Uma geração de intelectuais moldada pela crise de 2008 resgata Marx da lata de lixo da história

Para aqueles muito jovens para se lembrar da Guerra Fria, mas velhos o suficiente para serem pegos pela Grande Recessão, o marxismo tem um novo apelo.

Michelle Goldberg

Tablet

(Fotoilustração Revista Tablet; foto original Jens Schott Knudsen/Flickr)

Tradução / Oito anos atrás, Jay McInerney, adepto de um tipo de literatura "glossy chic" dos anos 1980, identificou Benjamin Kunkel, escritor norte-americano, como a voz da nova geração. Escrevendo na primeira página da New York Times Book Review, ele saudou o primeiro romance de Kunkel, "Indecisão", por fazer "todo aquele negócio da crise pós-adolescência, de começo de vida, ser engraçado de novo". Ele não estava sozinho; muitos críticos ficaram impressionados com a evocação de Kunkel da passividade e vazio existencial de um jovem privilegiado. Eles tinham menos certeza do que pensar sobre a conversão do narrador a uma política radical na América do Sul. "Imagino que as sequências sirvam para explicar o socialismo para as pessoas de vinte e poucos anos, pós-irônicas, ambivalentes, esperançosas e generosas em 2005", escreveu Michael Agger na Slate.

No próximo mês de março, Kunkel vai lançar o seu segundo livro, “Utopia or Bust” (Utopia ou Fracasso). Apesar de não ser continuação de “Indecisão”, a obra vai de fato tentar explicar, ou ao menos explorar, o que representa o socialismo hoje, através de uma série de ensaios de pensadores de esquerda contemporâneos, como o crítico literário Fredric Jameson e o geógrafo David Harvey. Depois do sucesso de “Indecisão” – que conquistou um lugar nas listas de Best-sellers, foi traduzido para diversas línguas e tornou-se atraente para Hollywood – Kunkel não se aproveitou do seu estrelato da mesma forma que, digamos, Jay McInerney. Pelo contrário. Depois de cair numa depressão profunda, ele seguiu o exemplo do seu próprio personagem, mudando-se para Buenos Aires, submergindo profundamente na teoria anti-capitalista. Em um rascunho da introdução do seu novo livro, ele escreve “para deceção de amigos que prefeririam ler a minha ficção – bem como do meu agente literário, que preferiria vender – parece que eu virei um intelectual marxista público”.

De um modo estranho, no entanto, Kunkel não fugiu inteiramente do negócio. O seu novo livro surge num momento em que há um interesse renovado em Marx entre jovens autores, ativistas e estudiosos, que têm começado a identificar o capitalismo, frente à crise financeira, como um problema, e não mais como algo inevitável.

Seria simplista demais dizer que o marxismo voltou, porque ele de facto nunca foi embora. Nos Estados Unidos depois da queda do Muro de Berlim, entretanto, estava restrita ao departamento de inglês da universidade, tornando-se objeto de crítica ácida. Entretanto veio a crise económica, o movimento Occupy Wall Street, e o desastre ainda em curso da austeridade na Europa. Na época do Occupy, principalmente, muita gente de todo tipo de esquerda, trabalhando em publicações grandes ou literárias, meio que se encontraram, começaram a conversar, e descobriram quem estava interessado em política de classe”, diz Sarah Leonard, a editora de 25 anos da Dissident o jornal social-democrata fundado quase 60 anos atrás por Irving Howe. “Nós essencialmente achamos uma política antiga que faz sentido hoje”, acrescenta ela.

Nos EUA, é claro, o marxismo mantém se como uma corrente intelectual, muito mais do que movimento de massas. É claro, os millenials [outra forma de se referir à chamada Geração Y] são notoriamente progressistas; uma pesquisa muito debatida de 2011 descobriu que 49% das pessoas com idade entre 18 e 29 anos têm uma visão positiva sobre o socialismo, enquanto apenas 46% têm visão positiva sobre capitalismo. É difícil dizer o que isso significa exatamente – não se pode dizer que os jovens estão fazendo com que “O Capital”, uma das principais obras de Marx, entre rapidamente na lista dos mais vendidos ou estejam construindo células comunistas. Ainda assim, faz décadas que tantos pensadores jovens não se envolviam tanto em imaginar uma ordem social que não seja governada pelos imperativos do mercado.

Os motivos para isso são bastante óbvios. “Agora está tudo desmoronando”, diz Doug Henwood, editor da revista de esquerda Left Business Observer e mentor de diversos novos pensadores marxistas. “Nem mesmo o mais ardoroso defensor pode dizer que as coisas estão indo bem. As premissas básicas da vida dos americanos, sobre mobilidade social e todo esse tipo de coisa, parece tudo uma grande piada de mau gosto agora”, afirmou ele.

Enquanto isso, o fim da Guerra Fria libertou as pessoas – especialmente os que são novos demais para lembrar – para que elas pudessem revisitar as ideias marxistas sem o medo de elas justificarem a existência de regimes repressivos. A União Soviética sempre pairou sobre a vida intelectual dos EUA no século 20, especialmente aqueles setores dominados pelos formados da Universidade Judaica Municipal, como Howe e o seu contraponto intelectual Irving Kristol. Havia aqueles que condenavam, mas se apegavam aos ideais socialistas – posição emblemática da revista Dissent –, e havia aqueles, como Kristol, que viam tais valores como sendo intrinsecamente ligados a um regime tirânico, e se tornavam neoconservadores. Agora que o comunismo é uma força marginal no mundo, essas discussões parecem muito distantes. “Imagino que não tenhamos na nossa cabeça 1989”, diz Leonard. “A nossa crise é de uma natureza diferente. É uma crise capitalista, e temos um arsenal de ferramentas de análise muito útil”.

***

Para servir ao novo pensamento de esquerda, a editora norte-americana radical Verso – que também vai co-publicar o novo livro de Kunkel – começou recentemente a fazer uma série chamada Pocket Communism (Comunismo de Bolso). Pequena e elegante, a coleção foi criada tendo em mente a capacidade de atenção da Geração Y. Entre os livros estão “A hipótese comunista” de Alain Badiou e “A atualidade do comunismo”, de Bruno Bosteel. Eles são vendidos fora das lojas tradicionais – em galerias de arte, por exemplo. Mesmo quando esses neocomunistas não são marxistas ortodoxos – Badiou é meio maoísta – Marx ainda tem um peso muito grande em suas obras. “As pessoas não têm mais medo de voltar aos textos e usar palavras que eram tabu”, diz Sebastian Budgen, editor sénior da Verso. “Há um efeito emancipador em não mais se precisar se justificar para usar Marx.”

Em nenhum lugar isso é mais verdade que na Jacobin, a revista norte-americana socialista fundada por Bhaskar Sunkara, de 24 anos, que vai publicar “Utopia or Bust” com a Verso. Um empreendedor marxista, Sunkara ainda não se tinha formado quando usou o dinheiro do seu empréstimo estudantil para publicar o primeiro número da Jacobin, em 2011. Hoje ele tem cerca de cinco mil assinantes, um número pequeno em perspetiva, mas impressionante para um jornal de esquerda, comparável ao alcance da Dissent. Os seus leitores são desproporcionalmente jovens, de acordo com Sunkara, e em geral novatos no que diz respeito a publicações de esquerda. “Acho que boa parte dos leitores não escolhe a Jacobin ao invés da Dissent ou da Monthly Review”, afirma. “Eles são mais para liberais desiludidos ou jovens que não são politizados”.

De sua parte, a Dissent, editada por Michael Kazin, foi revigorada por pessoal novo, como Leonard. Até recentemente era conhecida pelo seu conflito com a irresponsabilidade de outros radicais. Em 2002, por exemplo, seu antigo co-editor, Michael Walzer, criticou as respostas dos progressistas ao 11 de setembro, em um artigo intitulado “Pode haver uma esquerda decente?”. Lamentando a tendência de intelectuais de esquerda de “viver nos EUA como estrangeiros internos, recusando-se a se identificar com os seus cidadãos, considerando qualquer traço de patriotismo como politicamente incorreto”, ele parecia reviver uma velha briga entre a esquerda anticomunista e a contracultura na década de 1960.

These days, though, with the magazine’s four full-time staffers all in their twenties, it feels far livelier and more contemporary—at times, it’s even cheeky. Consider, for example, “Cockblocked by Redistribution,” a piece in the fall issue by Katie J.M. Baker, about the failure of a well-known pickup artist to score in Denmark. As Baker explains, Daryush Valizadeh, known as Roosh, is the author of a series of priapic travel guides with names like Bang Ukraine and Bang Brazil. (In the latter, he instructs his acolytes that “poor favela chicks are very easy, but quality is a serious problem.”) In Scandinavia, however, poor Roosh found that things were not very easy at all, prompting him to produce an angry denunciation of that country’s women titled Don’t Bang Denmark. Danish women, Roosh lamented, exhibit a maddening lack of desperation, “because the government will take care of her and her cats, whether she is successful at dating or not.”

Baker—until recently a staff writer at the women’s website Jezebel, part of the Gawker network—analyzed Roosh’s predicament in light of Nancy Holmstrom’s 1984 essay “A Marxist Theory of Women’s Nature,” discussing the way material conditions create the vulnerabilities that pickup artists exploit. When the sort of smart, au courant young women who work at Jezebel start casually dropping references to Marxist philosophers, something has shifted in the intellectual environment.

Meanwhile n+1, the journal Kunkel cofounded in 2004, has morphed from a hipster downtown cultural-literary publication feted by The New York Times Magazine to a far more explicitly political one. In the most recent issue, there’s a long essay by Dayna Tortorici arguing for the renewed relevance of the 1970s feminist “Wages for Housework” campaign: “Young people in the West who have spent their formative years in the workforce as freelancers, part-timers, adjuncts, unwaged workers, and interns are beginning to feel … that they’re not compensated for the work that they do. … Under these circumstances, the longstanding critique of the exploitation of mothers, wives, grandmothers is felt with new force, among a much younger and much wider population of women and men, with children and without.”

Naturally, some of those who lived through the first iteration of these arguments—and the subsequent cultural disillusionment with left-wing radicalism—will find all this irritating, if not infuriating. There are, after all, good reasons that Marxist political economy fell out of fashion. And it’s true some of the leftmost communist revivalists are disturbingly blithe about the past; at times one senses a self-satisfied avant-garde delight in making outrageous pronouncements. In The Communist Horizon, part of Verso’s Pocket Communism series, the newly fashionable academic Jodi Dean, a professor of Political Science at Hobart and William Smith Colleges, airily dismisses the “circumscribed imaginary” in which “communism as Stalinism is linked to authoritarianism, prison camps, and the inadmissibility of criticism,” as if such links are a neoliberal fabrication.

In general, though, the young critics who are engaging with Marx are not so glib. Dissent excoriated The Communist Horizon, and before it was even published, Jacobin took on Dean’s talk of the same name. Sunkara addressed Dean’s contemptuous description of liberals: "[S]he suggests we single out those who 'think any evocation of communism should come with qualifications, apologies, condemnations of past excess.'... [W]hat she presents as a good way to identify liberals, is actually a good test of sanity. Here's a general rule: make no argument in New York that you wouldn’t make in Warsaw."

These are not, then, apologists for authoritarianism. Rather, they insist that the terrible regimes of the 20th century do not obviate Marx’s essential insights, and that, with the U.S.S.R. gone, it should be possible to apply those insights without a lot of anti-Stalinist throat-clearing.

After all, if the Soviet example casts a pall on Marxism, it’s hardly an advertisement for unbridled capitalism, either. n+1 cofounder Keith Gessen left the Soviet Union as a child, and it was returning there in 1995 at age 20 that pushed him leftward. “I very much went over there as a kind of young liberal who believed that Russia was transitioning, with a lot of problems, to a liberal capitalist state and that was the right way for it to go,” he says. “What I saw there was that property relations were actually based on violence, that the so-called energies of the Russian people that were being liberated after communism were energies to cheat one another and lie to one another and kill one another.”

Back then, one could at least look to the United States to see capitalism triumphant. That, clearly, is no longer the case. After the financial crisis, “you didn’t need to be Karl Marx to see that people were getting kicked out of their homes,” says Gessen. And privileged young people—particularly the kind of who are inclined to read and write essays about political theory—haven’t just been spectators to immiseration. Graduating with student debt loads that make them feel like indentured servants, they’ve had a far harder time than their predecessors finding decent jobs in academia, publishing, or even that old standby law and are thus denied the bourgeois emollients that have helped past generations of college radicals reconcile themselves to the status quo.

If there were a Republican president, they might see hope in electing a Democrat. But Barack Obama already won, and it didn’t help. “If you win something and you are disappointed with the results, in a way that’s more politicizing than just losing and losing and losing over again,” says Sunkara.

So, they’re hungry for a theory that offers a thoroughgoing critique of the system, not just a way to ameliorate its excesses. “[F]or at least a generation now, not only the broad public but many radical themselves have felt uncertain that the left possessed a basic analysis of contemporary capitalism, let alone a program for its replacement,” Kunkel writes in the introduction to Utopia or Bust. Reaching back into the canon, he and others have found, at least, the former.

As for the latter? In the absence of a clear programmatic goal, never mind a party or organization, the new Marxism has a certain weightlessness. No one seems to have even a wisp of an answer to the perennial question: What is to be done? That very openness, though, gives new energy to the work of young thinkers and writers who feel themselves on yet another hinge of history. For intellectuals, this has always been a consolation of crisis: It frees one from the sort of existential lassitude Kunkel described in Indecision, making ideas feel urgent and important.

Kunkel himself is trying to formulate a vision of what might come next in a book he plans to publish after Utopia or Bust. “It’s meant to be a sketch—not a blueprint—of a post-capitalist future,” he told me by Skype from his apartment in Buenos Aires. “What it tries to do is to describe capitalism as something that, as it grew, added one feature after another. And therefore it’s easier to imagine disassembling. If we can picture how it was put together, it’s easier for us to imagine how it might be taken apart.”

This is a significantly more ambitious goal than that of writing another well-received novel. It might seem grandiose, but it also suggests a cultural optimism that’s otherwise in short supply these days. “It was easy to feel in the nineties that everyone knew what was going to happen,” says Kunkel. “Many people thought it already has happened, and now we just wait for McDonalds franchises and liberalized capital markets to spread across the globe.” Now, looking at the Marxist resurgence among young people, he says, “It’s very exciting to me. In a strange way, it also makes me want to live a long time, knock on wood, because I’d like to see what’s going to happen.”

Michelle Goldberg é uma escritora colaboradora sênior do The Nation. Ela é autora, mais recentemente, de The Goddess Pose: The Audacious Life of Indra Devi, the Woman Who Helped Bring Yoga to the West. Seu feed do Twitter é @michelleinbklyn.

10 de outubro de 2013

Além das greves na indústria de Fast Food

Por que a esquerda não deve desqualificar greves contra baixos salários.

Trish Kahle

Créditos: Steve Rhodes/Flickr.

Há pouco tempo, num dia frio e chuvoso de março, enquanto juntava carros de compras no parque de estacionamento da Whole Foods de Chicago, onde trabalho, um dos meus patrões, parado ao pé da porta, afirmou sem qualquer cerimónia: “Este tempo é mesmo chato”. Eu balancei a cabeça, laconicamente. “Mas o que é que se pode fazer?”, continuou rindo, “Uma greve?”.

Fazia sentido que ele considerasse absurda a ideia de entrarmos em greve – as greves nunca atingiram um nível de registo tão baixo, sendo praticamente inexistentes em estabelecimentos comerciais como o meu; e quase nenhum dos meus colegas alguma vez pertenceu a um sindicato. Porém, um mês depois, entramos em greve. Dez trabalhadores da Whole Foods abandonaram o seu posto de trabalho em protesto contra uma política de atendimento draconiana e contra salários de pobreza, juntando-se a 200 trabalhadores da restauração e do comércio de Chicago e a milhares em todo o país.

Sujeitos a baixos salários, os trabalhadores da restauração e do comércio assumiram, durante este Verão, um protagonismo no seio do movimento sindical norte-americano. A Campanha pelos 15 (FF15 – Fight For15) tornou-se pública em novembro do ano passado, tendo eclodido ao longo da primavera deste ano, quando trabalhadores abandonaram os seus empregos em Nova Iorque e depois em Chicago, St. Louis, Milwaukee, Detroit e Seatle. Sete cidades organizaram uma segunda semana de greves de um dia em finais do mês de julho. Então, a 29 de agosto, cerca de 62 cidades e milhares de trabalhadores uniram-se em torno de duas principais reivindicações: salário mínimo de 15 dólares à hora e o direito à organização sindical sem quaisquer represálias.

Somos parte de uma geração de trabalhadores à descoberta das nossas armas mais poderosas: o sindicato e a greve. Em plena era da austeridade, levantámo-nos. Fizemo-lo com o apoio de um sindicato que, no passado, foi alvo de muitos ataques (certeiros) à esquerda pela sua colaboração próxima com o capital. Apesar da sua história recente ter ficado marcada pela fuga ao confronto, a União Internacional dos Empregados dos Serviços (SEIU) ajudou a impulsionar uma eventual onda de militância entre os trabalhadores precários do século XXI – uma onda que, caso continue a expandir-se, poderá ultrapassar as expectativas de qualquer um.

***

Muitos de nós nunca pensaram ficar presos a um trabalho mal pago. Ao longo da minha vida, disseram-me que, se fosse para a faculdade e obtivesse uma licenciatura, viria a ter um melhor nível de vida do que até agora havia tido. Fui para a faculdade com uma bolsa, tendo pago os meus custos de vida através de trabalho em quintas do nordeste californiano. Acabei a licenciatura exatamente no período de começo da recessão, sem quaisquer perspetivas de um salário minimamente decente ou de contactos de empresas.

Após a procura de trabalho na região, consegui um emprego enquanto técnico de veterinária. Apesar de, aparentemente, constituir um trabalho “qualificado”, recebi apenas 8,5 dólares à hora e 25 dólares por semana. Fui despedido menos de seis meses depois. Durante mais de um ano, o único emprego que encontrei foi um temporário, como paisagista, com um salário de 10 dólares à hora, sem horas garantidas, sem equipamento de segurança e com habituais roubos no salário.

Candidatei-me a toda a empresa de comércio e de restauração na região, bem como aos correios e à UPS, onde nem me chamaram para trabalho temporário nas férias. Estava desesperado – e não era o único a estar. Com a inauguração da sua nova loja em Greensboro (Carolina do Norte), a Whole Foods anunciou 100 vagas de empregos disponíveis. Mais de 3000 pessoas submeteram candidaturas – um número constantemente evocado pela administração ao longo da formação. A mensagem era clara: devíamo-nos considerar sortudos por ter emprego.

Os dois anos após a conclusão da licenciatura foram um autêntico murro no estômago. Tornou-se cada vez mais evidente a impossibilidade de vir a arranjar um bom emprego. Não houve gestor responsável pelo recrutamento que não dissesse que era sobrequalificado, uma vez que era licenciado, ou subqualificado, uma vez que tinha apenas uma graduação. Quando acabei a licenciatura, considerei tornar-me carteiro. Ao invés, regressei à universidade e ingressei no doutoramento. Claro que os empregos na academia estão a desaparecer, à semelhança dos empregos na função pública. Mas, ao menos, escrever uma dissertação dar-me-ia algum tempo.

No entanto, mesmo após a inscrição num programa de graduação de uma das mais prestigiadas universidades, fui obrigado a safar-me. Hoje, no meu segundo ano, trabalho na Whole Foods, em mais dois empregos enquanto assistente de investigação e faço uns biscates como trabalhador de mudanças do departamento de ciências sociais. Por mais horas que trabalhe, emprego estável e salários minimamente decentes parecem estar fora do meu alcance.

Per si, a minha situação poderá ser descrita enquanto uma infortuna causalidade. Mas a minha história é comum entre a juventude norte-americana. Alguns designam a minha geração de «mileurista»[1], mas considero que «abandonada» seria um termo mais exato: a mais bem qualificada geração da história global, uma geração sobrecarregada com uma devastadora dívida educativa, com pouco ou nenhum acesso a um salário e emprego dignos e com poucas perspetivas de algo melhor no futuro.

E, como é óbvio, não se trata apenas de pessoas com vintes ou trinta e tais sem filhos, empregados em trabalhos como o meu. Muitos dos meus colegas têm filhos ou pessoas sob sua dependência. Se sobreviver com salários baixos já é extremamente difícil para pessoas sem filhos, é praticamente impossível para os meus colegas que são pais, em particular mães solteiras – muitas das quais confrontadas com cortes em programas sociais, como os das senhas de alimentação, Medicaid [2], segurança social e na educação.

Alguns dos meus camaradas sindicais trabalham na restauração e no comércio desde que sou vivo. Um trabalhador da McDonald´s, membro do sindicato, trabalha na empresa há 27 anos. Após uma geração a trabalhar, ele recebe menos do que 9 dólares à hora. Ele nunca se poderá reformar.

***

Salários de pobreza, assédio sexual comum, racismo no local de trabalho e o total desconhecimento de direitos ou ausência de segurança no trabalho fizeram com que valesse a pena correr o risco da organização sindical. Condições de trabalho atrozes e poucas perspetivas de saída da indústria ajudam a explicar a razão pela qual o FF15 cresceu tão rapidamente. Há, no entanto, uma terceira causa importante: o regresso da luta à imaginação popular.

O período de dezembro de 2010 a novembro de 2011 foi repleto de focos de resistência por parte dos «abandonados»: pelo mundo fora ocorreram protestos estudantis contra o aumento de propinas no Reino Unido, revoluções na Tunísia e no Egito; por cá, a reação contra o governador Scott Walker no Wisconsin e o movimento Occupy pouco tempo depois. Milhares de pessoas, na maioria jovens, erguiam-se contra a desigualdade, com sinais de um alastramento gradual da radicalização entre a população norte-americana, em particular nas suas camadas jovens. Contudo, a indignação contra a desigualdade económico-social ainda não havia tido expressão nos locais de trabalho.

Em setembro de 2012, o sindicato dos professores de Chicago deu um exemplo relevante. Os trabalhadores de Chicago pela FF15, que seis meses mais tarde abandonariam às centenas os seus postos de trabalho, estavam atentos aos professores. Vimo-los reivindicar não só melhores salários mas igualmente melhores condições de trabalho. Vimo-los confrontar o perverso racismo de Chicago, incorporado no sistema de apartheid educativo. E vimo-los fazer tudo isso por si mesmos: pela organização nos seus locais de trabalho, pelo debate democrático em torno dos ditames do seu contrato e das táticas grevistas. Vimos o poder de solidariedade nos pais que recusavam mandar os seus filhos atravessar os piquetes de greve dos professores. À medida que o centro da cidade, no primeiro dia de greve, era invadido por professores, vimos que o faziam em nome de todos os trabalhadores. Meses mais tarde, quando o Sindicato dos Professores de Chicago (CTU) foi mencionado numa das nossas reuniões organizativas, os trabalhadores presentes levantaram-se em aplausos.

Após a greve do CTU, as pessoas estavam prontas a organizar-se. Mas, principalmente no período inicial da campanha, não nos podíamos organizar sozinhos. Para grande parte de nós, a ideia de optar pela ação coletiva era aterrorizadora. Não tínhamos uma grande tradição de militância sindical no nosso local de trabalho ou entre as nossas famílias na qual nos basear.

E, como é óbvio, existia a real possibilidade de sermos todos despedidos, à semelhança de milhares de trabalhadores norte-americanos que todos os anos ensaiam a organização de sindicatos. Os sindicatos e seus observadores tinham consciência da potencialidade da nossa indústria em termos de novos participantes. Mas, mesmo perante o declínio da sindicalização nas últimas décadas – correspondendo atualmente ao nível mais baixo dos últimos 100 anos – as organizações sindicais revelaram-se incapazes de organizar iniciativas de sindicalização direcionadas à restauração e ao comércio a uma escala nacional.

O SEIU indicou o caminho. Em Chicago, a FF15 foi apoiada pelas secções locais da SEIU e por outros grupos comunitários defensores dos direitos dos trabalhadores. Ao invés de se focar numa única loja ou numa cadeia particular, a FF15 adotou uma posição mais metropolitana, organizando todos os trabalhadores da restauração e do comércio num só sindicato. Caso a campanha tivesse sido desenvolvida loja por loja, ter-se-ia permitido aos patrões isolarem-nos.

A organização metropolitana produziu resultados tangíveis. Depois da greve de dia 24 de abril, os organizadores da campanha em Chicago perguntaram aos trabalhadores se estariam interessados em entrar num autocarro e passar 5 horas em viagem até St. Louis ou Milwaukee, com o objetivo de prestar solidariedade aos trabalhadores, com greve marcada para a semana seguinte. As mãos ergueram-se. Algumas pessoas lamentaram ter turnos marcados para aquele dia. Na frente da sala, um trabalhador afroamericano de meia-idade, empregado na McDonald´s, levantou-se e afirmou: “Vamos entrar de novo em greve. Assim, podemos todos ir”.

Na reunião seguinte, uma mulher levantou-se e relatou como o seu patrão a havia sujeitado a insultos xenófobos, ameaçando despedi-la por ter faltado ao trabalho durante a sua hospitalização. Um dos organizadores perguntou se havia algum interessado em participar num comité que a acompanhasse ao trabalho, de modo a garantir que o seu patrão não a despedisse. “Apenas necessitamos de um par de pessoas”, acrescentou. Porém, quase quinze mãos surgiram no ar. Toda a gente queria juntar-se à sua camarada sindical.

Na minha loja, quando enfrentei uma ação disciplinar por ter violado a política de atendimento contra o qual nos estávamos a organizar, exigi representação sindical na reunião disciplinar, encontrando-se os meus colegas preparados a agir caso me tentassem despedir. A administração recuou e a reunião nunca chegou a ter lugar. Quando o trabalhador da Whole Foods de uma outra loja foi suspenso após ter feito greve (devido a um incidente que ocorreu duas semanas antes da greve sem qualquer ação disciplinar à altura), começamos a organizar-nos em defesa do seu emprego, tendo ela sido reintegrada e o seu salário restituído.

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O ligeiro sabor das vitórias conseguidas através da luta transformou o modo como as pessoas se encaram a si próprias e ao seu poder no trabalho. Isto alterou as nossas relações com os colegas e fortaleceu a crença de que muito mais é possível. No entanto, alguns ativistas sindicais e de esquerda demonstram preocupações crescentes com o potencial dos movimentos e as limitações da sua estratégia – em particular, talvez, em relação à história da SEIU, feita da assinatura de contratos capitulares, de acordos com o patronato que diminuem os empregos disponíveis e, mais recentemente, nos conflitos em torno da questão da saúde na Califórnia. Outros estão preocupados com o facto dos trabalhadores não deterem o controlo da situação. Outros ainda expressam alguma apreensão relativamente ao facto de a FF15 constituir mais uma campanha de relações públicas do que uma verdadeira dinâmica organizativa.

O comprometimento e envolvimento da SEIU nesta campanha revelaram-se indispensáveis em termos dos recursos organizacionais oferecidos, da proteção legal e dos serviços aos quais não teríamos acesso de outra forma, e da relação direta com o movimento sindical mais lato e com os grupos comunitários. Por mais que o SEIU tenha cometido erros no passado – bem reais e que devem ser considerados – ele merece algum crédito por ter conduzido campanhas ousadas. Isto, enquanto muitos outros sindicatos estão em retirada ou a fingir de mortos perante leis de trabalho e outro tipo de legislação e campanha antissindicais.

A direção do SEIU está a apelar ao contínuo e escalado recurso a greves, ocupações e ação direta enquanto meios de resolução dos problemas dos trabalhadores. Eles encorajam os trabalhadores a organizarem-se nos locais de trabalhos. Eles confrontam as questões do racismo e do assédio sexual. Tal representa, sem sombra de dúvidas, algo de positivo, capaz de ajudar na revitalização e transformação do movimento dos trabalhadores.

Existe, certamente, um aspeto do movimento mais diretamente voltado para as relações públicas. No entanto, a secundarização de uma campanha com base neste momento é demasiado cínica. A agressiva campanha mediática desenvolvida pelo sindicato levou a luta a locais onde os organizadores nunca haviam estado, inclusivamente ao Sul e a áreas rurais. Ela tornou a nossa luta, e muitas outras lutas em todo o país, bem conhecidas entre o público mais mainstream. A «campanha de relações públicas» não funciona de forma isolada, mas ligada a um projeto real de construção do movimento.

Estaremos perante uma campanha gerida pelos próprios trabalhadores, os quais a conceberam e a conduziram por si sós? Ainda não. Mas é graças à participação neste movimento que, pela primeira vez na vida, os trabalhadores estão a tornar-se dirigentes sindicais.

No contexto de uma crise económica que dura há cinco anos, o SEIU abriu um espaço. Este poderá ter potencialidades bem para lá do imaginado pelos organizadores e pelos próprios trabalhadores. A campanha pode ir para lá da contenção ou do modelo com que o sindicato a iniciou. A FF15 é um movimento social sindical ainda em embrião, contendo em si o potencial de clarificar as questões sobre luta de classes levantadas pelo Occupy. Poderá voltar a ligar as lutas nos locais de trabalho às conduzidas nas comunidades. Poderá impulsionar um maior poder dos trabalhadores nas empresas, mas igualmente revindicar uma maior proteção de sindicatos e trabalhadores por parte das instituições de governo.

Os mais radicais estão numa posição que lhes permite construir este movimento através da recriação daquela que é tradição do sindicalismo revolucionário. Podemos, e já o fizemos, desempenhar um papel importante na formação desta campanha a partir da base – em Chicago, por exemplo, ajudámos a iniciar uma convenção de mulheres e concebemos e realizámos cursos de trabalhadores em torno da organização e da defesa face à retaliação dos patrões.

A Esquerda necessita de ir para lá da mera conceptualização de sindicatos como o SEIU como monólitos incapazes de mudança. Mudá-los é difícil, mas não impossível. A raiva contra as traições e a burocracia de um sindicalismo mais empresarial não nos deve levar a encarar os sindicatos como organizações completamente e inevitavelmente divorciadas dos seus membros. Ao invés, deverá tornar evidente a necessidade de organizar os novos trabalhadores e reconstruir os sindicatos desde baixo.

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Não obstante a atenção que ganhou, este movimento ainda se encontra na sua infância. Deve ser construído com base em fortes redes sociais no trabalho e nas comunidades. Quanto mais revolucionários envolvidos no projeto, mais forte ele será. Este verão entrámos em greve por medidas bastante concretas; mas também em defesa de dignidade, respeito e poder. O nosso movimento tem de se constituir de forma concreta, exigindo o tangível e preparando o terreno para uma nova geração de militantes sindicais. Porque a militância funciona. Os meus patrões não me assustam mais caso resolva entrar em greve de novo. Após a greve consegui um aumento – e mais de uma dúzia de colegas a perguntarem-me como aderir ao sindicato.

Sobre o autor

Trish Kahle é um estudante de graduação em história na Universidade de Chicago e membro do Comitê Organizador dos Trabalhadores de Chicago.

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