27 de agosto de 2014

Nova rebelião laboral na China

A militância dos trabalhadores mostrou falhas quer no plano econômico da China quer nos sindicatos oficiais do Partido Comunista.

Eli Friedman



Tradução / Durante anos, uma forte aliança entre o capital e os mais baixos níveis do estado chinês significou que as greves eram tratadas ou com repressão policial ou com um sistema de mediação ad hoc entre o sindicato e os funcionários governamentais que se concentrava quase exclusivamente em retomar a produção sem ter em conta os resultados para os trabalhadores.

Mas por volta de 2010, o governo central chinês e as autoridades provinciais de Guangdong não só estavam prontos para procurar um novo modelo de acumulação no delta do Rio das Pérolas como estavam dispostos a (indiretamente) aliar-se aos trabalhadores revoltosos para realizar este objectivo.

Tal aliança, conquanto tenha sido condicional e efémera, surgiu no decurso da greve da Nanhai Honda que, por sua vez, permitiu aos grevistas alcançar ganhos econômicos e começar a desenvolver objetivos políticos. Em grande parte por causa desta pequena abertura política, o carácter do protesto na onda grevista de 2010 mostrou algumas tendências não habituais ( senão mesmo sem precedentes), com significado para o facto de que as exigências tinham uma natureza mais ofensiva do que defensiva.

No entanto, mesmo embora os trabalhadores da Honda tenham tido importantes ganhos econômicos, todos os níveis do estado e dos sindicatos permanecem vigilantes quanto ao desenvolvimento das bases autônomas do poder operário. Embora tenham ocorrido ganhos econômicos na onda grevista de 2010, persiste o desapontamento dos trabalhadores com os sindicatos de empresas ligadas ao estado.

A Explosão na Honda

A cadeia de produção da Honda na China consiste num complicado sistema de propriedade. A empresa mais importante é a Guangzhou Honda, uma aliança (joint venture) a 50% com a Guangzhou Automobile Group Corporation detida pelo estado, onde a maioria das unidades é produzida. Outras fábricas de montagem incluem a Honda Automobile (China) que produz para os mercados estrangeiros e a joint venture Dongfeng Honda localizada em Wuhan.

Estas fábricas são servidas por uma variedade de fabricantes de peças incluindo a Nanhai Honda, totalmente detida por japoneses. Arrancando com a produção em Março de 2007 com um investimento inicial de $98 milhões de dólares americanos, a companhia foi a quarta fábrica de produção de transmissões automáticas integradas da Honda, no mundo. Para além de produzir transmissões, a fábrica também faz eixos de transmissão e barras de ligação para os motores.

Em parte porque a Honda acreditava que era altamente improvável paragens no trabalho na autoritária China, a fábrica Nanhai foi estabelecida como o único fornecedor de diversas peças chave para o funcionamento de toda a China. Produzindo a partir da China em vez de do Japão ou do sudeste asiático, a Honda podia reduzir custos, poupando no transporte e na mão-de-obra.

Em parte por causa da posição chave que a produção automóvel detém na economia, o governo deu primazia a manter boas relações laborais neste sector. Em resultado disso, todas as fábricas de montagem e de produção de peças da Honda em Guangdong, estabeleceram sindicatos. O sindicato na Guangzhou Honda tinha recebido vários prémios oficiais pelo seu bom trabalho e frequentemente recebia a visita de delegações de sindicalistas estrangeiros.

Mas havia limites rígidos até onde mesmo este sindicato modelo podia apoiar os seus trabalhadores. Durante um almoço em Dezembro de 2008 entre o presidente da Guangzhou Honda e dirigentes sindicais dos EUA, a conversa virou-se para a cooperação internacional entre sindicatos do sector automóvel. O presidente do sindicato disse que tinha visitado o Japão antes para trocar opiniões com outros representantes dos sindicatos automóveis e que sentia que tinham muito em comum.

Aludindo às dificuldades que as fábricas automóveis americanas enfrentavam na altura, gracejava que tinha dito ao seu homólogo japonês, “Temos um sindicato forte, como vocês. Mas não queremos ser demasiado fortes; veja só todos os problemas que eles têm nos Estados Unidos!”

De facto, sucedeu que a verdadeira fraqueza do sindicato da fábrica fornecedora de Nanhai tornou impossível que as reivindicações dos trabalhadores fossem ouvidas sem o recurso à greve; não apenas a fábrica de Nanhai, mas, em consequênca, o funcionamento da Honda em toda a China.

Embora os trabalhadores em Nanhai há muito estivessem descontentes com os salários e tivessem discutido entrarem em greve, nenhum dos trabalhadores sabia que Tan Guocheng ia iniciar a greve. Uma semana antes da greve, Tan encontrou-se com quinze trabalhadores do departamento de montagem onde trabalhava; antes, “só tinham tido conversas ocasionais sobre o autocarro (shuttle bus) que estavam a produzir.”

Um trabalhador deste departamento disse que a ideia tinha sido discutida, mas que ninguém a queria liderar. Em entrevistas separadas, trabalhadores de outros departamentos confirmaram que não tinham ouvido nada sobre a greve até ela ter começado. Mas de acordo com Tan, mais de vinte pessoas, a maioria de Hunan, estavam dentro do plano na altura em que ele foi posto a andar.

Na manhã de 17 de Maio, logo que a produção começou à hora habitual, às 7:50, Tan acionou o botão de paragem de emergência e as duas linhas de produção no departamento de montagem foram paradas. Tan e o co-organizador Xiao gritaram para cada linha de montagem: “Os nossos salários são tão baixos, vamos parar o trabalho!”

Para a maioria dos cerca de dois mil trabalhadores da fábrica, esta foi a primeira vez que ouviram falar da greve. Mesmo um trabalhador que era do departamento de montagem e tinha ouvido falar da possibilidade da greve, foi apanhado desprevenido: “Não sabia que a greve ia acontecer… Não estava lá na altura [porque tinha ido à casa de banho] Quando saí da casa de banho vi que não havia ninguém. Fiquei parado a olhar: ‘Que é isto, não se trabalha?’ ”

À medida que os trabalhadores do departamento de montagem se deslocavam através das instalações, gritavam para os seus colegas pararem o trabalho e juntarem-se-lhes para lutarem por salários mais altos. Inicialmente, tiveram digamos que uma recepção fria nos outros sectores e finalmente iniciaram um sit-in em frente da fábrica com apenas cerca de cinquenta trabalhadores.

Mas dada a posição crítica do sector da montagem no processo de produção, os outros departamentos foram forçados a fechar numa questão de horas. Nessa tarde, a direcção tinha colocado caixas de sugestões e suplicado aos trabalhadores que retomassem o trabalho, prometendo-lhes que iriam considerar a sua reivindicação de melhores salários e dar uma resposta completa dentro de quatro dias. Talvez por causa do seu número relativamente pequeno, os grevistas acreditaram na palavra da direcção e a produção foi retomada nesse mesmo dia.

A 20 de Maio, a direcção, os funcionários governamentais, os funcionários sindicais e os representantes dos trabalhadores iniciaram as negociações. A exigência dos trabalhadores nesta altura era simplesmente aumentar todos os salários em 800 RMB. Entretanto, os grevistas voltaram ao trabalho, embora a produção tenha reduzido muito durante estes dias.

No dia seguinte, as negociações foram interrompidas e a greve continuou. No fim de semana, os organizadores continuaram a fazer contactos e o número de grevistas em frente da fábrica subiu para cima de 300. A 22 de Maio a direcção anunciou que Tan e Xiao, os líderes iniciais da greve, tinham sido despedidos.

Mas com esta tentativa de repressão apenas lhes saiu o tiro pela culatra, porque no dia seguinte a greve ficou mais forte. Agora, preocupados com o seu sustento, os trabalhadores cobriam os rostos com máscaras cirúrgicas, mas continuaram a resistir.

Ao longo deste processo, o sindicato da empresa alternou entre a passividade e a hostilidade. Os trabalhadores queixaram-se que durante a sessão de negociação, o representante do sindicato não disse nada e apenas se limitou a observar. Quando a greve começou, uma equipa de investigadores do departamento laboral do distrito e o sindicato foram enviados para a fábrica.

Não deixando dúvidas quanto ao lado em que estavam da luta, os funcionários anunciaram: “De acordo com as normas relevantes, não encontrámos nada que configure que a fábrica esteja a violar quaisquer leis.”

Um trabalhador que foi seleccionado como representante estava muito desapontado com o comportamento do presidente do sindicato da empresa, Wu Youhe, na primeira ronda de negociações:

[O presidente do sindicato da empresa] convidou um advogado [para a primeira ronda de negociações]. O advogado disse que a nossa greve é ilegal. Ele [O presidente do sindicato] não tinha opiniões próprias e não tomava decisões. Perguntava sempre ao director geral o que havia de fazer. No fundo, ele é presidente e não é controlado pela companhia; tem o seu poder. Mas para ele, tudo tinha de passar pelo director geral e ajudava o director geral a refutar aquilo que nós dizíamos.

A 24 de Maio, os representantes dos trabalhadores foram convencidos a voltar à mesa das negociações numa sessão presidida pelo presidente do sindicato de empresa. Continuando a tentar servir como intermediário, o presidente do sindicato tentou persuadir os trabalhadores a aceitar a oferta da direcção de um aumento de 55 RMB no subsídio de alimentação – muito longe dos 800 RMB que eles reivindicavam.

Esta ineficácia não estava perdida nos trabalhadores, comentando um grevista: “O sindicato disse que defendia os nossos interesses. Disseram que nós, empregados, podíamos entregar-lhes quaisquer reivindicações, que eles as transmitiriam à direcção e que resolveriam as nossas questões. Mas não fizeram nada disso. “

Os grevistas recusaram a oferta da direcção a 24 de Maio e a situação subiu de tom. A 25 de Maio as coisas ficaram muito mais tensas quando todas as quatro fábricas de montagem da Honda na China estavam completamente paradas por causa da falta de peças.

Contando originalmente com uma força de trabalho disciplinada, a Honda só tinha um fornecedor de transmissões no país e todas as quatro fábricas de montagem na China estavam altamente dependentes da Nanhai. Calcula-se que as perdas diárias combinadas das cinco fábricas foram de 240 milhões RMB.

A direcção cedeu, produzindo uma segunda oferta de aumentos salariais a 26 de Maio. Esta proposta apontava para o aumento dos salários dos trabalhadores habituais em cerca de 200 RMB por mês e 155 em subsídios para despesas e um aumento do salário de 477 para contratados que estivessem na fábrica há mais de três meses. Mas os trabalhadores também rejeitaram esta oferta e a greve continuou.

Neste ponto, os trabalhadores formalizaram as suas reivindicações. A acrescentar à primeira exigência de aumento de salários para todos os trabalhadores em 800 RMB, reivindicavam também que os trabalhadores despedidos fossem readmitidos, que não houvesse castigos contra os grevistas e que o sindicato da empresa fosse “reorganizado” (chongzheng). De acordo com alguns grevistas, a exigência de reorganização do sindicato provinha do que tinham visto do falhanço do sindicato em representar activamente os trabalhadores nas anteriores reuniões de negociação.

Com as perdas a subirem, a direcção ficou desesperada e fez o máximo para tentar quebrar a luta e a unidade dos grevistas. O ataque mais directo foi a 28 de Maio quando os directores tentaram forçar os trabalhadores a assinar um compromisso de que “nunca mais iriam dirigir, organizar ou participar em diminuição da produção, paragens no trabalho ou greves.”

Mas esta táctica produziu o efeito contrário na medida em que praticamente ninguém concordou em assiná-lo. Um trabalhador disse: “logo que o vi [o acordo] deitei-o fora. Não vamos assiná-lo.” Um grupo de trabalhadoras disse que “ninguém mexeu uma mão.” Quando lhe perguntaram se tinham medo de recusar a exigência da direcção, uma trabalhadora insistiu: “Ninguém estava com medo! Quem havia de estar? Se eles quiserem despedir-nos, então vão ter que despedir-nos a todas!”

A greve estava a entrar numa fase decisiva. Provavelmente já a greve mais longa alguma vez feita por trabalhadores imigrantes na era da reforma, a situação tinha-se tornado uma crise política para o estado local. Apesar dos crescentes custos económicos e políticos, os acontecimentos de 31 de Maio apanharam toda a gente de surpresa.

O Sindicato como fura greves

Quando os trabalhadores chegaram à fábrica nessa manhã, foram informados que cada secção teria reuniões para discutir a resolução da greve. Quando os trabalhadores esperavam em várias salas do principal edifício da administração, apareceu um grande contingente de carrinhas e autocarros.

Os veículos tinham dúzias de homens, todos eles com chapéus amarelos e com emblemas onde se lia “Federação de Sindicatos de Shishan”, que é a organização sindical imediatamente subordinada do ramo do sindicato da empresa.

Pouco depois, o departamento de montagem, fundamental para reanimar a produção, encontrou-se com o director geral da fábrica e fez uma nova oferta para um aumento salarial. Embora ainda insatisfeitos com a nova oferta da direcção, os trabalhadores foram persuadidos a voltar às suas linhas de montagem. Começaram a surgir indicações de que a unidade dos grevistas se desmoronava, pois alguns departamentos começaram a ligar as suas linhas de montagem. Indivíduos do sindicato dispersaram-se por cada um dos departamentos e encorajaram os trabalhadores a retomar imediatamente a produção.

Quando alguns trabalhadores do departamento de montagem se deslocaram para regressar à área em frente da fábrica onde se tinham manifestado durante as duas últimas semanas, surgiu um confronto com o grupo do sindicato. Tal como foi confirmado de múltiplas fontes independentes, o pessoal do sindicato começou a filmar os trabalhadores e exigiu que regressassem à fábrica e parassem com a greve.

Rapidamente se criou uma situação de tensão que em breve deu azo a um confronto físico durante o qual vários trabalhadores foram agredidos por indivíduos do sindicato. Isto enfureceu os trabalhadores e uma greve que parecia estar a perder gás rapidamente ganhou força.

Trabalhadores de outros departamentos que tinham retomado a produção correram para o local logo que tiveram notícias da violência e rapidamente se juntou uma grande multidão. Ocorreu um novo confronto físico e, desta vez, o lado do sindicato foi ainda mais violento do que antes, com vários trabalhadores a sofrer ligeiros ferimentos. Os agressores regressaram rapidamente aos seus veículos e recusaram-se a sair.

Neste ponto, o governo decidiu que as coisas tinham ido longe demais e tomou medidas para resolver o conflito. A polícia anti-motim foi chamada, embora nunca se tenha envolvido com os trabalhadores. Além disso, as autoridades fizeram um cordão de protecção exterior à fábrica de modo a impedir a entrada a quem quer que fosse. Quaisquer que fossem as agências governamentais que tivessem apoiado a greve pacífica não estavam interessadas em mais confrontos violentos nem na possibilidade de que os grevistas pudessem deixar os campos da produção.

É certo que a maior parte dos que vinham substituir os grevistas não eram de facto funcionários sindicais. A primeira coisa referida por muitos trabalhadores foi que parecia absurdo que a federação ao nível municipal com apenas alguns membros pagos pudesse recrutar tantos funcionários de outras sucursais sindicais. Um trabalhador envolvido na contenda disse que alguns dos furagreves (todos homens) tinham brincos e tatuagens, coisas que os funcionários sindicais dificilmente exibiriam.

Mas se a maior parte dos capangas não eram de facto funcionários sindicais, não se pode, no entanto, negar que a federação sindical do distrito teve um papel na organização dos furagreves uma questão que se tornou óbvia numa carta que escreveu aos trabalhadores. Um trabalhador especializado do departamento de montagem foi frontal na sua apreciação: “Claro que foi ideia do sindicato. Quem mais podia ter tido tão estúpida ideia? Só os sindicatos chineses podiam ter pensado nisto.” Não é, contudo, claro até que ponto a federação sindical estava a agir a pedido da direcção ou se estava a executar uma acção independente.

Quando os trabalhadores receberam no dia seguinte uma carta aberta das Federações dos Sindicatos do Município de Shishan e do Distrito de Nanhai, os dirigentes sindicais locais deram uma desculpa morna e não denunciaram a violência que tinha ocorrido no dia anterior, nem tentaram negar que tinham organizado os furagreves:

Ontem, o sindicato participou em reuniões de mediação entre os trabalhadores e a direcção da Honda. Porque uma parte dos empregados da Honda recusou regressar ao trabalho, a produção da fábrica foi severamente reduzida. No processo de discussão com cerca de quarenta empregados, a certa altura ocorreram alguns malentendidos e desacordos verbais de ambas as partes. 
Devido ao estado emocional impulsivo de alguns dos empregados, ocorreu um conflito físico entre alguns empregados e representantes do sindicato. Este incidente deixou uma impressão negativa nos empregados. Uma parte destes empregados, depois de terem sabido do incidente, parece terem interpretado erradamente as acções do sindicato como estando ao lado da direcção. O incidente de ontem deixou-nos completamente chocados. Se as pessoas sentem que alguns dos métodos usados no incidente de ontem foram um pouco difíceis de aceitar, pedimos desculpas. 
O comportamento do acima mencionado grupo de perto de quarenta trabalhadores já prejudicou os interesses da maioria dos empregados. Além disso, tal comportamento prejudica a produção da fábrica. O facto de o sindicato se ter levantado e admoestado estes trabalhadores fá-lo totalmente pelo interesse da maioria dos empregados. É responsabilidade do sindicato! 
Seria insensato que os trabalhadores procedessem de modo a irem contra os seus próprios interesses e de outros, por actos impulsivos. Alguns empregados estão preocupados que os seus representantes, que querem defendê-los e participar em discussões com a direcção,venham a ter mais tarde represálias por parte da direcção. Trata-se de um malentendido.

A carta prosseguiu admoestando os trabalhadores por recusarem aceitar a oferta que a direcção tinha feito. Numa última tentativa para controlar os estragos, terminava dizendo, “Por favor, confiem no sindicato. Confiem em cada nível de funcionários do partido e do governo. Iremos sem dúvida alguma defender a justiça.”

A carta das federações dos sindicatos de Shishan e Nanhai não agradou aos grevistas. Como afirmou um trabalhador activista, “A carta de desculpas dos sindicatos não foi nenhuma carta de pedido de desculpas e por isso nós ficámos muito zangados.”

Uma carta aberta dos representantes dos trabalhadores que apareceu dois dias depois da carta de desculpas do sindicato foi desafiadora: “O sindicato deve proteger os direitos colectivos e os interesses dos trabalhadores e conduzi-los na greve. Mas até agora, têm andado à procura de desculpas para a violência do sindicato contra os trabalhadores em greve e nós condenamos isso violentamente.”

Ainda, a carta continuava exprimindo “extrema raiva” por o sindicato reclamar que tinha sido o grande trabalho do sindicato que tinha levado a direcção a aumentar a sua oferta de aumentos salariais, contestando que estes tinham “sido ganhos com o sangue e suor dos trabalhadores em greve enfrentando pressões extremas.” As relações entre os grevistas e o sindicato ao nível do município não podiam ter sido piores e certamente elevaram a tensão do drama a decorrer.

Resolução

Enquanto que a táctica do sindicato ao nível do município não conseguiu quebrar o impasse, os níveis mais altos do sindicato e do Partido foram muito mais compreensivos com os grevistas. Ouvi por parte da liderança do GZFTU que o secretário do Partido Guangdong Wang Yang apoiava a greve e as exigências salariais dos trabalhadores e mesmo que havia apoio no governo central.

O Departamento de Propaganda Central não emitiu uma nota de proibição senão a 29 de Maio, quase duas semanas após os confrontos, numa altura em que a onda grevista se tinha espalhado a outras fábricas. Mas isto era uma indicação que o governo central tinha vontade de que se desenvolvesse mais pressão sobre a direcção, na medida em que é raro que se faça a cobertura de greves durante tanto tempo. O presidente deputado do GDFTU, Kong Xianghong, desempenhou um papel activo nas negociações e apoiou as reivindicações salariais. Sobretudo depois do confronto entre o sindicato de Shishan e os trabalhadores, as autoridades a nível provincial estavam desejosas em resolver rapidamente o conflito.

De modo a encontrarem uma resolução ordeira, as várias agências governamentais que se tinham envolvido na greve exigiram que os trabalhadores escolhessem representantes. Embora tivesse sido seleccionado precipitadamente um conjunto de negociadores para a primeira ronda de negociações, os grevistas tinham ficado relutantes em arranjar representantes, sobretudo depois de os dois homens que tinham iniciado a greve terem sido despedidos.

Esta relutância em negociar era inaceitável para o estado o que levou a que Zeng Qinghong, delegado do Congresso Nacional do Povo e membro da Guangzhou Automotive CEO viesse falar com os trabalhadores. Através de amáveis e paternalistas métodos de persuasão, Zeng Qinghong convenceu os grevistas a escolher representantes e iniciar uma retoma condicional da produção.

Na sua carta aberta, os representantes dos trabalhadores disseram que se a direcção não respondesse às suas reivindicações dentro de três dias, a greve iria continuar. Além disso, a carta também afirmava que “os representantes negociais não aceitarão nada menos do que as exigências acima referidas sem a autorização de uma assembleia geral de trabalhadores.” Finalmente, as negociações começaram no terceiro dia.

A 4 de Junho, aos representantes dos trabalhadores juntou-se Chang Kai, um muito conhecido erudito especialista em trabalho, de Pequim, que serviu como seu advogado. As negociações estenderam-se pela noite dentro e finalmente foi firmado um acordo.

Os trabalhadores habituais iriam receber aumentos salariais de aproximadamente 500 RMB, pelo que os seus salários mensais iriam ficar acima dos 2,000 RMB. Os eventuais com baixos salários que trabalhavam ao lado dos trabalhadores habituais viram os seus salários aumentados em mais de 70% para mais de 600 RMB. Um aumento salarial tão grande em resposta a greves foi algo sem precedentes na China e pode deixar uma importante marca nas lutas que estão para vir.

21 de agosto de 2014

Isis se consolida

As fronteiras do novo Califado declarado pelo Isis em 29 de junho estão se expandindo a cada dia e agora cobrem uma área maior que a Grã-Bretanha e habitada por pelo menos seis milhões de pessoas.

Patrick Cockburn

London Review of Books


Tradução / Com a atenção do mundo focada na Ucrânia e em Gaza, o Estado Islâmico no Iraque e Síria (EIIL) capturou um terço da Síria além do um quarto do Iraque que já tinha capturado em junho. As fronteiras do novo califado declarado em 29 de junho de 2014 pelo ISIL estão crescendo dia a dia e já cobrem uma superfície maior que a Grã-Bretanha e habitada por pelo menos 6 milhões de pessoas, população maior que da Dinamarca, Finlândia ou Irlanda. Em poucas semanas de combates na Síria o EIIL já se estabeleceu como força dominante da oposição síria, deslocando a afiliada oficial da al-Qaeda, Frente al-Nusra, na província de Deir Ezzor, rica em petróleo, depois de executar O seu comandante local, quando tentava fugir. No norte da Síria, cerca de 5 mil combatentes do EIIL estão usando tanques e artilharia que capturaram do exército iraquiano em Mosul, para sitiar meio milhão de curdos no enclave onde vivem em Kobani, na fronteira turca. Na Síria central, perto de Palmyra, o EIIL combateu contra o exército sírio para assumir o controle do campo de gás de al-Shaer, um dos maiores do país, num ataque surpresa que deixou cerca de 300 soldados e civis mortos. O exército precisou de vários contra-ataques, até que finalmente retomou o controle do campo de gás, mas o EIIL está controlando grande parte da produção de gás e petróleo da Síria. O Califado é pobre e isolado, mas seus poços de petróleo e as estradas que controlam lhe garantem renda considerável, além da pilhagem de guerra.

O nascimento do novo estado é a mudança mais radical na geografia política do Oriente Médio desde que o Acordo Sykes-Picot foi implementado no fim da I Guerra Mundial. Contudo, essa transformação explosiva criou surpreendentemente pouco alarme internacional, nem mesmo entre os que, no Iraque e na Síria, ainda não estão sendo governados pelo EIIL. Políticos e diplomatas tendem a tratar o EIIL como se fosse uma espécie de partido beduíno que surge repentinamente em pleno deserto, vence vitórias espetaculares e em seguida retorna para suas fortalezas, deixando o status quo praticamente inalterado. É um cenário possível, mas a cada dia menos provável, à medida que o EIIL consolida o próprio poder numa área que rapidamente se vai estendendo do Irã ao Mediterrâneo.

A própria velocidade e o inesperado do surgimento e da ascensão têm induzido líderes regionais e ocidentais a desejar que a queda do EIIL e a implosão do Califado sejam igualmente rápidas e dramáticas. Mas tudo sugere que não passe de pensamento desejante, e a tendência parece ser que tudo ande na direção exatamente oposta, com os opositores do EIIL mais fracos dia a dia e cada vez menos capazes de resistir: no Iraque o exército não dá sinais de ter se recuperado das derrotas iniciais e ainda não conseguiu um único contra-ataque bem sucedido; na Síria, outros grupos de oposição, inclusive os experientes combatentes da Frente al-Nusra e de Ahrar al-Sham, estão desmoralizados e em desintegração, acossados de um lado pelo EIIL e, do outro, pelo governo Assad. Karen Koning Abuzayd, membro da Comissão de Inquérito da ONU sobre a Síria, diz que cada vez mais rebeldes sírios desertam para unir-se ao EIIL: "Eles veem que é melhor; são mais fortes, vencem batalhas, tomam territórios, eles têm dinheiro, podem fornecer treinamento”. É uma péssima notícia para o governo, que em 2012 e 2013 resistiu com sacrifício a assalto de rebeldes muito menos bem treinados, organizados e armados que o EIIL; e que enfrentará dificuldades reais para impedir que as força do Califado avancem para Ocidente.

Em Bagdá houve choque e horror dia 10/6/2014, ante a queda de Mosul; e as pessoas perceberam que caminhões carregados de bandidos armados do ISIL estavam a uma hora de distância, de carro. Mas em vez de assaltar Bagdá, o ISIL tomou quase toda a província de Anbar, a grande província sunita que se estende pelo oeste do Iraque, na duas margens do rio Eufrates. Em Bagdá, com população de sete milhões, majoritariamente xiitas, as pessoas sabem o que esperar, se os assassinos antixiitas do ISIL capturarem a cidade; mas agarram-se à esperança de que a calamidade ainda não aconteceu. Tivemos medo do desastre militar inicial, mas quem vive em Bagdá já se acostumou com crises ao longo dos últimos 35 anos – disse uma mulher. Mesmo com o ISIL às portas dali, os políticos iraquianos continuaram com seus joguinhos, ocupados só com substituir o desacreditado primeiro-ministro Nouri al-Maliki.

É verdadeiramente surreal, se se ouve qualquer líder político em Bagdá, ele fala como se já não tivessem perdido metade do país − disse um ex-ministro iraquiano. Voluntários partiram para o front depois de uma fatwa emitida pelo Grande Aiatolá  Ali al-Sistani, o mais influente clérigo xiita do Iraque. Mas esses combatentes já estão voltando para casa, reclamando que passaram fome e foram obrigados a usar as próprias armas e a pagar pela própria munição. O único grande contra-ataque lançado pelo exército regular e a recém organizada milícia local xiita foi ação desastrada em Tikrit, dia 15/7/2014, quando foram emboscados e derrotados com pesadas baixas. Não há nenhum sinal de que a natureza disfuncional do exército iraquiano tenha mudado. Usaram só um helicóptero para dar apoio às tropas em Tikrit. Queria só saber: o que, afinal, aconteceu aos 140 helicópteros que o estado iraquiano comprou em anos recentes? – disse o ex-ministro.

O mais provável é que o dinheiro para pagar os 139 helicópteros que faltam tenha sido roubado. Há muitos estados completamente corruptos no mundo, mas poucos põem a mãos em US$ 100 bilhões, da venda de petróleo, por ano, para roubar. O principal objetivo de muitos oficiais sempre foi ter a maior mochila possível; e pouco se incomodam se os grupos jihadistas fizerem o mesmo. Conheci um empresário turco em Bagdá que contou que tivera um grande contrato de construção em Mosul ao longo dos últimos alguns anos. O emir local ou líder do ISIL, ainda conhecido então como al-Qaeda no Iraque, pedia US$ 500 mil dólares por mês, como “dinheiro de proteção”. Cansei de denunciar a extorsão ao governo em Bagdá. Nunca fizeram nem jamais fariam coisa alguma, exceto dizer que eu podia acrescentar ao contrato o dinheiro que pagava à al-Qaeda – disse-me o empresário. O emir acabou morto logo depois, e seu sucessor exigiu que o dinheiro de proteção aumentasse para US$ 1 milhão por mês. O empresário recusou-se a pagar; um de seus empregados iraquianos foi assassinado; e o homem mudou-se, com sua equipe turca e suas máquinas, para a Turquia. Tempos depois, recebi mensagem da al-Qaeda dizendo que o preço voltara aos US$ 500 mil dólares e eu podia retornar – contou-me ele. Aconteceu pouco antes de o ISIL capturar a cidade.

Ante esses fracassos, a maioria xiita do Iraque tem-se consolado com duas crenças que, se confirmadas, indicarão que a atual situação não é tão perigosa quanto parece. Dizem que os sunitas do Iraque revoltaram-se, e os combatentes do ISIL não passam de tropa de choque, ou uma espécie de combatentes de vanguarda de um levante provocado pelas políticas e ações antissunitas de Maliki. Tão logo Maliki seja substituído, como quase com certeza será, Bagdá oferecerá aos sunitas um novo acordo de partilha de poder com autonomia regional semelhante à de que os curdos gozam. Então, as tribos sunitas, ex-oficiais militares e Baathistas que permitiram que o ISIL assumisse a liderança da revolta sunita voltar-se-ão contra aqueles seus ferozes aliados. Apesar dos muitos sinais do contrário, xiitas de todos os níveis têm investido muita fé nesse mito, de que o ISIL é fraco e pode ser facilmente descartado por sunitas moderados, tão logo tenham alcançado o que querem. Um xiita disse-me: "Gostaria de saber se EIIL realmente existe."

Infelizmente, não apenas o ISIL existe, como, ainda pior, é organização eficiente e cruel, que não tem intenção alguma de esperar pela traição dos seus aliados sunitas. Em Mosul já exigiu que todos os combatentes da oposição jurassem fidelidade ao Califato ou depusessem armas. No final de junho, início de julho, prenderam algo entre 15 e 20 comandantes do tempo de Saddam Hussein, inclusive dois generais. Grupos que exibiam fotos de Saddam receberam ordens para recolhê-las, ou enfrentar a punição. Não me parece provável que o resto da oposição militar sunita consiga levantar-se com sucesso contra o ISIL. Se quiserem fazê-lo, melhor agirem rápido, antes que o ISIL torne-se forte demais − disse  Aymenn al-Tamimi, especialista em grupos jihadistas. Disse também que a ala supostamente mais moderada da oposição sunita nada fizera, quando os remanescentes da comunidade cristã em Mosul foram forçados a fugir, depois que o ISIL decretou que ou se convertessem ao Islã, ou pagassem um imposto especial, ou seriam executados. Membros de outras seitas e grupos étnicos denunciados como xiitas ou politeístas têm sido perseguidos, aprisionados e assassinados. Já vai longe o momento em que a oposição não-ISIL poderia ter tentado qualquer tipo de confrontação.

Os xiitasdo Iraque têm mais uma explicação de por que o exército desintegrou-se: porque teria sido apunhalado pelas costas pelos curdos. No esforço para afastar de si a culpa, Maliki tem dito que Erbil, a capital curda, “é quartel-general do ISIL, de Baathistas, da al-Qaeda e de terroristas”. Muitos xiitas acreditam nisso: fá-los sentir que as suas forças de segurança (em termos nominais 350 mil soldados e 650 mil policiais) falharam porque foram traídas, não porque se recusaram a lutar. Um iraquiano me disse que esteve num jantar de Iftar durante o Ramadã, com uma centena de profissionais xiitas, a maioria médicos e engenheiros, e todos aceitavam como correta a teoria de “os curdos nos apunhalaram pelas costas” para explicar tudo que saiu errado. A confrontação com os curdos é importante, porque torna possível criar uma frente unitária contra o ISIL. O líder curdo, Massoud Barzani, aproveitou-se da saída do exército iraquiano para tomar todos os territórios, inclusive a cidade de Kirkuk, objeto de disputa entre curdos e árabes desde 2003. Tem agora uma fronteira comum de 600 milhas com o Califato e é um aliado óbvio para Bagdá, onde os curdos participam do governo. Ao fazer dos curdos e seu bode expiatório, Maliki garante que os xiitas não tenham aliados na luta deles contra o ISIL se o ISIL retomar seu ataque na direção de Bagdá. A fragilidade militar do governo de Bagdá foi surpresa para o ISIL e seus aliados sunitas. É pouco provável que se satisfaçam com autonomia regional para províncias sunitas e parte maior na partilha de empregos e da renda do petróleo. O levante deles está convertido em ampla contrarrevolução que visa a retomar o poder em todo o Iraque.

No momento, Bagdá vive sob pouco convicta atmosfera de guerra, como Londres ou Paris no final de 1939 ou início de 1940, e por razões similares. As pessoas temeram batalha terrível pela capital depois da queda de Mosul, mas não aconteceu até agora, e os otimistas esperam que não aconteça nunca. A vida é menos confortável que antes, em alguns dias só há quatro horas de eletricidade, mas pelo menos a guerra ainda não chegou ao coração da cidade. Seja como for, algum tipo de ataque militar, direto ou indireto, provavelmente acontecerá, tão logo o ISIL tenha consolidado seu controle sobre o território que acaba de conquistar: o grupo vê suas vitórias como inspiradas por Deus. Creem no processo de matar ou expulsar xiitas, mais do que de negociar com eles, como já demonstraram em Mosul. Alguns líderes xiitas podem estar supondo e considerando que os EUA ou o Irã sempre intervirão para salvar Bagdá, mas essas potências, hoje, relutam em pôr os pés no pântano iraquiano e apoiar um governo disfuncional.

Os líderes xiitas do Iraque ainda não se renderam ao fato de que seu tempo de dominação sobre o estado iraquiano até que os EUA derrubaram Saddam Hussein acabou-se, ou dele só resta bem pouca coisa. Acabou por causa da própria incompetência e corrupção dos xiitas e porque o levante sunita na Síria em 2011 desestabilizou o equilíbrio sectário do poder no Iraque. Três anos depois, a vitória sunita no Iraque liderada pelo ISIL ameaça romper o impasse militar na Síria. Assad tem conseguido avançar lenta mas firmemente contra uma oposição cada vez mais fraca: em Damasco e arredores, nas montanhas Qalamoun e na fronteira do Líbano e em Homs, forças do governo têm avançado devagar, mas já estão bem perto de cercar o encave rebelde em Aleppo. Mas as tropas de combate de Assad são visivelmente pouco densas em solo, têm de evitar grande número de baixas e só podem combater num front de cada vez. A tática do governo é devastar um distrito onde estejam os rebeldes com fogo de artilharia e bombardeio de helicópteros, forçar a maior parte da população a deixar a área, vedar o que já é um mar de ruínas e, afinal, forçar os rebeldes à rendição. Mas a chegada de grandes números de combatentes bem armados do ISIL, ainda movidos pelo entusiasmo de sucessos recentes, será novo e perigoso desafio que Assad terá de enfrentar. Eles já arrasaram duas importantes guarnições do exército sírio no leste, no final de julho (uma teoria conspiracional, para a qual muito contribuíram o restante da oposição síria e diplomatas ocidentais, segundo a qual o ISIL e Assad estariam mancomunados, já se comprovou absolutamente falsa).

É possível que ISIL decida avançar sobre Aleppo, em vez de avançar para Bagdá: é alvo mais vulnerável e com menos probabilidade de desencadear intervenção internacional. Assim se criará um dilema para o ocidente e seus aliados regionais – Arábia Saudita e Turquia: sua política oficial visa a derrubar Assad, mas o ISIL vai-se convertendo na segunda mais poderosa força militar na Síria. Se Assad cair, o Califato estará em boa posição para ocupar o lugar dele. Como os líderes xiitas em Bagdá, os EUA e aliados responderam com mergulho num universo de fantasia, ao crescimento do ISIL. Tentam convencer-se (e fazer-crer) que estariam alimentando uma ‘'terceira força'’ de rebeldes sírios moderados para combater contra simultaneamente Assad e ISIL, embora, em conversas privadas, diplomatas ocidentais admitam que tal grupo realmente não existe fora de um poucos bolsões sob ataque. Aymenn al-Tamimi confirmou que essa oposição apoiada pelo ocidente “está mais e mais fraca, a cada dia”; acredita que fornecer-lhe mais armas não fará qualquer grande diferença. A Jordânia, pressionada por EUA e Arábia Saudita, deve garantir plataforma de lançamento para essa aventura arriscada, mas já está procurando meio para “tirar o corpo”. A Jordânia tem medo do ISIL –  disse, em Amã, um funcionário da Jordânia. – A maioria dos jordanianos deseja que Assad vença essa guerra. Disse também que a Jordânia tem de enfrentar a pressão de acomodar grande número de refugiados sírios, o equivalente a toda a população do México mudar-se, em um ano, para os EUA.


Os pais adotivos do ISIL e de outros movimentos de sunitas jihadistas no Iraque e na Síria são a Arábia Saudita, as monarquias do Golfo e a Turquia. Não significa que os jihadistas não tenham fortes raízes locais, mais o crescimento dos movimentos foi crucialmente apoiado por potências sunitas externas. A ajuda de sauditas e qataris é basicamente financeira, em geral mediante doações privadas, que Richard Dearlove, ex-diretor do MI6, diz que foram essenciais para que o ISIL tomasse as províncias sunitas no norte do Iraque: Essas coisas não acontecem espontaneamente. Em conferência em Londres, em julho, ele disse que "(...) a política saudita para os jihadistas tem dois motivos contraditórios: medo de ter jihadistas operando dentro da Arábia Saudita; e um desejo de usá-los contra potências xiitas fora da Arábia Saudita. Disse que: (...) os sauditas são profundamente atraídos a favor de qualquer militância com chances de efetivamente desafiar o xiismo." É bem pouco provável que a comunidade sunita como um todo, no Iraque, se tivesse aliado ao ISIL sem o apoio que a Arábia Saudita deu direta ou indiretamente a muitos movimentos sunitas. O mesmo vale para a Síria, onde o príncipe Bandar bin Sultan, ex-embaixador dos sauditas em Washington e chefe da inteligência saudita de 2012 até fevereiro de 2014, estava fazendo todo o possível para garantir apoio à oposição jihadista, até ser demitido. Agora, assustados ante o que ajudaram a criar, os sauditas tentam mover-se agora noutra direção, prendendo voluntários jihadistas, mais do que fingindo que não veem quando partem para Síria e Iraque. Mas pode ser tarde demais. Os jihadistas sauditas não têm grande amor pela Casa de Saud. Em 23 de julho de 2014, o ISIL lançou um ataque contra um dos últimos quartéis do exército sírio na província de Raqqa, no norte. Começou com um ataque de suicida em carro-bomba. O veículo era dirigido por um saudita, Khatab al-Najdi, que colou, nas janelas do carro, fotos de três mulheres presas em prisões sauditas; uma delas, Hila al-Kasir, sua sobrinha.

O papel da Turquia tem sido diferente, mas não menos significativo que o da Arábia Saudita, ajudando o ISIL e outros grupos jihadistas. A mais importante ação da Turquia tem sido manter aberta sua fronteira de mais de 800 quilômetros, com a Síria. Com isso, ISIL, al-Nusra e outros grupos da oposição têm sempre uma saída/entrada pela retaguarda, por onde receber homens e armas. Os pontos de passagem na fronteira têm sido locais da disputas mais encarniçadas durante a “guerra civil dos rebeldes, dentro da guerra civil”. Muitos jihadistas estrangeiros cruzaram a Turquia na viagem rumo à Síria e ao Iraque. É difícil obter números precisos, mas o Ministério do Interior do Marrocos disse recentemente que 1.122 jihadistas marroquinos haviam entrado na Síria, incluídos os 900 que viajaram em 2013, 200 dos quais foram mortos. A segurança iraquiana suspeita de que a inteligência militar turca tenha-se envolvido profundamente na ajuda ao ISIL, quando se reconstituía, em 2011. Relatos que chegam da fronteira turca informam que o ISIL já não é bem-vindo; mas com as armas capturadas do exército iraquiano e a tomada de campos de petróleo e gás sírios, o ISIL já não carece tanto de ajuda externa.

Para EUA, Grã-Bretanha e demais potências ocidentais, o crescimento do ISIL e do Califato é desastre total, absoluto. Fosse qual fosse o objetivo de terem invadido o Iraque em 2003 e de tantos esforços para derrubar Assad na Síria desde 2011, com certeza não o fizeram para ver surgir um estado jihadista que só faz crescer no norte do Iraque e Síria, comandado por movimento cem vezes maior e muito mais bem organizado que a al-Qaeda de Osama bin Laden. A guerra ao terror, pela qual se feriram de morte as liberdades civis e na qual se consumiram centenas de bilhões de dólares, falhou miseravelmente. A crença de que o ISIL estaria interessado só em lutas de “muçulmanos contra muçulmanos” é mais um exemplo de pensamento delirante desejante: o ISIL já mostrou que combaterá contra qualquer um que não se renda à sua variante puritana, pervertida e violenta de islamismo. A grande diferença ente o ISIL e a al-Qaeda é que é movimento militar bem organizado, que se dedica a selecionar cuidadosamente os próprios alvos e o momento adequado para atacá-los.

Em Bagdá, muitos contam com que os excessos do ISIL – explodir mesquitas e violar santuários, como em Younis (Jonah) em Mosul – acabará por levar os sunitas a se afastarem do movimento. É possível que aconteça, no longo prazo; mas opor-se ao ISIL é extremamente perigoso e, por sua brutalidade, está podendo oferecer vitórias a uma comunidade sunita sempre perseguida e derrotada. Até os sunitas em Mosul, que não gostam deles, temem um retorno de algum governo iraquiano vingativo dominado por xiitas. Até aqui, a resposta de Bagdá ante a própria derrota foi bombardear Mosul e Tikrit indiscriminadamente, o que indica claramente à população local que o governo de Maliki não está preocupado nem com a sobrevivência de civis. O medo não mudará, nem se Maliki for substituído por um primeiro-ministro mais conciliador. Em Mosul, um sunita, pouco depois de um míssil disparado por forças do governo explodir na cidade, escreveu-me: Forças de Maliki já demoliram a Universidade de Tikrit. São só escombros e confusão por toda a cidade. Se Maliki nos pegar em Mosul, matará todo mundo ou criará uma multidão de refugiados. Rezem por nós. Esse tipo de avaliação é frequente e indica que é cada vez menos provável que os sunitas se levantem em oposição ao ISIL e seu Califato. Nasceu um estado: novo e aterrorizante.

19 de agosto de 2014

O novo nacionalismo japonês

O orgulho nacionalista e a economia neoliberal, propagandeados pelo primeiro-ministro Shinzo Abe prometem apenas uma fuga barata aos problemas do Japão.

Kristin Surak

Jacobin

Kiyoshi Ota / Reuters

Tradução / Pouco depois de voltar ao poder em 2013, o primeiro-ministro Shinzo Abe declarou triunfalmente em discurso público: "O Japão está de volta!". A partir de então, com o incitamento do capital global, tem feito muito para o provar.

Comandando a terceira maior economia do mundo está, finalmente, um homem capaz de levar a privatização e a desregulamentação para além das diferenças entre fações e reiniciar o crescimento — uma tarefa tão heroica que a The Economist estampou a sua capa com o primeiro-ministro com cara de sabujo à guisa de Super-homem.

É um valente regresso para um ministro que, após menos de um ano em exercício e à sombra do escândalo, sai em 2007 usando a desculpa, não muito empedernida, de sofrer de diarreia incapacitante. Nem os observadores especialistas sobre o Japão esperavam que Abe assumisse a nomeação do Partido Liberal Democrata no Outono de 2012.

Nobutaka Machimura garantiu o maior número de votos dentro da Dieta (parlamento japonês) e Shigeru Ishiba conquistou o voto local. Mas depois de as eleições passarem a um segundo turno quase sem precedentes, negociatas internas colocaram Abe no topo — e deixaram-no com uns favores a pagar.

A "Abenomia" é parte desse pacote, combinando num potente cocktail várias exigências de longa data da classe dominante. Os gigantes da exportação receberam uma saudada queda do iene de 77 para 100 JPY por dólar, os burocratas da finança finalmente conseguiram um aumento no imposto sobre vendas de 5 para 8%, as grandes empresas e os bancos saborearam dinheiro recém impresso e de seguida aplaudiram a desregulamentação do mercado de trabalho.

A injeção de adrenalina na economia em coma pareceu funcionar no primeiro ano: o PIB passou dum crescimento negativo a 1,3% no início de 2013; entre as empresas, as velhas insígnias afixaram lucros. The Economist e o Financial Times foram saltando como líderes de claque ao longo das linhas em ligeira subida da inflação ao atingir os 1,5%. Parecia que a enorme economia do Japão estava novamente pronta para ser mungida pelos lucros.

A emissão de dinheiro e os gastos públicos podem criar bolhas assim, mas não podem sustentá-las, e os retornos da Abenomia já estão a provar-se curtos e concentrados nas mãos de interesses entrincheirados. Os bancos estão em expansão — a companhia financeira Nomura, por exemplo, triplicou os lucros — a indústria, especialmente a automóvel, comportou-se bem. Contudo os lucros não têm sido reinvestidos em aumentos salariais, e os salários caem enquanto os preços aumentam.

No segundo trimestre deste ano, o PIB contraiu uns exorbitantes 6,8%, varrendo todos os ganhos econômicos do primeiro trimestre quando os consumidores armazenaram mercadorias, antecipando o novo imposto sobre vendas. Os apologistas alegam que um inferior limiar de base só vai facilitar o anúncio do crescimento no outono.

Se a Abenomia garante o legado a um primeiro-ministro anteriormente falhado, marcará uma mudança real nos objetivos de Abe? Além duma duvidosa economia do lado da oferta, pouco distingue o seu primeiro mandato do segundo. Falar de "arco de liberdade e prosperidade" para proteger a livre iniciativa nos EUA, Japão, Austrália e Índia (sem chinês, por favor) deu em negociações secretas sobre a parceria Transpacífica destinada a realizar o mesmo.

O seu êxito de vendas nacional de 2006 Em direção a um belo país está novamente a voar das prateleiras, reembalado com pouca imaginação como Em direção a um novo país. Não surpreende que ele ainda rejeite o pedido de desculpas de 1995 pela agressão imperial, apresentado pelo primeiro-ministro socialista Tomiichi Murayama no quinquagésimo aniversário do fim da guerra, normalmente entendido como a posição oficial do governo. Na sua primeira passagem pelo governo, Abe tentou rever todos os documentos fundamentais de garantias no país — a Constituição, a Lei de Bases do Ensino e o tratado de segurança Amplo com os Estados Unidos — com um êxito parcial.

Agora é a oportunidade de retomar onde ficou. E basta olhar as revisões que propôs à Constituição para ver onde isto vai dar.

Longe vão os nobres ideais democráticos do preâmbulo — hinos à "preservação da paz e banimento da tirania e da escravidão, da opressão e intolerância por todos os tempos na terra” — trocados por um começo mais musculado: "O Japão é um país com uma longa história e cultura única e um imperador como símbolo unificador da nação". O que segue são adaptações para quase todos os 103 artigos do documento que iriam expandir grandemente o escopo para o estado de emergência, iriam transformar as nominais Forças de Autodefesa num exército de pleno direito e subordinar as liberdades de expressão, de imprensa e de associação à manutenção da ordem pública.

Mas grandes escolhas se erguem no caminho da alteração do documento fundador do país. Abe precisa de uma super-maioria em ambas as câmaras da Dieta e do apoio de um público relutante para ganhar um referendo. Portanto uma mudança silenciosa, incremental tem sido a abordagem preferida. O seu vice-primeiro-ministro Taro Aso fez do delinear da estratégia um pesadelo para as relações públicas, ao elogiar os nazistas por substituírem a Constituição de Weimar sem que ninguém percebesse e sugeriu que o Japão poderia aprender com o exemplo.

A promessa de ressuscitar a economia em coma põe a imprensa e a população em transe, enquanto a audiência está a olhar para o lado, Abe faz incursões com as propostas menos populares.

No mês passado o seu gabinete proclamou que a Constituição não exclui a legítima defesa coletiva — apesar de um artigo que declara impassivelmente "[O] povo japonês renuncia para sempre à guerra como direito soberano da nação e à ameaça ou uso de força como meio de resolução de disputas internacionais."

Os EUA vêm há anos pressionando o Japão a relaxar a sua interpretação do artigo 9º e a manter-se "ombro a ombro" com as tropas — um apelo que Abe e os nacionalistas só têm a agradecer muito por seguirem. Diz-se da nova leitura, de forma bem incrédula, que habilita o Japão a vir em auxílio do exército dos EUA caso fique sob ataque.

O antigo alto funcionário do ministério das Relações Exteriores, Ukeru Magosaki, descreveu-a como uma transformação efetiva das Forças de Autodefesa japonesas em "mercenários ao serviço dos Estados Unidos". Se não é a primeira leitura revista — uma FA foi criada e enviada mesmo para o esterior em missões de apoio das Nações Unidas — é a primeira a vir não do judiciário mas do executivo.

Um princípio base do constitucionalismo é o de que nenhuma agência está acima do seu poder. Em princípio, a mudança vem através da reinterpretação gradual da parte de tribunais ou de procedimentos de alteração formal, não das recomendações de listas de peritos nomeadas pelo primeiro-ministro. Mas para Abe, tais questiúnculas só estorvam uma liderança firme.

A abordagem de cima para baixo é uma marca que Abe brandiu com gosto dezembro último na aprovação rápida de uma arrasadora nova lei do segredo de Estado. Aprovada como protegendo o interesse nacional contra fugas para a comunicação, a lei vai muito além das preocupações habituais com espionagem e terrorismo. Na verdade, é acima de tudo uma lei contra pessoas que façam denúncias públicas, dando a um repórter cinco anos de prisão e à sua fonte dez se expuserem a corrupção, ameaças à saúde pública e mesmo problemas ambiente que sejam designados como "segredo".

Mas tais temores podem estar a diminuir à medida que vozes críticas na comunicação social se abatem sob a pressão vinda de cima. Baixas recentes incluem alguns dos jornalistas mais argumentativos e críticos da energia nuclear e do tratamento incorreto dado ao desastre de Fukushima: o comentador da Empresa de Radiodifusão do Japão (NHK) Toru Nakakita, o apresentador da NHK Jun Hori e o locutor do Sistema de Radiodifusão de Tóquio (TBS) Takashi Uesugi.

Certamente que o novo chefe da NHK, Katsuo Momii, não chora a perda. O empresário selecionado por Abe para dirigir a fonte de notícias de televisão mais popular do Japão aceitou a nomeação, declarando sem corar, "se o governo vai para a direita, nós não podemos ir para a esquerda". É sem grande surpresa que a cobertura pela NHK da interpretação revista do artigo 9º não incluiu notícias do homem que se ateou fogo em protesto contra a lei numa das zonas mais movimentadas de Tóquio.

O orgulho nacionalista que Abe e outros divulgam promete apenas uma fuga barata aos problemas que desconjuntam o país. O Japão é agora um dos membros mais desiguais da OCDE, com taxas de pobreza — um em cada seis já não se aguentam acima da linha — atrás apenas dos EUA e do México. Um terço das pessoas que trabalham estão com contratos de curto prazo ou a tempo parcial, com o emprego para a vida da geração do "baby boom" a significar que as taxas para os jovens são muito mais altas.

Com muito da rede do Estado social ligada ao trabalho regular, o que lhes sobra? Com um pouco de sorte, mais do que a postura nacionalista de Abe oferece.

Sobre o autor

Kristin Surak é professora universitária e pesquisadora de política japonesa na Escola de Estudos Orientais da Universidade de Londres.

15 de agosto de 2014

A economia da militarização da polícia

A crise da dívida da justiça-criminal é apenas um dos muitos afluentes que alimentam o rio de raiva profunda por causa dos tiroteios da polícia.

Sarah Stillman


Créditos: Jeff Roberson/AP.

Duas batalhas cruciais eclodiram em Ferguson, Missouri, essa semana. A primeira começou com a onda de tristeza e fúria popular, depois que um jovem de 18 anos, Michael Brown, foi morto por um policial em Canfield Court, no subúrbio de St. Louis, às 14h15min, sábado passado (9 e agosto de 2014). Depois, começou a ação dos policiais nas primeiras rodadas de manifestações públicas. Os policiais saíram às ruas com uma frota de blindados, rifles de ataque, bombas de gás lacrimogêneo, o que reintroduziu na consciência coletiva a expressão “militarização da polícia civil” (como já se devia esperar; quem duvide, deve ler Radley Balko, "The Rise of the Warrior Cop: The Militarization of America's Police Forces").

Num momento, vê-se um jovem com uma marca de tiro de bala de borracha entre os olhos; momento seguinte, três policiais com armas enormes atiram contra outro homem negro, que tem as mãos erguidas. Na quinta-feira (14 de agosto de 2014), Jelani Cobb publicou  potente relato  do que se via nas calçadas e lares, em Ferguson. Cobb perguntava sobre "... as questões econômicas e de aplicação da lei interconectadas naqueles protestos", entre as quais, por exemplo, as custas processuais e multas que muita gente em Ferguson tem de pagar, e que com frequência começam com infrações menores até que se convertem "elas mesmas, em violações sempre crescentes". Temos gente aqui que é procurada por causa de multas de trânsito, obrigada a viver praticamente como prisioneiro dentro da própria casa. Não podem sair de casa, porque serão presos por causa daquelas dívidas. "Em alguns casos, as pessoas até tinham empregos, mas decidiram que o risco de serem presos não compensava a tentativa de se deslocar para fora do seu bairro, disse a Cobb, Malik Ahmed, presidente de uma organização chamada “Better Family Life”.

A crise das dívidas com a justiça criminal é um dos muitos afluentes que alimentaram o rio caudaloso da fúria profunda que tomou conta de Ferguson. Mas é afluente importante – tanto porque é problema que se vê em todos os cantos da região, como, também, porque é problema que facilmente desaparece de cena ante o espetáculo dos tanques e canhões giratórios. No início desse ano, passei seis meses acompanhando o crescimento do valor de custas e multas nos tribunais nos Estados Unidos, que acontece pela proliferação de taxas e multas aplicadas a quaisquer pequenas infrações – e que é parte de um movimento crescente na direção do que tenho chamado de “indústria da justiça custeada pelo infrator”. Empresas privadas de cobrança são contratadas, em alguns estados, para cobrar multas não pagas. (Na maioria dos casos, é tática usada contra os mais pobres, que tenham multas de tráfego não quitadas). As reportagens que estão chegando de Ferguson levantam questões sobre como a militarização da polícia e a coerção econômica pelos órgãos da justiça, alimentaram fúria que, hoje, já é difícil de controlar.

O Missouri foi dos primeiros estados a permitir a ação de empresas privadas de cobrança, no final dos anos 1980, e desde então seguiu a tendência nacional de permitir que custas processuais e multas cresçam muito rapidamente. Agora, em grande parte dos Estados Unidos, o que começa como simples multa por excesso de velocidade pode, se você não conseguir pagar, converter-se numa dívida impagável, que não para de crescer, aumentada, se você não comparecer ao tribunal, por taxas de busca e prisão. (Não raras vezes, o não pagamento acontece não só por falta de meios mas também porque o devedor já não vive no endereço para onde a notificação é enviada, e não a recebe). "O que mais se vê nos Estados Unidos é gente empobrecida, rotineiramente mandada para a cadeia por custas, impostos, taxas ou multas que não conseguem pagar", disse Alec Karakatsanis, cofundador de “Equal Justice Under Law”, organização sem fins lucrativos de defesa de direitos civis, que começou a denunciar essa prática em cortes municipais. São multas que crescem como bola de neve quando as multas não pagas são entregues, para cobrança, a empresas privadas, porque essas empresas acrescentam suas próprias taxas “de supervisão”. O que acontece em muitos bairros pobres dos Estados Unidos, quando alguém atrasa seus pagamentos? Muito frequentemente, a polícia bate à porta e leva o devedor para a prisão.

Daí em diante, a bola de neve só cresce. Ser preso tem impacto muito grave na vida de pessoas que já estão à beira da pobreza. Já perderam o emprego, já perderam a guarda dos filhos, estão atrasados no pagamento da hipoteca da própria casa, diz Sara Zampieren, do Southern Poverty Law Center. Tudo isso somado, o efeito é “devastador”. Enquanto permanecem na prisão, as “multas de usuários” só se acumulam. De tal modo que quando você sai da cadeia, nem por isso está livre. Uma recente pesquisa feita pela National Public Radio mostrou que pelo menos em 43 estados dos EUA os réus podem ser cobrados pelo trabalho do Defensor Público – um serviço ao qual todos os americanos têm direito garantido pela Constituição; e em pelo menos 41 estados nos EUA, os prisioneiros podem ser cobrados por “casa e comida” durante o tempo que permaneçam em detenção e prisão.

Agora, as polícias militarizadas dos Estados Unidos têm ferramentas muito visíveis à disposição delas; várias dessas ferramentas estiveram nas manchetes essa semana: metralhadoras, óculos para visão noturna, veículos blindados e, ao que parece, uma quantidade ilimitada de munição. Mas essa arma econômica da militarização policial é quase sempre muito menos visível, e a “justiça custeada pelo infrator” é parte desse sub-arsenal. Os medos dos quais Cobb e Ahmed falam – dívidas cobradas por tribunais e polícias, e gente que, por causa dessas dívidas tem medo de sair de dentro de casa – são ingredientes da força que se viu ativada nos protestos e tumultos das ruas do Missouri. O medo dos devedores altera toda a vida diária – será que conseguem ir à padaria ou levar uma criança à escola, sem serem presos? "Esse medo impede as pessoas que tenham problemas, de chamar a polícia, e tira da polícia a capacidade para fazer o que se espera que policiais façam – ajudar as pessoas nas comunidades a responder a emergências", disse Karakatsanis. É situação que corrói a confiança das comunidades e mata qualquer possibilidade de cooperação entre os agentes da lei e a própria comunidade.

No Alabama, “Equal Justice Under Law” impetrou uma ação conjunta contra a cidade de Montgomery, em nome de pequenos infratores que foram encarcerados por dívida; a ação está suspensa, e a cidade refutou as acusações, mas, diz Karakatsanis, pelo menos 35 pessoas foram libertadas da prisão, onde estavam por dívidas, desde o início da ação. (Um juiz já emitiu uma sentença preliminar a favor dos devedores). Mais frequentemente porém, os devedores que levam o problema aos tribunais não obtêm qualquer tipo de resultado favorável. Muitas vezes, essas dificuldades só fazem aumentar o ressentimento dos cidadãos e a desconfiança geral em relação a qualquer autoridade “pública”.

Há muitos anos, quando estava integrada às tropas em Kandahar, Afeganistão, passei muitas horas com uma unidade cuja tarefa era aplicar um conjunto de treinamentos chamados “Commander’s Guide to Money as a Weapons System”. Esse treinamento instrui os soldados a usar ferramentas econômicas para promover objetivos militares, e havia um alerta impresso nas páginas iniciais de um dos manuais que eles usavam: "Soldados combatentes e seus comandos devem cuidar para que suas ações sejam defensáveis ante Comissões de Inquérito do Congresso e não gerem problemas para o Departamento de Defesa." Quanto a isso, o militarismo “real” tem pelo menos uma vantagem sobre o militarismo policial doméstico, pelo menos no plano doutrinário – entre militares “reais” o princípio é o investimento genuíno nas comunidades, cuja confiança os militares esperam conquistar, para influenciar. Não surpreende que seja “teoria” sempre complicada de aplicar (que muito frequentemente falhou terrivelmente), mas, pelo menos em teoria, é de longe muito melhor que policiais ou militares abrindo caminho à bala em áreas civis. Nos Estados Unidos, dentro de casa, as equipes SWAT continuam a detonar as proverbiais linhas de força.

É um sinal de esperança que o novo comandante de polícia de Ferguson, Capitão Ron Johnson, da Patrulha Rodoviária Estadual do Missouri (criado em Ferguson), pareça ter imediatamente entendido essa questão, ao assumir o cargo na quinta-feira (14 de agosto de 2014). "Todos queremos justiça. Todos queremos respostas", disse ele à Associated Press, "é pessoalmente importante para mim conseguirmos romper esse ciclo de violência."

Ao considerar a militarização da polícia, o lado econômico do fenômeno também deve ser considerado. A conexão pode não ser óbvia para quem jamais teve cortado o fornecimento de gás ou de energia elétrica da própria casa. Mas essas forças operam juntas – o gás cortado e as multas não pagas; o armamento e as intimações para “pagamento imediato” – o que agride uma vasta lista de direitos fundamentais que parecem, como em Ferguson e em outros locais, já terem virado fumaça.

14 de agosto de 2014

Em defesa das revoltas de Ferguson

Os manifestantes em Ferguson não são nem irracionais nem apolíticos. Eles estão chamando a atenção para as suas necessidades básicas, não alcançadas.

Robert Stephens II

Jacobin

Créditos: Stanley Wolfson/Library of Congress.

No fim de semana de 9 de agosto a polícia em Ferguson, Missouri, assassinou o adolescente negro Michael Brown. Enquanto os detalhes ainda estão a chegar a conta-gotas, o que está claro é que durante um confronto com um carro patrulha perto da casa da sua avó, um policial disparou e matou o adolescente desarmado no meio da rua. As testemunhas dizem que Brown corria afastando-se do polícia e que tinha as mãos levantadas precisamente antes do policial disparar contra ele.

Ferguson é uma cidade com uma grande concentração de população negra sob o controle de instituições predominantemente brancas. O assassinato imediatamente tocou uma corda sensível. Manifestações e protestos irromperam e as pessoas tomaram as ruas, o que poderá eventualmente culminar numa revolta. As multidões oscilavam desde pessoas que faziam vigília transportando velas no lugar da morte de Brown até outras que queimavam estabelecimentos comerciais e lançavam cocktails molotov durante os confrontos com a polícia. Como chegamos até aqui?

Longe de ser uma multidão violenta e sem cérebro, as pessoas de Ferguson atravessaram um processo de elevação do seu nível de consciência política que as levou à insurreição. Um vídeo mostra vários agitadores políticos a falar entre a multidão, convertendo a raiva momentânea em unidade política. Um orador em particular, um jovem negro, oferece uma convincente análise política que denuncia a injustiça da brutalidade policial como um subproduto da desordem econômica da comunidade.

“Continuamos a dar o nosso dinheiro a esses meninos brancos que estão nos seus complexos residenciais, e não podemos obter justiça. Nem respeito. Eles estão dispostos a atacar-te se não pagas uma fatura. ... É normal que estejamos fartos.”

As revoltas, como outras formas de ação política, podem construir solidariedade. Podem criar fortes sentimentos de identidade comum. A indignação que eclodiu em Ferguson atraiu rapidamente as pessoas pertencentes dos meios marginais de toda a região. Mais do que um fato que lhe tire legitimidade, a presença destas pessoas “de fora” reflete o poder magnético do momento político.

Desde o início, as manifestações contra a polícia que precederam as revoltas tiveram uma clara dinâmica “nós contra eles”. Num ponto da manifestação, uma mulher com uma câmara diz: “Onde estão os rufias? Onde estão os gangues de rua quando precisamos de todos?” e então as pessoas começam a apelar aos diversas gangues de rua para abandonarem a violência do “negro contra negro” e a se unirem na luta contra a opressão. A comunidade estava unida e preparada para empreender ação. A polícia era o problema, e tinha que ser parada.

Smith identifica o que muitos que se auto-proclamam como anti-racistas e esquerdistas não compreendem, que o racismo não é uma questão moral ou de carácter. Ele reconhece que o ordenamento econômico facilita e beneficia da opressão racial, e é por isso que procura vias para interferir nesse processo e o alterar. Esta análise não é somente mais real do que a que normalmente é dada pela esquerda, mas além disso intervir com base nela é a única forma para erradicar a hierarquia racial que está tão arraigada.

A multidão que se congregava não era nem irracional nem apolítica. Tentavam utilizar a sua oportunidade para abordar as suas necessidades políticas que iam mais além. Sabiam que a violência interracial na comunidade era não só uma das suas preocupações, e que na maioria dos casos quem perpetrava ações violentas eram os próprios meninos, primos, amigos e vizinhos da comunidade. Ainda que muitos argumentem que a população negra não se preocupa com a violência nas suas comunidades, os apelos que se fizeram para que os gangues de rua se unissem demonstra que os levantamentos anti-policiais abrem oportunidades únicas para unir as pessoas em formas que pugnam por resolver questões de fundo como a violência dos gangues.

Depois da insurreição, os participantes continuaram a debater sobre o levantamento em termos políticos. Deandre Smith, que estava presente no fogo da loja da QuikTrip, disse às notícias locais: “acho que estão demasiado preocupados sobre o que acontece nas suas lojas, comércios e tudo isso. Mas não estão preocupados com o assassinato.” Um segundo homem acrescenta: “Eu simplesmente acho que o que aconteceu foi necessário para demonstrar à polícia que eles não controlam tudo”. Smith conclui: “não acho que tenha sido suficiente.”

Numa segunda entrevista, desta vez com Kim Bell do St. Louis Post-Dispatch, Smith ampliou a sua opinião sobre as revoltas como uma estratégia política viável.

“Isto é exatamente o que se supõe que tem que se passar quando uma injustiça acontece na tua comunidade... Eu estava aqui fora com a comunidade, é tudo o que posso dizer... Para dizer a verdade, não acho que isto tenha acabado. Acho que o que receberam foi uma lição do que significa contra-atacar, no próprio St. Louis, o último estado a abolir a escravatura. Por acaso acham que ainda ostentam o poder sobre certas coisas? Eu acho que assim pensam. 
Eles obtêm dinheiro da seguinte maneira: negócios e impostos, com a polícia parando as pessoas e multando-as, levando-os a julgamento, encarcerando-as, é assim que eles fazem dinheiro em St. Louis. Tudo gira à volta do dinheiro em St. Louis. De modo que quando alguém trava esse fluxo de rendimentos eles tem tudo organizado. ... "nós vamos comer, vocês vão passar fome", gentrificação. Vai tu própria a um bairro e vê se és capaz de suportar a fome. ... Isto não vai passar aqui, não em St. Louis.”

O que costuma acontecer quando ocorrem acontecimentos como a rebelião de Ferguson, é que pessoas bem intencionadas se apressam a condenar os participantes. No mínimo, acusam as revoltas como não produtivas e oportunistas, umas quantas maçãs podem podem apodrecer o resto da cesta. Esta atitude é precisamente a que Deandre Smith criticava na sua primeira entrevista. Muitos dos detratores, alguns dos quais também são negros, tentam vigiar estas comunidades com “políticas respeitáveis”, um apelo a que as pessoas oprimidas se mostrem a si próprias em formas que sejam aceitáveis para a classe dominante num esforço para conseguir créditos políticos.

Tal como o cientista Frederick Harris escreveu num artigo este ano:

"O que começou como uma filosofia promulgada pelas elites negras para “elevar a raça”, mediante a qual se deviam corrigir os traços “maus” da população negra pobre, evoluiu agora para uma que se converteu num dos traços distintivos da política na era Obama, uma filosofia de governo que se centra no controle do comportamento da população negra abandonada, no quadro de uma sociedade que é 'vendida' como repleta de oportunidades. 
Mas a política da respeitabilidade ficou retratada como uma estratégia emancipadora que abandona os debates sobre as forças estruturais que entravam a mobilidade social da população negra e da classe operária."

Enquanto as revoltas com frequência galvanizam os acontecimentos dentro de uma comunidade, com o potencial de desencadear uma energia política concentrada em dinâmicas e direções imprevisíveis, as obsoletas políticas da respeitabilidade conduzem apenas a mais marginalização e desestruturação. Bem, é possível não estar de acordo com a utilidade da insurreição. Mas a forma com que as comunidades reagem à opressão tem de ser debatida em termos políticos e não simplesmente desprezada.

Vivemos num contexto de supremacia branca e de capitalismo neoliberal onde as políticas racialmente neutras estão a ser utilizadas para manter a exploração de classe e a hierarquia racial, e qualquer tentativa de abordar o racismo é recusada ou ignorada. Estas políticas só intensificam a desestruturação econômica e a pobreza e são aqueles que vivem nas margens da sociedade que as experimentam.

O que tanto os entrevistados nas notícias locais, como as pessoas que se amontoavam no lugar onde morreu Brown pareciam entender, é que o que é preciso é desmontar a interação que existe entre a opressão racial e o capitalismo. Sentiam que uma manifestação ou qualquer outra forma aceitável de indignação não atendia às suas necessidades políticas, e não se equivocavam.

13 de agosto de 2014

A economia política do Ebola

O ebola é um problema que não vai ser resolvido porque não é lucrativo fazê-lo.

Leigh Phillips

Jacobin

Joseph Ferdinand Keppler / Library of Congress

Tradução / The Onion, como sempre, está em cima da questão com a sua “cobertura” do pior surto registrado de ebola e primeiro na África Ocidental, que infecta cerca de 1779 pessoas e que mata pelo menos 961. “Peritos: vacina do ebola pelo menos em 50 brancos”, lê-se no cabeçalho das breves de 31 de julho de 2014.

A nossa rápida explicação é que se as pessoas infectadas com ebola fossem brancas o problema seria resolvido. Mas o papel do mercado - quer na recusa das empresas farmacêuticas em investir na pesquisa, quer nas condições no terreno criadas por políticas neoliberais que exacerbam e até encorajam estes surtos – não é referido.

O racismo é certamente um fator. Jeremy Farrar, um especialista em doenças infecciosas e diretor da Wellcome Trust, uma das maiores organizações benevolentes de pesquisa medicinais, disse à Toronto Star: “Imaginem uma região do Canadá, da América ou da Europa em que ocorresse a morte de 450 pessoas em consequência de uma febre hemorrágica viral. Seria simplesmente inaceitável – e é inaceitável na África Ocidental.”

Ele mencionou o caso de uma vacina do ebola desenvolvida pelo Canadá que foi fornecida numa situação de utilização de emergência a um pesquisador alemão em 2009 após um acidente no laboratório. “Moveram-se os céus e a terra para apoiar um técnico de laboratório alemão. Por que é que aqui diferente? Porque se trata da África Ocidental?”

Mas o ebola é um problema que não está a ser resolvido porque quase não se arranja dinheiro para tal. É uma doença não lucrativa.

Morreram cerca de 2400 pessoas desde que o ebola foi identificado pela primeira vez em 1976. As principais empresas farmacêuticas sabem que o mercado para lutar contra o ebola é diminuto enquanto que os custos para desenvolver o tratamento são significativos. Numa base meramente quantitativa, alguns poderiam alertar (talvez com razão) contra o direcionar em demasia para esta doença que mata muito menos gente do que, por exemplo, a malária (morreram 300 mil desde o começo da epidemia do ebola) ou a tuberculose (600 mil).

No entanto, as restrições econômicas que atrasam os progressos no desenvolvimento do tratamento do ebola também explicam por que as empresas farmacêuticas resistem em desenvolver o tratamento dessas doenças assim como de muitas outras.

Na última década viu-se um enorme avanço na pesquisa das terapias para o ebola, geralmente no setor público ou em pequenas empresas biotecnológicas com significativo financiamento público, com uma variedade de opções de tratamento em cima da mesa incluindo produtos com base em ácidos nucleicos, terapias de anticorpos e uma série de vacinas candidatas – cinco das quais protegeram com sucesso primatas não humanos contra o ebola.

Anthony Fauci, o diretor do National Institute of Allergy and Infectious Diseases, tem dito nos últimos dias na imprensa a todos os que o quiserem ouvir, que uma vacina do ebola estaria muito próxima – se não fossem os gananciosos interesses corporativos.

“Temos estado a trabalhar na nossa própria vacina do ebola, mas nunca conseguiríamos nenhuma aquisição por parte das empresas,” disse à USA Today.
“Temos uma candidata, colocamo-la em macacos e parece boa, mas o incentivo por parte das empresas farmacêuticas para desenvolver uma vacina que trata pequenas epidemias de trinta em trinta ou de quarenta em quarenta anos... bem, não é lá grande incentivo!”, disse à Scientific American.

Quase todos os que estão familiarizados com a questão dizem que o know-how existe. Só que as epidemias são tão raras e afetam tão poucas pessoas para que valha a pena, isto é, que seja lucrativo, para as empresas farmacêuticas desenvolvê-la.

“Estas epidemias afetam as comunidades mais pobres do planeta. Embora criem uma incrível agitação, são acontecimentos relativamente raros,” disse à Vox Daniel Bausch, o diretor do emergente departamento de infecções da Naval Medical Research Unit Six (NAMRU-6), um laboratório de investigação biomédica em Lima, no Peru. “Assim, se se olhar para o interesse das empresas farmacêuticas, não há um grande entusiasmo em levar um medicamento do ebola pelas fases um, dois e três de uma experiência e fazer uma vacina do ebola que talvez umas poucas dezenas ou centenas de milhares de pessoas venham a usar.”

John Ashton, presidente da Faculdade de Saúde Pública do Reino Unido, escreveu um vivo artigo de opinião no Independent acusando “o escândalo do desinteresse da indústria farmacêutica em investir na pesquisa em produzir tratamentos e vacinas, algo que ela se recusa em fazer porque os números envolvidos são, segundo as suas palavras, tão pequenos que não justificam o investimento. É a falência moral do capitalismo a agir na ausência de uma moldura ética e social”, concluiu.

Esta situação não é única para o ebola. Durante trinta anos, as grandes empresas farmacêuticas recusaram-se a fazer investigação em novas classes de antibióticos. Devido a este “vazio de descobertas” os clínicos preveem que dentro de vinte anos fiquemos totalmente sem medicamentos eficazes contra infecções de rotina. Muitas técnicas e intervenções médicas introduzidas desde os anos 40 dependem de um fundamento de proteção antimicrobiana. Os ganhos em expectativas de vida que a humanidade experimentou durante este tempo dependem de muitas coisas, mas certamente não teriam sido possíveis sem os antibióticos. Antes do seu desenvolvimento, as infecções com bactérias eram uma das causas de morte mais comuns.

Em abril, a Organização Mundial de Saúde emitiu pela primeira vez um relatório referindo a resistência aos micróbios em todo o mundo, encontrando “níveis alarmantes” de resistência bacteriana. “Esta séria ameaça já não é uma predição para o futuro, mas está a acontecer neste momento em todas as regiões do mundo e tem o potencial para afetar toda a gente, de qualquer idade, em qualquer país,” avisou o corpo de saúde das Nações Unidas.

A razão disto é simples, como as próprias companhias admitem: simplesmente não faz sentido para as empresas farmacêuticas investir cerca de $870 milhões (ou $1.8 biliões tendo em conta os custos de capital) por medicamento aprovado pelos reguladores num produto que as pessoas só usam uma mão cheia de vezes na sua vida quando têm uma infecção, comparado com investir a mesma quantia no desenvolvimento de medicamentos altamente lucrativos para doenças crônicas como a diabetes ou o cancro que os doentes têm que tomar diariamente, muitas vezes para o resto da vida.

Todos os anos nos EUA, de acordo com os CDC (Centros de Controlo e Prevenção da Doença) cerca de dois milhões de pessoas são infectadas com bactérias resistentes aos antibióticos. Em resultado disso, 23 mil morrem.

Vemos uma situação idêntica com o desenvolvimento das vacinas. Há décadas que as pessoas compram medicamentos para a asma ou insulina, por exemplo, enquanto que as vacinas habitualmente só precisam de uma ou duas tomas uma vez na vida. Há décadas que muitas empresas farmacêuticas abandonaram não só a investigação e o desenvolvimento de vacinas mas também a produção, de tal modo que em 2003 os Estados Unidos começaram a sentir escassez de muitas das vacinas para a infância. A situação é tão grave que os CDC têm um site público que dá conta da escassez e dos atrasos correntes em vacinas.

Mas pelo menos, com respeito ao ebola onde o mercado se recusa em prover, o departamento de defesa sente-se à vontade para intervir e afastar os princípios do mercado livre no interesse da segurança nacional.

O virologista Thomas Geisbert do Ramo Médico da Universidade do Texas em Galveston falou à Scientific American sobre a sua esperança na vacina VSV uma das opções mais promissoras contra o ebola:

Estamos tentado arranjar financiamento para fazer os estudos humanos... mas depende de fato do apoio financeiro às pequenas empresas que desenvolvem estas vacinas. Os estudos humanos são caros e necessitam de dólares do governo. Com o ebola há um pequeno mercado global, não há um grande incentivo para uma grande empresa farmacêutica fazer uma vacina contra o ebola e por isso vai ser preciso financiamento governamental.

William Sheridan, o médico diretor da BioCryst Pharmaceuticals, que desenvolveu a droga anti-viral experimental BCX4430, descreve assim a difícil situação financeira que enfrenta a investigação e o desenvolvimento do tratamento do ebola: “Simplesmente não faria um corte numa grande empresa.”
Mas para uma pequena empresa como a sua, o governo federal apoiou a investigação e prometeu comprar as provisões de medicamentos anti-ebola como medida preventiva contra o bioterrorismo. A BCX4430 também é desenvolvida em cooperação com o Instituto de Pesquisa Médica para Doenças Infecciosas do Exército dos EUA (US Army Medical Research Institute for Infectious Diseases (USAMRIID). “Há um mercado e o mercado é o governo dos Estados Unidos”, disse à NPR.

O USAMRIID, juntamente com a Agência para a Saúde Pública do Canadá, também está a apoiar o desenvolvimento do ZMAPP, um soro de anticorpos monoclonais, por uma pequena empresa biotecnológica, a MAPP Biopharmaceutical em San Diego, o qual foi administrado a semana passada a dois médicos americanos, Kent Brantly e Nancy Writebol, a trabalhar com o grupo missionário evangélico cristão Samaritan’s Purse.

Os dois tinham adoecido na Libéria quando cuidavam de pacientes infectados com o vírus ébola. O estado de Brantley tinha-se deteriorado rapidamente e tinha telefonado à sua mulher a despedir-se.  Uma hora depois de Brantley ter recebido o soro experimental o seu estado tinha mudado de forma evidente, com a melhoria da respiração e o fim da irritação na pele.

Na manhã seguinte foi capaz de tomar duche sozinho e quando chegou aos Estados Unidos depois de ter sido evacuado da Libéria, foi capaz de descer da ambulância sem ajuda. Igualmente, Writebol está “de pé e a andar” depois da sua chegada a Atlanta procedente da capital liberiana.

Devemos ser extremamente cautelosos quanto a tirar conclusões deste desenvolvimento, afirmando que este medicamento curou os missionários. Temos uma amostra de apenas dois nesta “experiência clínica” sem grupos cegos ou de controlo. O medicamento nunca tinha sido testado até ao momento em seres humanos por segurança e eficácia. E como em qualquer doença, uma certa percentagem de doentes melhoram por si. Não sabemos se o ZMapp foi a causa da evidente recuperação. Não obstante, não é descabido afirmar que este acontecimento é uma grande esperança.

Dois dos anticorpos ZMapp foram originalmente identificados e desenvolvidos por investigadores no Laboratório Nacional de Microbiologia em Winnipeg e em Defyrus uma “empresa de biodefesa das ciências da vida” em Toronto com financiamento do Canadian Safety and Security Program of Defence R&D Canada. O terceiro anticorpo na mistura foi produzido por Mappbio em colaboração com o USAMRIID, os Institutos Nacionais de Saúde e a Agência de Defesa de Redução de Ameaças. As empresas associaram-se com a Kentucky Bioprocessing em Owensboro, uma firma produtora de proteinas que foi comprada no início deste ano pela empresa-mãe da RJ Reynolds Tobacco, para fazer pharming nas plantas de tabaco carregadas de anticorpos.

Ao saber-se do papel do Pentágono e da instituição de defesa do Canadá, alguns deram um salto para as teorias da conspiração. Com efeito, ZMapp parece ser uma tempestade perfeita de uma nêmesis popular: OGMs, Big Tobacco, Pentágono e injeções que se parecem um pouco com vacinas!
Mas o financiamento do Departamento de Defesa não deve ser visto como maléfico. Antes, é clara a superioridade do sector público como guardião e motor da inovação.

No entanto, nem todas as doenças não lucrativas são sujeitos de preocupação pelo bioterrorismo dos coronéis. E por que havia o sector privado de agarrar as condições lucrativas e deixar as não lucrativas para o sector público?

Se, devido ao seu imperativo de busca do lucro, a indústria farmacêutica é estruturalmente incapaz de produzir esses produtos de que a sociedade precisa, e o sector público (neste caso debaixo da capa militar) tem consistentemente de cobrir as falhas deixadas por esta falha do mercado, então este sector tem de ser nacionalizado, permitindo que as receitas dos tratamentos lucrativos subsidiem a investigação, desenvolvimento e produção de tratamentos não lucrativos.

Em tal situação, não teríamos sequer que discutir se a prevenção da malária, do sarampo ou da poliomielite merece uma maior prioridade; podíamos apontar ao mesmo tempo para os grandes nomes e para as doenças negligenciadas. Não há garantia que abrir a torneira do financiamento público produza imediatamente um resultado positivo, mas neste momento, as empresas farmacêuticas privadas nem sequer estão a tentar.

Isto é precisamente o que se quer dizer quando os socialistas falam de o capitalismo ser um entrave no desenvolvimento posterior das forças produtivas. A nossa preocupação aqui não é meramente que a recusa da Big Pharma em se envolver em doenças tropicais esquecidas, em vacinas e em antibióticos R&D seja grosseiramente imoral ou injusto, mas que a produção de uma potencial quantidade de novos produtos e serviços que possam trazer benefícios para a nossa espécie e expandir a esfera da liberdade humana estejam bloqueados devido à letargia do mercado livre e à escassez de ambição.

É vital concentrar a atenção numa vacina ou em medicamentos. Mas fazer isso sem também prestar atenção à deterioração da saúde pública e das infraestruturas gerais ao longo da África Ocidental e às condições econômicas que contribuem para a probabilidade de epidemias de doenças zoonóticas como o ebola é como usar um balde para esvaziar a água de um barco roto que se está a afundar.

O filogeógrafo e ecologista Rob Wallace descreveu bem como a disputa neoliberal estabeleceu as condições ideais para a epidemia. A Guiné, a Libéria e a Serra Leoa são alguns dos países mais pobres do planeta, ficando nos 178º, 174º e 177º lugares entre os 187 países no Índice de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas.

Se tal surto ocorresse nos países do norte da Europa, por exemplo, nos países com algumas das melhores infraestruturas de saúde do mundo, a situação teria mais probabilidades de ser contida.
Não é apenas a inexistência de hospitais de campo, a falta de práticas de higiene apropriada nos hospitais existentes, a ausência de unidades de isolamento e um quadro limitado de profissionais de saúde altamente treinados capazes de seguir todas as pessoas que possam ter estado expostas e isolá-las. Ou que melhores cuidados de apoio sejam uma condição vital para melhores resultados, qualquer que seja o tratamento disponível. A propagação da doença também foi exacerbada por um tremendo afastamento das estruturas governamentais básicas que, de outro modo, seriam capazes de mais eficazmente restringir movimentações, gerir dificuldades logísticas e coordenar-se com outros governos.

Daniel Bausch, epidemiologista e especialista em doenças infecciosas, que trabalhou em missões de investigação perto do epicentro do atual surto, descreve num artigo publicado em julho no jornal da Public Library of Science Neglected Tropical Diseases (Doenças Tropicais Esquecidas) como “testemunhou este “contra-desenvolvimento em primeira mão”; em cada viagem de volta à Guiné, em cada longa viagem de carro de Conakry à região da floresta, as infraestruturas pareciam cada vez mais deterioradas – a estrada que tinha sido pavimentada estava pior, os serviços públicos eram menos, os preços mais altos e a floresta mais desbastada.”

Wallace refere que aqui, tal como em muitos países, uma série de programas de ajustamento estrutural foram encorajados e aplicados por governos ocidentais e por instituições financeiras internacionais que exigem a privatização e a contração de serviços governamentais, a remoção de tarifas enquanto o agro-negócio do norte continua subsidiado e uma orientação no sentido de as colheitas irem para exportação à custa da autossuficiência alimentar. Tudo isto leva à pobreza e à fome e, por sua vez, à competição entre a comida e as colheitas para exportação para a capital; a terra e as produções agrícolas que levam a uma cada vez maior consolidação da posse da terra, em especial por companhias estrangeiras que limitam o acesso dos pequenos agricultores à terra.

O ebola é uma doença zoonótica, o que significa uma doença que se espalha dos animais para os humanos (ou vice versa). Cerca de 61% das infecções humanas ao longo da história foram zoonóticas, desde a gripe à cólera ou o HIV.

O principal fator que leva ao crescimento de novas patogenias zoonóticas é o maior contato entre humanos e a vida selvagem, muitas vezes pela expansão da atividade humana na selva. À medida que as forças de ajustamento estrutural forçam as pessoas a sair do campo, mas sem isso ser acompanhado com oportunidades de emprego na cidade, Wallace refere que elas mergulham “no interior da floresta para se expandirem no território, para alargar as espécies de animais caçados, para encontrar madeira para produzir carvão e nas minas para extrair minerais, aumentando o seu risco de exposição ao vírus do ebola e outras patogêneses zoonóticas nestes cantos remotos.”

Como Bausch refere: “Fatores biológicos e ecológicos podem levar à emergência do vírus da floresta, mas claramente a paisagem sociopolítica dita para onde ele vai daí, um ou dois casos isolados ou uma grande e prolongada epidemia.”

Estes resultados são a consequência previsível de desenvolvimento não planeado, ao acaso, em áreas que se sabe serem a origem da propagação zoonótica e sem o tipo de apoio infraestrutural e valores igualitários que permitiram, por exemplo, a eliminação da malária da América do Sul depois da II Grande Guerra pelos CDC numa das suas primeiras missões.

Nestes poucos meses que passaram o pior surto de ebola na história expôs a falência moral do nosso modelo de desenvolvimento farmacêutico. A luta pela assistência de saúde pública nos Estados Unidos e a luta aliada contra a privatização da assistência médica noutros sítios no ocidente sempre tem sido uma meia batalha. O objectivo de tais campanhas só pode verdadeiramente ser atingido quando se montar uma nova campanha: reconstruir a indústria farmacêutica internacional como um serviço do sector público assim como atingir as políticas neoliberais mais vastas que minam indiretamente a saúde pública.

Podíamos ir buscar inspiração aos grupos ativistas do HIV do fim dos anos 80 e início dos anos 90 como o ACT UP e o Treatment Action Group e nos anos 2000, a Campanha Ação de Tratamento da África do Sul que combinava ação direta e desobediência civil contra as empresas e contra os políticos com uma compreensão cientificamente rigorosa da sua condição.

Mas desta vez, precisamos de uma campanha mais vasta e global que cubra não apenas uma doença, mas a panóplia de falhas do mercado quanto a desenvolvimento de vacinas, vazio de descoberta de antibióticos, doenças tropicais negligenciadas e todas as doenças esquecidas da pobreza. Precisamos de um ativismo do tratamento com base na ciência que tem o objectivo estratégico, ambicioso, mas alcançável da conquista democrática da indústria farmacêutica.

Precisamos de uma campanha para destruir as doenças não lucrativas.

Colaborador

Leigh Phillips é escritora de ciência e jornalista de assuntos da UE. Ele é o autor de Austerity Ecology & the Collapse-Porn Addicts.

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