16 de março de 2016

E sobre o racismo? Os socialista não se importam só com classe

Na verdade acreditamos que a luta contra o racismo é central para desfazer o poder da classe dominante.

Keeanga-Yamahtta Taylor

Ilustração por Phil Wrigglesworth / Jacobin

Por mais de um ano, o movimento "Black Lives Matter" ("Vidas Negras Importam") tem tomado os Estados Unidos. O slogan central do movimento é um simples e declarativo reconhecimento de humanidade negra em uma sociedade assolada por desigualdades econômicas e sociais que são experimentadas desproporcionalmente por afro-estadunidenses.

O movimento é relativamente novo, mas o racismo que o gerou não é. Por cada barômetro na sociedade estadunidense – saúde, educação, emprego, pobreza – afro-estadunidenses estão em situação pior. Representantes eleitos de todo o espectro político muitas vezes culpam essas disparidades na ausência de “responsabilidade pessoal” ou as veem como um fenômeno cultural particular aos afro-estadunidenses.

Na realidade, a desigualdade racial tem sido produzida largamente por políticas de governo e instituições privadas que não apenas empobrecem afro-estadunidenses mas também os demonizam e criminalizam.

Ainda assim, o racismo não é simplesmente um produto de políticas públicas errantes ou mesmo de atitudes individuais de pessoas brancas racistas – e entender as raízes do racismo na sociedade estadunidense é crítico para erradicá-lo. Fazer políticas públicas melhores e banir comportamento discriminatório por indivíduos ou instituições não vai resolver. E enquanto existe uma necessidade séria por ação governamental para banir práticas que ameaçam grupos inteiros de pessoas, estas estratégias falham em compreender a escala e a profundidade da desigualdade racial nos Estados Unidos.

Para entender por que os EUA parecem tão resistentes à igualdade racial, temos de olhar além de representantes eleitos ou mesmo daqueles que prosperam à partir de discriminação racial no setor privado. Temos de dar uma olhada na forma com que a sociedade estadunidense está organizada sob o capitalismo.

Dividir e governar

O capitalismo é um sistema econômico baseado na exploração dos muitos pelos poucos. Por causa da brutal desigualdade que ele produz, o capitalismo depende de várias ferramentas políticas, sociais e ideológicas para racionalizar aquela desigualdade enquanto simultaneamente divide a maioria, que teria todo o interesse em se unir para resistir a isso.

Como o 1% mais rico mantém seu controle desproporcional da riqueza e dos recursos na sociedade americana? Por um processo de ‘dividir para governar’.

O racismo é apenas uma entre muitas opressões que pretendem servir a este propósito. Por exemplo, o racismo estadunidense se desenvolveu sob um regime de escravidão como uma justificação para a escravização de africanos em uma época em que o mundo estava celebrando os conceitos de isenção, liberdade e auto-determinação.

A desumanização e sujeição das pessoas negras tinha de ser racionalizada neste momento de novas possibilidades políticas. Mas o objetivo central era preservar a instituição da escravidão e as enormes riquezas que ela produzia.

Como Karl Marx reconheceu:

“Escravidão direta é tanto um pivô da indústria burguesa quanto maquinário, créditos, etc. Sem escravidão você não tem algodão; sem algodão você não tem a indústria moderna. É a escravidão que deu às colônias seu valor; são as colônias que criaram o comércio mundial e é o comércio mundial que é precondição para a indústria de larga-escala. Assim, escravidão é uma categoria econômica da maior importância.”

Marx também identificava a centralidade do trabalho escravo africano na gênese do capitalismo quando ele escreveu que

“a descoberta de ouro e prata na América, a extirpação, escravização e sepultamento em minas da população aborígene, o início da conquista e do saque das Índias Orientais, a transformação da África em um viveiro para caça comercial de peles negras, sinalizaram a rósea aurora da era de produção capitalista.”

As necessidades de mão-de-obra pelo capital apenas poderia explicar como o racismo funcionava sob o capitalismo. A desumanização literal de africanos por causa do trabalho era usada para justificar seu tratamento cruel e seu status depreciado nos EUA.

Sua desumanização não acabou simplesmente quando a escravidão foi abolida; ao invés disso, a marca de inferioridade estigmatizando a pele negra seguiu rumo a emancipação e estabeleceu as bases para a cidadania de segunda-classe que afro-americanos experienciaram por quase cem anos após a escravidão.

O rebaixamento de negros também tornou os afro-americanos mais vulneráveis à coerção e manipulação econômica – não apenas “anti-negrume.” Coerção e manipulação estavam baseadas nas demandas econômicas em evolução do capital, mas seu impacto agitava muito além do reino econômico. Pessoas negras estavam despojadas de seu direito ao voto, sujeitas a violência arbitrária, e travadas em trabalho servil e mal-pago. Esta era a economia política do racismo americano.

Havia outra consequência do racismo e da estigmatização de negros. Afro-americanos estavam tão completamente banidos da vida social, civil e política que era virtualmente impossível para a vasta maioria de brancos pobres e da classe trabalhadora mesmo conceber se unir com negros e desafiar o poder e a autoridade da camarilha branca dominante.

Marx reconheceu esta divisão básica dentro da classe trabalhadora quando observou que

“nos Estados Unidos da América, cada movimento independente de trabalhadores estava paralisado enquanto a escravidão desfigurava uma parte da república. Os trabalhadores não podem emancipar a si mesmos na pele branca enquanto a negra é marcada.”

Marx compreendeu a dinâmica moderna do racismo como um meio pelo qual trabalhadores que teriam interesses objetivos em comum podiam também se tornar inimigos mortais por causa de ideias nacionalistas e racistas subjetivas – mas mesmo assim, reais. Observando as tensões entre trabalhadores irlandeses e ingleses, Marx escreveu:

“Cada centro comercial e industrial na Inglaterra possui uma classe trabalhadora dividida em dois campos hostis, proletários ingleses e proletários irlandeses. 
O trabalhador inglês comum odeia o irlandês como um competidor que baixa seu padrão de vida. Em relação ao trabalhador irlandês ele sente a si mesmo como um membro de uma nação dominante e então transforma a si mesmo em uma ferramenta de aristocratas e capitalistas de seu país contra a Irlanda... 
Este antagonismo é mantido vivo artificialmente e intensificado pela imprensa, o púlpito, os jornais de piada, em resumo, por todos os meios à disposição das classes dominantes. Este antagonismo é o segredo da impotência da classe trabalhadora inglesa, apesar de sua organização. É o segredo pelo qual o capitalista mantém seu poder. E aquela classe está totalmente ciente disso.”

Para socialistas nos EUA, reconhecer a centralidade do racismo em dividir a classe que tem o poder real para desfazer o capitalismo tem tipicamente significado que socialistas têm estado pesadamente envolvidos em campanhas e movimentos sociais para acabar com o racismo.

Mas dentro da tradição socialista, muitos têm também argumentado que como os afro-americanos e a maioria de outros não-brancos são desproporcionalmente pobres e de classe-trabalhadora, campanhas que miram terminar com a desigualdade econômica iriam, sozinhas, encerrar a sua opressão.

Esta posição ignora como o racismo constitui sua própria base para a opressão de pessoas não-brancas. Negros comuns e outras minorias não-brancas são oprimidos não apenas por causa de sua pobreza mas também por causa de suas identidades raciais ou étnicas.

Também não há correlação direta entre expansão econômica ou condições econômicas melhoradas e uma queda na desigualdade racial. Na realidade, a descriminação racial muitas vezes previne afro-americanos e outros de acessar completamente os frutos da expansão econômica.

Afinal de contas, a insurgência negra dos anos 60 coincidiu com a economia robusta e pujante dos anos 60 – os negros estavam se rebelando por que estavam trancados fora da abundância americana. Olhar para o racismo como apenas um resultado secundário da desigualdade econômica ignora as formas com que o racismo existe como uma força independente que causa estragos nas vidas de todos os afro-americanos.

A luta contra o racismo regularmente intercepta lutas por igualdade econômica, mas o racismo não se expressa apenas sobre questões econômicas. Lutas anti-racistas também tomam lugar em resposta às crises sociais que comunidades negras experienciam, incluindo lutas contra a perseguição e discriminação; brutalidade policial; desigualdade educacional, de saúde e de moradia; encarceramento em massa e outros aspectos do sistema de “justiça criminal”.

Estas lutas contra a desigualdade racial são críticas, tanto para melhorar as vidas de afro-estadunidenses e outras minorias raciais e étnicas no aqui-e-agora, e para demonstrar para pessoas brancas comuns o impacto destrutivo do racismo nas vidas de pessoas não-brancas.

Conquistar brancos comuns para um programa antiracista é um componente chave para construir um movimento de massa genuíno e unificado capaz de desafiar o Capital. Unidade não pode ser atingida sugerindo que pessoas negras deveriam minimizar o papel do racismo em nossa sociedade para não alienar brancos – enquanto se focando apenas na luta “mais importante” contra a desigualdade econômica.

É por isso que agrupamentos multirraciais de socialistas têm sempre participado nas lutas contra o Racismo. Isso foi particularmente verdade ao longo do século XX, enquanto afro-estadunidenses se tornaram uma população mais urbana em constante conflito e competição com nativos e brancos imigrantes por empregos, moradia e escolas. Conflitos violentos entre negros e brancos de classe-trabalhadora sublinham o quanto a divisão racial destruiu os laços de solidariedade necessários para coletivamente desafiar patrões, senhores de terra e representantes eleitos.

Os socialistas desempenharam papéis chave nas campanhas contra o linchamento e o racismo no sistema judiciário e criminal, como na campanha dos “Garotos de Scottsboro” nos anos 30, quando nove jovens afro-estadunidenses foram acusados de estuprar duas mulheres brancas em Scottsboro, Alabama. A progressista “Associação Nacional para o Avanço das Pessoas ‘De Cor’” (NAACP) estava relutante em assumir o caso, mas os julgamentos de Scottsboro se tornaram uma prioridade para o Partido Comunista e sua afiliada Liga de Defesa Internacional.

Uma parte da campanha envolveu correr o país com as mães dos garotos e depois o mundo para chamar atenção e despertar apoio para seu caso. Ada Wright – mãe de dois dos garotos – viajou 16 países em 6 meses em 1932 para contar a história de seus filhos. Como ela estava viajando com conhecidos comunistas, ela foi frequentemente impedida de falar. Na Tchecoslováquia ela foi acusada de ser uma comunista e presa por 3 dias, antes de ser expulsa do país.

Socialistas estiveram envolvidos nos impulsos de sindicalização entre afro-estadunidenses e foram centrais para as campanhas de direitos civis no Norte, Sul e no Oeste para afro-estadunidenses e outras minorias oprimidas. Este engajamento explica por que muitos afro-estadunidenses gravitaram em torno de políticas socialistas ao longo de suas vidas – socialistas têm sempre articulado umas visão de sociedade que poderia garantir liberdade negra genuína.

No final dos anos 60, mesmo figuras como Martin Luther King Jr estavam descrevendo um tipo de visão socialista de futuro. Em uma apresentação de 1966 para um encontro de sua organização “Conferência de Liderança Cristã do Sul”, King comentou:

“Nós precisamos encarar honestamente o fato de que o movimento precisa lidar com a questão da reestruturação completa da sociedade americana. Existem 40 milhões de pessoas pobres aqui. E um dia nós devemos fazer a pergunta, ‘Por que existem 40 milhões de pessoas pobres nos Estados Unidos da América?’ E quando você começa a fazer essa pergunta, você está levantando questões sobre o sistema econômico, sobre uma distribuição mais ampla de riqueza. Quando você faz essa pergunta, você começa a questionar a economia capitalista. ...” 
‘A quem pertence o petróleo?’ Você começa a perguntar, ‘A quem pertence o minério de ferro?’ Você começa a perguntar, ‘Por que as pessoas precisam pagar contas de água em um mundo que é dois terços água?’ Estas são questões que precisam ser feitas.”

Enquanto os movimentos continuaram a se radicalizar, grupos como os Panteras Negras e a Liga de Trabalhadores Negros Revolucionários seguiram na tradição de Malcom X quando vincularam a opressão negra diretamente ao Capitalismo. Os Panteras e a Liga foram mais longe do que Malcom ao tentar construir organizações socialistas para o propósito específico de organizar negros da classe trabalhadora para lutar por um futuro socialista.

Hoje o desafio para Socialistas não é diferente: estar centralmente envolvidos nas lutas contra o racismo enquanto também lutando por um mundo baseado em necessidades humanas, não em lucro.

Colaborador

Keeanga-Yamahtta Taylor is an assistant professor in Princeton University's Department of African American Studies.

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