8 de setembro de 2017

Estragando o jogo bonito

Brandon Jordan e Miguel Salazar

Como a influência do dinheiro alto e as frouxas regulamentações financeiras estão permitindo que os violadores de direitos humanos lavem sua imagem pública através do futebol.



Tradução / Em 2010, quando o Barcelona anunciou um patrocínio emblemático de cinco anos no valor de 175 milhões da Qatar Foundation, pareceu que começava uma nova era no mundo do futebol. Uma soma como essa nunca havia sido acordada para patrocínio esportivo. O vice presidente do clube, Javier Faus, saudou a negociação como “ a maior na história do futebol e em uma época de crise, também.” O Barcelona, um dos últimos grandes times a resistir aos grandes patrocinadores, finalmente capitulou - e de uma forma espetacular. O patrocínio na camisa seria o primeiro nos 111 anos de história do clube.

O contrato de 2010 inicialmente foi anunciado como um esforço humanitário. A Qatar foundation, criada em 1995 pelo xeique Hamad bin Khalifa Al-Thani, emir do Qatar, e presidido pela primeira dama, tinha como objetivo estimular a educação e o desenvolvimento no país. Ela se associaria bem com a marca que o Barcelona vinha cultivando por muito tempo, uma identidade facilmente resumida em um slogan simples: “mais que um clube.” os torcedores, entretanto, não ficaram completamente convencidos, e logo pensaram que o contrato compromete a identidade do Barcelona. O clube teria se vendido?

Em breve eles teriam a resposta definitiva. Em 2013 o Barcelona assinou outro contrato de patrocínio com um patrocinador diferente com um nome similar: a Qatar Airways. Sem o pretexto da caridade, o Qatar posicionou com sucesso sua marca em um dos espaços de propaganda mais procurados do mundo. A companhia aérea, ligada à família real do Qatar, se tornou o primeiro patrocinador corporativo do clube, virando a filosofia do Barcelona do avesso.

Uma nova era nas despesas

O patrocínio no Barcelona marcou, para muitos, uma virada no futebol profissional que já vinha chegando a muito tempo. Apesar de sua popularidade, a queda livre dos preços das televisões nos últimos anos expuseram o esporte a centenas de milhões de torcedores em potencial pelo globo, impulsionando-o novos patamares. As torcidas cresceram exponencialmente - de acordo com o jornalista Simon Kuper e o economista Stefan Szymanski em seu best seller internacional Soccernomics, o número estimado de torcedores do Manchester United mais que triplicou em cinco anos, indo de 75 milhões em 2003 para gritantes 333 milhões em 2008.

Clubes europeus começaram marcando turnês de verão e desenvolvendo parcerias em países como a China, os Estados Unidos, e a Índia. Com novas fan bases assistindo no estrangeiro, direitos de exibição televisiva, e por extensão, patrocínios, continuaram a subir constantemente, então, o Qatar chegou, e com ele veio um novo tipo de despesa. Na época que o Barcelona anunciou sua parceria de US$35 milhões por ano com a Qatar foundation, seu maior rival, o real Madrid, só ganhava metade disso de seu patrocínio com os bookmakers da Bwin. Desde então, patrocínios e direitos de transmissão subiram exponencialmente, como vimos nos contratos de US$6,6 bilhões da Premier League inglesa pelos direitos de transmissão.

O doping financeiro

Nos últimos anos, a pesada entrada de dinheiro do Qatar no futebol resumiu a comercialização do esporte. Na época do contrato de patrocínio do Barcelona, outro grupo do Qatar estava explorando oportunidades de investimentos próximas. Entre 2011 e 2012, a Qatar Sports Investments(QSI), um braço financeiro estatal, completou uma série de investimentos para obter a propriedade total do Paris Saint-Germain (PSG), que então valia US$130 milhões. Dois anos depois, o presidente do Paris Saint-Germain Nasser al-Khelaifi disse ao Financial Times que sempre houve uma visão clara para o time: "ser um dos melhores clubes da Europa”. Nos últimos anos , o PSG derramou centenas de milhões de dólares para adquirir grandes talentos como Zlatan Ibrahimović e Ángel Di María.

O barcelona, por outro lado, estava fazendo algumas mudanças. Em julho, eles substituíram seu patrocínio da Qatar Airways pelo provedor japonês de internet Rakuten. Como retaliação, o Qatar se envolveu em outra negociação que quebrou recordes. Dessa vez, entretanto, foi um jogador Neymar da Silva Santos Junior, a estrela brasileira de 25 anos do clube, que iria para o PSG em uma negociação colossal sem precedentes de US$264 milhões.

A transferência de Neymar agitou o mercado de transferências, mais que dobrando o recorde anterior estabelecido em 2016, quando o Manchester united pagou US$116 milhões para atrair Paul Pogba da Juventus. A movimentação foi recebida com repúdio e indignação: Javier Tebas, presidente da liga principal de futebol da Espanha, denunciou a transferência do PSG como um caso de “doping financeiro”. Muitos outros como o técnico do Liverpool Jurgen Klopp, apontaram como um deboche com as regras de Fair play financeiro - um conjunto de termos financeiros criados especificamente pela UEFA, entidade coordenadora do Futebol na Europa, para controlar excessos nas despesas.

Pelas regulações europeias atuais, os clubes não tem permissão para exceder €30 milhões em gastos, ou para atingir perto de €35 milhões, em um período de três anos. O PSG, que agora é considerado um peso-pesado europeu, arrecada centenas de milhões de dólares a cada temporada em patrocínios, faturamento com transmissões, vendas de ingressos, entre outras fontes de renda. Mas o faturamento líquido não seria o suficiente para cobrir o preço de US$264 de Neymar e nem seu salário anual de US$ 53 milhões, de acordo com a Forbes. A revista apontou para um patrocínio nebuloso de €175 milhões da Qatar Tourism Authority - um órgão do governo do Qatar - como elemento chave para o clube ultrapassar as regras da FFP que banem clubes de equilibrar perdas no faturamento com o patrimônio.

Uma prisão a céu aberto
Porque o país do Golfo gasta tanto dinheiro, e arrisca tanto, em um jogo de futebol? Parece que a transferência de Neymar foi só a última das tentativas do Qatar de melhorar sua imagem pública, que foi golpeada desde que a FIFA chocou a comunidade do Futebol nomeando-o Anfitrião da Copa do Mundo de 2022. Logo depois do anúncio, uma enxurrada de denúncias começaram a questionar o processo de escolha; o Qatar, que foi rotulado como o único país de “alto risco” dos 9 sob avaliação da FIFA, conseguiu avançar de alguma forma.

Depois, foi revelado que o Qatar havia pago a soma gritante de US$ 27 bilhões em “lobby” para influenciar o Comitê Executivo da FIFA, o fórum que tem a tarefa de avaliar as candidaturas para a Copa do Mundo.Oficiais receberam jatos particulares, acordos comerciais, e, como parte do acordo para conseguir o voto da Espanha, o agora infame patrocínio da Qatar Airways para o Barcelona. O país até recrutou Pep Guardiola, um ex-jogador e técnico do Barcelona para apoiar sua candidatura a sede da Copa do Mundo.

A candidatura atraiu um firme repúdio, especialmente entre os financiadores corporativos, que exigiram que a FIFA conduzisse uma avaliação interna do processo. Um investigador independente foi contratado para completar o relatório interno, que foi publicado em 2014 e inocentou o Qatar de qualquer irregularidade. Mas horas depois do lançamento, o investigador, Miguel Garcia, lançou uma declaração de que o relatório continha “ descrições materialmente incompletas e errôneas”. Em junho passado, o órgão internacional lançou o relatório que um jornal alemão pretendia publicar.

O Qatar, isento de qualquer potencial punição da FIFA, começou uma ofensiva, acusando seus críticos de “preconceito e racismo”. Khaled al-Attiyah, ministro de relações exteriores na época, disse para a Reuters, “é muito difícil para alguns digerirem que um país árabe islâmico receberá esse torneio, como se esse direito não fosse para um estado árabe”

Nos próximos anos, o Qatar gastará pelo menos US$200 bilhões na construção de estádios extravagantes e prédios esportivos, mas pouco desse dinheiro vai acabar nas mãos dos trabalhadores migrantes, que são cerca de 90% da mão-de-obra do país. Trabalhadores migrantes vivem com pouca, ou nenhuma, segurança no trabalho e estão sujeitos a longas horas de trabalho, sob temperaturas que ultrapassam 48 graus. Muitos recebem salários péssimos, tem seus pedidos para deixar o país negados, e , às vezes, morrem graças às condições intoleráveis de trabalho- condições que levaram o embaixador nepalês no Qatar a se referir à nação do Golfo como “uma prisão a céu aberto”. Não existe o cálculo de um número exato de mortes, mas admite-se que sejam centenas, ou talvez milhares. O Qatar insiste que “a vida de nenhum trabalhador foi perdida”

A exploração do trabalho para a construção de estádios para torneios prestigiados não são exclusivas do Qatar. A Rússia e o Brasil foram acusados de abusar do trabalho barato para seus próprios estádios. No início deste ano a Rússia foi acusada de forçar trabalhadores Norte-coreanos a trabalhar em condições “análogas à escravidão” depois que uma lei em 2013 excluiu os trabalhadores das leis trabalhistas do país. Enquanto isso, além das recorrentes violações dos direitos trabalhistas na Copa do Mundo de 2014, o Brasil também se engajou em estratégias similares às de guerra para limpar vilas e favelas. Essas práticas- e a simples inexistência de prestação de contas dos estados que as usaram- lançaram as bases para o abuso sem precedentes com os trabalhadores do Qatar frente ao controle global.

Em vez de parar com suas práticas trabalhistas desagradáveis, o Qatar se voltou para métodos mais brilhantes para polir sua fachada de relações públicas. Xavi, ex-estrela do Barcelona e agora embaixador da Copa do Mundo de 2022, clamou em junho por ‘um fim ao bloqueio”. O país também lançou boatos de de que havia conseguido um acordo para recrutar Neymar como embaixador para sua copa do Mundo. Mais recentemente, o PSG, de propriedade do Qatar, tem monopolizado as manchetes por elaborar um contrato com vários níveis com valor acima de US$ 214 milhões como As Monaco para emprestar o promissor jogador de 18 anos de idade Kylian Mbappé, tudo apra evitar as sanções da FFP. A UEFA, em resposta, abriu uma investigação formal sobre o cumprimento das regras financeiras pelo clube.

Retomando o jogo
Nada disso é novidade. O futebol internacional, e da Europa em particular, a muito tempo abraçou um conjunto de regulaçẽos financeiras frouxas- os gastos desenfreados do Qatar apenas aceleraram um câncer que já estava se espalhando a anos. Agora que a globalização do futebol abriu uma nova fanbase internacional para os principais clubes europeus, times como o Barcelona e o PSG estão vendendo mais camisas, lotando mais assentos, e, com orçamentos inchados, competindo entre si pelos mesmos jogadores de elite.

Como resultado, um grupo diminuto de clubes europeus determina o valor, salários, e ultimamente, o sucesso dos jogadores pelo mundo todo.. Programas de treinamento de jovens foram os maiores perdedores, os clubes perderam qualquer incentivo para desenvolver talentos feitos em casa quando puderam pagar por uma solução instantânea. Até o Barcelona começou a diminuir o treinamento de La masia, sua antes celebrada academia de futebol.

Além disso, alguns times tentaram ordenhar os torcedores locais aumentando os preços dos ingressos a valores excessivos. Ano passado, torcedores do Liverpool organizaram a primeira greve por causa de um aumento nos preços dos assentos no estádio, e por fim forçaram o clube a descartar o plano. Esse tipo de pressão levou alguns clubes da Inglaterra a congelar as vendas de ingressos ou a oferecer subsídios. Malcolm Clarke, presidente da Federação de Torcedores de Futebol, disse em uma entrevista no ano passado que no ultimo contrato para a TV da Premier League, a liga poderia “deixar cada torcedor assistir de graça todos os jogos e ainda ter muito dinheiro” como antes.

Torcedores resistiram à corporativização. Na Áustria, quando a REd bull comprou o SV Austria Salzburg e depois o rebatizou como FC Red Bull Salzburg, alguns dos torcedores do clube responderam criando um novo time com o nome original do clube.

Em um nível mais alto, já houve uma tentativa de diminuir o crescimento da desigualdade no futebol pelas regulações do FFP, mas parece que muitas delas foram em vão. O PSG já tinha sido multado em 2014 por estourar o teto de gastos da UEFA, e os eventos mais recentes indicam que o clube não se sente intimidado por regulações financeiras.

As confederações regionais- em particular a UEFA- precisam criar regras mais rigorosas e executáveis para garantir que clubes menores não sejam diminuídos por uma meia dúzia de clubes ricos. As ligas domésticas, por outro lado, podem pressionar por uma distribuição justa dos direitos de exibição televisiva e apoiar sindicatos de jogadores. Atualmente, quatro, em cada dez jogadores profissionais mundo a fora não recebem seus pagamentos em dia.

Impor reformas mais duras, entretanto, pode se provar dificil. Recentemente , os maiores clubes da europa Chantagearam a UEFA para garantir que cada uma das quatro maiores ligas-Espanha, Itália, Alemanha e Inglaterra- tivesse 4 vagas garantidas na Champions League, a competição mais prestigiada do continente. Os clubes ameaçaram formar uma superliga fechada que substituiria efetivamente a competição europeia. A UEFA expressou resistência ao plano, mas que lutariam para impedi-los a menos que a FIFA se metesse.

Quanto à copa do Mundo, a cobertura da mídia continua a focar os abusos trabalhistas no Qatar. Em 2013 a Human rights Watch denunciou o uso do clube inglês Manchester City pelos EAU para “limpar a reputação do país de perpetrar sérios abusos contra os direitos humanos”. O mesmo será feito agora com o Qatar.

A reforma mais vital nesse momento é eliminar a corrupção. As sacudidas recentes na FIFA e na UEFA-provocadas pela investigação dos EUA que levou a múltiplas prisões de de grande importância dentro da FIFA- e ao apoio público para que esforços anticorrupção tenham novas chances. O novo presidente da UEFA, Aleksander Ceferin, jurou se manter firme contra os investidores e retificar as “disparidades” entre as ligas europeias. A situação da FIFA parece menos promissora , mas um remédio simples existe- criar dois corpos independentes: um para enfrentar ativamente suborno e corrupção, e outro para promover o jogo em si. Com o aumento do controle e da pressão públicos sobre a FIFA, isso é possível, provavelmente será uma batalha a ser travada nos próximos anos. A medida que os fãs começam a tomar mais consciência e resistir aos caprichos dos executivos, ainda existe uma esperança de um jogo mais bonito e mais igualitário.

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