10 de julho de 2020

Entregadores de aplicativos precisam ter contrato de trabalho? SIM

Flexibilidade de horários não é incompatível com o direito do trabalho

Renan Kalil

Folha de S.Paulo

Procurador do trabalho, doutor em direito pela USP e pesquisador da Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista (Remir)

Uma foto impactante de 2019 retratava dois entregadores deitados com suas cabeças dentro das “bags”, tentando descansar entre os turnos de trabalho, em uma praça na região da avenida Faria Lima, em São Paulo. Em 2020, no meio da pandemia do coronavírus, trabalhadores relatam o sofrimento de entregar refeições para os outros com a própria barriga vazia.

Os aplicativos de entrega —plataformas como Rappi, UberEats, iFood e outras— dizem que os trabalhadores desfrutariam de flexibilidade para escolher quando trabalhar e, portanto, seriam autônomos. Consequentemente, não teriam direitos trabalhistas.

Renan Kalil, procurador do trabalho, doutor em direito pela USP e pesquisador da Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista (REMIR) - Arquivo pessoal

A flexibilidade de horários não é incompatível com o direito do trabalho. Existem diversos tipos de contratos que permitem jornadas diferenciadas. Não faltam instrumentos tecnológicos para acompanhar a carga horária dos entregadores. As plataformas já a monitoram, só não são transparentes em relação a esses dados.

A flexibilidade só é benéfica quando a dependência econômica do trabalho é pequena. Se para sobreviver é preciso passar o dia todo fazendo entregas, a liberdade se resume a escolher quando começar uma longa jornada de trabalho. Pesquisas sobre as condições de trabalho dos entregadores, como a realizada pela Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista (REMir), apontam que a maioria trabalha pelo menos nove horas diárias em sete dias da semana. Ou seja, para muitos, é uma atividade como tantas outras, agravada pelo cansaço físico e pela exposição aos riscos do trânsito das grandes cidades.

A liberdade dos entregadores é restrita não só porque trabalham muitas horas e em condições precárias. Diversos aspectos do trabalho são determinados unilateralmente pelos aplicativos, como o valor da remuneração dos trabalhadores, as regras para entrar e permanecer na plataforma, a necessidade de aceitar trabalho para continuar recebendo pedidos, o modo pelo qual as entregas devem ser feitas e as decisões sobre bloqueio e desligamento dos entregadores. Tudo isso é coordenado pelos algoritmos —instruções automatizadas cujo conteúdo é estabelecido pelas plataformas.

Esse é o diferencial desse mercado: controlar o trabalho via algoritmo. Procurar um gerente ou encarregado que dá ordens para identificar que há subordinação dos entregadores às regras da plataforma é tentar reduzir o direito do trabalho a uma peça de museu. As técnicas de gestão de mão de obra evoluíram, e o direito do trabalho deve acompanhá-las.

O contrato de trabalho foi criado para reconhecer a desigualdade econômica entre empregado e empregador, criando patamares para estabelecer o mínimo de proteção a todos os trabalhadores. Suas regras básicas, como o salário mínimo e a limitação da jornada, permitiriam aos entregadores não ter que trabalhar em troca de remunerações irrisórias ou por jornadas extenuantes para garantir a sua subsistência.

O direito do trabalho pode ser aprimorado. É preciso criar regras de transparência da precificação da remuneração e da distribuição do trabalho. E, ainda, estabelecer procedimentos justos antes da punição de entregadores, bem como regular o uso dos dados pertencentes aos trabalhadores.

Afastar a proteção jurídica sob o argumento de uma liberdade que é, na melhor das hipóteses, reduzida à escolha de quando trabalhar, ignora como as plataformas funcionam. Não devemos aceitar uma versão romanceada da realidade que condena os trabalhadores a um futuro sem dignidade. Se a melhor resposta que oferecemos àqueles que trabalham com fome e não têm onde descansar é “você pode escolher o seu horário de trabalho!”, falhamos como sociedade.

Sobre o autor

Procurador do trabalho, doutor em direito pela USP e pesquisador da Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista (Remir)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Guia essencial para a Jacobin

A Jacobin tem divulgado conteúdo socialista em ritmo acelerado desde 2010. Eis aqui um guia prático para algumas das obras mais importantes ...