31 de outubro de 2017

A exceção americana

A seleção de futebol masculino dos EUA é inequivocamente excludente. Pode ser por isso que ela não vai à Copa do Mundo.

Stephen Wood


Christian Pulisic (EUA) reage à derrota para Trinidad e Tobago em 10/10/2017. Ashley Allen/Getty Images

Tradução / No dia 10 de outubro, o time nacional de futebol dos Estados Unidos não conseguiu se qualificar para a próxima Copa do Mundo. Tudo que eles precisavam para jogar na Rússia 2018 era um empate com Trinidad e Tobago; em vez disso, eles fizeram uma das performances mais apáticas de uma campanha de qualificação já sem graça. Quando soou o apito final, os estado-unidenses tinham fracassado num campo encharcado em Trinidad e Tobago, e ficaram fora da Copa do Mundo pela primeira vez desde o governo Reagan.

Há muitos responsáveis pelo desastre da desclassificação e muitas críticas foram direcionadas ao presidente da US Soccer Federation (USSF) [Federação de Futebol dos EUA], Sunil Gulati, que já era uma figura controversa. Por um lado, ele presidiu alguns dos maiores sucessos do futebol dos EUA, incluindo a vitória da seleção feminina na Copa do Mundo em 2015, o crescimento sem precedentes da Major League Soccer (MLS) [Liga Principal de Futebol] e a fundação da National Women’s Soccer League [Liga Nacional de Futebol Feminino]. Por outro, ele emitiu um “não” firme quando o time feminino exigiu que recebesse o mesmo que o time masculino. Quando uma dessas mulheres se ajoelhou em solidariedade a Colin Kaepernick na última primavera, a organização de Gulati passou imediatamente uma nova regra que obrigava os jogadores a “ficarem de pé de forma respeitosa” para o hino. Finalmente, houve a contratação e demissão do polêmico técnico Jürgen Klinsmann seguida pela escolha do conservador e sem inspiração Bruce Arena, que liderou a desastrosa campanha de qualificação para a Copa do Mundo.

Entretanto, por trás das controvérsias de Gulati estão questões mais sistêmicas: a estrutura monopolística do futebol nos EUA, o desrespeito ao treinamento nos níveis mais baixos e o acesso profundamente desigual ao esporte. Essas questões conspiram para criar uma podridão no coração do futebol nos EUA, agravando as disparidades ao mesmo tempo em que diminuem o desempenho ao longo do tempo.

Complacente no topo

Uma associação nacional de futebol (a USSF, no caso americano) é o órgão que governa o futebol de forma supostamente neutra num dado país. Ela serve como o representante daquele país para a FIFA, a Federação Internacional de Associações de Futebol, e organiza competições domésticas. Isso envolve a criação de uma estrutura de várias divisões, conhecida como uma pirâmide, que classifica as ligas profissionais de futebol do país. Há geralmente uma liga na primeira divisão; ligas similares mas menos glamurosas na segunda e na terceira divisão; e ligas regionais nas divisões mais baixas. Times podem passar de ligas inferiores para superiores ou vice-versa com base no seu desempenho.

O processo pelo qual eles podem se mover é conhecido como promoção/rebaixamento e é líquido e certo em muitas partes do mundo. O time ou os times que terminam melhor numa dada liga se movem para a liga acima dela, trocando de lugar com os times que terminam pior nessa liga mais alta. Em suma, o sistema de promoção/rebaixamento cria um percurso da obscuridade até o topo, criando algumas das maiores histórias do esporte. Por exemplo, o título do Leicester City FC na Premier League inglesa em 2016, vencido apenas dois anos depois que o clube subiu da segunda divisão, foi celebrado em todo o mundo e foi considerado o campeonato mais improvável da história dos esportes.

Nada disso acontece no futebol dos EUA. A MLS tem sido a força dominante no futebol estado-unidense desde a sua fundação. Em termos gerais, é a única grande liga de futebol do mundo que não promove equipes de baixo e não rebaixa seus membros mais fracos.

Hoje em dia, os clubes de segunda e terceira divisão estão ganhando popularidade nos Estados Unidos e começaram a pedir para poderem subir e cair. Essas chamadas se intensificaram após a partida com Trinidad e Tobago, com muitos apontando para promoção/rebaixamento como a solução óbvia para a complacência no topo da pirâmide. A USSF, como órgão “neutro” que governa o futebol, deveria estar estalando o chicote e forçando os clubes da MLS a aceitarem mais competição. Em vez disso, manteve-se junto com a MLS para anular os movimentos em direção ao sistema de promoção/rebaixamento.

Essa dinâmica íntima entre a USSF e a MLS não é evidente só nessa controvérsia. Também pode ser vista em outro ponto central do futebol nos EUA: o mecanismo de solidariedade.

Sem solidariedade

Os mecanismos de solidariedade são uma tradição histórica das federações de futebol em todo outro lugar do mundo. De acordo com as regras da FIFA, se um jogador se transfere para outro time durante seu contrato, 5% da taxa de transferência é distribuída para os clubes envolvidos no treinamento e educação do jogador ao longo dos anos. É um método lucrativo para apoiar clubes juvenis e incentivar treinamento de qualidade nos níveis mais baixos. E os Estados Unidos é o único lugar onde ela não existe.

Um dos jogadores no centro da controvérsia sobre a taxa de solidariedade é DeAndre Yedlin. Depois de fazer onda com os Seattle Sounders, Yedlin subiu, assinando com o Tottenham Hotspur da Premier League da Inglaterra, que gastou mais de 2,3 milhões de libras esterlinas para a aquisição.

De acordo com as regras da FIFA, e evidentemente não familiarizado com o conceito americano de “atleta estudante”, o Tottenham contatou a Universidade de Akron, onde Yedlin jogou na faculdade, para lhes dar uma parte da taxa de transferência. Isso provocou uma batalha no futebol nos EUA. A Major League Soccer pretendia ficar com todo o dinheiro e bloquear o mecanismo de solidariedade. Mas o Crossfire Premier, o clube no qual Yedlin realmente treinou quando jovem, viu no erro do Tottenham a chance de pegar uma parte da transferência, para a qual eles se sentiram autorizados. Se ele fosse de qualquer outro país membro da FIFA, cerca de 185 mil dólares do seu preço teria sido distribuído para o Crossfire e outros clubes nos quais o jovem Yedlin se desenvolveu.

Em 2014, o Crossfire Premier juntou-se a outros dois clubes num processo de ação coletiva pelo direito de cobrar taxas de solidariedade. O processo chamou a atenção da mídia americana de futebol, mas foi arquivado sob o argumento de que os tribunais dos EUA não existem para impor as regras da FIFA. Isso é uma pena, porque sem o mecanismo de solidariedade os clubes juvenis não têm dinheiro para dar a jovens jogadores a base sólida que eles precisam para entrar no futebol profissional mais tarde.

Isso só é agravado pelo fato de que o futebol dos EUA é afligido por um modelo particularmente excludente de pay-to-play [pague para jogar]. Em vez de fornecer apoio intencional e sistemático para jovens jogadores, as instituições de futebol dos EUA deixam-os ao capricho do mercado.
Futebol nos subúrbios

“Todo modelo no mundo é pay-for-play“, disse David Richardson, presidente e diretor técnico do Sockers FC, que fazia parte do processo do Crossfire Premier. O que varia, ele diz, “é quem está pagando por ele”.

As crianças podem e jogam futebol em praticamente qualquer superfície, mas aqueles que se tornam jogadores de elite geralmente treinam em campos de qualidade, muitas vezes viajando distâncias significativas para fazê-lo. Além dos custos de equipamentos e viagens, alguém deve fornecer nutrientes e cuidados de saúde dignos. Além disso, mesmo os melhores talentos brutos precisam de treinamento qualificado, e treinadores de elite tendem a não trabalhar de graça.

Em muitos países, uma criança pobre com talento nem sempre conta com seus pais para cobrir essas despesas. Em países como a Inglaterra e o Brasil, os clubes costumam hospedar experiências para as crianças locais, conquistando os mais promissores em sistemas juvenis bem financiados. Na Alemanha e na França, a federação nacional de futebol estabeleceu academias em todo o país com o objetivo de desenvolver jovens jogadores e ajudá-los a serem notados por clubes profissionais.

Os clubes juvenis americanos, por outro lado, quase sempre exigem que as famílias paguem taxas pesadas, seguindo a grande tradição dos EUA de transferir custos para os indivíduos. Nos subúrbios ricos, onde os pais podem pagar o melhor, os clubes podem cobrar quatro dígitos por criança por ano. Eles usam esse dinheiro para pagar os melhores técnicos e viajar para jogar contra os melhores times, atraindo mais interesse daqueles que podem pagar taxas.

Enquanto isso, crianças de áreas mais pobres são deixadas para trás. Ed Garza, ex-prefeito de San Antonio e atual presidente da Urban Soccer Leadership Academy (USLA) [Academia de Liderança de Futebol Urbano], explicou que é difícil atrair treinadores mantendo taxas baixas.

“[Nossos treinadores] estão ok com o pagamento atrasando um ou dois meses porque o cheque de um patrocinador não chegou”, ele disse. “É uma dinâmica diferente com a qual temos que nos virar por causa do modelo que nós estamos tentando desenvolver”.

A USLA não pode evitar cobrar das famílias, mas subsidia automaticamente uma alta porcentagem das taxas para qualquer jogador cuja família esteja perto ou abaixo da linha de pobreza. No momento em que as crianças estão no ensino médio, Garza diz, isso significa que cerca de 85 a 90% estão pagando menos de 200 dólares por ano. Não é um sistema perfeito, mas beneficia centenas de crianças do centro da cidade, em grande maioria não brancas e abaixo da linha de pobreza ou logo acima dela.

É claro que a maioria dos alunos da USLA não se torna profissional — Garza enfatiza que sua principal missão é ajudá-los a encontrar um “caminho para a faculdade”. Mas e se um deles se tornasse? O orçamento operacional da USLA no ano passado foi US$ 274 mil. Se DeAndre Yedlin tivesse vindo desse clube e se a USSF aplicasse as regras da FIFA que todos os outros países seguem, o mecanismo de solidariedade desse negócio por si só teria sido equivalente a um aumento de pelo menos um terço do orçamento do clube, o que Garza disse que iria para trazer mais crianças para o programa.

Mas Yedlin não veio de um programa do centro da cidade como a USLA. A maioria dos melhores jogadores dos EUA não. De acordo com Rick Eckstein, professor de sociologia da Universidade de Villanova, 25% das famílias com renda mais baixa representam apenas 13% dos membros de clubes juvenis, enquanto 35% dos jogadores juvenis vêm de famílias com renda anual superior a 100 mil dólares. Um estudo de 2013 por Greg Kaplan, da Universidade de Chicago, e o especialista britânico Roger Bennett descobriu que os jogadores da USMNT vieram de áreas que eram mais brancas, mais ricas, melhores educadas e melhores empregadas que a média nacional, enquanto os All Stars da NBA e os Pro-Bowlers da NFL vieram de áreas que estavam abaixo da média nacional em todas essas categorias.

Esses números são impressionantes, especialmente porque o futebol é exponencialmente mais popular entre os latinos do que entre os brancos. Alimentado pela desigualdade de renda, o modelo americano perpetua desigualdade racial e econômica num esporte que, em grande parte do mundo, é sinônimo da cultura da classe trabalhadora.

Mais uma vez, na moda americana clássica, alguns especialistas botaram a culpa nos indivíduos. Os jogadores precisam querer mais, os jornalistas precisam mantê-los num padrão mais alto, Gulati precisa ser colocado na geladeira etc. Pouco antes de se demitir, Bruce Arena criticou mistificadamente as “mudanças loucas” na abordagem dos Estados Unidos para o futebol. Outros, no entanto, estão despertando para a realidade de que o sistema está quebrado.

“A Federação de Futebol dos Estados Unidos está tratando o esporte da maneira americana”, observou Taylor Twellman da ESPN na sequência da derrota de semana passada, “enquanto o resto do mundo está fazendo o caminho oposto. Eu apenas penso, com a quantidade de recursos desse país, que nós somos melhores que isso”.

Twellman está certo na sua sugestão de que esse fracasso histórico garante um repensamento histórico sobre a forma que o futebol é tratado nos Estados Unidos. É absurdo pensar que este país não tem o talento ou os recursos para qualificar para a Copa do Mundo. Porém, com um sistema que priva jogadores e clubes pobres de acessarem esses recursos, era igualmente absurdo que esperássemos qualificar em primeiro lugar.

Sobre o autor

Stephen Wood é um jornalista freelancer com foco em esporte, política e suas interseções. Ele é co-anfitrião de Do or Die (or Draw): An MLS Playoffs Miniseries.

A Revolução de 1517

Há 500 anos, Martinho Lutero lançava a Reforma Protestante desencadeando uma revolta contra a ordem medieval tardia que foi muito além das suas intenções.

David Jamieson


The attachment of Luther's 95 Theses, Julius Hübner, 1878. René / Flickr

Tradução / Em 31 de outubro de 1517, um monge agostiniano chamado Martinho Lutero provavelmente não pregou suas Noventa e Cinco Teses numa porta de igreja em Wittenberg.

Nas histórias iniciais, os acólitos de Lutero mitologizaram sua rebelião. As proposições teológicas que criticavam o pensamento e a prática da Igreja Católica foram direto para o povo: impressas em cartazes, feitas para serem coladas ou pregadas nas portas da igreja para que os fiéis pudessem acompanhar a disputa.

Claramente esses debates densos e acadêmicos estavam em latim, e poucos podiam compreendê-los.

Na realidade, Lutero enviou as Teses com uma carta de apresentação para os seus superiores na igreja, apresentando suas preocupações por dentro dos canais oficiais. Esta história verdadeira fornece uma imagem mais instrutiva da Reforma, da crise da sociedade europeia que a sustentou e as fissuras de classe nas quais surgiu.

A rebelião controlada de Lutero se espalhou por toda a Europa, quebrando o poder da Igreja Católica, acelerando o declínio da cristandade e facilitando o que ele mesmo considerou uma rebelião de classe indesejada contra a ordem medieval tardia. No 500º aniversário das Teses, devemos penetrar pelas principais interpretações da Reforma e encontrar uma disputa ideológica sequestrada pelas forças da história.

Vida Medieval Tardia

É quase impossível conceber, a partir de uma perspectiva moderna, a importância da igreja e da religiosidade para a vida europeia medieval.

O pensamento e a prática religiosa influenciaram vastas áreas da vida social, impactando profundamente a consciência dos adeptos. De fato, o estado moderno acabaria por absorver muitas das funções da igreja. No período medieval, o pensamento moral, social e o que chamaríamos hoje de político, tudo ocorria quase exclusivamente dentro das instituições religiosas. Terry Eagleton argumentou que tal força hegemônica não poderia existir na sociedade moderna e que as sociedades capitalistas lutaram em vão para preencher o vácuo deixado pela religião.

Em 1300, a maioria da Europa via o Papa como sua figura espiritual. Sua influência se estendia da Rússia ao leste até a extremidade sul da península espanhola no oeste, onde somente Granada permanecia sob controle muçulmano. Em meio a essa área, ficavam comunidades judaicas isoladas e tradições pagãs quase mortas, sujeitas a ocasionais tentativas de conversão ou perseguição.

A igreja era vasta, mas também era íntima. O batismo inaugurava os cristãos na comunidade como bebês. Ao longo das suas vidas, os fiéis recebiam a graça de Deus — a salvação do inferno e um lugar no céu — através dos sacramentos da igreja: a confissão anual dos pecados seguida pela Eucaristia, quando o sacerdote transforma o pão no corpo de Cristo. Na morte, os católicos recebiam o sacramento da extrema unção.

A igreja intervia até na vida após a morte. Os sacerdotes faziam missas e orações pelas almas dos mortos. Poderosos membros leigos eram enterrados nos santuários dos sacerdotes, salas em geral fechadas para a congregação. E, cada vez mais, a igreja vendia indulgências para os fiéis, permitindo a eles que comprassem para seus parentes mortos o alívio do purgatório e o despacho pro céu.

A igreja consistia de uma imensa rede de sacerdotes, monges, freiras, estudantes, administradores, bispos e outros funcionários. A vasta influência ideológica da instituição, sua enorme riqueza e sua habilidade de legitimar poderes terrestres tornaram-a um viveiro de corrupção e intriga. Os críticos e reformistas fariam muito dos sacerdotes preguiçosos e ignorantes, da venda de indulgências, da captação de recursos cínica e do sermão hipócrita.

Sob o Império Romano Cristianizado, a igreja se tornou uma espécie de burocracia sombra. Ela mais ou menos manteve essa função ao longo do período medieval, mantendo a sociedade unida por todo o continente. Mas, no século XIV, os pólos locais de autoridade, elementos sociais e classes divergentes e crises catastróficas estavam testando esse adesivo.

A crise econômica convulsionou a Europa no final do período medieval. Por volta de 1300, uma população rural em crescimento superava a capacidade tradicional da rede feudal. Os preços de comida aumentaram com a escassez de grãos e os camponeses deslocados fugiram de seus papéis agrícolas tradicionais para as cidades, onde trabalhavam como trabalhadores assalariados. O aumento na disponibilidade de trabalhadores reduziu os salários.

O clima mudou, tornando-se mais frio e úmido, contribuindo para a fome em grandes extensões da Europa Ocidental entre 1315 e 1317, matando entre 10% e 15% da população.

Quando a Peste Negra devastou uma Europa já debilitada entre 1347 e 1352, matou cerca de um terço da população. O choque psicológico, a impotência das autoridades diante da crise e um persistente senso de precariedade da própria vida — especialmente depois que a praga retornou brevemente na década de 1360 — abastecia a dissidência religiosa e o pensamento milenário.

Parecia que a civilização tinha atingido seu limite. A pobreza e a fome floresciam.

Essas crises mudaram os padrões da vida econômica e social. Entre 1375 e 1400, por volta de um quarto das aldeias nos territórios de língua alemã deixaram de existir, uma vez que o colapso dos preços dos produtos agrícolas obrigava os trabalhadores rurais ao trabalho assalariado. A natureza recuperou a terra que os agricultores de terras haviam limpado para o cultivo nos séculos anteriores.

À medida que as cidades aumentavam em influência, também aumentava o poder dos príncipes regionais sobre o Imperador Romano-Germânico, o governante titular de grande parte da cristandade.

Novas camadas de habitantes da cidade, com rendimentos descartáveis e um crescente senso de independência intelectual das autoridades da igreja, lançavam seu peso econômico e social atrás de tendências filosóficas, culturais e religiosas que os ajudaram a descrever seu mundo em mudança. O humanismo, que exigia um retorno ao estudo da antiguidade e suas ideias, ganhou influência, assim como movimentos de reforma religiosa.

Esse caos e a sensação de influência de classe ajudaram a promover uma rebelião generalizada contra a igreja e seus governantes.

Heresias

A Igreja Católica enfrentou desafios heréticos ao longo de sua história, às vezes de vozes solitárias, às vezes de seitas que racharam. As autoridades leigas liquidaram muitos desses grupos a pedido da igreja. À medida que a Europa se movia para o período medieval tardio, tais heresias aumentaram em sofisticação e alcance.

Por exemplo, os Fraticelli, inspirados pelo novo interesse pelo Livro das Revelações, desafiou o materialismo da igreja e seu fracasso em aderir à doutrina da pobreza. Alguns chegaram a acusar o Papa de ser o Anticristo predito nas Revelações.

Enquanto isso, o declínio das cruzadas na Terra Santa produziu um tipo diferente de conflito entre soldados camponeses e autoridades religiosas e leigas. Divinamente inspirada pela Virgem Maria, a Cruzada dos Pastores de 1251 organizou dezenas de milhares de camponeses que se opuseram ao abandono das cruzadas e se opuseram à riqueza da elite clerical, levando a assaltos violentos às ordens religiosas.

Um século depois, pelo menos 20 membros do clero participaram da Revolta dos Camponeses de 1381. O enorme levantamento no sul da Inglaterra teve vários afluentes e ocorreu no contexto da crise geral, mas também assumiu a forma de uma luta dentro das instituições religiosas. Membros empobrecidos do baixo clero atacaram abadias ricas, que também atraíam a raiva dos camponeses por causa de suas práticas duras como proprietárias.

Mas, de longe, o movimento mais significativo a desafiar a igreja foi a Revolução Hussita, que de muitas maneiras estabeleceu um marco para a Reforma de Lutero.

Jan Hus, um sacerdote que fez campanha contra a corrupção religiosa, foi executado em 1415, pouco mais de cem anos antes das 95 Teses aparecerem. Repetidas tentativas das autoridades leigas de destruir seu movimento o levaram a derrota militar. Os hussitas sobreviventes dividiram-se em facções radicalizadas e mais moderadas; os radicais estabeleceram comunas nas montanhas que visionavam uma futura sociedade sem classes.

Esses e muitos outros movimentos compartilhavam características que a Reforma Protestante reviveria.

Tipicamente, os movimentos reformistas radicais se opunham à riqueza clerical e à corrupção. Eles usavam leituras independentes do evangelho para estabelecer sua autoridade, tornando-os fundamentalistas no verdadeiro sentido da palavra: eles evitavam o pensamento e a prática religiosa tradicionais para retornar aos elementos essenciais do culto. Eles frequentemente criavam clérigos rebeldes, que quebravam com a hierarquia da igreja e continuavam a fornecer liderança intelectual a militantes das classes sociais mais baixas.

Crucialmente, esses movimentos tenderam a se dividir em asas moderadas e radicais. Começando com uma demanda de reformar ou abolir certas práticas ou rituais da igreja, segmentos dessas organizações em certo momento se radicalizavam em cultos milenaristas que exigiam a destruição da ordem social existente.

As autoridades clericais e leigas geralmente retaliavam com execuções e massacres, que às vezes deixavam para trás pequenos círculos subterrâneos, muito fracos para pregar a um público mais amplo.

Contra as Indulgências

No contexto do declínio medieval tardio e da revolta religiosa, a questão é menos por quê a Reforma de Lutero ocorreu, mas por que ela foi bem-sucedida. Como rompeu o muro da repressão anteriormente impenetrável imposto pela igreja, o poder de classe e o crescente estado-nação?

As 95 Teses abrem com um ataque à venda de indulgências, que cresceu em importância depois que o Papa Bonifácio VIII emitiu a primeira indulgência do Jubileu em 1300. O Papa Clemente VI concedeu à prática autoridade teológica em 1343, em um decreto que declarava explicitamente que o fiel pode negociar “uma quantidade ou valor fixo de dinheiro” para a “intercessão” da Igreja em nome de parentes mortos no purgatório.

Essa comercialização, que viu as autoridades da igreja levarem a venda de indulgências a cidades e aldeias remotas, pertencia à crescente rede de instituições financeiras e governamentais que ligavam Roma a potências e interesses locais emergentes. Uma parcela do dinheiro arrecadado — muitas vezes dos pobres e recentemente despojados — voltava para o Vaticano enquanto outra permanecia com as autoridades locais.

A retórica emotiva do discurso de vendas do dominicano Johannes Tetzel enfureceu Lutero. Tetzel chegou à cidade de Magdeburg em agosto de 1517, fazendo afirmações ultrajantes sobre o poder das indulgências e atormentando seu público com contos sobre os sofrimentos de seus parentes mortos no purgatório.

Roma tinha investido grande importância no sucesso de Tetzel, pois ele estava arrecadando fundos para a construção da Basílica de São Pedro. Outra parte de suas vendas iriam para o arcebispo Albrecht de Mainz para pagar dívidas para a família bancária Fugger.

Os Fuggers, parte da prática emergente de finanças e bancos, desprezavam a muitos — não menos a Lutero. Ele havia visto as casas financeiras empilharem dívidas em pequenos negócios de mineração, incluindo o de seu pai, na casa em que morou na infância em Mansfeld.

Ao atacar esse nexo de poder religioso e financeiro, as Teses de Lutero insultaram a hierarquia da igreja e seus legalistas. Seus argumentos não só ameaçavam as indulgências; eles também questionavam a autoridade da Igreja e sua capacidade de repartir graça aos fiéis.

Trabalhos e Fé

O próprio Lutero parece não ter acreditado que a publicação das Teses lançou a Reforma. Em vez disso, considerou os quatro anos que se seguiram como mais importantes. De 1517 a 1521, sua crítica da igreja se desenvolveu através de uma série de confrontações e exposições.

Em certo momento, a oposição às indulgências e à corrupção tomaria um lugar secundário no pensamento de Lutero, mas essa rebelião inicial indicou a forma final de sua crítica. No coração do pensamento de Lutero, havia uma visão dissidente da graça. Ele afirmou que a fé — não os trabalhos — influenciavam a decisão de Deus de transmitir graça, uma reivindicação que debilitava todo o edifício da igreja.

As ideias de Lutero eventualmente se tornaram sinônimo da noção de sola scriptura — a ideia de que a Bíblia era a fonte mais importante para o pensamento cristão. Essa crença sustentou sua rejeição de muitas tradições católicas que se desenvolveram ao longo de centenas de anos.

Ele enviou as Teses primeiro para o seu superior, Albrecht de Mainz, que então as passou para Roma. No início de 1518, alguns membros da hierarquia romana já estavam pedindo que Lutero fosse silenciado. Enquanto isso, seu trabalho começou a circular nos principais centros do pensamento humanista alemão, como Nuremberg. Em meses, leitores em toda a Europa encontrariam sua escrita com entusiasmo confuso, mas crescente.

A maioria dos historiadores não atribui a Lutero a impressão das Teses em alemão, mas ele publicou sim “Um sermão sobre a indulgência e a graça” na língua vernácula e assegurou que se espalhasse entre intelectuais das cidades que tinham riqueza e posição social para desfrutar de um grau de independência da igreja e da aristocracia.

Quando a igreja acusou Lutero de heresia em agosto de 1518 e convocou-o para Roma, Frederico III, Eleitor da Saxônia, intercedeu para mantê-lo em terras alemãs, onde ele continuou a debater críticas e enfrentar o exame por funcionários do Papa.

Quando Lutero encontrou um legalista da igreja para uma disputa no verão de 1519 em Leipzig, a Ordem Agostiniana o largou e ele denunciou abertamente a autoridade do Papa. Enquanto isso, seu renome crescia tanto entre adeptos como entre adversários. Seus textos — e aqueles que o atacavam — eram igualmente suscetíveis a serem queimados em público.

O confronto final ocorreu em 1521, na Dieta de Worms. A assembleia representou uma tentativa de reorganizar as relações entre o imperador e os príncipes. A maioria dos participantes esperava que ela resultasse em mais autonomia para o último, sinalizando o enfraquecimento do Sacro Império Romano.

Roma continuava a exigir que Lutero aparecesse, e Frederico III continuava a contestar. Em vez de ir ao Vaticano, Lutero encontrou seus acusadores em terras alemãs, desta vez diante de uma audiência de autoridades tanto leigas como religiosas. As apostas estavam altas em ambos os lados: a igreja temia a capacidade de Lutero de expôr sua nova visão em frente à aristocracia alemã, e Lutero temia que ele enfrentasse o mesmo destino de Jan Hus, que foi convidado para o Concílio de Constança com promessas de salvo conduto e depois foi queimado num post.

De fato, no debate em Leipzig, Lutero já tinha aceitado suas semelhanças teológicas com Hus — um movimento que escandalizou os legalistas católicos.

Exigido que renegasse seus escritos em Worms, Lutero se recusou. A morte que ele agora achava provável foi evitada quando os homens de Frederico o abduziram. Ele passou quase um ano no Castelo de Wartburg, onde formalizou seus pontos de vista, produziu muitos de seus textos mais duradouros e traduziu o Novo Testamento para o alemão.

A Reforma Radical

Enquanto Lutero definhava, as fúrias da dissidência religiosa chegaram ao seu reduto em Wittenberg. Acólitos como Andreas Karlstadt foram muito além das ideias originais de Lutero, pedindo a destruição de estátuas e imagens religiosas. Karlstadt abandonou as roupas religiosas e começou a se vestir como um pobre camponês. Ele realizou missas em alemão e se casou, incitando a ira da igreja.

Quando Lutero finalmente emergiu de Wartburg, ele se tornou uma força de contenção dentro do movimento cada vez mais diversificado da Reforma. Ele pediu para terminar muitas das mudanças mais agressivas e introduziu um ritmo de mudança mais gradual.

Mas a Reforma já havia provado ser capaz de estourar quaisquer limites. Uma vez que a autoridade da igreja e a doutrina oficial caíram, poucos parâmetros limitaram onde o pensamento da Reforma podia chegar. Sola scriptura ofereceu pouca restrição porque leitores podiam interpretar e reinterpretar a Bíblia quase sem limites.

Em Wittenberg, Lutero advertiu contra os perigos de “insurreição e rebelião”. Ele entendia que a reforma teológica poderia se transformar numa revolta contra toda autoridade — uma conclusão razoável considerando a integração completa da religião na vida social medieval.

Os Profetas de Zwickau, que apareceram em Wittenberg no final de 1521, apenas reforçaram a determinação de Lutero de eliminar o novo radicalismo. O grupo pregava a igualdade dos homens e o retorno apocalíptico de Cristo, ideias que o próprio Lutero rejeitou.

O potencial radical da reforma atingiu o seu apogeu quando combinado com as exigências das classes baixas e médias, que estavam lutando para sobreviver na desordem da economia medieval tardia.

Entre 1524 e 1525, centenas de milhares de camponeses, fazendeiros pequenos e médios e outras camadas pobres e médias das cidades se ergueram contra a ordem feudal. Seu programa, pensado para ser inspirado ou mesmo escrito por pregadores radicais — incluindo Thomas Muntzer, uma vez associado aos profetas de Zwickau — exigia o fim de muitas das práticas extrativas da igreja, incluindo a servidão, o alicerce da economia rural que amarrou os camponeses à aristocracia e ofereceu-lhes poucos direitos.

O intenso radicalismo e a violência do movimento horrorizaram os príncipes alemães e uniu brevemente os interesses católicos e protestantes. Lutero primeiro pediu reconciliação e compromisso, em seguida apoiou firmemente a ordem dominante.

Em 1525, ele escreveu seu infame folheto “Contra as hordas ladras e assassinas dos camponeses”. Sua circulação coincidiu com uma perversa repressão levada a cabo pelos exércitos dos príncipes, que acredita-se que matou aproximadamente 100 mil revolucionários.

Lutero denunciou o levante nos termos mais absolutos. Ele insistiu que os cristãos permanecessem fiéis aos seus superiores e resistissem a qualquer injustiça pacificamente enquanto dessem a aristocracia uma licença completa para derrotar o movimento com violência, “assim como é preciso matar um cão louco”.

Lutero e o Estado

Os movimentos de dissidência religiosa por muito atraíram elementos de classe diversos, particularmente membros das classes médias e baixas, mas essa composição os deixou vulneráveis à repressão de cima.

De fato, o sucesso de Lutero dependia do apoio que ele obteve de algumas das camadas da elite da sociedade, especialmente dos príncipes. Ainda, a defesa de Lutero da supressão do levante representou os limites de um movimento dependente da sua proteção.

Frederico III manteve Lutero vivo e os príncipes que queriam maior autonomia em suas terras e o acesso à propriedade da igreja adotaram suas posições mais moderadas. O movimento ganhou tanto impulso que muitos governantes se sentiram obrigados a se juntar a ele para moldar seu resultado, o que fizeram contendo seus efeitos radicais.

Tanto quanto as elites ajudaram a proteger a Reforma da Igreja Católica e do Sacro Império Romano, eles também limitaram seu radicalismo, popularidade e crescimento.

Os governantes católicos permaneceram no controle do sul da Alemanha, bem como na maior parte da Europa do Sul e Ocidental. As minorias protestantes enfrentaram perseguição em todo o continente — principalmente os Huguenotes na França. A mensagem da Reforma — ou versões dela — ganhou mais tração onde os governantes locais tinham mais a ganhar com independência.

Em uma Europa dividida e devastada pela guerra, as próprias ambições de Lutero para a reforma religiosa diminuíram. Seu movimento continuou a se fragmentar em inúmeras facções, às vezes devido a diferenças locais, mas frequentemente ao longo de linhas de classe ou radicalismo.

O Significado da Reforma Hoje

Se tornou clichê entender a Reforma como evidência da engenhosidade ocidental — as dores de nascimento da sociedade democrática, livre e pluralista. Outra visão afirma que a Reforma desempenhou um papel essencial no desenvolvimento do capitalismo em toda a Europa, uma visão frequentemente atribuída incorretamente à Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo de Max Weber. Histórias que recapitulam essas ideias estão retornando às livrarias para celebrar o quinto centenário das Teses de Lutero.

Porém, o desenvolvimento histórico real seguiu um caminho muito mais complexo, contraditório e sangrento.

Caracterizar o protestantismo como a semente do iluminismo ou da tradição liberal clássica ignora suas formas muitas vezes dogmáticas e seu desinteresse relativo na vida intelectual fora da teologia. Na verdade, no próprio período da Reforma, muitos intelectuais humanistas católicos, como Desiderius Erasmus, rejeitaram o movimento por sua rígida inflexibilidade.

No entanto, podemos encontrar ilhas de verdade nessas histórias simplificadas e ideológicas. A Reforma ajudou a promover tradições radicais e dissidentes, algumas das quais foram expurgadas nos próprios dias de Lutero. Mas as tensões da Reforma viveram para ajudar a moldar os movimentos revolucionários burgueses nos Países Baixos em 1566 e a Revolução Inglesa em 1640.

Alguns dos estados ainda dentro da esfera de influência da Igreja Católica continham minorias protestantes substanciais e reativas. Esses movimentos, muitas vezes influenciados pelas ideias de John Calvin, ajudaram a introduzir ideias que se tornariam centrais para os futuros movimentos radicais. Incapazes de formar nações separadas com base no poder dos governantes locais, alguns calvinistas defendiam a derrubada do estado.

Ao avançar a ruptura da ordem tardia medieval, prejudicando o controle ideológico da igreja e, em alguns casos, argumentando contra a permanência do poder da classe ou do estado, a Reforma ajudou a promover impulsos radicais na Europa.

Esse é o presente de Lutero para nós, ainda que seja um que ele nunca teria oferecido.

Sobre o autor

David Jamieson é jornalista e militante socialista na Escócia.

27 de outubro de 2017

Show de horror

Na primeira temporada de Stranger Things, todos os futuros possíveis são permeados pelo Demogorgon do capital. Que horrores a segunda temporada nos reserva?

Davis Smith-Brecheisen

Jacobin

Stranger Things. Netflix

Este texto contem spoilers da 1º temporada de Stranger Things

Tradução / No meio da primeira temporada de Stranger Things – a série de sucesso de Netflix, ambientada em 1983, que retorna para a segunda temporada hoje – o grupo de meninos meio crianças de Goonies, pede a uma garota pré-adolescente, uma jovem que foi usada como cobaia em testes governamentais, para usar suas habilidades psíquicas para localizar seu amigo desaparecido e presumido morto, Will Byers. À medida que a menina, Eleven, concentra-se no rádio de ondas curtas que amplifica seus poderes, os meninos repetem seu pedido de “encontre Will”, como se estivessem conjurando um feitiço em uma de suas campanhas Dungeons and Dragons.

As cenas se espelham narrativamente e visualmente: no presente, as paredes de azulejos da escola onde os meninos escondem Eleven ecoam com as paredes do laboratório onde ela cresceu, enterrada profundamente na usina da cidade. E em ambos os momentos, ela se vê compelida a usar suas habilidades para ganhar o carinho daqueles à sua volta. Quando localiza o espião no passado, ela ganha a adoração do “papai”; se encontrar Will para Mike e seus amigos, ela consolidará seu lugar em seu grupo de inadaptados. O amor, ou pelo menos o pertencimento, está diretamente ligado ao seu sucesso no trabalho.

Ao destacar as semelhanças entre sua vida antiga e a nova, Stranger Things nos mostra uma jovem cuja vida foi despedaçada por sua habilidade única como trabalhadora. Sua situação se torna a situação de toda a cidade de Hawkins, e toda cidade gosta disso. Isto, como se mostra depois, é a mensagem central do show: ao invés de um retorno nostálgico aos anos 80, Stranger Things apresenta um futuro sombrio em que a precariedade econômica desigual tornou-se total.

Hawkinses


A cidade de Hawkins, Indiana, pode ter sido arrancada das páginas da coleção de histórias curtas de Raymond Carver, publicada em 1983, no mesmo ano em que Stranger Things acontece. Como as histórias de Carver, as casas degradadas e os reboques de Hawkins são povoadas com famílias de classe trabalhadora endurecidas por anos de uma década de reestruturação econômica, estagnação, duas crises de petróleo e, finalmente, o choque Volcker promovido por Jimmy Carter, que foi o último prego no caixão da classe trabalhadora americana (e até mesmo, global).

Os elementos de ficção científica de Stranger Things apenas aumentam a ameaça dessa precariedade vivida. O Mundo Invertido – o mundo paralelo que o monstro chama de lar – é Hawkins em outra dimensão “escura” e “vazia”, como o Vale das Sombras em Dungeons e Dragons: “[A] reflexão escura, ou eco, de nosso mundo. É um lugar de decadência e morte, um avião fora do ar. ... Está bem ao seu lado, e você nem percebe isso”.

Este eco alegoriza a desolação da classe trabalhadora da América de Ronald Reagan, um país que cresceu “fora de fase” em si, onde a ameaça real para cidades como Hawkins estava sempre presente mesmo que ainda não visível. Pior ainda, os monstros provêm das próprias instituições que apoiam a cidade: a pedreira que emprega os trabalhadores de Hawkins, a planta de energia que mantém as luzes acesas (ou piscando) e a escola onde, no Mundo Invertido, o monstro faz seu ninho.

Importa aqui que Stranger Things aconteça na véspera da reeleição de Reagan. Até então, a economia americana já havia feito seu pacto com Wall Street e não havia como voltar atrás da agenda neoliberal que continuaria a impulsionar a sua política econômica. Qualquer que seja a nova riqueza gerada não encontraria seu caminho para cidades como Hawkins; não haverá manhã na América para os seus moradores ou para os 99% dos americanos para quem os benefícios da economia de gotejamento continuariam sendo um fantasma.

O Mundo Invertido, portanto, é menos uma imagem negativa de Hawkins do que um espelho, não apenas de 1983, mas de 2016. A série oferece ao público uma história do presente, uma história de origem para a nossa era de austeridade. Nesse sentido, todos nós vivemos em Hawkins agora.

O Mundo Invertido


Quando Eleven abre inadvertidamente o portão entre as versões da cidade de Hawkins, ela se encontra presa entre dois mundos, um que não é entre um grupo de garotos estranhos e um ameaçador médico do governo. Em vez disso, ela está presa entre o seu próprio presente – sombrio o suficiente – e o Mundo Invertido – mais sombrio ainda. Desta forma, seus pontos de sofrimento passaram de seu presente para um mundo futuro em que o subemprego se tornaria a norma e a desigualdade continuaria a se aprofundar. E mais sombrio ainda, o Mundo Invertido não é mais fácil de se desfazer do que o Reaganomics.

O conceito de Stranger Things alinha-se com a teoria dos “mundos múltiplos”, que afirma que cada ação cria universos paralelos infinitos e infinitamente reproduzidos. Quando os meninos perguntam ao professor de ciências, Sr. Clarke, sobre essa teoria, ele assume que estão imaginando uma dimensão mais utópica na qual tragédias nunca acontecem e Will Byers nunca desaparecerá – uma dimensão que deve existir. Em vez disso, eles querem descobrir como acessar o que eles sabem que é uma distopia à espreita: a dimensão em que Will está preso e morrendo, perseguido por um monstro, o qual os meninos chamam Demogorgon. Clarke explica que, se houvesse uma porta para o Mundo Invertido, “nós saberíamos”, porque “perturbaria a gravidade, campos magnéticos, nosso ambiente” – os efeitos que os meninos já encontraram na floresta ao redor da usina. “Heck”, adverte o Sr. Clarke, “pode até nos engolir completamente”.

Esta teoria das dimensões paralelas sugere que, mesmo que a ruptura entre dois mundos não destrua a cidade, fechar o portão entre os mundos não impedirá a proliferação de mundos infinitos e infinitamente piores que possam nos engolir todos. Assim, mesmo que Eleven feche com êxito o portão, ela não pode impedir que as forças que criaram um mundo fora de sincronia continuem. Em todos os futuros possíveis, o Mundo Invertido, ou algo parecido, existe como uma ameaça sempre presente e não visível.

De volta para o Futuro


A falta de encerramento da narrativa, então, sugere uma espécie de ameaça persistente e irresolvível. E o que os jovens devoradores de Stranger Things fazem particularmente bem, não é apenas que as pessoas são consumidas no neoliberalismo, mas que elas são devoradas de forma tão indiferente e inevitável quanto moedas descartadas num jogo quebrado de arcade. Essa estrutura não será, de fato, não pode ser resolvida; a devastação – ou seja, o capitalismo – não vai acabar.

Desta perspectiva, a roupa de Stranger Things, a trilha sonora e as referências cintilantes de filmes são mais do que meros vendedores de nostalgia. Embora as referências claras para E.T. – O Extra-Terrestre e Poltergeist evoquem o poder dos filmes cinematográficos de Spielberg, eles também revestem os temas dos filmes: a ameaça da violência estatal e a precariedade da classe média, respectivamente.

Talvez o mais significativo, a maior referencia do show, Goonies (o qual Spielberg escreveu a história), começa com a capacidade destrutiva do capital: os Goonies começam a agir quando o banco ameaça a casa do Sr. Walsh e Mikey descobre que ele terá que se mudar para Detroit no momento mais desesperado da cidade. Os Fratellis não são os únicos maus que os Goonies têm que derrotar: os bancos estão igualmente inclinados a roubar.

Dito de outra forma, retornar aos filmes do início da década de 1980 serve como um lembrete do que os filmes daquela época estavam obcecados, com o antagonismo de classe e a ameaça de deslocamento (se não uma aniquilação total) nas mãos de forças que os meninos de Stranger Things não podem nem mesmo ver, muito menos entender.

Contando a mesma história em 2017, então, nos é mostrado uma imagem especialmente sombria do nosso passado e do nosso futuro. Com efeito, Stranger Things é sobre a persistente violência do capital e, ao se recusar a resolver sua própria ameaça monstruosa, sugere que essa violência seja contínua e infinitamente reprodutível. Na verdade, nos trinta e quatro anos desde a era do presente show, as luzes cintilantes de cidades como Hawkins continuaram a queimar. A ameaça é constante e, se alguma coisa, ela se intensifica.

O mundo das Stranger Things não é um passado esquecido que precisa se lembrado ou ser recuperado, nem representa simplesmente a precariedade generalizada do capitalismo neoliberal. Em vez disso, seu mundo é aquele em que o eco sombrio da reestruturação econômica tão fundamental para a América de Reagan tornou-se total, onde todos os espaços e futuros possíveis – mesmo dimensões paralelas – são permeados pelo Demogorgon do capital. Em outras palavras, o mundo de Stranger Things é o que já vivemos.

Que horrores a segunda temporada nos mostrará?

25 de outubro de 2017

Um conto de duas revoluções

O México foi um dos poucos países a conseguir neutralizar os efeitos da URSS.

Enrique Krauze


Leon e Natalia Trotsky foram saudados por Frida Kahlo em sua chegada ao México em 1937. Créditos: Hulton-Deutsch Collection / Corbis, via Getty Images

A Revolução Russa de 1917 e o regime que governou em seu nome durante a maior parte do século XX, exerceram uma poderosa influência política e ideológica sobre a América Latina. A revolução colocou seu selo em partidos políticos, sindicatos, artistas, intelectuais e estudantes, que viram a União Soviética como uma alternativa ao capitalismo, um baluarte contra o imperialismo dos Estados Unidos e um exemplo a imitar. Embora as revelações dos crimes do totalitarismo stalinista tenham diminuído o brilho da Revolução Russa na década de 1950, a surpreendente vitória dos comunistas em Cuba reviveu o espírito revolucionário na América Latina, inspirando movimentos de guerrilha que alarmaram os regimes militares aliados aos Estados Unidos.

O México era um caso separado. Poucos países tiveram tanto sucesso quanto o México para neutralizar os efeitos da Revolução Russa. A razão era simples. O México sofreu sua própria revolução de 1910 a 1917 e avançou em sua própria estrada revolucionária. A ideologia nacionalista e socialista da Revolução Mexicana triunfou em todo confronto com o marxismo-leninismo caseiro do Partido Comunista Mexicano - Lenin e Trotsky nunca poderiam competir com Pancho Villa e Emiliano Zapata. E a tensão entre as duas revoluções moldou o processo político mexicano nas próximas décadas.

O movimento muralista mexicano da década de 1920 foi tão original e dinâmico como o modernismo russo, com o qual os artistas mexicanos realizaram um diálogo criativo. O México, em 1924, foi o primeiro país no Hemisfério Ocidental a estabelecer relações diplomáticas com a União Soviética, um movimento visto com maus olhos pelos Estados Unidos, cujo governo confundiu o nacionalismo mexicano com o comunismo. Diante dessa aparente aproximação entre as duas revoluções, o presidente Calvin Coolidge considerou seriamente a ação militar contra o "México soviético".

Isso mudou quando o banqueiro Dwight Morrow tornou-se embaixador no México em 1927. Ele ajudou a reestruturar a dívida mexicana, tornou-se um conselheiro de figuras políticas mexicanas e teve o instinto brilhante de se tornar um amigo e patrão para artistas esquerdistas. Os mais famosos entre eles eram, naturalmente, Diego Rivera e Frida Kahlo, e muitos escritores jovens - entre eles o poeta combativo Octavio Paz - eram marxistas que acreditavam que a União Soviética era "a terra do futuro".

Declarado ilegal em 1929 e reprimido, o Partido Comunista Mexicano ganhou alguma influência durante o mandato do presidente Lázaro Cárdenas (1934-40), mas a "domesticação" mais uma vez teve efeito. Era impossível competir a partir da esquerda com um governo tão claramente revolucionário como o do presidente Cárdenas, que distribuiu mais de 42 milhões de hectares de terra, nacionalizou as empresas petrolíferas americanas e europeias em 1938 e contou com o apoio do principal sindicato do país, a Confederação dos Trabalhadores Mexicanos.

Talvez a prova mais significativa da autonomia mexicana em relação à Revolução Russa tenha ocorrido em 1936, quando o Sr. Cárdenas deu asilo a Leon Trotsky, a pedido do Sr. Rivera. Quando o Partido Comunista do México se recusou a participar do assassinato do Sr. Trotsky, realizado em 1940 por um agente stalinista, selou seu destino. Durante a Guerra Fria, o Partido Revolucionário Institucional, ou P.R.I., poderia apresentar-se abertamente como uma alternativa nacionalista e progressista ao comunismo, enquanto o Partido Comunista permaneceu bastante marginal, apoiado principalmente pelos sindicatos ferroviários e por algumas figuras culturais proeminentes.

Frida Kahlo, quando morreu em 1954, recebeu a primeira homenagem oficial concedida a um artista, no Palácio das Belas Artes da Cidade do México. Seu caixão estava coberto com uma bandeira do martelo e da foice. Isso era emblemático do ressurgimento do comunismo no México, não decorrente de partidos e sindicatos, mas de círculos artísticos, acadêmicos e literários, onde o marxismo começou a ganhar vigor renovado graças aos escritos de Jean-Paul Sartre. No entanto, na arena da política, o P.R.I. continuou seu reinado indiscutível. Pelo menos até o movimento estudantil de 1968 (quando seu domínio sobre as novas classes médias começaram a se quebrar), o partido oficial era uma aliança poderosa que ia da direita a esquerda, excluindo apenas os extremos de ambos os lados.

Nem mesmo a Revolução cubana mudou a situação. Mostrando habilidade política impressionante, o regime do P.R.I. não condenou Fidel Castro e se absteve na votação da Organização dos Estados Americanos para expulsar Cuba, mas também tornou-se o amortecedor entre os Estados Unidos e as tendências comunistas do resto da América Latina. Em troca, os Estados Unidos aceitaram um certo grau de retórica nacionalista pelo México.

O compromisso com Havana foi claro. A expedição liderada pelo Sr. Castro em 1956 partiu do México, e o México defenderia Cuba dos Estados Unidos por meio da diplomacia. Cuba, por sua vez, não patrocinaria levantes de guerrilha no México. Embora este acordo tácito já não fosse totalmente funcional na década de 1970, os movimentos de guerrilha no México tinham muito menos alcance e impacto do que os da América Central. Quando tais movimentos foram brutalmente reprimidos, Havana e Moscou reagiram com indiferença. E quando os guerrilheiros mexicanos apreenderam aviões e os levaram para Cuba, o Sr. Castro devolveu imediatamente os sequestradores ou os prendeu.

Embora o governo de Castro tenha feito seus arranjos com o P.R.I, o prestígio da Revolução Cubana, entre as recentes gerações ofuscou a mexicana, que muitos jovens consideravam antiquada e falsa. Nas décadas de 1970 e 1980, o marxismo em todas as suas variedades tornou-se uma linguagem comum nas universidades públicas mexicanas, e essa hegemonia cultural e acadêmica do marxismo é um fator chave na compreensão do fortalecimento paradoxal da esquerda mexicana no próprio momento da queda da Muro de Berlim.

Os jovens nas universidades foram a base da popularidade de Cuauhtémoc Cárdenas, filho do presidente, quando em 1987 abandonou o P.R.I., que tinha governado a nível nacional desde a década de 1930. Os partidários da esquerda receberam o Sr. Cárdenas e seus camaradas dissidentes.

Nesta altura, o Partido Comunista havia se fundido no Partido Socialista Mexicano. Esse partido colocou o Sr. Cárdenas como o candidato da esquerda nas eleições presidenciais de 1988. A fraude eleitoral orquestrada impediu sua vitória.

Mas em vez de conclamar uma revolta armada, o Sr. Cárdenas uniu toda a esquerda em um único partido, o Partido da Revolução Democrática. Embora tenha sido derrotado nas eleições presidenciais de 1994 e 2000, o partido entrou no novo século como uma força consolidada com forte presença em governos estaduais e legislaturas e com poder na Cidade do México. O líder da cidade, Andrés Manuel López Obrador, admirava muito o Che Guevara e o Sr. Castro, mas não era marxista e veio, como Cuauhtémoc Cárdenas, originalmente do P.R.I.

O Sr. López Obrador se tornaria o caudilho populista da esquerda mexicana. Em 2006, ele concorreu para presidente, ficou perto de um por cento da vitória e acusou o governo de fraude eleitoral. Significativamente, seus conselheiros mais próximos não incluíram políticos comunistas da velha guarda, mas muitos acadêmicos influenciados pelo marxismo, bem como por vários antigos políticos do antigo P.R.I. dos anos 70, 80 e 90. Ainda mais uma vez, a Revolução Mexicana havia absorvido e transformado (e marginalizado) a Revolução Russa.

Sobre o autor

Enrique Krauze é um historiador, editor da revista literária Letras Libres e autor de "Os Redentores: Ideias e Poder na America Latina".

24 de outubro de 2017

História alucinante: Quando Stalin e Eisenstein reinventaram uma revolução

Dez anos após o assalto do Palácio de Inverno, o surreal e selvagem épico de Sergei Eisenstein, Outubro, reimaginou a revolta da Rússia em 1917 - e parodiou Stalin, que o encomendou. Nós revisitamos sua explosão descontrolada.

Peter Bradshaw


"Reimaginando a história para a posteridade"... uma visão de Lenin em outubro por Sergei Eisenstein. Fotografia: Alamy Stock Photo

Coleridge disse que ver atuar o ardente Edmund Kean era "como ler Shakespeare por flashes de relâmpagos". Assistir o clássico filme mudo de Sergei Eisenstein, Outubro, é como contemplar a revolução russa da mesma forma. Está surpreendentemente iluminado por imagens rígidas que queimam sua retina; passam no segundo seguinte, para ser substituídas por outras tão misteriosas e desorientadoras. Outubro não é um documento histórico, mas a lembrança de um sonho. Às vezes eu queria que pudéssemos assisti-lo sem música, com apenas um raio ensurdecedor em cada um dos seus 3.200 cortes. Uma violenta tempestade elétrica de estranheza.

O filme foi encomendado na Rússia Soviética de Stalin para o 10º aniversário da Revolução de Outubro de 1917, como uma fervorosa manifestação de propaganda. Eisenstein era o candidato óbvio para dirigi-lo, tendo ganhado uma reputação internacional por seu brilhante O Encouraçado Potemkin. Como Orson Welles, ele primeiro deixou sua marca no teatro experimental (e, como Welles, ele mais tarde ficou atolado em uma grande filmagem na América Latina que resultou em um filme perdido - para Welles: It's All True, para Eisenstein: ¡Que viva México!).

Outubro tem ferozes intercessões declamatórias com pontos de exclamação, closeups em rostos intensos e inesquecíveis, impressionantes cenas de multidão com massas agitadas, digressões satíricas selvagens e ambíguas e peças épicas para as quais Eisenstein tinha licença para fazer praticamente tudo o que quisesse em Leningrado (como a cidade era chamada). Ele estava recriando ou reimaginando eventos históricos tão imediatamente após, e com tantos dos participantes originais, que o filme é quase uma docu-alucinação do que aconteceu.

A ação segue o registro histórico, à sua maneira. A revolução de fevereiro vê a retirada da estátua de Alexandre III; há tensão e frustração entre os trabalhadores, camponeses e soldados. Abril vê a chegada incendiária de Lenin do exílio, exigindo o fim do governo provisório. Os dias de julho são mostrados, com seus tumultos, a falta de vontade dos bolcheviques de atacar e a espetacular desordem urbana. O general Kornilov lança um assalto contra-revolucionário czarista, que é frustrado após uma visão de tempo reversa da estátua do czar sendo des-derrubada; o líder do governo provisório, Kerensky, se mostra pavoneneando-se pomposamente, com afetados seus maneirismos napoleônicos; e, finalmente, há o assalto do próprio Palácio de Inverno.

O filme foi pioneiro em várias coisas, além da montagem - a audaciosa justaposição de imagens - pela qual Eisenstein tornou-se famoso. O próprio Stalin interferiu em um estágio inicial, observando uma montagem precoce do material e exigindo que cenas com Trotsky e até Lenin fossem removidas. E assim tornou-se o primeiro prodigioso produtor de cinema, num paralelismo nauseante com sua censura, tirania e assassinato em massa. Eisenstein nunca foi aterrorizado por Stalin da forma que outros artistas foram, e foi sem dúvida tão cúmplice como qualquer apparatchik, mas ele certamente foi posteriormente obrigado a abandonar seu experimentalismo para o "realismo socialista" favorecido por Stalin. Ele ainda foi forçado a pedir desculpas públicas humilhantes quando Stalin declarou ter errado e sofreu um medo constante.

Outubro é, naturalmente, muito diferente do cinema clássico de Hollywood, como, por exemplo, o Dr. Zhivago de David Lean (baseado no romance de Boris Pasternak), em que uma história de amor convencional ancora os eventos políticos. Eisenstein não oferece nenhum personagem para o qual nos relacionarmos. Lenin e Kerensky certamente não contam. Minha teoria pessoal, além disso, é que a figura ofegante e assustadora de Kerensky não serve apenas para ser comparada a Napoleão - apesar da falta de um bigode, ele poderia ser o próprio Marechal Stalin em seu uniforme e seu porte rígido.

O assalto ao Palácio de Inverno é um conceito que Eisenstein quase inventou. Tornou-se o eterno tropo da vingança dos despossuídos: uma imagem simples e dupla. Poder e riqueza dentro do luxuoso palácio; os pobre oprimidos, fora. Na realidade, era um caso caótico e estranhamente anticlimático envolvendo muito menos pessoas. Eisenstein reimaginou-o para a posteridade como uma cena de batalha, como o assalto da Bastilha. Ele também adicionou imagens irresistíveis, como o bolchevique zombando incrédulo no assento acolchoado do banheiro no quarto da Imperatriz.

Talvez mais surpreendente seja uma seqüência anterior, na qual o governo ordena a criação de uma ponte levadiça para impedir que as massas bolcheviques entrem na cidade; no corpo a corpo, um cavalo branco morto, preso a uma carruagem, é pego no ponto onde a ponte se separa. Pendurado no alto acima do rio: pungente, inspirador e de maneira misteriosa, sacrificial. Tem uma realidade mais estranha que a ficção. Que fim horrivelmente indigno para esta besta nobre. O que isso pode simbolizar? Em sua absoluta inteligibilidade, possui um poder poético acima da tão discutida montagem paralela do presunçoso Kerensky com tiros de um pavão mecânico imaginário.

Acima de tudo, Outubro é sobre violência. Todo o filme é filmado com uma atmosfera de delírio. Por tudo isso, é uma homenagem leal e ideológica à revolução, ela também se parece com uma insurreição violenta, ou um retrato panorâmico quebrado em milhares de imagens semelhantes a fragmentos. Isto é em parte devido à primeira guerra mundial inacabada: a Rússia estava em conflito dentro e fora,e sua própria guerra civil - esse grande assunto não mencionado que está entre os eventos deste filme e as circunstâncias de sua estreia - paira sobre ele. Outubro é uma intuição do que Pushkin chamou de insensatez implacável da Pugachevshchina, a revolta camponesa do século XVIII, da qual as classes dominantes aprenderam secretamente a temer e a odiar as classes inferiores. O próprio Lênin disse que o "estado proletário" é um "sistema de violência organizada". Pode-se dizer que o filme de Eisenstein a sistematizou à sua maneira.

No entanto, sempre há algo mais não quantificável. Quando o primeiro batalhão feminino da morte de Petrogrado é convocado para defender o Palácio de Inverno, Eisenstein cria uma passagem muito curiosa em que um soldado é mostrado em uma espécie de devaneio desencadeado por uma estátua de Rodin. Isso é em parte para zombar da alegada incapacidade das mulheres para o serviço marcial, mas também para dar volta às coisas buscando um loop visual. O mesmo é verdade, penso eu, para as grandes damas com seus parasóis atacando um trabalhador durante as Jornadas de Julho. É claro que é para satirizar a burguesia, no entanto, Eisenstein aparece nesse instante do lado da mulher, obscuramente animado pela explosão exótica de agressão.

Outubro é um filme que se liga à combustão escura da história russa, quase como se a realidade política fosse metafóricamente subordinada à própria revolta formal radical de Eisenstein como artista. Os eventos deram-lhe o pretexto perfeito para uma explosão sem regras em grande escala. Seu espírito orientador não era Lenin, mas Bakunin. O filme é pura anarquia.

23 de outubro de 2017

Como Mao moldou o comunismo para criar uma nova China

O líder comunista guardou uma contradição ao longo da vida com suas atitudes em relação à revolução e ao poder do Estado.

Roderick MacFarquhar

The New York Times

Mao Tse-tung em 1961. Lyu Houmin/VCG, via Getty Images

No final de sua vida, convalescendo da doença de Lou Gehrig, Mao Tse-tung reivindicou duas conquistas: levar a revolução comunista à vitória e iniciar a Revolução Cultural. Ao identificar esses episódios, ele sublinhou a contradição ao longo da vida em suas atitudes em relação à revolução e ao poder do Estado.

Mao moldou o comunismo para encaixar suas duas personalidades. Para usar a linguagem chinesa, ele era um tigre e um rei dos macacos.

Para os chineses, o tigre é o rei da selva. Traduzido em termos humanos, um tigre é um alto funcionário. A agência que executa a campanha anticorrupção do presidente Xi Jinping hoje gosta de se gabar quando derruba outro "tigre". Ao liderar o Partido Comunista Chinês à vitória em 1949, Mao tornou-se o tigre superior.

O rei dos macacos é um ser imaginário com a força de um super-homem, uma habilidade de voar e uma predileção por usar sua imensa clava para fins destrutivos. Ele é um sábio. Humanos comuns e até espíritos não podem vencê-lo.

Em seus primeiros escritos, Mao parecia se retratar mais como um super-homem nietzscheano, ou um tigre:

As grandes ações do herói são dele, são a expressão de seu poder motriz, elevado e limpo, não dependendo de nenhum precedente. Sua força é como a de um vento poderoso que vem de um desfiladeiro profundo, como o desejo sexual irresistível para o amante, uma força que não vai parar, que não pode ser interrompida. Todos os obstáculos se dissolvem diante dele.

Aos seus 20 anos de idade, viajando pelo campo da província de Hunan com um amigo, Mao convenceu seu companheiro de que se viu na tradição dos fundadores camponeses das dinastias chinesas, em particular Liu Bang, fundador do primeiro grande Império chinês, o Han. No momento em que ele tinha 42 anos, pouco depois que os sobreviventes desgrenhados da épica Longa Marcha atingiram a segurança no noroeste da China, Mao chegou a olhar para todos os grandes imperadores do passado. Em um poema famoso, "Neve", Mao escreveu:

Tão grande é a beleza desses rios e montanhas
que inúmeros heróis
têm lutado pelos seus encantos.
Pouca era a cultura literária
dos imperadores Shih Huang e Wu Ti
e não eram muito românticos
os imperadores T'ai Tsung e Ts'ai Tsu.
E esse orgulhoso Gengis Khan
só sabia retesar o arco
e disparar contra as águias do céu
Mas todos pertencem ao passado
e homens de verdadeira sabedoria
há-de mostrarmos a nossa época.

Mas, por mais confiantes que fossem os primeiros sonhos de glória de Mao, sua liderança suprema estava longe de predestinada. Antes de se reivindicar como marxista aos 27 anos, ele era um nacionalista provinciano sem sofisticação. Ele desprezou as chances de a nova república chinesa sobreviver, imaginou que Hunan se tornaria um estado americano e defendeu que todas as províncias chinesas se tornassem países separados.

Foi apenas em novembro de 1920 que ele admitiu a derrota: o Hunanese não teve a visão de adotar suas idéias. Ele escreveu aos seus amigos ativistas na capital da província para dizer que ele seria, doravante, um socialista. Era um momento adequado para isso.

As células comunistas estavam sendo organizadas em Xangai, Pequim e em outras cidades, e em meados de 1921, realizou-se o primeiro congresso do Partido Comunista Chinês (PCC). Mao, que tinha organizado rapidamente um grupo comunista em Hunan, teve o sinal de ser um dos apenas 12 delegados a participar. Ele era, assim, um tigre adiantado.

Os agentes soviéticos que financiaram e criaram a organização no início do PCC informou ao Comintern, a agência de divulgação de ideias e influências soviéticas no exterior. Com as memórias da derrota na Guerra Russo-Japonesa de 1904-5, e disputando com o Japão pela influência da Manchúria, os soviéticos precisavam de uma China forte como aliada contra o expansionismo japonês.

O jovem PCC era muito fraco. Os soviéticos decidiram reforçar o conhecido revolucionário que ajudou a derrubar a dinastia manchu, mas depois foi solto pelos senhores da guerra: Sun Yat-sen.

A maioria da liderança do PCC se opôs à política do Comitê Nacional; eles pensavam que a colaboração com o "burguês" Kuomintang desmoralizaria seus membros. Mas o sanfoneiro ditou a melodia, e eles se juntaram ao Kuomintang, poucos mais prontamente do que Mao.

Dois eventos levaram a carreira profissional de Mao para um novo caminho. O primeiro foi o ataque de Chiang Kai-shek ao Partido Comunista. Em 1927, após a morte de Sun Yat-sen, Chiang Kai-shek assumiu a liderança do Kuomintang, e ele conquistou grande parte da metade do sul do país. Consciente do objetivo de longo prazo dos soviéticos de uma aliança do PCC com o Kuomintang, ele curto-circuitou o plano em maio de 1927, ordenando o massacre dos comunistas, principalmente em Xangai. Líderes comunistas se debandaram.

O outro evento foi a experiência de Mao com o poder camponês. Após a morte de seus pais, Mao e seus dois irmãos passaram a possuir uma propriedade valiosa em sua aldeia natal que tinha sido construída por seu pai. A família transitou de camponeses pobres para ricos. E apesar de ter crescido cercado pelas misérias da vida rural, como um comunista incipiente, Mao tinha se concentrado no proletariado urbano até Moscou, percebendo que a China era diferente, pedir mais atenção ao campesinato.

Mao tornou-se ativo nos assuntos camponeses, e sua experiência transformadora testemunhou e relatou uma revolta em seu Hunan natal. Em uma passagem famosa, ele rejeitou as alegações de que os camponeses tinham ido longe demais:

Uma revolução não é o mesmo que convidar alguém para jantar ou escrever um ensaio ou pintar uma quadro ou bordar uma flor; não pode ser algo tão refinado, tão calmo e gentil.

Ao testemunhar o derramamento de sangue na zona rural de Hunan, Mao descobriu sua outra personalidade. Como o acadêmico-diplomata Richard Solomon apontou pela primeira vez, Mao se revelou em "luan", ou revolta. Quando jovem, Mao escreveu que, para a mudança, a China deveria ser "destruída e reformada". Ele agora percebeu que só o campesinato poderia fazer isso. Mao seria o rei dos macacos para liderar essa destruição.

A fonte primária para o rei dos macacos é a clássica novela chinesa "The Journey to the West". Ostensivelmente sobre o famoso monge chinês Xuan Zang, que fez o árduo caminho dos Himalaias para buscar as escrituras budistas originais na Índia, "Journey" é um conto fantástico em que Sun Wukong, o rei dos macacos, desempenha um papel importante como acompanhante do monge. No início da década de 1960, quando a disputa do PCC com o Partido Comunista Soviético estava em andamento, Mao elogiou o rei dos macacos:

A thunderstorm burst over the earth,
So a devil rose from a heap of white bones.
The deluded monk was not beyond the light,
But the malignant demon must wreak havoc.
The Golden Monkey wrathfully swung his massive cudgel
And the jade-like firmament was cleared of dust.
Today, a miasmal mist once more rising,
We hail Sun Wu-kung, the wonder-worker.

Mao então ascendeu de chefe de guerrilha no final da década de 1920 para um líder do partido em meados da década de 1930 na Longa Marcha, o voo do PCC do sudeste ao noroeste para escapar dos ataques de Chiang Kai-shek. Este foi um evento épico nos anais comunistas, porque levou um ano, cobriu cerca de 6.000 milhas e reduziu os 85.000 que tinham partido a apenas 8.000 quando chegaram ao noroeste. Ele absorveu duas lições: todo o poder surge do tambor de uma arma; e na maioria das vezes os camponeses eram muito difíceis de organizar porque tinham plantações para cuidar e famílias para se alimentar.

Desde meados da década de 1930 até meados da década de 1950, Mao desempenhou o seu papel tigre. Ele liderou um partido e exército cada vez mais fortes e eficiente que sobreviveu à guerra anti-japonesa e depois derrotou Chiang e o Kuomintang na guerra civil do final da década de 1940. De 1949 a 1956, Mao presidiu a instalação da ditadura comunista na China, combatendo toda oposição, real ou imaginada, e passando a propriedade dos meios de produção de mãos privadas para o controle socialista.

Foi então que ele se divertiu no negócio dos macacos pela primeira vez. Do ponto de vista de um quadro do PCC, o "negócio de macacos" pode ser definido como qualquer medida que perturbe os procedimentos operacionais padrão do partido. Os quadros não apreciaram quando Mao, em 1956, exortou os intelectuais a "desabrochar cem flores" e um ano depois incentivou os intelectuais a criticar a conduta do partido. Como membros da elite governante, os quadros ressentiam ser criticados, e Mao, tendo prometido que as críticas seriam apenas como uma chuva leve, acabou rapidamente com a campanha quando se transformaram em um tufão e purgou os críticos.

Mao realmente se tornou o rei dos macacos ao iniciar a Revolução Cultural em 1966 para dissipar a "névoa miasmal" do "revisionismo" de estilo soviético do PCC. Agora, era a juventude da China, não os camponeses, que deveriam ser os agentes de sua destruição, já que os principais departamentos do governo e do partido foram destruídos e seus funcionários humilhados e purgados.

Para Mao, a Revolução Cultural terminou em 1969 com a nomeação de uma liderança nova e com a pretensão de ser mais revolucionária, liderança. Mas, apesar de ter tratado o antigo sistema burocrático da China com um golpe terrível, ele sabia que poderia surgir novamente das cinzas. Ele sempre enfatizou que a China teria que experimentar revoluções culturais regulares.

Mas quando o sucessor escolhido por Mao, Hua Guofeng, repetiu esse dictum, ele selou seu destino. Deng Xiaoping e seus companheiros de sobrevivência não queriam mais rei dos macacos mergulhando o partido e o país no caos novamente.

E, no entanto, hoje, o atual governante da China, Xi Jinping, com sua incansável luta anticorrupção para tornar os funcionários mais honestos, desencadeou outra Revolução Cultural contra a burocracia, embora seja controlada pelo centro e não pelas ruas.

Esta é a ação de um rei dos macacos. Hoje não existe um caos, mas certamente há medo e ressentimento generalizado, pois sua poderosa clava reivindica mais vítimas.

O 19º Congresso do Partido Comunista em curso confirmará que o Sr. Xi é o tigre superior, o governante mais poderoso desde Mao. Mas o Sr. Xi terá que garantir que sua personagem alternativa como rei dos macacos não se sinta muito grande. Como fundador revolucionário, Mao nunca poderia ter sido derrubado. Mas, como sucessor revolucionário, o Sr. Xi poderia ser.

Roderick MacFarquhar, professor da Universidade de Harvard, é o autor de vários livros sobre a história chinesa durante a era Mao.

20 de outubro de 2017

Quando a cidade de Nova York era a capital do comunismo americano

Dos partidos cooperativos no Bronx aos sindicatos do Lower East Side, a Big Apple já foi um centro vibrante para a esquerda.

Maurice Isserman

The New York Times

Comunistas marchando no Dia do Trabalho em Nova York em 1935. Crédito Dick Lewis / New York Daily News, via Getty Images

O dramaturgo e crítico do Brooklyn Lionel Abel, que cerrou os dentes políticos nos círculos de esquerda em Greenwich Village na década de 1930, observou em suas memórias que durante os anos da Depressão, a cidade de Nova York "foi para a Rússia e passou a maior parte da década lá". Deixando de lado o gosto de Mr. Abel pelo mordente, ele tinha um motivo.

Durante algumas décadas - desde a década de 1930 até a morte do comunismo como uma força política efetiva na década de 1950 - a cidade de Nova York era o único lugar onde os comunistas americanos se aproximavam de desfrutar o status de movimento de massa. Os membros do partido poderiam viver em um ambiente onde colegas de trabalho, vizinhos e o dentista familiar eram colegas comunistas; eles compraram apólices de seguro de vida (excelente valor para o dinheiro) de organizações fraternas controladas pelo partido; eles poderiam passar suas noites em clubes noturnos administrados por simpatizantes comunistas (como o ironicamente chamado Café Society em Sheridan Square em Greenwich Village, uma vitrine para performers negros como Billie Holliday).

O que se tornou o Partido Comunista dos EUA (seu nome variou nos primeiros anos) foi fundado em Chicago em 1919 e, após um período de organização subterrânea, abriu sua sede nacional naquela cidade em 1921. Mas a maior parte dos membros do movimento estavam em Nova York e, em 1927, a sede comunista foi transferida para um prédio em Manhattan, no 35 East 12th Street, a dois quarteirões ao sul da Union Square. (O prédio ainda permanece ali, embora sob nova propriedade, e no que evoluiu para um bairro muito menos proletário do que nos velhos tempos.)

Nova York continuaria a ser a capital do comunismo americano a partir de então. Os principais comunistas, incluindo figuras como William Z. Foster e Earl Browder, tinham seus escritórios no último andar do prédio da 12th Street; portanto, dentro do movimento, tornou-se costume se referir à liderança do partido como o "nono andar". (E, por algum motivo, mesmo em círculos de esquerda e anti-comunistas, "o partido" sempre foi entendido como se referindo aos comunistas, em vez de a qualquer organização rival.)

Os imigrantes, muitos deles de origem judaica da Europa Oriental, forneceram a principal base social para o partido na cidade de Nova York na década de 1920: até 1931, quatro quintos dos comunistas que moravam na cidade eram estrangeiros.

Claro, o radicalismo imigrante não era nada novo em Nova York. O líder socialista Morris Hillquit, nascido em Riga, na Letônia, obteve mais de um quinto dos votos eleitos nas eleições para prefeito em 1917. Os socialistas inicialmente saudaram a notícia da revolução bolchevique, mas muitos deles, exceto aqueles que deixaram a esquerda para se tornar comunistas, vieram a tempo entender e se opor ao abandono do regime soviético dos tradicionais ideais democráticos e igualitários da esquerda.

Nenhum dos dois principais partidos de esquerda, socialistas ou comunistas, teve muito sucesso na década de 1920. Mas com o início da Grande Depressão, os socialistas se prepararam mais uma vez para se tornar o partido dominante à esquerda. Na eleição presidencial de 1932, o candidato socialista, Norman Thomas, obteve quase nove vezes mais votos que o candidato comunista, o Sr. Foster, obteve. (Nenhum deles teve uma fração do apoio do vencedor de fato, Franklin D. Roosevelt.)

Mas o equilíbrio de poder na esquerda estava prestes a mudar, e em nenhum lugar essa mudança se sentiria de forma mais dramática do que em Nova York. Com a depressão em espiral fora de controle no início da década de 1930, a União Soviética começou a ser vista em uma nova e mais simpática luz por milhões de pessoas ao redor do mundo, incluindo muitos nos Estados Unidos. O "estado dos trabalhadores" com sua economia planejada, vista a uma distância nebulosa e com muitos desejos, parecia oferecer uma alternativa desejável à irracionalidade cruel de um sistema capitalista falido, com o desemprego em massa e a miséria social generalizada.

Mas o equilíbrio de poder na esquerda estava prestes a mudar, e em nenhum lugar essa mudança se sentiria de forma mais dramática do que em Nova York. Com a depressão em espiral fora de controle no início da década de 1930, a União Soviética começou a ser vista em uma nova e mais simpática luz por milhões de pessoas ao redor do mundo, incluindo muitos nos Estados Unidos. O "estado dos trabalhadores" com sua economia planejada, vista a uma distância nebulosa e com muitos desejos, parecia oferecer uma alternativa desejável à irracionalidade cruel de um sistema capitalista falido, com o desemprego em massa e a miséria social generalizada.

Os membros do partido fizeram o seu melhor para parecer menos ameaçadores e menos inspiradores de estrangeiros, mesmo quando ainda louvaram todas as coisas soviéticas, proclamando que o comunismo era simplesmente "americanismo do século 20". Os comunistas também chegaram a grupos que antes tinham desprezado, como o New Deal Democrata e aos políticos que haviam denunciado anteriormente, como o prefeito Fiorello LaGuardia.

Por um tempo, funcionou. Nas cidades ao redor do país, de Detroit a Seattle a Los Angeles, os comunistas começaram a desempenhar um papel visível e efetivo na política, tanto local como nacional. Mas em nenhum lugar eles eram tão bem sucedidos quanto em Nova York.

Em 1938, o partido contava com 38 mil membros no estado de Nova York, cerca de metade da sua filiação nacional e a maioria dos habitantes da cidade de Nova York. Os comunistas eram cada vez mais nativos (embora muitos fossem filhos de imigrantes). As reuniões de massa organizadas pelo partido no antigo Madison Square Garden eram embaladas com até 20 mil participantes; os desfiles anuais do Dia do Trabalho atraíam dezenas de milhares de pessoas, também.

Alguns bairros em Nova York poderiam ser comparados com o "cinto vermelho" em torno de Paris: os partidos cooperativos organizados pelo comunismo na Avenue Allerton no Bronx eram uma base forte de apoio ao partido, assim como partes de East Harlem, Brooklyn e Lower East Side. Em Harlem, o forte compromisso do partido com a luta contra o racismo (ainda bastante raro, mesmo na esquerda liberal) ajudou a atrair o apoio de afro-americanos em todo o espectro social, incluindo alguns importantes artistas como o ator e cantor Paul Robeson.

Os comunistas foram fundamentais para espalhar o evangelho do sindicalismo dos negócios de vestuário para uma série de indústrias e locais de trabalho anteriormente não organizados, como organizadores e funcionários do Transport Workers Union, o National Maritime Union, o Teachers Union e o American Newspaper Guild, entre outros. Ben Gold, presidente da Fur Workers Union foi um dos poucos líderes sindicais dos Estados Unidos que declarou abertamente suas crenças comunistas. Um candidato comunista para a presidência do conselho de administração da cidade recebeu quase 100.000 votos em 1938; e durante a Segunda Guerra Mundial, dois comunistas declarados, Peter V. Cacchione do Brooklyn e Benjamin Davis do Harlem, ocuparam lugares na Câmara Municipal. No City College, no Brooklyn College e na Universidade de Columbia, havia centenas de membros da Young Communist League e milhares de estudantes que se juntaram a grupos de comunistas como o American Youth Congress.

No final, a década que a Cidade de Nova York "ficou" na Rússia deu em nada. Os laços do Partido Comunista com a União Soviética, que o obrigou a ser o apologista dos piores crimes do regime de Stalin, dos julgamentos de Moscou ao Pacto nazi-soviético, limitaram o seu apelo, mesmo no auge do seu sucesso. Com o início da Guerra Fria e de um segundo Red Scare mais penetrante e duradouro do que o original, os comunistas se viram perseguidos e isolados.

Em 1956, com um núcleo duro de cerca de 20 mil membros sobreviventes, o partido recebeu um golpe fatal quando o líder soviético, Nikita Khrushchev, entregou um "discurso secreto" ao 20º congresso do partido em Moscou, denunciando seu antecessor, Stalin, como um cruel assassino em massa. O discurso vazou. Da mesma forma, a adesão desiludida do Partido Comunista dos EUA, reduzida a alguns milhares de membros em 1958, e nunca se recuperando muito além disso nas décadas vindouras. No entanto, ele sobreviveu ao colapso de sua inspiração política, o experimento soviético.

No 100º aniversário da Revolução Russa, a sede nacional do Partido Comunista dos EUA permanece na cidade de Nova York, em um andar de um edifício de propriedade do partido no 235 West 23rd Street. Os membros do partido aparentemente estão divididos sobre manter o prédio, o que cria uma receita de aluguel considerável, ou liquidá-lo no mercado imobiliário vendendo-o.

Uma questão muito capitalista, no final, para preocupar os camaradas restantes.

Sobre o autor

Maurice Isserman, professor de história no Hamilton College, é autor de vários livros sobre a história da esquerda americana, incluindo "Which Side Were You On?: The American Communist Party During the Second World War".

A expedição da Walt Disney pela América Latina

Dois longa-metragens da década de 1940 produzidos pela Disney mostram como a indústria do cinema aprendeu a vender o império americano.

Marcela Croce


Zé Carioca e Pato Donald em "Você já foi à Bahia°", 1945.

Tradução / Walt Disney anunciou sua chegada à América Latina com duas animações: “Alô, amigos” [“Saludos amigos”] (1942) e “Você já foi à Bahia?” [“The three Caballeros”] (1944). Ambas as estreias – no Rio de Janeiro e na Cidade do México, respectivamente – foram marcos na década da Política de Boa Vizinhança, iniciada em 1933 por ocasião da retirada militar na América Central ocupada. Nos anos de 1940, o governo Roosevelt tomava a colaboração hemisférica como vital para os esforços estratégicos de guerra.

Com a ascensão do fascismo na região vista como ameaça, em que pese algum exagero nessa percepção, os dois filmes da Disney e uma missão diplomática combinada foram pensados como propaganda antinazista para a audiência Sul-americana. Aproveitando uma onda de excursões semelhantes – associadas à política do “New Deal” de Henry Wallace – as animações produzidas pareciam inicialmente tentativas sinceras, senão ingênuas, de buscar um diálogo autêntico com a cultura da América Latina. Contudo, a retórica do panamericanismo murchou, e com ela aquilo que o Plano Marshall havia sonhado para a região no período pós-guerra. A Política da Boa Vizinhança deu lugar ao pesadelo na Guatemala em 1954, já no contexto da Guerra Fria. Hoje parece claro o estabelecimento de um precedente pelos dois filmes, no qual a indústria do cinema trabalhou para justificar a intervenção dos EUA não só na região, mas ao redor do mundo todo.

Alô, amigos!

Uma das várias cenas de “Alô, amigos” é a de Pateta (Goofy) vestido de gaúcho, fazendo as usuais patetices pelos Pampas argentinos. A familiaridade do caráter desastrado da personagem torna mais acessível a novidade da política da Boa Vizinhança, contida logo na abertura do filme. Um coro entoa:

Saudações, América!
Chegou o tempo
de nos tornarmos bons amigos!
Saudações, amigos,
vizinhos!
Precisamos nos unir como se fôssemos um só.

A versão lançada nos EUA não faz menção a “vizinhos”, tampouco a qualquer tipo de aliança. (Devido a esta e outras discrepâncias, as citações mencionadas aqui provêm das versões em língua espanhola desses filmes.). Depurado o tom político em sua versão doméstica, o filme sorrateiramente recria a “amnésia imperialista” que frequentemente marca o tom norte-americano em relação à América Latina.

A música da abertura, pelo menos em suas versões em espanhol e português, apela explicitamente às nações da América Latina para que encampem os esforços de guerra dos EUA. Os créditos finais também enfatizam a unidade continental: afirmam que o filme foi realizado graças à “generosidade e colaboração de artistas, músicos e demais amigos por toda a América Latina”.

Essas e outras aberturas expõem as motivações ideológicas por trás da expedição dos cartunistas à América do Sul, a qual é descrita pelo narrador como uma missão para descobrir material novo e recrutar “um novo amigo para o Pato Donald”.

O ensaio clássico de Ariel Dorfman e Armand Mattelart, “Para ler o Pato Donald” (“How to Read Donald Duck”) tornou familiar o termo “imperialismo cultural” para tratar da função ideológica da Disney. Documento fascinante da Unidade Popular, governo de Allende, o ensaio fala da vasta quantidade de quadrinhos da Disney que invadiu a América Latina no período da Guerra Fria. Em um exemplo dado pelos autores, o Pato Donald viaja à região fictícia “Antiplano del Abandono”, supostamente localizada nos Andes, na esperança de encontrar a “cabra de ouro”. Dorfman e Mattelart argumentam que a busca do Pato Donald reprisa a busca dos conquistadores espanhóis pelas ricas minas de Potosí.

No entanto, em 1942 a boa vontade da expedição da Disney muda de tática. Nem Bolívia, nem Peru pareciam importantes aos esforços de guerra dos Aliados, e as cenas que retratavam a região do Lago Titicaca mostram claramente isso; segundo o narrador, “é preciso evitar ambientes urbanos; é preferível manter o foco nos aborígenes”. Na prática isso significa que a Disney retratou a “Terra dos Incas” através dos olhos de um “turista americano”, representado pelo Pato Donald.

Donald se empenha verdadeiramente em estabelecer relações com a cultura local, mas o filma ainda utiliza uma série de provincialismos exagerados: A figura do “chola” personifica a região; mulheres mestiças cantam “melodias exóticas”; o clima inóspito é suportado em virtude da profunda conexão com a “remota civilização Inca”.

Os animadores substituíram os burros típicos da região por “llamas orgulhosas”, as verdadeiras “aristocratas dos Andes”. O narrador prioriza cuidadosamente os animais em detrimento das figuras humanas que os contrapõem, explicando que as criaturas são capazes de humilhar qualquer espectador “com um mero olhar”.

Atravessar o Lago Titicaca acaba se saindo uma “grande aventura”, para qual apenas os ingênuos parecem aptos a encarar. Ao passo que a travessia se incia, os mesmos nativos “permitem ser fotografados livremente, talvez devido ao fato de ainda não saberem o que é uma câmera”. Em que pese a ignorância sobre as tecnologias modernas, os nativos conversam fluentemente com os animais e alistam as llamas para auxiliar os viajantes na travessia. O turista Pato Donald, não podendo lidar com tanto atraso, põe-se a contar vantagem dos avanços tecnológicos dos quais dispõe. Num momento particularmente traiçoeiro da travessia, aprendemos que a andadura das llamas, assim como a dos indígenas do altiplanto, é perfeitamente adaptada para atravessar as instáveis pontes suspensas.

O narrador enfatiza a capacidade das pessoas locais de se adaptarem, enquanto para o turista, só pode mesmo oferecer palavras de encorajamento durante as cenas: “mantenha o juízo, fique calmo, tente relaxar”. Como recompensa, ao Pato Donald é permitido visitar o mercado de cerâmica e comprar artefatos locais.

Retomando a sequência dos planos não-animados, os cartunistas, todos vestindo trajes de negócio, embarcam num avião enquanto uma procissão de cholas descalços atravessam a Puna com seus filhos amarrados nas costas. O quadro seguinte mostra imagens aéreas – ponto de vista que não deixa de simbolizar a superioridade cultural – que nos fornecem um apanhado dos mais incríveis atributos da região. Dorfman e Mattelart explicam a força política representada pela América Latina nos termos de um mosaico de culturas:

“Tais produções, ao selecionarem os traços mais superficiais e singulares de cada povo no intuito de diferenciá-los, lançando mão do folclore como um meio de “dividir para conquistar” nações, que em comum ocupam a mesma posição de dependência, (...) transformam os países da América Latina em lixeiras, sendo estas constantemente repintadas para atender os prazeres voyerísticos e orgiásticos das nações metropolitanas”

Vindo do Chile – representado por “Pedrito, o Pequeno Avião” – o desenho transporta observadores pela Cordilheira dos Andes até Buenos Aires. Uma série de cartões-postais apresenta a “bela e moderna” capital da Argentina: vemos a Praça de Maio, o Teatro Colón, o edifício “Kavanagh” – o maior do tipo na América do Sul – emblemas da “terceira grande cidade das Américas”.

Antes o olhar dos turistas norte-americanos se fixava sobre o exotismo andino; agora esse “olhar imperial” se torna mercantilista. Foca-se nas carnes grelhadas e bons vinhos da Argentina, selando o status de exportador de comida na divisão internacional do trabalho. Conforme afirmou o ex-presidente da Argentina, o grande Domingo Faustino Sarmiento, as infinitas extensões de terra da nação se tornaram, no final das contas, sua maior maldição, pois a abriu para dois séculos de exploração nas mãos de uma elite fundiária criolla, antes de ser transformada num de ponto turístico, o que só faz alimentar sua desvalorização.

Os cartunistas assistem a uma dança folclórica que os remete aos caubóis norte-americanos, propiciando o pano de fundo para um “voo fantástico” aos EUA, onde Pateta se prepara para atuar em seu papel de destaque.

A animação começa com um giro no guarda-roupas – como que fazendo às vezes de uma conversão monetária, ou de uma tradução – no qual Pateta troca suas roupas ocidentais por trajes de gaúcho, virando desse modo o “centauro dos Pampas”, montando seu corcel de inspiração arturiana, “Bucephalus”. Assim como no último plano não-animado, os interesses econômicos e culturais norte-americanos giram em torno da cena da carne argentina, “a mais deliciosa do mundo”. O narrador disserta sobre sua serventia, usada como a base de uma “dieta saudável e rica em vitaminas”, a qual atribui a seus consumidores um físico robusto. Que melhor candidato a parceiro de guerra – especialmente contra os nazistas e sua conhecida obsessão por compleições atléticas – que esses sul-americanos fortes?

Contudo, a cena da última sequência sugere que não haverá um amor duradouro entre os dois países: à medida que a noite cai nos Pampas, o gaúcho é abandonado, deixado sozinho cantando uma “vidalita” tradicional ao som do violão – que, num close revelador, é na verdade uma fita gravada.

A transição dos Pampas para o Brasil marca uma reorientação nítida. O avião aterriza no Rio de Janeiro, lar dos cariocas e do Carnaval, cidade que “supera todas as expectativas em relação a sua beleza exuberante”. Aparece então, pela primeira vez, José Carioca, “aberto em relação aos avanços dos cartunistas”.

Apesar de a ave se vestir de acordo com o que se espera de um “Grande Senhor” – um chapéu panamá, um guarda-chuva utilizado como bengala e um charuto – ele não se gaba das riquezas locais. Em vez disso expressa a incrível beleza natural do Brasil. “Aquarela do Brasil” alardeia a exuberância das paisagens do país, suas cachoeiras, flores, pássaros; a tela se enche de bananas.

Já antecipando “Você já foi à Bahia?” de 1944, Zé Carioca e Pato Donald se conhecem e trocam cartões de negócio. Donald aceita a oferta graciosa do novo amigo para ver os pontos turísticos, e eles terminam o passeio num bar, tomando cachaça, a aguardente local. Somente sob influência da bebida o Pato Donald consegue dançar, acompanhando o ritmo tropical que emana de um salão de festas de Copacabana, onde há uma projeção da silhueta da Carmem Miranda numa janela.

Você já foi à Bahia?

Este filme estreou um pouco antes do final da Segunda Guerra Mundial. Por aqueles tempos, os instáveis argentinos haviam manifestado simpatia pelas forças do Eixo, o que fez com que os EUA redobrassem a investidura em seus outros alvos. Nesse filme, a Disney celebra a boa vizinhança com o Sul, ao passo que fortalece seu protagonismo como líder regional.

Novamente ao Pato Donald é atribuído o papel principal. Na verdade, ele tipicamente serve de procurador da Disney em assuntos políticos, como se pode ver em “A face do Füher” [“Der Füher’s face”, de 1942], curta do período da guerra. (Ainda que, à luz do antissemitismo bem documentado da Disney, a imagem do Pato Donald usando uma braçadeira com a suástica cause incômodo).

Dorfman e Mattelart observam que Donald se tornou um emissário melhor que o Mickey, que cada vez mais desempenhou um papel de homem sensato em face do amigo aventureiro. Aliás, a Disney limitou as aparições do rato no contexto europeu de conflitos ao necessário para a manutenção de sua consagração. Mickey, por sua vez, já havia se tornado um ícone do conservadorismo americano, uma figura contrária ao tipo de representações irônicas do totalitarismo militar que o errático Pato Donald poderia mais facilmente encarnar.

“Você já foi à Bahia?” começa com Donald recebendo presentes de aniversário “de seus amigos da América do Sul”. O primeiro presente, um filme exaltando os pássaros nativos da América do Sul, por um instante reverte o fluxo de poder do Norte para o Sul. Conforme o documentário prossegue em direção ao Polo Sul, o narrador permite que Donald inverta o mapa a fim de não precisar ficar de cabeça para baixo: apenas para assegurar o conforto do espectador norte-americano o filme inverterá a ortodoxia Norte-Sul.

A primeira história é sobre um jovem pinguim que sonha em se mudar para climas mais quentes, mas Donald logo o corta, apressado para abrir o segundo presente, o qual contém seu velho amigo, Zé Carioca, em pessoa.

Zé Carioca leva seu amigo para o Brasil, onde podem observar todas as “rarae aves” que a selva tem a oferecer. O narrador passa a empregar uma série de floreios verbais – “observem a pompa do pássaro, pomposo pompadour” – que rememora as construções poéticas do grande poeta modernista da América Latina, Rubén Darío.

Enquanto os dois amigos passeiam, acabam quase que imperceptivelmente caindo de volta nos Pampas. Se em “Alô, amigos” a Disney dedicou um curta inteiro à Argentina, já em “Você já foi à Bahia?” as nações próximas do Eixo receberam um tratamento mais superficial. Das reminiscências da sequência sobre os Andes do primeiro filme, o Pato Donald e Zé Carioca se atêm às culturas indígenas: um grupo de gaúchos joga “Sapo” e recita frases típicas de sua “linguagem gauchesca”.

Quando os amigos assistem a um garoto domar seu burrinho (“doma gaúcha”), o animal parece desconfiado, tal como o burrinho em “Pinóquio” (1940). Esse reconhecimento superficial reflete o interesse minguante dos EUA pelos Pampas. O Brasil, por outro lado, declara guerra à Alemanha em 1942. Embora o presidente Getúlio Vargas tenha inicialmente se inclinado a apoiar as forças do Eixo, em 1944 seu país acompanha os Aliados, assim como Zé Carioca faz companhia ao amigo Donald na viagem de aniversário deste.

O Brasil, claro, oferece muitos encantos aos turistas. Por um lado, conta com as imensas maravilhas naturais da Amazônia e seus ilimitados recursos – daí a Fordlandia, a planta amazônica da borracha, imaginada por Henry Ford como a base do centro nervoso de um verdadeiro império da fabricação de pneus. Por outro lado, visitantes encontrariam danças tradicionais, frutas tropicais, e todos os outros símbolos que acabaram conquistando a imaginação de Hollywood. Assim, nos vemos em Salvador, Bahia – “terra do romance”, acrescenta Zé Carioca – onde o Pato Donald é seduzido pela figura de Aurora Miranda, irmã da célebre cantora.

Relembrando “Fantasia” (1940), a trilha sonora ganha vida à medida que uma série de instrumentos se assoma e dança junto com a canção de Miranda, desenhando um quadro que prenuncia o exagerado “realismo fantástico”, que se tornaria o mais famoso produto artístico de exportação do continente nos anos de 1960. Não obstante, os EUA mantêm seu status de líder; numa cena, Carioca se multiplica, convertendo-se em uma série de reproduções de linhas de montagem, imagem que contrasta com a iconicidade singular do Pato Donald.

O terceiro presente de aniversário nos leva ao México, onde o galo Panchito preenche a vacância notavelmente deixada pela Argentina. O que podemos presumir como um nativo Jalisco pelos trajes, sobrero e esporão vai logo tratar de paramentar Donald e Carioca a fim de os transformar nos “três cavalheiros” [o título em espanhol do filme é “Los tres caballeros].

Tão logo Panchito começa a cantar, observa: “Ninguém é como a gente” – isto é, os Aliados nas Américas – e acrescenta “onde um lidera, os outros devem seguir”. A cena então irrompe num tiroteio que deve ter lembrado a terra onde outro Pancho, Pancho Villa, tratou igualmente de atrair a simpatia de alguns norte-americanos. Alianças, entretanto, que não criam uma identidade comum: ao passo que Carioca e Panchito dedilham seus violões, Donald se mantém à parte com seu baixo vertical.

Panchito se voluntaria para contar como “a história do México está representada na sua bandeira” e passa à elucidação do significado da águia e da serpente antes de oferecer carona num tradicional sarape, possuidor de certa semelhança com o tapete voador oriental.

De costas para a imagem aérea da Cidade do México, os três seguem para Chihuahua onde se deparam com traços da violência revolucionária que levou Pancho Villa ao poder no Estado. Quando chegam em Veracruz, não há qualquer sinal da recente ordem de ocupação norte-americana, emitida por Woodrow Wilson. Assim que o sarape voador adentra um estado mexicano, um após o outro, as paisagens urbanas se revelam imagens estáticas, tais quais cartões-postais.

Mais uma vez Dorfman e Mattelart identificam a manobra ideológica por trás da familiar redução da geografia a cartão-postal: “A geografia se torna uma foto de postal, e é vendida enquanto tal... as férias de um cidadão metropolitano são transformadas em veículo moderno de supremacia”. Essa supremacia cultural também aparece na sequência de Acapulco, quando Dora Luz reinterpreta um “bolero” de Agustín Lara – arquétipo da sensibilidade moderna mexicana, segundo diz Carlos Monsiváis – em inglês, para benefício do Pato Donald.

A presença norte-americana que se deu tacitamente no decorrer do filme é transmitida por luzes quando termina. Os três amigos olham para o céu, onde aparece em letras vermelhas, brancas e azuis “The End”. Nada de serpentes e águias, nem de “Ordem e Progresso”: as personagens estão unidas sob estrelas e listras.

Depois de um certo tempo, tais letras formariam “OEA”. Ainda depois, “NAFTA” e em algum momento futuro, teremos novas letras nomeado uma cartunesca unidade Panamericana.

Sobre a autora

Marcela Croce é professora de Literatura Latino-Americana na Universidade de Buenos Aires e autora de uma série de livros sobre a literatura e a cultura latino-americana.

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