31 de janeiro de 2019

8 pontos sobre a Venezuela

A agressão da administração Trump à Venezuela é grotesca, egoísta e imperialista. Os EUA deveriam ficar fora da Venezuela.

Max B. Sawicky

Jacobin

Um homem passa por um mural que retrata o falecido presidente da Venezuela, Hugo Chávez; o herói da independência latino-americana Simon Bolivar; e o atual presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, em 30 de janeiro de 2019, em Caracas, Venezuela. Marco Bello/Getty.

1

A inconsistência da política externa dos EUA em relação aos direitos humanos é um escândalo. Que sempre tenha sido assim, ou que tal comportamento seja inevitável para uma nação poderosa, não diminui sua imoralidade fundamental.

2

Habitar as deficiências dos alvos das falsas campanhas de direitos humanos dos EUA não traz benefícios para as vítimas desses regimes. Tudo o que faz é ampliar o espaço político para futuras e desastrosas intervenções militares dos EUA. Ele também encobre a história dos ataques dos EUA à soberania da nação-alvo.

3

O recurso ao “soft power” deve ser visto como um compromisso do governo dos EUA com exigências políticas. Dada a determinação de destruir um regime hostil, não há outras restrições efetivas. O soft power em si deve ser considerado como uma campanha política para preparar o caminho para táticas mais agressivas, até e incluindo a intervenção militar.

4

A intervenção real geralmente se justifica com fabricações ultrajantes: a cocaína de Noriega que era na verdade tortilha em pó, a fábula de soldados iraquianos derrubando incubadoras de bebês em um hospital do Kuwait (exposta por A. Cockburn), as armas de destruição em massa inexistentes de Saddam Hussein e, claro, a lendária história do Golfo de Tonkin.

5

O aparente fato de que atualmente o governo dos Estados Unidos carece dos meios políticos e militares para montar uma invasão séria significa que, ao invés disso, haverá uma continuação e uma escalada de medidas que aprofundarão a miséria do povo da Venezuela. Essas sanções, agravando as condições no terreno, fornecem combustível para denúncias do regime e agressão contra ele. Esse é o propósito deles.

6

As tendências anti-intervencionistas de Trump são substancialmente compensadas por seu emprego de neoconservadores depravados, sua tendência inata a fanfarronice machista, sua ignorância das limitações do poder norte-americano, seus projetos infantis sobre os recursos petrolíferos do país e a necessidade de uma nova distração de seu próprio risco político e legal.

7

Um levantamento de todas as políticas ofensivas dos EUA: a Venezuela deve ser um teste decisivo para o apoio de qualquer candidato que pretenda a nomeação presidencial do Partido Democrata.

8

O imperialismo dos EUA ainda é uma questão.

Colaborador

Max B. Sawicky é economista e escritor nos campos da Virginia. Ele trabalhou no Government Accountability Office e no Economic Policy Institute.

Trumponomics

Corte de impostos de US$ 1,5 tri aprovado por Trump em 2016 não alterou investimentos privados

Laura Carvalho

Folha de S.Paulo

Presidente Donald Trump discursa, na Casa Branca, em 25 de janeiro, durante paralisação do governo dos EUA. Alex Edelman/AFP

Em meio à recusa dos congressistas democratas em aprovar os US$ 5,7 bilhões demandados por Donald Trump para a construção de seu famigerado muro na fronteira mexicana, o mais longo “government shutdown” da história americana levou à suspensão de cerca de 25% dos serviços federais por 35 dias, inflamando o debate sobre as contas públicas do país.

O custo estimado da paralisação, que foi interrompida na segunda-feira (28) pela aprovação de uma nova janela para acordo até 15 de fevereiro, já é de US$ 3 bilhões.

Enquanto isso, a recém-eleita congressista por Nova York Alexandria Ocasio-Cortez vem causando furor por sua proposta de elevar de cerca de 37% para 70% a alíquota marginal de imposto sobre rendas que ultrapassam US$ 10 milhões anuais para financiar um plano de redução de emissões de carbono no país —o chamado “Green New Deal”.

Embora pareça radical nos dias atuais, a alíquota máxima de imposto de renda foi, pasmem, de 70% nos EUA até 1981.

Esse percentual era aplicado somente à parcela dos rendimentos que superasse o limite máximo, como na proposta de Ocasio-Cortez.

A partir de 1981, o governo de Ronald Reagan deu início a uma redução drástica de impostos com base no chamado “trickle down economics”, que projetava um estímulo ao crescimento econômico e à criação de empregos mais do que suficiente para cobrir as perdas iniciais de receitas do governo.

Em 1989, a alíquota máxima era de 28%, gerando uma queda na arrecadação e um aumento da desigualdade.

Trinta anos depois, a decepção se repete.

Segundo uma pesquisa realizada pela National Association of Business Economics (NABE), o corte de impostos de US$ 1,5 trilhão aprovado por Trump em 2016 não alterou significativamente os investimentos privados: 84% das empresas entrevistadas declararam não ter mudado seus planos por causa da redução da alíquota de imposto de renda para a pessoa jurídica de 35% para 21% implementada em janeiro de 2018.

O fato é que o determinante principal dos investimentos das empresas segue sendo a expectativa de crescimento das vendas: empresários compram novas máquinas e equipamentos e/ou constroem novas plantas para serem capazes de produzir mais e, assim, atender a demanda futura.

As reduções de imposto poderiam até funcionar para roubar mercados alheios se não fossem concedidas em meio a uma guerra fiscal em que todos os países seguem a mesma estratégia.

O fracasso do plano de Trump, que contribuiu para deteriorar a situação das contas públicas americanas, não deveria ser surpresa para quem observou os resultados das desonerações concedidas no Brasil na última década.

Ainda assim, o presidente Jair Bolsonaro já afirmou em diversas ocasiões que a redução da carga tributária é uma das metas de seu governo.

No Fórum Econômico Mundial de Davos, o ministro da Economia, Paulo Guedes, chegou a discutir com investidores a possibilidade de reduzir de 34% para 15% os impostos para empresas no Brasil.

Dadas as nossas dificuldades de estabilizar a dívida pública, uma redução desta magnitude parece demasiado drástica, mesmo se vier acompanhada da muito bem-vinda taxação dos dividendos —os lucros distribuídos pelas empresas a seus sócios e acionistas.

Aqui, como nos EUA, os defensores do Estado mínimo não necessariamente são mais refratários ao aumento da dívida pública.

É sempre bom lembrar o óbvio: gastar menos com serviços públicos e/ou benefícios sociais e arrecadar menos ainda com impostos também gera desequilíbrio fiscal.

Sobre a autora


Professora da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP, autora de "Valsa Brasileira: do Boom ao Caos Econômico".

28 de janeiro de 2019

De Mariana a Brumadinho: rio de descaso e insegurança

Estrutura de fiscalização segue precária como antes

José Adércio Leite Sampaio

Folha de S.Paulo

Lama destrói casas em Brumadinho, região metropolitana de Belo Horizonte, após rompimento de barragem. Eduardo Anizelli/Folhapress.

5 de novembro de 2015: O Brasil assiste atônito ao rompimento de uma barragem de rejeito de minério, de propriedade da Samarco S.A., no município de Mariana, Minas. O rejeito levou árvores, bichos, marcas e sonhos. Dezenove pessoas morreram, e uma bacia hidrográfica agonizou.

Investigações realizadas pela polícia e Ministério Público convergiram na identificação das causas do rompimento: a barragem apresentava um histórico de problemas e sinais não captados pelos órgãos de controle de que romperia. Era uma questão de tempo, horas ou dias.

Por que os mecanismos de controle falharam? Porque não foram feitos para funcionar. A lei n. 12.334, de 2010, transfere ao responsável pela barragem a descrição de seu risco e a realização de seu monitoramento. Todo ano ele deve apresentar ao DNPM (Departamento Nacional de Produção Mineral), hoje ANM (Agência Nacional de Mineração), e aos órgãos ambientais uma declaração de estabilidade, elaborada por um auditor independente ou pelo próprio responsável. Essa autodeclaração está sujeita ao controle daqueles órgãos públicos.

A realidade tem suas armadilhas à intenção e efetividade da lei. A declaração de estabilidade usa os dados do monitoramento que são repassados pelo responsável pela barragem e, com base neles, resolve uma equação relativamente simples: se, ao final, chegar a um número inferior a 1,5, a barragem é instável; acima, é segura. Fundão, a barragem da Samarco, tinha um número que a definia como estável, embora houvesse registros internos de uma situação de pré-ruptura. Registros que escaparam aos olhos do Estado.

Algo estava claramente errado nos parâmetros que são usados como referência para elaboração do relatório da Agência Nacional de Águas sobre estabilidade das barragens. Ninguém pode confiar que uma barragem de rejeitos declarada como segura não venha a se romper. Obra do imponderável? Nada disso.

Não se avalia, por exemplo, se uma situação de liquefação do maciço não esteja em curso, levando-o a implodir em segundos.

Não se leva em conta o histórico de problemas do barramento e tampouco se crê na possibilidade de manipulação ou filtro dos dados. O Estado confia piamente na integridade da raposa diante de um galinheiro de lucros.

Tanto o Estado confia que não dá a devida atenção aos órgãos de controle. Em Minas Gerais, havia dois técnicos do DNPM para fiscalizar anualmente mais de três centenas de estruturas. E sem formação para isso, o que é estarrecedor. O TCU e o MPF alertaram o governo federal sobre essa precariedade, mas a confiança cega perdurou até que o rio Doce e as comunidades que vivem dele (e nele) sofressem a maior tragédia socioambiental do País e uma das maiores do mundo.

Agora Brumadinho, que se tornara famosa pelo museu Inhotim, comoveu a todos com o novo rompimento de uma barragem de rejeitos: em mortes de pessoas ocupará a infeliz estatística das maiores tragédias.

Ainda é cedo para dizer se a Vale S.A. cometera os mesmos deslizes de sua "joint-venture", a Samarco, mas pode-se afirmar que, desde 2015, nada mudou na Política Nacional de Segurança de Barragens, exceto em puxadinhos burocráticos.

Não houve alteração da lei 12.334, nem nos parâmetros que medem a segurança das barragens nem na total confiança do Estado nos responsáveis pelas barragens de mineração. A estrutura de fiscalização continua precária como antes.

O galinheiro ampliou seus atrativos, ainda mais depois do aumento do preço do minério de ferro —como de outros minerais não ferrosos. Não há raposa que não se sinta tentada a remexê-lo.

Se não houver uma alteração de comportamento empresarial nem na atitude do governo, a entenderem que gastos com segurança é investimento a ser incentivado e não custos a serem reduzidos, Mariana e Brumadinho estarão à espera de companhia. E perdemos todos dentro desse reino de descaso e insegurança.

Sobre o autor


Procurador regional da República, coordenador da força-tarefa Rio Doce do MPF e da pós-graduação em direito ambiental e desenvolvimento sustentável da Escola Superior Dom Helder Câmara (MG)

24 de janeiro de 2019

Gabinete do crime

Laissez-faire do governo é o vale-tudo, o deixa rolar, o me engana que eu gosto

Laura Carvalho

Folha de S.Paulo

O senador eleito Flávio Bolsonaro e seu pai, o presidente Jair Bolsonaro - Adriano Machado - 27.nov.18/Reuters

Celso Rocha de Barros encerrou sua coluna nesta Folha na segunda-feira (21) com a triste constatação de que “a Lava Jato, até agora, não levou ao poder os honestos. Levou ao poder os malandros que eram insignificantes demais para serem pegos primeiro”.

A Operação Os Intocáveis, deflagrada no dia seguinte, pode entristecer ainda mais o colunista: o Ministério Público do Rio de Janeiro determinou a prisão de diversos integrantes da milícia que explora um ramo imobiliário ilegal em Rio das Pedras, na zona oeste da cidade, entre os quais o major da PM Ronald Paulo Alves Pereira e o ex-policial Adriano Magalhães da Nóbrega, suspeitos de comandar o Escritório do Crime —o braço armado da organização.

Até então, os indícios de participação de Flávio Bolsonaro em contravenções se restringiam, de um lado, ao grande número de transações imobiliárias, que levaram ao acúmulo de um patrimônio aparentemente incompatível com seus rendimentos declarados, e, de outro, às movimentações financeiras do ex-PM assessor-motorista-homem de negócios Fabrício Queiroz, consideradas atípicas e sugestivas da prática apelidada de “rachadinha”, com contratação de laranjas na Alerj (Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro).

Com a nova operação, Flávio desceu mais um degrau na proximidade com o crime organizado do Rio. Contrário à homenagem prestada pela Alerj à vereadora assassinada Marielle Franco, dedicou menção honrosa a Ronald Pereira e Adriano da Nóbrega em 2003 e 2004 e concedeu também a Medalha Tiradentes a este último, em 2005.

Além disso, a mãe de Nóbrega, que assim como sua esposa era contratada até novembro de 2018 pelo gabinete de Flávio com salário de R$ 6.490,35, consta como autora de um dos depósitos identificados no relatório do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras).

Curiosamente, Queiroz teria se escondido justamente na favela Rio das Pedras antes de sua internação no Hospital Albert Einstein, segundo Lauro Jardim, do Jornal O Globo.

Em coluna publicada em 18/2/2016, após tratar dos efeitos da Operação Lava Jato e da queda do preço do petróleo para a economia fluminense, destaquei que “a crise tem no Rio o seu epicentro, bem como alguns de seus cavaleiros do Apocalipse, como Eduardo Cunha e Jair Bolsonaro”.

Na conclusão do texto, citei uma frase publicada em 2000 pelo economista Carlos Lessa na introdução de seu livro “O Rio de Todos os Brasis”, que trata da centralidade do Rio de Janeiro no processo de formação do Estado brasileiro e da identidade nacional, com ênfase na longa história da economia do ilícito na cidade: “O Rio é o Brasil, e o futuro do Brasil está comprometido”.

Epicentro da crise econômica e fiscal, dos escândalos de corrupção e da associação enganosa entre esses dois problemas, o Rio foi um dos principais responsáveis pela grande transferência de votos do PT em 2014 para Jair Bolsonaro em 2018.

Ao que parece, contribuiu para exportar para o centro do poder em Brasília alguns novos representantes das redes cariocas de relações econômicas e de poder permeadas pelo ilícito: a milícia e os grupos de extermínio.

E, assim, vai ficando cada vez mais claro que o tipo de “laissez-faire” adotado pelo atual governo não é exatamente aquele que promoveram os fisiocratas franceses do século 18. É o vale-tudo, o deixa rolar, o me engana que eu gosto.

Sobre a autora


Professora da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP, autora de "Valsa Brasileira: do Boom ao Caos Econômico".

Com tarifa no transporte não há justiça social

Não aceitamos pagar mais por menos ônibus em São Paulo

Francisco Ximenes, Gabriela Dantas e Sofia Sales

Folha de S.Paulo

Manifestantes contra o aumento da passagem em SP fazem concentração perto do Theatro Municipal. Danilo Veroa/Folhapress

Após duas manifestações contra o aumento das tarifas do transporte, em que milhares de pessoas indignadas ocuparam as ruas, a gestão Doria somente buscou criminalizar a luta, e o secretário de transportes da gestão Covas, Edson Caram, finalmente se pronunciou sobre o tema nesta Folha (18/1).

Mesmo assim, seu discurso não traz nada de novo. O que se vê é a velha defesa da tarifa como essencial para o funcionamento do sistema de ônibus municipal. Ao dizer que, se a tarifa não fosse aumentada em R$ 0,30, a Prefeitura teria que retirar recursos da saúde e da educação, o secretário apresenta os R$ 4,30 como algo dado e não como uma escolha política. A primeira coisa que Caram ou ignora ou omite é que, atualmente, para que acessemos qualquer equipamento público, é necessário pagar para se deslocar até eles.

O secretário de Covas ainda tem a audácia de dizer que o aumento de tarifa tem como objetivo promover a justiça social! Argumenta que as gratuidades para idosos e estudantes (que têm sofrido duros cortes) só se mantêm com o aumento para o restante dos passageiros.

Tenta, assim, colocar usuários do transporte uns contra os outros, pressupondo que os custos do sistema e seus subsídios são imutáveis, e que a organização do transporte coletivo --ou tratá-lo como mera mercadoria-- não são escolhas. Pensando assim, talvez ele tenha dificuldade de entender estudos como os da própria SPTrans de 2018, que permitem concluir que, a cada real de subsídio nas passagens, a cidade ganha R$ 3.

O inquestionável elemento oculto no raciocínio do secretário é o lucro dos empresários à custa da população. São taxas de lucro mínimas de 9,85% --num universo de mais de R$ 8 bilhões ao ano-- garantidas pelos próximos 20 anos na nova licitação. Sem contar que o próprio custo do sistema é aferido por quem vai receber --ou seja, há uma facilidade por parte das empresas em inflar valores, além do que já receberiam pelo serviço normalmente.

Caram tenta ainda justificar o absurdo aumento de R$ 0,30 deste ano --mais que o dobro da inflação--, pois teria que repor a inflação acumulada desde 2016.

Sabemos que o secretário provavelmente não andou de ônibus nesse período, mas esperávamos que, pelo cargo que ocupa, tivesse conhecimento que há uma história pregressa: aumentos de R$ 0,80 entre 2015 e 2016, e na integração e bilhetes temporais em 2017, além do acumulado de outros anos.

No fim, o que resta do discurso do secretário são as mesmas palavras de quem busca cortar direitos: "eficiência", "economia" e "racionalização". Junto com o aumento, a Prefeitura propõe um modelo de licitação dos ônibus que prevê cortes de linhas e redução da frota para os próximos 20 anos! A dita "racionalização" nos obriga a pagar mais caro por mais baldeações para chegar ao centro --para quem ela serve? Que cidade ela cria?

Justiça social só se garante com um transporte realmente público, servindo às necessidades de toda a população. E por isso não aceitamos cada vez mais tarifa e cada vez menos ônibus e linhas!

Sobre os autores

Militantes do Movimento Passe Livre SP e usuários de transporte público

22 de janeiro de 2019

Quando Martin Luther King era perigoso

Martin Luther King Jr é lembrado como uma pessoa consciente que apenas violava, cuidadosamente, as leis injustas. No entanto, seus desafios militantes à autoridade estatal o colocam em uma tradição muito diferente: o ativismo trabalhista radical.

Alex Gourevitch


Mugshot de Martin Luther King Jr em Birmingham, 1963. Foto: Wikimedia Commons.

Tradução / Martin Luther King Jr não era um homem popular. Em 1963, apenas 41% dos Estadunidenses expressavam uma visão positiva sobre ele. Apenas o líder Soviético Nikita Khrushchev era mais impopular. Daí pra frente foi tudo foi ladeira a baixo. Em 1966, dois terços dos estadunidenses tinham uma visão negativa de King. Nos seus últimos anos, King tinha uma avaliação pior do que quase todos os outros estadunidenses conhecidos. Pior do que Ted Kennedy depois do acidente de Chappaquiddick; pior que Haldeman e Ehrlichman teriam como as figuras-chave do escândalo de Watergate. Nem o presidente francês Charles de Gaulle era capaz de provocar a mesma hostilidade que King.

Agora tudo mudou. Por que? Alguns dirão que é porque King teria resolvido o “problema de raça” dos Estados Unidos através de algo que chamamos de “desobediência civil”.

No entanto, até seu assassinato em 4 de Abril de 1968, King insistiu que o problema da raça dos Estados Unidos não tinha sido resolvido. Ele também não era um mero desobediente civil, pelo menos não no sentido que este termo é comumente compreendido. Ele não foi apenas um homem consciente, pronto para violar a lei, mas afirmando sua autoridade. King estava preparado para desafiar a autoridade do Estado e assim o fez repetidamente. Ele também o fez como um ato de resistência contra o uso do “Estado de Direito” a favor do interesse dos poderosos. Ele era menos parte de uma tradição imaginada que passaria por Gandhi e Thoreau do que parte de uma tradição real que corre como um fio vermelho na ala radical do movimento trabalhista e na política de esquerda em geral.

King deve ser honrado, mas por quem ele foi e por aquilo que fez. Mas o que ele fez e como suas ações se conectam com essa tradição mais ampla da esquerda? O ponto de partida é Birmingham, Alabama.

Projeto confronto
Quando King chegou a Birmingham, em março de 1963, ele estava cheio de dúvidas e o movimento estava engasgando. O boicote aos ônibus de Montgomery de 1955 a 1956 quase havia sido derrotado, sendo salvo principalmente por uma decisão da Suprema Corte que declarou inconstitucional a segregação nos ônibus. Durante a campanha de des-segregação de 1961 a 1962 em Albany, na Geórgia, os planos de King foram tão circunscritos por ordens judiciais e prisões em massa que seu movimento teve de bater em retirada, mesmo que relutantemente. Nenhuma legislação séria sobre direitos civis estava às vistas. A segregação de tudo no Sul dos EUA, desde fontes de água até piscinas e elevadores, ônibus e escolas, permanecia mais ou menos intacta. Os desafios à liderança de King cresciam.

O plano em Birmingham, que King havia elaborado com outros líderes da luta pelos direitos civis, era usar a semana da Páscoa para desafiar a segregação em um dos centros nervosos das leis de Jim Crow no Sul dos EUA. O movimento passaria a primeira parte da semana construindo apoios e organizando ações diretas, como protestos sentados, piquetes em empresas boicotadas, marchas pelo registro de eleitores e ajoelhamentos em igrejas brancas. O Projeto Confronto, como King e outros líderes como Fred Shuttlesworth e Wyatt Tee Walker o chamavam, culminaria em uma marcha massiva no centro de Birmingham no sábado, 13 de abril. O sábado de Páscoa era o dia de compras mais movimentado da temporada, portanto a marcha seria especialmente perturbadora, ameaçando os lucros empresariais, planos de compras e os hábitos e expectativas mais profundas sedimentados na economia da cidade.

A liderança branca de Birmingham rapidamente se mobilizou em resposta. Na quarta-feira, 10 de abril, o comissário de Segurança Pública Bull Connor enviou advogados para obter uma liminar contra as marchas planejadas. Os advogados de Connor foram ao juiz William Jenkins, conhecido por emitir liminares contra os trabalhadores. As determinações eram usadas regularmente para reprimir as greves nos Estados Unidos desde o final do século XIX e eram frequentes em Birmingham, uma cidade industrial.

Jenkins emitiu sua liminar, uma proibição abrangente de quase todas as táticas concebíveis para o movimento. Ele proibiu “desfiles de rua em massa ou procissões em massa, […] congregação na rua ou em locais públicos […] desfile, demonstração, boicote, invasão e piquete ou outros atos ilegais, ou […] ‘ajoelhar’ nas igrejas “. Na noite de quinta-feira, os homens de Connor levaram a determinação ao Hotel Gaston, onde estavam hospedados os líderes do movimento.

Eles ficaram arrasados ​​- “dominados por um sentimento de desesperança”, segundo King. Para piorar a situação, as autoridades da cidade aumentaram as penalidades financeiras e criminais pela desobediência à liminar. Desrespeitar a ordem judicial significaria longas penas de prisão para os líderes do movimento e multas maciças que ameaçavam levar à falência suas organizações. Porém, obedecer à liminar seria igualmente ruim, destruindo a energia do momento e prejudicando o movimento.

Parecia que eles estavam presos, condenados a repetir o fracasso da campanha na Albany.

O problema da determinação judicial
Além de seus desafios práticos, a liminar colocava um problema político e filosófico para King. King não tinha nenhum problema em violar a lei – muito pelo contrário. “A doutrina da mudança legal se tornou a doutrina da mudança lenta e apenas simbólica” era o mantra de King no mundo posterior à decisão da Suprema Corte no caso Brown vs Board of Education – a mudança teria que ocorrer por meio de atos ilegais. Contudo, embora King estivesse disposto a violar a lei, ele não estava disposto a contestar o Estado de Direito ou os tribunais e a autoridade do governo que sustentava essa regra.

Antes de Birmingham, King queria distinguir a violação de seu movimento daquela perpetrada pelos segregacionistas, que violavam abertamente a ordem anti-discriminação imposta pelo tribunal e se envolviam em violência terrorista. O campo de King obedecia as ordens judiciais, incluindo liminares, e respeitava o processo legal. Os estatutos de segregação e as ordenanças da cidade poderiam ser desobedecidos; os tribunais, como representantes do Estado de Direito, precisavam ser atendidos. Era uma desobediência civil clássica: desobediência consciente, associada ao respeito pela ordem jurídica. Em Montgomery (1955-1956) e em Albany (1961), King insistiu que o movimento só poderia contestar liminares no tribunal. Elas não deveriam ser desobedecidos por completo.

Entretanto, as determinações judiciais representavam um grande obstáculo. Os tribunais haviam coberto todo o Sul do país com ordens legais, criando um denso tecido de repressão. Em 1956, um tribunal do Alabama determinou que a Associação Nacional para o Avanço das Pessoas de Cor (NAACP) ficasse proibida de operar em qualquer lugar do estado, o que a Suprema Corte anulou em 1964. Em 1961, um juiz local proibiu os Viajantes da Liberdade de entrar em Montgomery, Alabama – uma liminar que, juntamente com outra em Albany em 1962, proibia os membros do Comitê de Coordenação de Não-Violência Estudantil (SNCC) de se envolverem na maioria de seus protestos, boicotes e manifestações. Em Baton Rouge, Louisiana, as determinações impediam o Congresso de Igualdade Racial (CORE) de se manifestar contra a segregação. No final de 1963, liminares em Jackson, Mississippi e Charleston, na Carolina do Sul impediam a NAACP de liderar manifestações por lá.

“O método de liminares tornou-se o principal instrumento do Sul para bloquear a ação direta pelos direitos civis e impedir que cidadãos negros e seus aliados brancos se envolvam em assembleias pacíficas”, escreveu King. “Você inicia uma demonstração não violenta. A estrutura de poder garante uma liminar contra você. É possível que demore dois ou três anos antes que qualquer disposição do caso seja feita. ”

Os líderes do SNCC defendiam a violação das liminares, mas King recusava – e então veio Birmingh.

Da desobediência civil para algo a mais

Na noite de quinta-feira em que os líderes dos direitos civis receberam a liminar de Birmingham, todos (exceto o radical Shuttlesworth) aconselharam a violação da ordem: eles simplesmente não podiam pagar as longas sentenças e multas da prisão. Alguém ligou para Harry Belafonte para começar a angariar mais dinheiro. Eles debateram até tarde da noite e continuaram na manhã seguinte.

Então King entrou em seu quarto de hotel, ajoelhou-se e orou. Ele emergiu com uma decisão: era hora de desobedecer à liminar – não importando os tribunais e o processo legal de apelação.

Na sexta-feira, os líderes do movimento realizaram uma conferência de imprensa anunciando sua decisão de desconsiderar a liminar. Eles explicaram:

No passado, respeitamos as decisões judiciais federais por respeito à liderança franca e consistente que o judiciário federal deu ao estabelecer o princípio da integração [racial] como a lei da terra. 
No entanto, agora somos confrontados com forças recalcitrantes no Sul Profundo que usarão os tribunais para perpetuar o sistema injusto e ilegal de separação racial. 
O Alabama deixou clara sua determinação em desafiar a lei da terra. A maioria de seus funcionários públicos, seu corpo legislativo e muitos de seus agentes policiais desafiaram abertamente a decisão anti-segregação da Suprema Corte. Nos sentiríamos moral e [legalmente] responsáveis ​​a obedecer à liminar se os tribunais do Alabama aplicassem igual justiça a todos os seus cidadãos.

Ali estava um novo relacionamento do movimento com os tribunais e o processo legal. Os líderes do movimento estavam declarando abertamente que o último ramo de governo no Sul, e possivelmente o mais independente, havia se mostrado apenas mais um instrumento de segregação. O “maquinário do governo do estado e do poder da polícia”, como o chamavam, havia perdido sua legitimidade. Depois de falar com a imprensa, eles prosseguiram com sua marcha ilegal na Sexta Feira Santa em direção à prefeitura de Birmingham, durante a qual King, Ralph Abernathy e alguns outros foram presos. No domingo de Páscoa, o restante da liderança seria preso por liderar procissões ilegais naquele fim de semana.

É uma ironia histórica que Birmingham seja lembrada como o ato icônico da desobediência civil, pois foi nesse momento que King decidiu que a autoridade do próprio estado deveria ser questionada. O exato momento pelo qual ele é celebrado é o ponto em que ele e seus colegas líderes se tornaram algo mais que desobedientes civis.

King estava bem ciente da importância da decisão. Em Por que não podemos esperar (1964), sua narrativa sobre a campanha de Birmingham, King observou: “Fizemos uma coisa audaciosa, algo que nunca havíamos feito em nenhuma outra cruzada. Desobedecemos uma ordem judicial.”

O movimento havia lançado um desafio aos tribunais para que reconhecessem que a ordem legal – os tribunais, o sistema de apelações, os juízes e funcionários das legislaturas e dos ramos administrativos estaduais – era incapaz de fornecer sequer uma justiça nominal. A questão agora era como o Estado responderia.

O caso Walker versus Birmingham
Areação imediata foram prisões em massa, que rapidamente se transformaram em uma série de processos judiciais. Quando esses desafios finalmente começaram a chegar à Suprema Corte, em 1967, eles representaram um problema para os juízes. Em casos anteriores de desobediência civil, o Tribunal havia decidido que se o estatuto da ordenação ou segregação da cidade subjacente fosse inconstitucional, violar essas leis não seria crime. Dois anos depois, em 1969, a Corte sustentaria que o ato de marchar sem permissão em Birmingham não era ilegal, uma vez que a lei de permissões era inconstitucionalmente vaga e aplicada de maneira racialmente discriminatória.

Mas desrespeitar a liminar do juiz Jenkins era outra questão. No caso Walker v. Birmingham (1967), o juiz Potter Stewart escreveu que, embora “a amplitude e a imprecisão da própria liminar” possam ser uma “questão constitucional” sujeita a debate, o local adequado para esse debate seria em um tribunal. No entanto, os manifestantes, Stewart lamentou, “nem sequer tentaram solicitar aos tribunais do Alabama uma construção autorizada da ordenança”.

Segundo Stewart, recusar contestar a liminar em um tribunal foi pior do que a inconstitucionalidade potencial da liminar, porque os manifestantes estavam tomando a lei em suas próprias mãos ao mesmo tempo em que rejeitavam a autoridade dos tribunais e do próprio estado. Essa, é claro, era a opinião de King e companhia, apesar de alegarem que os tribunais eram incapazes de administrar a lei de maneira imparcial e independente, um ponto que a Suprema Corte se recusou a considerar. Em vez disso, Stewart citou a conferência de imprensa de sexta-feira, na qual os líderes explicaram por que não se sentiam mais “moral e legalmente responsáveis ​​a obedecer à liminar” como prova de seu desprezo pela lei e pelo processo legal.

A decisão de Walker era uma espécie de ato de contenção. Tentava limitar a injustiça racial e a podridão constitucional a certos ramos do governo do estado do Alabama. O Tribunal recusou-se a enxergar até que ponto essa injustiça e podridão afetavam todo o sistema judicial. Depois que a corte proferiu sua decisão em 1967, King se viu voando de avião para Birmingham, preparando-se para cumprir a sentença que fora imposta a ele e seus companheiros três anos antes.

Normalmente, não contamos a história do caso de Birmingham como tendo muito a ver com a Suprema Corte. Marchas, prisões, protestos, cartas na prisão, crianças, cães e mangueiras de incêndio são as histórias sobre Birmingham.

Mas a Suprema Corte precisa fazer parte dessa história. A decisão de Walker não surgiu do nada. As ações de King trouxeram à superfície algo que havia estado enterrado profundamente na memória institucional da Suprema Corte. Ao explicar como a decisão estava “firmemente estabelecida por precedentes”, a opinião do juiz Stewart, apoiado pela maioria da Corte, revivia uma peça de raciocínio jurídico que o Tribunal havia aperfeiçoado décadas antes, durante a repressão de greves trabalhistas. O significado duradouro da decisão do caso Walker não é a decisão em si, mas os fios históricos que ela involuntariamente uniu.

De King a Debs
Para encontrar um “precedente firmemente estabelecido” naquele caso, a Corte retornou quase cinquenta anos a um caso pouco conhecido de 1922 chamado Howat versus Kansas. Alexander Howat era um anarco-sindicalista que liderou uma greve ilegal no Kansas contra uma empresa de mineração. Diante de uma liminar, Howat e os mineiros continuaram em greve, e nem se deram ao trabalho de recorrer da decisão. “Na visão de Howat”, escreve o historiador James Pope, “tribunais, legislaturas e empresas se uniram para acorrentar os homens aos seus empregos e esmagar a vida do trabalho organizado de todo o país”.

Os grevistas desconsideravam os tribunais como uma autoridade legal; eles sentiam que os juízes eram ferramentas dos empregadores.

A ação trabalhista se tornou aquilo que Pope chama de “greve constitucional”: em vez de recorrer da liminar no tribunal, os grevistas reivindicaram para si mesmos uma autoridade constitucional para desobedecer. A greve ilegal era uma maneira de afirmar suas liberdades civis, ao mesmo tempo em que se afirmava que os tribunais haviam perdido sua autoridade legal.

A hostilidade de Howat em relação aos tribunais era amplamente compartilhada. As medidas cautelares anti-greve eram um fato da vida há décadas, tanto que o período entre 1894 e 1932 é conhecido como a era do “governo por liminares”, uma frase cunhada pelo líder socialista Eugene Debs. As decisões judiciais transformavam conflitos entre grevistas e seus empregadores em conflitos entre trabalhadores e o Estado, e davam sanção legal à violenta repressão estatal, transformando a ação do governo contra greves em suspensões generalizadas de liberdades civis básicas.

Somente mais tarde, com a Lei Norris-LaGuardia (1932) e a Lei Wagner (1935) – e modestas vitórias em tribunais como NLRB versus Jones & Laughlin Steel (1937) e Hague versus CIO (1939) – os trabalhadores ganharam algum alívio. Mesmo assim, várias agências estatais continuaram restringindo a organização e greves trabalhistas.

“Suas Liberdades Civis”, um panfleto de 1940 do Congresso de Organizações Industriais (CIO), tornou públicas várias dessas medidas. Uma lei anti-trabalhadores de Milwaukee, por exemplo, proclamava: “Fica ilícito a qualquer pessoa circular ou distribuir qualquer folhetim, folheto ou outro material impresso dentro ou em qualquer calçada, rua, beco, patamar de embarcação, cais ou outro local público, parque ou terreno, dentro da cidade de Milwaukee.” Outras ordenanças proibiam a reuniões, boicotes, piquetes e marchas – muitas das mesmas atividades que os manifestantes dos direitos civis mais tarde seriam proibidos de realizar no Sul do país.

Howat não estava agindo espontaneamente nem idiossincraticamente quando, em 1920, ignorou os tribunais. Ele expressava uma opinião compartilhada entre os líderes trabalhistas e as pessoas comuns, nascida de anos de experiência, de que as liminares eram a arma de um judiciário com consciência de classe que defendia os interesses dos empregadores.

No caso Howat versus Kansas, o Tribunal decidiu que, independentemente da constitucionalidade da liminar, o tribunal tinha autoridade para emiti-la. Desobedecer a liminar sem primeiro contestá-la no tribunal ameaçava o Estado de Direito. Esse foi o precedente que Steward tomou no caso Walker. Citando a decisão do caso Howat, ele declarou: “A desobediência a [decisões judiciais] é um desprezo à autoridade legal [da corte]”.

Mas se Howat era o precedente para Walker, qual era o precedente para Howat? Dois casos foram especialmente importantes: As decisões nos casos “In re Debs” (1895) e Gompers versus Bucks Stove & Range Co. (1911). A primeira decisão foi sobre a greve da Pullman de 1894, a primeira grande greve nacional a provocar uma liminar, que inaugurou as décadas do uso dessa ferramenta. Inicialmente, o líder da greve, Eugene Debs, recomendou aos trabalhadores que obedecessem à lei e a se abstivessem de violência: “Queremos vencer tanto quanto queremos ser cidadãos cumpridores da lei”. Logo, no entanto, as empresas ferroviárias conspiraram com o procurador-geral dos EUA Richard Olney, um ex-funcionário da ferrovia, para garantir uma série de medidas liminares. O presidente Grover Cleveland enviou tropas federais para Chicago, e Olney declarou lei marcial de Illinois até a Califórnia.

Incapaz de continuar a greve sem colocar a si mesmo e seu sindicato em conflito direto com o Estado, Debs convocou uma greve geral e foi preso por violar a liminar. A Suprema Corte decidiu que Debs era culpado de se colocar acima da lei. “É de se supor que esses réus estavam conduzindo uma rebelião ou inaugurando uma revolução”, escreveu a Corte, “e que eles e seus associados estavam se colocando além do alcance do processo civil dos tribunais?” A resposta foi sim.

Para Debs, não havia um “processo civil dos tribunais” com significado real. O Estado, incluindo seus tribunais, tornou-se um instrumento do poder de classe: “As forças organizadas da sociedade e todos os poderes dos governos municipal, estadual e federal se reuniram contra nós”. Um ano depois, ele reafirmou seu argumento em uma declaração que escreveu com Samuel Gompers:

Forças imensas são mantidas à disposição do capital corporativo para a subjugação dos trabalhadores. Durante anos, os interesses das ferrovias mostraram o exemplo sem lei do desafio às liminares […] Eles demonstraram o maior desprezo pela lei do comércio interestadual, fugiram de suas punições […] Nesse desrespeito à lei, essas empresas deram o maior impulso à anarquia e à ilegalidade. Ainda assim, eles não hesitaram, quando confrontados com trabalhadores indignado, em invocar os poderes do Estado. O governo federal, apoiado pelos marechais dos Estados Unidos, por liminares dos tribunais, proclamações do presidente e sustentado pelas baionetas dos soldados e todo o maquinário militar civil da lei, reuniu-se sob a convocação das corporações.

Assim como King apontaria os assassinatos impunes cometidos pelos segregacionistas e sua desobediência às ordens anti-segregação, Debs e Gompers apontaram a “anarquia e ilegalidade” das empresas como evidência de que a ordem legal não tinha relação com sua auto-imagem.

A experiência com Pullman e as subsequentes greves informaram a em outros sentidos conservadora participação de Gompers nos eventos que levaram ao caso Gompers versus Bucks Stove, o segundo precedente da corte do caso Howat. Gompers e outros líderes da Federação Americana do Trabalho haviam decidido violar uma liminar que, entre outras coisas, proibia o uso de seu jornal nacional para anunciar um boicote à empresa Buck’s Stove. A liminar os proibia de tornar público o texto da liminar.

Segundo Gompers, “quando se trata de renunciar aos meus direitos como cidadão americano livre ou violar a liminar dos tribunais, não hesito em dizer que exercerei meus direitos”. Gompers, por uma boa razão, normalmente não é considerado parte de qualquer tendência radical no movimento trabalhista dos EUA. É ainda mais notável que ele apareça nesta história. Até Gompers estava disposto a desconsiderar os processos legais, ignorar os tribunais e endossar o direito dos trabalhadores de agir sob sua própria autoridade.

Suas ações levariam um juiz de primeira instância, a quem a Suprema Corte citou de maneira positiva no caso Gompers versus Bucks Stove, a dizer: “as controvérsias devem ser determinadas em tribunais formalmente constituídos pela lei da terra para esse fim ou cada um que se desentender com outro deverá resolver as coisas do seu próprio jeito furioso?”

Além disso, o juiz alegou: “Se uma parte pode atribuir a si mesma a função de juiz da validade das ordens que forem emitidas e, por seu próprio ato de desobediência colocá-las de lado, os tribunais são impotentes […] e o que a Constituição hoje chama apropriadamente de “poder judicial dos Estados Unidos” seria uma mera zombaria”. Mais do que a própria decisão, esse trecho era o que interessava à corte no caso Howat. Naquele tribunal, Howat era apenas mais um líder trabalhista, como Gompers e Debs antes dele, tomando a lei em suas próprias mãos, de maneira insolente, e minando a autoridade do Estado.

De King a Howat, e chegando em Gompers e Debs, há uma notável linha de continuidade legal, ansiedade judicial e desobediência radical. A cada momento, o drama central não era a desobediência a leis injustas, mas um desafio aberto aos tribunais e ao Estado como um todo. Essas figuras históricas compartilhavam aproximadamente o mesmo senso de por que os tribunais haviam perdido sua autoridade: grandes partes do Estado estavam sob o controle de um grupo que usava a ordem legal para oprimir sistematicamente os outros.

É sabido que King tinha uma conexão de longa data com uma coalizão entre trabalhadores e lutadores pelos direitos civis. Mas isso às vezes é considerado mais como uma união de movimentos separados ou uma coalizão de alianças de interesses compartilhados. A conexão King-Howat-Gompers-Debs nos lembra o quão profunda é essa conexão e o quanto ela estava estreitamente ligada à disposição de ameaçar a autoridade do Estado. Nenhuma dessas figuras históricas, nos momentos históricos relevantes, estabeleceu suas organizações como Estados separados nem se anunciou como “o povo” suspendendo a Constituição para criar uma nova em seu lugar. Naqueles momentos, eles não foram revolucionários. Mas a sua desobediência era mais carregada e vertiginosa do que aquilo que nos vem à mente quando pensamos em desobediência civil.

As profundas diferenças políticas entre essas figuras também são familiares e é importante mantê-las em mente. No entanto, é igualmente importante, e ainda menos conhecido, que eles terminem do mesmo lado da história em relação à natureza e ao escopo da desobediência em massa. Como vimos, esta é uma história que desempenhou um papel muito profundo, embora pouco compreendido, na formação da memória pública, das políticas institucionais da Suprema Corte e na auto-compreensão dos movimentos de massa.

Por seus princípios, King, Howat, Gompers e Debs estavam envolvidos em uma rejeição da autoridade estatal. Eles criaram uma espécie de vazio legal, uma ausência de autoridade legal aceita – e o fizeram porque qualquer coisa menos radical que isso não seria capaz de medir a injustiça que eles enfrentavam e o poder que o Estado reunia contra eles.

Martin Luther King nos dias atuais
Aconexão de King com a ala radical do movimento trabalhista não era apenas uma questão do precedente em que ele foi condenado. No exato momento em que o juiz Stewart e a corte no caso Walker estavam retrocedendo à história da repressão trabalhista, para enviar King para a prisão, King estava ansioso para reabilitar algumas das táticas históricas do movimento trabalhista.

Ele passou a última parte de 1967 trabalhando na Campanha dos Pobres, que se baseava na crescente conscientização de King de que a segregação não era um mero problema regional a ser resolvido por táticas empregadas no Sul. Para King, a segregação era uma engrenagem na injustiça sistemática da economia política estadunidense como um todo. O escopo do problema exigia novas táticas:

No sul, uma marcha era um terremoto social; no norte, era uma exclamação fraca e breve de protesto. O protesto não-violento deve agora amadurecer para um novo nível para corresponder à impaciência negra aumentada e à rígida resistência branca. Esse nível mais alto é a desobediência civil em massa.

Mais do que uma interrupção apenas em nome da interrupção, o terremoto social que King imaginava teria que enfrentar instituições injustas onde elas eram mais vulneráveis. Essas novas táticas tinham que ser “uma força que interrompe o funcionamento [da sociedade] em algum ponto-chave”. Uma dessas táticas era a greve em massa.

Assim, King se viu, no final de sua vida, convocando greves de massa ilegais. Em 4 de fevereiro de 1968, apenas alguns meses depois do término de sua prisão em Birmingham e dois meses antes de seu assassinato, ele proferiu um sermão conhecido como “The Drum Major Instinct” (“Instinto de Tocador de Tambor”). Falando sobre Jesus, King disse:

Ele tinha só trinta e três anos quando a maré da opinião pública se voltou contra ele. O chamaram de desordeiro; o chamaram de encrenqueiro. Disseram que ele era um agitador. Ele praticou desobediência civil; ele desafiou decisões judiciais. E assim ele foi entregue a seus inimigos e passou pela zombaria de um julgamento.

O discurso era um verdadeiro ato de desafio. Não foi apenas o fato de King ter acabado de sair da prisão, tendo cumprido sua sentença pós-Walker, relacionada a uma liminar de Birmingham. King também estava reunindo apoio aos trabalhadores grevistas em Memphis, que, entre outras coisas, estavam enfrentando uma liminar contra seus piquetes e marchas de protesto.

Algumas semanas depois, King se dirigiu aos próprios grevistas. “E, assim como eu disse, não vamos deixar que nenhuma liminar nos mude de direção. Nós estamos indo.” Ele não estava apenas encorajando a desobediência, estava invocando a sua escalada:

Nunca esqueça que a liberdade não é algo dado voluntariamente pelo opressor. É algo que deve ser exigido pelos oprimidos. [...] Se vamos conseguir a igualdade, se vamos conseguir salários adequados, teremos que lutar por isso. Agora, quer saber? Talvez vocês precisem intensificar um pouco a luta [...] e simplesmente ter uma parada geral de trabalho na cidade de Memphis.

King até mesmo via a greve geral como um evento inicial para a própria campanha pelos pobres.

Martin Luther King foi assassinado em Memphis algumas semanas depois, enquanto convocava a desobediência civil em massa na forma de uma greve geral. Esse é o verdadeiro Martin Luther King: o radical e impopular. Essa é a pessoa que devemos celebrar e comemorar.

Sobre o autor
Alex Gourevitch é professor associado de ciência política na Brown University e autor de From Slavery To the Cooperative Commonwealth: Labour and Republican Liberty no século XIX.

20 de janeiro de 2019

Sem trabalhadores, não teríamos democracia

Em todo o mundo, não foram as elites capitalistas que nos deram a democracia. Foram os trabalhadores organizados.

Uma entrevista com
Evelyne Huber


A crowd of people marching to support the election of Salvador Allende for president in Santiago, Chile, March 5, 1964. Wikimedia Commons

De repente, as discussões sobre o estado da democracia estão na moda. E não é difícil ver o porquê: Bolsonaro no Brasil, Trump nos EUA, Erdoğan na Turquia, Orbán na Hungria – todos apontam para um autoritarismo ressurgente e uma diminuição das formas democráticas. Mas não podemos entender a atual contenção sem entender como a democracia de massa surgiu em primeiro lugar.

Em Capitalist Development and Democracy, publicado pela primeira vez em 1992, um trio de estudiosos (Evelyne Huber, John Stephens e Dietrich Rueschemeyer) fornece um exame abrangente da ascensão da democracia no século XX em três regiões: Europa, América do Norte e América Latina e o Caribe. Rompendo com a história convencional, eles argumentam que o capitalismo tem sido crucial para a ascensão da democracia não por causa de sua simbiose natural com o governo popular, mas porque rompe as estruturas tradicionais de poder e gera uma classe trabalhadora maior e mais organizada. “O capitalismo”, escrevem eles, “cria pressões democráticas apesar dos capitalistas, não por causa deles”.

Huber e seus coautores prestam atenção especial a como as distribuições de poder, tanto doméstica quanto internacionalmente, abriram ou fecharam as lutas democráticas. Se um país estivesse na periferia da ordem política global, por exemplo, os movimentos de reforma interna poderiam ser prejudicados pelas ações de poderosos atores externos (como os Estados Unidos). Se um país tinha uma pequena classe trabalhadora devido à falta de desenvolvimento, acabava tendo formas limitadas de governo democrático, na melhor das hipóteses. Em outras palavras, aqueles países com democracias fracas não sofreram (e não sofrem) de algum tipo de deficiência cultural, mas sim “constelações de poder” que amorteceram a capacidade de “grupos subordinados” (como trabalhadores e minorias raciais) pressionar pela sua inclusão no processo político.

O livro é uma poderosa réplica aos equívocos sobre a história e o significado da democracia. E contém uma visão vital: “A classe trabalhadora”, escrevem os três estudiosos, “foi a força pró-democrática mais consistente”.

Huber, uma distinta professora de ciência política da Universidade da Carolina do Norte, conversou recentemente com o editor associado da Jacobin, Shawn Gude, sobre o livro e o que ele nos diz sobre o passado, presente e futuro da democracia.

Shawn Gude

A palavra “democracia” é muito usada, mas significa coisas diferentes para pessoas diferentes. Você e seus coautores escrevem na introdução de Capitalist Development and Democracy: “Nossa premissa mais básica é que a democracia é acima de tudo uma questão de poder”. Você pode explicar o que você quis dizer ali e como isso influencia a maneira como você aborda o estudo da democracia?

Evelyne Huber

A democracia, comparada à autocracia, significa uma maior dispersão do poder político, um movimento em direção a uma menor desigualdade política e a uma situação de uma pessoa, um voto, onde o resultado não é certo.

As elites autocráticas não abdicam voluntariamente de seu poder político – elas só o fazem se forem pressionadas por aqueles que são excluídos do poder político. Portanto, temos que entender as “constelações de poder” se quisermos entender as chances de instalação e sobrevivência da democracia. As constelações de poder que observamos são as relações de poder na sociedade civil, entre a sociedade civil e o Estado, e na economia internacional e no sistema de Estados.

O equilíbrio de poder dentro da sociedade civil depende do poder organizacional de grupos subordinados (por exemplo, trabalhadores). O poder no sistema internacional, tanto na economia quanto na política internacional, molda as estruturas de classe e, portanto, as alianças de classe internamente, e molda as pressões externas.

Veja o exemplo da América Latina. A posição da América Latina na economia internacional como exportadora de matérias-primas limitou o grau de industrialização e, portanto, o tamanho e a força da classe trabalhadora.

Além disso, a influência dos Estados Unidos ao longo do século XX trabalhou sistematicamente contra a democracia na América Latina. Qualquer tipo de reforma socioeconômica séria era rotulada como “comunista”, e os oponentes desses governos reformistas eram apoiados pelos Estados Unidos.

Tudo começou com o golpe contra Jacobo Árbenz na Guatemala em 1954. Árbenz foi o segundo presidente democrático que a Guatemala teve e estava implementando uma reforma agrária que perturbou a United Fruit Company. Alegaram nos Estados Unidos que ele era comunista, o que não tinha base de fato. No entanto, a CIA organizou e financiou uma força de invasão armada liderada por Castillo Armas, que se tornou o primeiro de muitos ditadores.

Essa foi a primeira de muitas ações desse tipo: a intervenção na República Dominicana em 1965, o golpe no Chile em 1973 e a Guerra dos Contras na Nicarágua na década de 1980. Durante toda a Guerra Fria, os Estados Unidos intervieram total e sistematicamente para minar – ou, no pior dos casos, derrubar – governos progressistas e reformistas, mesmo que fossem democraticamente eleitos.

Shawn Gude

Hoje em dia, é comum ver os trabalhadores retratados como uma ameaça à democracia e os mais educados e ricos como guardiões das normas democráticas. Mas esta narrativa está bastante em desacordo com o registro histórico. Você pode nos levar através dessa história? Que grupos sociais foram os partidários mais ardentes da democracia?

Evelyne Huber

Os atores-chave no avanço das democracias de massa na Europa e na América do Norte foram os trabalhadores organizados, em aliança com pequenos agricultores ou setores da classe média, dependendo do país. Na América Latina, o papel principal foi desempenhado pelas classes médias, mas novamente a democracia plena só foi alcançada onde havia uma forte presença da classe trabalhadora.

Na onda mais recente, a terceira onda de democracia na América Latina, o trabalho organizado não desempenhou o papel principal, pois os sindicatos foram severamente enfraquecidos pela repressão e pelo “ajuste estrutural” que levaram à desindustrialização e ao encolhimento do setor público. Em parte, os regimes autoritários se autodestruíram (por exemplo, na Argentina), e em parte foi a pressão de vários grupos, incluindo movimentos sociais de pobres e minorias, bem como grupos de classe média.

Na Ásia, Coréia do Sul e Taiwan se encaixam muito bem no modelo. O que você conseguiu lá foi desenvolvimento econômico, sindicalização e protesto sindical (particularmente na Coréia do Sul) que levaram à democratização. Na Coreia do Sul você tem uma sociedade civil bastante forte que mantém o sistema político democrático.

Olhando para a África Subsaariana, o problema hoje ainda é um baixo nível de desenvolvimento e, portanto, um grau comparativamente baixo de organização da sociedade civil. O outro problema é que em muitos países você tem sociedades etnicamente divididas, e mobilização e partidos baseados na etnia – esse não é um terreno muito favorável para a política democrática.

Shawn Gude

While workers were primed to support democratic struggles, it was never inevitable that they would do so en masse. What have been the role of unions, parties, and other organizations of “subordinate classes” in advancing democracy?

Evelyne Huber

The key here is the social construction of class interests. Just sharing the same position in the economic and social structure does not mean that people perceive common interests and will organize to defend these interests. What mattered historically were the actors that mobilized the bulk of the working classes.

Where these actors were social-democratic parties and unions linked to these parties, they struggled for democracy. So the ideology of the leaders mattered. Where the actors were anarchist union leaders, they did not join that struggle. Where these actors were populist leaders (for instance, Argentina’s Juan Perón), they were not necessarily democratic but interested in building a power base by improving the situation of workers and then maintaining power, even in non-democratic ways.

Shawn Gude

You and your co-authors link the rise of democracy to the rise of capitalism. But again, the mainstream conception — which often equates free-market capitalism with democracy itself — gets it wrong, on an empirical level. What has been the connection between democracy and capitalism, historically?

Evelyne Huber

The connection was that capitalism brought industrialization and urbanization, which together facilitated the organization of subordinate groups. Organization is a source of power — in fact, it is the source of power for those without economic power.

Rural populations, particularly those in positions dependent on large landowners, are notoriously difficult to organize. People working together in factories, or mines, or railroads, are easier to reach and more receptive to messages that raise their awareness of their socioeconomic position and point out possible paths toward improving that position.

So another consequence of capitalism and industrialization was to transform rural labor relations and weaken large landowners economically, and therefore politically, in the longer run. Large landowners dependent on a large cheap labor force historically have been decisive enemies of democracy, for obvious reasons. Industrialization created alternatives for rural labor in the form of migration to the cities.

Urbanization also facilitated the organization of middle classes in professional and cultural associations. As I noted before, what mattered was who did the organizing and political mobilizing.

At the same time, the shift in the center of accumulation from agriculture to industry, commerce, and finance created new elite sectors competing for political power with large landowners. The development of elite competition and alliances of course was different in different countries. In many countries, new and old elites intermarried. Still, the point is that domination over a large cheap rural labor force became decreasingly necessary for maintaining wealth and status, and thus one key obstacle to democracy was reduced in importance.

Shawn Gude

Let’s fast forward to today. The Right and far right are rising around the world, and democracy in many places is experiencing erosion. What accounts for this sea change?

Evelyne Huber

It is on the one hand the increasing divide between the “winners” and “losers” of globalization and the transition to the knowledge economy, and on the other hand the decline of solidaristic organizations among middle and working classes. This makes “losers” susceptible to right-wing populist appeals.

Unions, particularly if linked to social-democratic parties, have historically been the main promoters and supporters of democracy. Deindustrialization has brought a decline of union membership, and thus strength, in all post-industrial societies and in Latin America in the wake of the opening of their economies.

Therefore, unions are not able to serve as effective carriers of a solidaristic message for the bulk of the working class. Instead, unskilled workers in precarious labor market situations in the knowledge economy become available to be mobilized by right-wing populist leaders who create a sense of identity and (false) solidarity of “us against them” and who promise a return to a presumably better past.

Shawn Gude

There are plenty of countries, particularly in the developing world, that still have weak forms of democracy at best, and there’s authoritarian backsliding elsewhere. Yet by some measures the working class is as big as it’s ever been. How hopeful should we be about the future of democracy?

Evelyne Huber

The working class is more atomized and differentiated in post-industrial societies. Even in developing societies, the informal economy has grown and thus created larger groups that are very difficult to organize. Unions have declined everywhere in membership as a percentage of people in the labor force. Traditional working-class parties have lost vote shares in post-industrial societies.

Other social movements may compensate to some extent for the decline of unions. So, the task is to strengthen civil society organizations and political parties with a commitment to democracy and equity, in order to keep the future of democracy looking bright.

Sobre a autora

Evelyne Huber é ilustre professora de ciência política na Universidade da Carolina do Norte e autora ou coautora de muitos livros, incluindo Capitalist Development and Democracy.

19 de janeiro de 2019

A conversão de Georg Lukács

Comunista renascido, revolucionário húngaro, herege marxista - Georg Lukács foi condenado de os lados durante a sua vida. Talvez seja por isso que ele é perfeito para nós.

Daniel Lopez

Jacobin


Georg Lukács. Wikimedia Commons

Em outras palavras, apenas quem reconhece com firmeza, e sem quaisquer ressalvas, que o assassinato não deve ser sancionado em nenhuma circunstância, pode cometer o ato assassino, que é verdadeiramente – e tragicamente – moral. Para expressar este sentido da mais profunda tragédia humana nas palavras incomparavelmente belas de Judite de Hebbel: "mesmo que Deus tivesse colocado o pecado entre mim e a ação que me foi imposta — quem sou eu para escapar?"

"Éticas e Táticas" - 1919

Tradução / Foi com estas palavras que Georg Lukács anunciou a sua conversão ao comunismo. Elas foram escritas há pouco mais de cem anos, como uma modificação de um ensaio anterior no qual ele havia se declarado contrário ao bolchevismo, pois acreditava ser inconcebível já que legitima o pecado.

Esta conversão — nas palavras de um de seus amigos, Anna Lesznai, de “Saul a Paul” — inaugurou uma década em que Lukács revolucionou a filosofia marxista. No processo, ele emergiu como talvez o marxista mais profundamente filosófico desde o próprio Karl Marx.

Antes de se tornar socialista, Lukács, que era filho de um banqueiro em Budapeste, já gozava de uma reputação literária. Mas do que é que ele se converteu? É difícil dizer. Muitas temáticas radicais competem por espaço em seus escritos pré-marxistas.

Bem familiarizado com Marx, ele recebia influências anti-positivista da sociologia de Max Weber e Georg Simmel, tanto de quem ele veio a rejeita-los após 1914 por apoiar a Primeira Guerra Mundial. Lukács combinou seu fascínio por Fichte, Kierkegaard e pela clássica literatura moderna tangenciando um estudo detalhado sobre os acadêmicos da filosofia neo-kantiana.

Ele desdenhava aquilo que considerava como o empirismo vulgar do movimento social-democrata, enquanto se inspirava a partir de Georges Sorel e Ervin Szabó, radicais sindicalistas e socialistas que tentaram superar a institucionalização do movimento proletário através do recurso a uma nova mitologia proletária. Lukács mergulhara na literatura clássica moderna conhecendo assiduamente autores como Henri Bergson, Hegel e Dostoyevsky.

Em suma, Lukács era radical e miserável na mesma proporção. Seus primeiros ensaios, publicados no volume Soul and Form, tornou a vida de um crítico, a quem é negada a criatividade do artista ou a pureza ética de quem age, algo desesperador. Sua teoria literária e crítica foi amplamente aclamada, mas ele estava profundamente insatisfeito.

Ele foi atraído por figuras capazes de ação ética enquanto se considerava tragicamente fadado e incapaz de ação e, consequentemente, de vida ética. Suas relações estavam conturbadas, o que o fez explorar a ideia de suicídio. Embora fosse um homem rico, Lukács não tinha medo da morte, pois a morte só existe depois que ele deixasse de respirar. Incapaz de encontrar qualquer lar espiritual em uma era de “pecado absoluto”, como ele a caracterizou (citando Fichte), Lukács desejava um novo amanhecer.

Pouco antes da Revolução de Outubro, Lukács previu um novo amanhecer em A Teoria do Romance. Ele o fez com referência a Dostoyevsky, cujos romances ele considerava como o prenúncio do advento de uma nova era, na qual a trágica contraposição entre o indivíduo e a sociedade poderia ser superada para sempre.

Há cem anos, no final de 1918, Lukács comprometeu-se plenamente com a promessa de uma nova era: juntou-se ao Partido Comunista Húngaro (PCH), e logo depois veio o amanhecer.

Um novo amanhecer

Em 21 de março de 1919, a Hungria tornou-se o lar da Segunda Revolução Soviética da Europa. De acordo com o relato de um jovem poeta húngaro, József Nádass, Lukács estava apresentando uma palestra intitulada “Old Culture and New Culture” (Velha Cultura e Nova Cultura) em um salão lotado quando a Revolução Soviética húngara foi declarada.

Nessa palestra, Lukács declarou: “libertação do capitalismo significa libertação do domínio da economia… a sociedade comunista, como a destruição do capitalismo, formula seu posicionamento precisamente aqui. Ele se esforça para criar uma ordem social em que todos compartilhem o estilo de vida que pertencia às classes opressoras.”

Infelizmente, a notícia da revolução interrompeu a palestra de Lukács. Felizmente, ele conseguiu concluí-lo algumas semanas depois, falando na Marx-Engels Workers University que ajudou a fundar. Esta palestra – traduzida na década de 1960 e publicada pelo jornal Telos da New Left – é um dos primeiros documentos do marxismo de Lukács.

O tanto de conhecimento produzido pela conversão de Lukács é um dom com o qual podemos pensar livremente e, ao fazê-lo, superar Lukács e ganhar um mundo mais livre.

As linhas acima citadas dão-nos um sentido da visão que Lukács procurou realizar quando a jovem república soviética nomeou-o Comissário Adjunto para os Assuntos Culturais e Educacionais. Como vice-comissário, Lukács fez uma quantidade enorme de ações em um curto espaço de tempo.

Nacionalizou todos os teatros privados e iniciou a redistribuição de bilhetes pré-vendidos da burguesia e da aristocracia para os trabalhadores e os pobres. Seu Comissariado emitiu a proclamação: “a partir de agora, o teatro pertence ao povo! A arte não será mais o privilégio dos ricos. A cultura é devida por direito aos trabalhadores”. Lukács criou bilheterias de trabalhadores especiais que vendiam bilhetes a preço reduzido. O Comissariado também estabeleceu uma união de atores, para a qual Bela Lugosi se tornou um ativista líder, precipitando sua fuga para os EUA após o colapso da República Soviética.

Sob a liderança de Lukács, e com a colaboração ativa de historiadores da arte, o Comissário do Povo para a Educação e Cultura elaborou uma lista de obras de arte privadas significativas na Hungria – incluindo obras-primas de El Greco, Goya, Delacroix, Millet, Manet, Courbet, Pieter Brueghel, o Velho, Constable, Cézanne, Pissarro, Gauguin, Rossetti, Renoir, Van Gogh, Matisse, Monet, Degas e Jan Steen, para não mencionar vários artistas húngaros.

No decorrer deste programa massivo de nacionalização, os homens de Lukács tiveram que procurar a propriedade de um dos condes Batthyány. Quando uma pintura de Brueghel que se sabia estar em sua coleção não foi encontrada, eles derrubaram as paredes de sua mansão até que a pintura murada fosse recuperada. O Comissariado de Lukács, então, disponibilizou essas obras de arte até então cobiçadas para o povo, encenando uma magnífica e inédita “Primeira Exposição de Tesouros de Arte Levados para Propriedade Pública”.

Além disso, foram criadas instituições de educação de adultos destinadas aos trabalhadores — incluindo a mencionada Marx-Engels Workers University. As faculdades foram radicalmente reestruturadas para formar professores do ensino secundário, enquanto clássicos marxistas como a Guerra Civil na França e o Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico foram adicionados à lista leitura até então repletas de textos religiosos antiquados e dogmáticos.

Em uma medida que certamente seria bem-vinda pelo precariado acadêmico de hoje, intelectuais radicais (como, por exemplo, Karl Mannheim) tornaram se palestrantes e professores catedráticos. O Comissariado de Lukács também estabeleceu um registro de escritores reconhecidos que receberiam uma renda regular. Seu documento pioneiro observava que: “Qualidade, orientação ou visão política de mundo não são levadas em consideração. O Comité do registo não funciona como órgão de crítica. Seu trabalho envolve apenas distinguir diletantes de escritores profissionais.” Naturalmente, eles também criaram um processo de recurso, permitindo que qualquer pessoa tratada injustamente poderia contestar uma decisão.

Esta abordagem resumiu, a grosso modo, a atitude defendida por Lukács no seio do Comissariado em relação à arte e à cultura. Ele cunhou o slogan “A arte é o fim e a política é o meio”, e escreveu uma proclamação declarando que o Comissariado apoiaria a arte clássica e de qualidade, mesmo quando ela contradissesse as políticas da República.

Como vice-comissário, Lukács resistiu aos apelos de vários setores para que a república soviética tomasse partido em disputas artísticas ou para promover este ou aquele artista como poeta laureado da revolução. Enquanto não desmentia seus próprios juízos, Lukács adiou a cultura de avaliação para um futuro proletariado livre. Diante disso, sua tarefa era preparar o terreno para este florescimento.

O Comissariado de Lukács organizou a primeira tradução húngara do “O Capital“. Clássicos literários também foram traduzidos – incluindo as obras completas de Dostoievsky, Shakespeare e outros autores históricos mundialmente conhecidos. Para tornar a cultura disponível para o povo, Lukács estabeleceu Bibliotecas Móveis, dirigidas por zeladores, que atenderam os distritos da classe trabalhadora.

As crianças não foram ignoradas. O Comissariado estabeleceu um programa de educação sexual destinado às crianças em idade escolar — o primeiro deste tipo na Hungria profundamente cristã. Uma história apócrifa sugere que Ana Lesznai uma vez perguntou a Lukács o que seria dos contos de fadas que ambos amavam. Diz-se que ele respondeu que eles se tornariam verdadeiros: que sob o comunismo, as pedras e as árvores falariam. Por isso, o Comissariado criou um departamento de fábulas, liderado por Béla Balázs e Lesznai, que organizava espetáculos de Marionetas itinerantes, bem como tardes destinadas a contadores de fábulas. Estas últimas foram acompanhadas por um artista que produziu desenhos para ilustrar os vários temas, a fim de que as crianças sejam expostas à cultura “bela e instrutiva”.

Lukács no caminho para Petrogrado

Afundação da república soviética da Hungria foi prematura, tanto em aspectos políticos quanto estrategicamente, sendo assim prejudicada pelo isolamento e pela falta de clareza política, que surgiu em certa medida da infeliz aliança entre os comunistas húngaros e os sociais-democratas.

Assim, o Estado dos jovens trabalhadores foi tragicamente fadado. Mais do que ninguém, Lukács encarnou o seu espírito trágico. De acordo com um relato de um observador social-democrata, Lukács poderia frequentemente ser encontrado em casa, realizando discussões informais. O mesmo observador informa que, numa dessas reuniões, Lukács argumentou: (...) nós, comunistas, somos como Judas. É nosso trabalho crucificar Cristo. Mas esta obra pecaminosa é ao mesmo tempo a nossa vocação: somente através da morte na cruz que Cristo se torna Deus, e isso é necessário para ser capaz de salvar o mundo. Nós, comunistas, levamos sobre nós os pecados do mundo, a fim de podermos assim salvar o mundo.

Esta atitude trágica-messiânica permaneceu intacta quando Lukács foi chamado a liderar como comissário militar da linha de frente, enquanto a república soviética estava cercada. Além de ganhar popularidade devido à sua atenção detalhada ao estado da cozinha no campo de batalha, dizem que Lukács se expôs ao fogo inimigo caminhando acima das trincheiras. Ele justificou isso, argumentando que se ele queria tirar a vida, ele deve dar ao seu adversário uma chance de retribuir o gesto.

Quando a república soviética da Hungria entrou em colapso, Lukács foi instruído pelo líder comunista Béla Kun (que o havia recrutado) a ficar para trás e, apesar de seu perfil público e notoriedade, a organizar-se clandestinamente. Isso ele fez, apesar de suspeitar que Kun tinha lhe dado esta tarefa esperando que sua notoriedade levaria à captura e execução. No entanto, foi nestes meses obscuros que Lukács começou sua aprendizagem política, e que posteriormente ele continuou a sério após escapar para Viena no final de 1919.

Lá, três fatores convergiram para que seu amadurecimento político acontecesse. Em primeiro lugar, estudou Marx, Hegel e Lênin e lutou para compreender os detalhes concretos da revolução que tinha ocorrido na Rússia em 1917. Em segundo lugar, colaborou com o líder sindical Jenő Landler contra a liderança de Béla Kun. Kun era um seguidor de Grigory Zinoviev e do principal representante Húngaro do Comintern. Naqueles anos, Zinoviev e Kun favoreceram uma política burocrática e sectária que visava forçar artificialmente o ritmo da revolução. Isso desencadeou um desastre generalizado.

Por exemplo, apesar da criminalização do Partido Comunista Húngaro (PCH), Kun tentou impor uma política que proibia os comunistas de pagar direitos sindicais que iriam para o Partido Social-Democrata. Esta medida teria tornado a filiação sindical insustentável para os membros do PCH, expondo-os como comunistas e, consequentemente, à repressão. O conhecimento de Lukács sobre a realidade do trabalho clandestino fez com que ele recusasse a uma política tão suicida e falsa quanto radical.

Em retrospectiva, a única boa decisão que Béla Kun alguma vez tomou foi recrutar Lukács. Este último expressou o seu crescente desprezo pela liderança sectária e ultra-revolucionária do PCH num ensaio intitulado “A política da ilusão – mais uma vez”. Este ensaio marca um ponto de virada na política de Lukács. Ele é coletado, juntamente com uma seleção de seus outros primeiros escritos marxistas na edição intitulada Tática e Ética.

O terceiro – e muitas vezes esquecido – fator que precipitou o amadurecimento político e intelectual de Lukács foi seu relacionamento crescente com Gertrúd Bortstieber, uma colega do Partido Comunista Húngaro, que mais tarde ele descreveu como “(…) uma síntese de paciência e impaciência; grande tolerância humana combinada com ódio a tudo que é vil”. Ele creditou Gertrúd por apresentá-lo a uma abordagem concreta da ética, da economia marxista (particularmente Marx, Luxemburgo e Bukharin) e da história. Posteriormente, ele escreveu: “Considerando que muitas vezes eu era um diletante desajeitado – ela [Gertrúd] de fato alcançou uma compreensão das questões mais cruciais.” Enquanto estava no exílio, Lukács e Gertrúd se casaram em segredo, e posteriormente, ele transformou sua visão. No lugar de um belo e trágico desejo de morte que não seria estranho ver nos livros de Dostoievski ou em um filme noir de Nicolas Ray, Lukács desenvolveu uma abordagem concreta e fundamentada da política revolucionária. Isso culminou em sua obra-prima marxista, História e Consciência de Classe.

Até muito recentemente, era comum considerar este livro como uma síntese de Hegel, filosofia neo-kantiana e Marx. Quando apareceu em 1923, foi denunciado pelos filósofos associados com a crescente burocracia na Rússia e os partidos da Internacional Comunista.

Isto foi parcialmente inspirado pela inimizade de Béla Kun. A causa mais ampla foi que Lukács — como seus contemporâneos, Trotsky e Gramsci — representava uma terceira posição cada vez mais marginalizada que mediava entre o ultra-esquerdismo e o conservadorismo. Isso não se adequava à burocracia de Moscou, que buscava impor sua liderança, muitas vezes abstrata e desconectada, aos movimentos operários da Europa.

Nada menos que Grigory Zinoviev denunciou Lukács – assim como seu então co-pensador e aliado, Karl Korsch – no Quinto Congresso do Comintern, dizendo aos delegados: “Se conseguirmos mais alguns desses professores tecendo suas teorias marxistas, nós estamos perdidos.”

Zinoviev, por sua vez, estimulou o ex-acadêmico soviético menchevique Abram Deborin à ação. Deborin, ecoado por seu equivalente húngaro, László Rudas, acusou Lukács de idealismo hegeliano, de negar a existência de natureza externa à humanidade, de voluntarismo político e ultra-esquerdismo e de aviltante materialismo ao importar relativismo histórico neo-kantiano para o marxismo.

Sem surpresa, juntaram — se-lhes os seus equivalentes alemães e mesmo Social-Democratas-todos os intelectuais que só são lembrados em virtude das suas polêmicas de baixa qualidade contra Lukács. Esses apparatchiks falavam, nas palavras do filósofo radical contemporâneo de Lukács, Ernst Bloch, como “cães sem educação”.

Estas críticas a Lukács generalizaram-se-inclusive entre aqueles que, em tese, conheciam melhor. Tais críticas ecoaram, primeiro por Theodor Adorno, e mais tarde, por marxistas e teóricos críticos tão díspares como Althusser, Lucio Coletti, Habermas, Kołakowski e, mais recentemente, por Axel Honneth. A uniformidade delas—às quais se juntou a acusação de que Lukács buscava reduzir toda objetividade à subjetividade e, em alguns casos, favorecia uma versão autoritária do leninismo – era tal que até o velho Lukács passou a repeti-las na autocrítica.

As coisas começaram a mudar. Nos últimos anos, pela primeira vez, o discurso dominante sobre Lukács começou a mudar. Cem anos de distância provavelmente ajudam. Livre dos preconceitos e das agendas políticas moldadas por um século dividido entre um ocidente liberal e um bloco oriental autoritário, este é um momento emocionante para reler Lukács.

Quem o fizer com olhos claros encontrará ideias que estimulam o pensamento e que são assustadoramente relevantes para os nossos tempos.

Sobre a reificação

Areificação é o conceito mais associado à filosofia da práxis de Lukács na década de 1920. Enquanto este termo ocorre apenas uma vez no Capital de Marx, Lukács o constrói como uma extensão da teoria do fetichismo Mercantil anterior. Tal como Marx, Lukács desejava compreender como as relações sociais — criadas pelos seres humanos em relação uns aos outros e ao mundo natural que encontram — se tornam semelhantes a objetos. Ele também queria entender como isso transforma seres humanos em objetos.

Para isso, ele citou o exemplo de uma fábrica. Enquanto a tecnologia envolvida em uma fábrica (ou, podemos acrescentar, um moderno armazém ou call center) é muitas vezes profundamente desumana, não há nada em princípio capitalista sobre máquinas ou produção em massa. É tão possível imaginar a produção em larga escala, o design e a tecnologia servindo e estendendo as necessidades e habilidades humanas.

Lukács argumentou que cada crise é a própria autocrítica do capitalismo.

No entanto, nos locais de trabalho do tempo de Lukács — e o nosso próprio trabalho — é opressivo. O trabalho exige que o operário se torne um maquinal, e exige que os movimentos (ou o trabalho intelectual como no ensino) sejam racionalmente quantificados e tornados mais eficientes e previsíveis. Isso torna a idiossincrasia humana um erro a ser resolvido.

Observações como essas não eram incomuns entre a geração de teóricos sociais que trabalharam antes de Lukács, como Max Weber ou Georg Simmel, que traçaram, de maneiras diferentes, o surgimento de uma cultura da racionalidade instrumental e das relações de troca. Onde Lukács difere, no entanto, é que ele explicou isso por meio da descrição de Marx sobre o fetichismo da mercadoria.

As mercadorias são trocadas de acordo com o seu valor de mercado, medido quantitativamente, em dinheiro. Este valor não tem nada a ver com as qualidades essenciais das mercadorias: é impossível extrair valor monetário do uso de uma casa, de um carro ou de um computador. Pelo contrário, como Marx observou no primeiro capítulo do Capital, o valor é determinado pelo tempo de trabalho necessário para produzir algo. No entanto, como Marx também argumentou, o trabalho é qualitativo e variável.

Assim, para que a produção moderna e orientada para a troca seja previsível, o trabalho deve ser abstraído e quantificado. O valor de uso do trabalho concreto é que ele produz uma utilidade real, qualitativa e tangível. No entanto, o valor de troca do trabalho é um salário; uma quantidade de dinheiro. A exploração emerge da diferença entre o trabalho concreto e o trabalho abstrato. Com o trabalho concreto, um trabalhador produz um novo valor. Eles são pagos, no entanto, apenas por seu trabalho abstrato — isto é, de acordo com uma taxa horária.

Lukács aprofundou esta crítica da produção mercantil e estendeu-a à totalidade das relações sociais. Aprofundou-o observando que um trabalhador é transformado em objeto enquanto está no trabalho: espera-se que eles realizem regularmente, previsivelmente, e quantitativamente, em troca do pagamento.

Lukács, que acreditava que a essência humana é criativa e qualitativa, via isso como uma fonte de degradação. O tempo, argumentou ele, deve ser considerado como concreto- por exemplo, um artesão ou alguém que está criando crianças. Para um artesão fazer uma guitarra, ela simplesmente leva o tempo que for preciso; isso depende da habilidade do luthier, da qualidade da guitarra, e assim por diante. Já no caso de um familiar alimentar uma criança ou pô-la a dormir, leva o tempo que for preciso.

Por outro lado, o processo de produção moderno depende da padronização desses tipos humanos de trabalho. O tempo, que deveria fluir, qualitativo e concreto torna-se abstrato e quantitativo: o tempo é reduzido ao espaço plano. Isto, no argumento de Lukács, faz do próprio trabalhador um objeto. De modo algum esta lógica se restringe ao trabalho manual. Nas profissões menos braçais — por exemplo, o ensino – cada vez mais os resultados são medidos por métricas quantitativas que achatam e degradam a qualidade produzida.

Esta lógica social baseia-se no modo como a burguesia vive, produz e organiza o mundo. A burguesia é uma classe de troca que precisa de previsibilidade e racionalidade para obter lucro. Assim, bilhões de trocas diárias, assim como o sistema legal que regula esta forma de produção, tornam a totalidade da sociedade abstrata e quantitativa.

Por exemplo, na lei, como Lukács apontou (seguindo Max Weber), um juiz torna-se semelhante a uma máquina projetada para dispensar julgamentos previsíveis, desde que os inputs (e taxas) necessários são inseridos. Ou, pegue o sistema de justiça criminal. A punição se mede principalmente em multas (por delitos menores) ou em tempo de prisão por crimes maiores. Estes são padronizados e emparelhados com um sistema carcerário supostamente racional.

Esses sistemas formalmente racionais ocultam um profundo irracionalismo: o sofrimento de um trabalhador em uma linha de produção ou a desumanidade burocrática enfrentada por um preso em uma prisão moderna. Assim, a aparente imparcialidade das estruturas sociais modernas esconde a crueldade. É claro que as pessoas que administram estes sistemas se apresentam como imparciais e profissionais. No entanto, o racionalismo desumano que lhes é exigido gera muitas vezes ressentimentos e violência desencadeados sobre os oprimidos. Daí a indignidade de um gerente, a insensibilidade de um burocrata, ou o sadismo de um guarda prisional.

Crise e contemplação

Ao enfatizar a criatividade e a qualidade humanas, Lukács afirma que o capitalismo, embora tente impor racionalidade formal em todos os lugares, nunca pode subsistir sem criatividade. Assim, a tensão entre o valor de uso e o valor de troca, ou entre a qualidade e a quantidade, atravessa a sociedade e a nossa experiência individual. Esta tensão cria crises e incongruências, tanto ao nível da sociedade como na experiência quotidiana do indivíduo.

A nível da sociedade, a crise representou, para Lukács, o retorno de uma irracionalidade que tinha sido suprimida. A crise financeira é o exemplo mais claro disso. Bilhões de transações, embora individualmente racionais, se combinam para produzir padrões profundamente irracionais e tensões estruturais. O investimento pode inundar em um setor, com pouco planejamento ou supervisão, levando à especulação, inflação e excesso de oferta.

Quando essas tensões se tornam demais para uma economia suportar, ela entra em recessão; uma crise de superprodução. Isto tem como efeito, na opinião de Lukács, tornar evidente a violência sobre a qual este sistema se baseia. Um despejo — ou mesmo a luta dos pobres trabalhadores, para fazer face às despesas numa corrida em que as probabilidades estão constantemente contra nós — são exemplos disso.

Lukács descreveu a reificação como impondo aos indivíduos uma “postura contemplativa”.” Ou seja, os indivíduos estão separados de qualquer controle sobre as relações sociais que nos dominam e organizam nossas vidas. Isto significa que confrontamos a sociedade com uma atitude contemplativa, considerando-a natural e imutável. A reificação oculta o fato de que o capitalismo e as relações sociais foram construídas e, portanto, podem não ser construídas. Isto explica o “realismo” performativamente radical dos pensadores de direita que afirmam a desigualdade e a “inferioridade” das mulheres ou dos não-brancos como fatos da natureza.

O termo “atitude contemplativa” não deve ser confundido com descrever uma condição de passividade. O que ele descreve é uma condição de impotência. Pode-se ser impotente de uma forma frenética ou de uma forma resignada. A atitude contemplativa também não implica que se torne — como Patrick Bateman-a personificação da racionalidade formal.

Veja o exemplo de um irmão da Silicon Valley tech. Obcecado por um lado, com a I.A., anti-sindicalismo e eficiência impulsionada pela microdosagem e, por outro, com a bacanal pós-apocalíptica que é o Burning Man: esse tipo de personagem peculiar, fascinante e repulsivo é um exemplo extremo. Estas pessoas não têm poder real para alterar as leis da sociedade. Mas eles têm o poder de se alterarem a fim de se conformarem mais hiperativamente com as leis sociais e, assim, melhorarem a sua posição. Um vislumbre de racionalismo dá lugar ao seu oposto, ao irracionalismo.

Para os oprimidos, a experiência dessas contradições é diferente. Para um executivo ou um profissional estabelecido, a atitude contemplativa é dividida entre atividade adaptativa e resignação, podendo ser relativamente confortável ou mesmo uma fonte de poder e riqueza. No entanto, para um trabalhador, a redução ao status de objeto é desumana. Para uma mãe solteira, a luta para se adaptar às leis de uma sociedade machista pode ser um peso esmagador.

Lukács argumentou que essas experiências de intensa dissonância, ao nível do sistema e do indivíduo, revelam que o capitalismo não é natural. Em vez disso, é historicamente construído. Esta visão cria possibilidades de resistência.

Capitalismo: construindo-o e desconstruindo-o

Felizmente, o trabalho de criticar a reificação não depende apenas dos socialistas. Lukács argumentou que cada crise é a própria autocrítica do capitalismo. A crítica da reificação revela que o capitalismo não é um sistema de leis naturais, mas, na verdade, é uma expressão historicamente contingente do estilo de vida da burguesia. Se não natural, o capitalismo foi feito: o que foi feito pode ser desfeito. A desfeita do capitalismo, entretanto, requer duas coisas: em primeiro lugar, um sujeito capaz de refazer o mundo e, em segundo lugar, um sujeito cuja posição lhe permite conhecer o mundo que está refazendo.

Tal como Marx nos seus primeiros escritos revolucionários, Lukács nomeou o proletariado para esta tarefa. Ele fez isso por duas razões. Em primeiro lugar, o proletariado produz valor — assim, a força de trabalho reificada do proletariado é a essência do dinamismo do capitalismo. Mais do que isso, este trabalho produz tudo, desde o plástico no escudo de um policial da tropa de choque, à programação que sustenta a internet, à medicina e à moradia. O proletariado, mais do que qualquer outra classe, está em condições de fechar tudo,

contudo, fechar tudo requer motivação. Lukács propôs que a semente da tal motivação existe na experiência de objetificação total durante o dia de trabalho. Claro que há muitas maneiras de reduzir alguém a um objeto. Um escravo é feito um objeto por um sistema social brutalmente coercivo. As mulheres são objetificadas pelo machismo. Os prisioneiros são tratados como objectos a serem geridos e controlados. O que isso difere com o proletariado é que os trabalhadores são agentes em sua objetificação. Somos nós que vamos trabalhar. Assim, mesmo em nossa objetificação mais profunda, preservamos um resto de liberdade subjetiva. Foi por isso que Lukács descreveu o proletariado como uma classe de mercadorias auto-conscientes.

Trabalhar através da filosofia nos dá liberdade intelectual, a fim de que possamos usar, de forma consciente e sensata, a teoria, em vez de sermos usados por ela.

Isso fornece a condição prévia, mas não as condições plena para a consciência de classe. Assim, quando Lukács descreveu o proletariado como o “sujeito-objeto da história”, ou seja, como o sujeito coletivo que tem o poder de transformar o mundo, ele não estava argumentando que este é um fato real. Ele estava bem consciente de que a plena consciência de classe (isto é, a maioria do proletariado transformando ativamente e conscientemente a sociedade) é um acontecimento excepcional que só pode emergir no contexto de profunda crise e tensão.

A prova de uma teoria como esta só pode ser encontrada na prática. Tal relação entre a teoria e a prática explica o significado, para Lukács, da filosofia cujo propósito é promover a práxis revolucionária.

Política e práxis

Em História e Consciência de Classe, um tanto paradoxalmente, Lukács não se dirigia principalmente a uma audiência proletária. Pelo contrário, dirigiu-se ao movimento comunista da Europa e, em particular, à sua liderança intelectual. Esta escolha estava claramente relacionada com a sua experiência de derrota. Como muitos em sua geração, ele acreditava que a teoria comunista precisava se tornar mais flexível e concreta, a fim de liderar o tipo de revolução política que poderia desreificar a sociedade. Sobre isso, Lukács trabalhou em um conjunto de problemas, semelhantes aos tratados pelo marxista italiano Antonio Gramsci.

Lukács, como Gramsci, entendeu que para que a consciência de classe do proletariado se tornasse efetiva, ela precisava ser formada e articulada politicamente. Ele via o Partido Comunista como o principal agente desta tarefa. Serviria de encarnação da vontade proletária e de sua direção intelectual.

Para aqueles sensíveis ao perigo dos comitês centrais comunistas autoritários (ou, para os comitês centrais trotskistas autoritários no exílio), o argumento de Lukács sobre o partido como portador da consciência de classe despertou alarme.

É crucial, portanto, notar a diferença entre a consciência de classe imputada e a real. A consciência de classe imputada é a consciência que os socialistas atribuem à classe operária: é um “tipo ideal”, para usar um termo weberiano. Suponhamos que todo o proletariado tomou consciência dos seus próprios interesses, tanto na sua libertação como em oposição aos interesses do capital. Tal proletariado teria consciência de classe. A partir deste ato de imputação é possível, então, delinear a teoria socialista.

No entanto, tal hipótese chama a atenção para a diferença entre a consciência imputada e a realidade. Afinal de contas, a maior parte do proletariado está sob a influência de ideias marcadamente não socialistas.

Isto não deve significar que abandonemos a ideia de consciência imputada. Lukács, em sua defesa, argumentou por escrito em História e Consciência de Classea resposta aos seus primeiros críticos. A imputação é parte de cada campo de estudo sério. Por exemplo, um comentarista político pode sugerir que a liderança, digamos, o Partido Republicano está agindo fora do alinhamento com os interesses do povo que representa. Trata-se de um ato de imputação: assume-se o conhecimento dos interesses da Base Republicana e comenta-se em conformidade com a orientação da direção do partido. Pode ser uma avaliação errada, mas não há nada de errado em fazê-la.

O mesmo acontece quando os socialistas atribuem a consciência de classe ao proletariado. É um argumento simples para sugerir que o proletariado se beneficiaria com a abolição do trabalho assalariado ou com o fim do racismo. Mas confundir o que pensamos que o proletariado deve pensar com o que o proletariado pensa, deve pensar, ou precisa pensar que é um erro grave. Comprimir a distância entre a consciência imputada e a consciência real é um perigo. Pelo contrário, a consciência de classe imputada deve ser vista como uma hipótese. Esta hipótese deve submeter-se ao teste da prática.

Em termos práticos, se um Partido Socialista é capaz de conduzir uma luta — digamos, uma greve ou uma campanha eleitoral — a uma vitória significativa, então podemos dizer que mediaram com sucesso entre a consciência de classe imputada e real em uma ação particular. Tal ação depende, em primeiro lugar, de o partido possuir uma visão e uma estratégia e, em segundo lugar, de esta estratégia ser aceite pelas massas populares.

Na maioria das vezes, a estratégia deve ser modificada pelo engajamento com a prática: assim, há um diálogo entre a liderança e a direção, ou, na linguagem mais teórica, entre a consciência de classe imputada e real. Em uma luta bem sucedida, tal hipótese teórica sobre o poder do proletariado interage e informa uma ação prática. O resultado é a praxis.

Em um local de trabalho ou um teatro de batalha, isso pode resultar em vitórias limitadas. Além disso, Lukács acreditava que o partido — assim como os conselhos operários — eram cruciais para formar o proletariado em uma classe total capaz de alterar a sociedade. Para usar a linguagem de Marx, o partido e o soviet encabeçam a distância entre uma classe que existe em si mesma e uma que existe para si mesma.

Esta é uma questão inerentemente política. Além disso, é aquele em que nenhum comitê central imperioso pode ditar a linha de marcha: parafraseando Merleau-Ponty, a relação entre o partido e a classe deve ser aquela em que ninguém comanda e ninguém obedece. Pelo contrário, trata-se de um diálogo em que os interesses são articulados e as perspectivas são partilhadas.

Com ou sem razão, estas são as qualidades que Lukács observou na abordagem política de Lenin. Isto foi delineado no livro de Lukács, Lenin: Um Estudo Sobre a Unidade de Seu Pensamento.

Muitos dos resultados políticos explicitamente previstos da investigação de Lukács parecem ultrapassados para os ouvidos modernos. Afinal, o século XX estava repleto de tentativas de repetir a Revolução Bolchevique, muitas vezes construindo um partido segundo o modelo leninista. Em nenhum exemplo isso foi bem sucedido. Também passaram décadas desde a formação do último conselho operário ou soviético.

Da mesma forma, as questões políticas que confrontam o movimento socialista são diferentes hoje. Já não se trata de uma questão colonial. O campesinato quase desapareceu como classe. Por outro lado, hoje o nível cultural é incomensuravelmente maior do que era na época de Lukács. Quase todos sabem ler. Temos um mundo de informação pronto.

Estas diferenças não tornam irrelevante a Teoria Política de Lukács: a essência da sua leitura de Lenine era a concreticidade. Ou seja, ele argumentou que o significado de Lênin era que ele era capaz — em virtude de sua compreensão da teoria e de seu envolvimento em um movimento vivo — de compreender sua conjuntura e o terreno estratégico que dela resultava em um nível muito mais concreto e preciso do que seus contemporâneos. De forma relevante, esta foi uma leitura do leninismo que enfatizou a democracia. Esta abordagem pode muito bem ser de interesse hoje, como as novas gerações de socialistas rejeitam as leituras ortodoxas stalinistas e trotskistas de Lênin.

No entanto, o principal legado de Lukács não é político. Se levarmos a sério seu argumento, um programa político deve ser formado em sua própria conjuntura histórica: copiar um programa político transforma-o em uma abstração reificada. Em vez disso, o legado de Lukács é filosófico. Foi também isso que o diferenciou dos seus contemporâneos. Mesmo onde sua abordagem política pode ser lida como alinhada com a de Gramsci, Trotsky ou outros, Lukács foi diferente no sentido de que ele subscreveu sua política filosoficamente. Isto não é para sugerir que os dois primeiros estavam desatualizados com a filosofia.

No entanto, Lukács criou um método filosófico mais rigoroso e radical do que qualquer um de seus contemporâneos. Este continua a ser o seu dom mais importante.

Agarrando a liberdade intelectual

Começando pelos conceitos de reificação e atitude contemplativa, Lukács argumentou que estas realidades sociais moldam a estrutura do nosso pensamento. O próprio pensamento é tão dividido e contraditório quanto a realidade. Estas contradições vêm de muitas formas.

Por exemplo, as contradições que estruturam a produção e a sociedade recaem no pensamento sem que nos demos conta. Na política, por exemplo, diferentes teorias competem para explicar como o sistema funciona. Os liberais têm fé na racionalidade essencial das instituições e propõem que, em condições ideais de discurso, todos cheguemos a acordo. Por outro lado, os conservadores estão em casa com força violenta, poder e tradições irracionais. Embora os conservadores possam compreender corretamente o papel destes fatores na produção da política como ela é agora, o seu realismo radical apenas reanima o mundo. Assim, mais uma vez, o capitalismo é naturalizado, juntamente com o irracionalismo e a desumanidade.

Tais ideologias e contradições não são apenas pontos de vista errados. São inerentes às estruturas que governam a sociedade. Assim, eles impactam a prática socialista. Por exemplo, no texto “Legalidade e Ilegalidade”, de seu livro, Lukács argumenta que as táticas socialistas devem navegar entre os polos gêmeos de fetichização da legalidade (a la liberais) e fetichização da ilegalidade (a la anarquistas). Ele argumentou que ambos os polos revelam paixão pela lei — embora este último o faça secretamente. O objetivo de uma crítica marxista da lei, então, é libertar intelectualmente os socialistas para que eles possam orientar estrategicamente com olhos claros. Em suma, é necessário poder aderir à lei e violá-la quando necessário; a questão-chave é o que deve ser feito a seguir.

Lukács argumentou que a filosofia — como uma esfera de conhecimento, dedicada a sua reflexão — mantém a promessa de que podemos nos tornar conscientes da estrutura paradoxal do pensamento e da realidade, e, ao assim, ganhar para nós uma medida de liberdade intelectual.

Permitam-me que diga desta forma: sempre que alguém se torna socialista, encontra uma rica e detalhada tradição intelectual, com muitas visões, métodos, argumentos políticos, etc. Inevitavelmente, fazemos escolhas: decidimos o que faz sentido para nós, com base em nossa leitura, nossas conversas e nossa experiência. Então, nos tornamos parte de um debate vivo, mas também, parte de uma tradição.

Esta tradição é abundantemente teórica. No entanto, é bastante comum que esta teoria permaneça relativamente não contestada. Por causa disso, é muito fácil usar a teoria acriticamente. Afinal de contas, as nossas escolhas (por exemplo, juntar-se a um partido sobre outro ou ler este teórico em vez disso) parecem livres, mas na realidade são condicionadas por mil fatores circunstanciais de que só podemos estar parcialmente conscientes. Não há saída. No entanto, se quisermos não ser pressionados pela história e pelas nossas circunstâncias, temos de encontrar uma forma de obter uma visão geral. Temos de encontrar um ponto de vista que nos permita refletir sobre o que sabemos e sobre as escolhas políticas que fazemos.

Este foi um ponto da filosofia para Lukács. Trabalhar através da filosofia- incluindo a chamada filosofia “burguesa” — nos dá liberdade intelectual, a fim de que possamos usar a teoria forma consciente e sensata, em vez de sermos usados por ela. Testemunhe a abstração e obtusidade de dogmatistas teóricos, tanto dentro da esquerda como fora dela. Pense também no dogmatismo associado a muitos partidos comunistas, social-democratas ou trotskistas.

Nestes casos, a teoria e a tradição tornam-se prisões: em vez de nos permitirem compreender melhor o mundo, o dogmatismo confunde a teoria com a realidade. Esta era também a situação que Lukács percebia ao seu redor – razão pela qual a sua reavaliação do marxismo era muitas vezes dirigida a representantes da ortodoxia teórica, tanto na segunda como na Terceira Internacional.

Assim, Lukács acreditava que a filosofia nos permite ganhar a nossa liberdade concreta em relação à teoria. O objetivo não é jogar a teoria fora. Da mesma forma que um foco de princípios sobre a ilegalidade trai um amor secreto pela lei, uma rejeição excessivamente prática da teoria implica que a pessoa não é consciente e, portanto, é dominado intelectualmente.

Em vez disso, o objetivo é elevar a teoria à consciência. Isso nos permite assumir a responsabilidade de nosso próprio papel na construção de uma teoria adequada às lutas de hoje, além de permitir que nos engajamos com nossa tradição sem nos tornarmos subservientes a ela. Em suma, como disse Lukács, o materialismo histórico tem de ser aplicado a si próprio.

Lukács: antes e depois

AHungria é hoje governada por um dos partidos de extrema-direita mais repulsivos da Europa. Sob o cargo de Primeiro-Ministro de Viktor Orbán e do partido Fidesz, a Hungria inclinou-se violentamente em direcção ao racismo, ao anti-semitismo e ao anti-intelectualismo. As liberdades políticas e intelectuais estão vigiadas.

Na Hungria, então, o legado de Lukács está sob ataque. A fundação The Lukács Archive foi fechada, e seus materiais foram apreendidos pelo governo. Estudiosos associados a Lukács- incluindo seu aluno, Ágnes Heller- foram acusados de corrupção, perseguidos e tarados com retórica anti-semita.

Paradoxalmente, no resto do mundo, Lukács é mais respeitado e mais lido do que nunca. Isto deve-se, em parte, ao ressurgimento do interesse pelo socialismo. Lukács sempre cortará uma figura fascinante, especialmente para aqueles que são atraídos por uma crítica inflexível radical e ética do capitalismo.

No entanto, suspeita-se que há razões mais profundas para a popularidade renovada de Lukács. Resumindo, ainda ninguém acertou. O movimento marxista e socialista está intelectualmente mais diversificado do que nunca. E, no entanto, não existe um modelo viável para a transformação socialista; nenhum avanço socialista provou ser duradouro ou replicável. Estamos muito longe de outubro de 1917. Precisamos da teoria e da filosofia mais do que nunca.

Em meados do século XX, os socialistas foram polarizados pela União Soviética. Consequentemente, os debates refletiam quase sempre às linhas do partido. A teoria marxista foi dividida em campos de guerra, compreendendo comunistas, sociais-democratas, trotskistas, maoístas, socialistas libertários, e a nova esquerda, para não mencionar qualquer número de casas de recuperação. Alguns teóricos, como os da Escola de Frankfurt, procuraram um ponto de vantagem acima destas batalhas. Outros partiram completamente do marxismo para o conservadorismo nos anos 80 e 90.

Não precisamos menosprezar nenhuma dessas tradições para dizer que não pertencemos mais a este mundo. Já não trabalhamos sob o peso da União Soviética ou do seu desaparecimento. O nosso mundo se apega às novas possibilidades e aos desafios perigosos. No entanto, o século XXI está mais desiludido. Ninguém entre nós pode reivindicar a verdade absoluta, embora possamos muito bem afirmar que temos boas razões para pensar da maneira que pensamos. E no entanto, assim que entramos no trabalho confuso de entender o que está ao nosso redor, encontramos tradições e teorias.

Sem mais delongas, a tradição está destinada a lançar uma sombra sobre as nossas mentes.
Esta é a situação – simultaneamente repleta de oportunidades, desiludida e ofuscada pela tradição — que nos permite abordar Lukács com novos olhos. O tanto de conhecimento produzido pela conversão de Lukács é um dom com o qual podemos pensar livremente e, ao fazê-lo, superar Lukács e conquistar um mundo mais livre.

Colaborador

Daniel Lopez é editor colaborador da revista Jacobin.

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