14 de março de 2019

O caminho neoliberal para a servidão

O mais batido refrão de direita alega que o socialismo levaria necessariamente à tirania. No entanto, nas últimas quatro décadas, é o neoliberalismo que tem nos aproximado mais de um Estado policial autoritário.

Branko Marcetic

Jacobin

Pessoas passando por uma câmera de vigilância em uma rua no distrito financeiro da cidade de Nova Iorque. Foto: Spencer Platt | Getty

Tradução / O medo do socialismo se baseia principalmente em uma ideia: que o fim do caminho de um governo com mais atribuições seria o horror totalitário do início do século XX.

Claro, há outras objeções, geralmente envolvendo palavras murmuradas como “mercado” e “eficiência”. Mas para os pais do neoliberalismo como Friedrich Hayek, a verdadeira questão era o medo de que cada aumento no papel do Estado representasse apenas mais um passo em direção às chaminés de Dachau: o poder concentrado em uma elite sabe-tudos, surdos aos problemas enfrentados por seu povo; uma permanente vigilância da população, “suspeita” ou não; uma vasta burocracia armada pronta para acabar com a dissidência; incontáveis corpos trancados e torturados nas prisões; e um Estado que reafirma o poder de tratar seus cidadãos como meros súditos, enquanto exige segredo e impunidade para si mesmo.

Não foi só Hayek, escrevendo à sombra da Segunda Guerra Mundial, que ficou obcecado por esse medo. A retórica anti-governo pela direita dos EUA nos anos Obama estava saturada de conversas sobre nazistas, Hitler e tirania, até que essas mesmas pessoas abraçaram o seu próprio aspirante a autoritário em 2015. Falando nele, em meio a um de seus brados anti-socialistas, Trump afirmou que “o socialismo eventualmente deve sempre dar origem à tirania”.

Impedir essa ameaça supostamente seria a grande promessa do capitalismo. Você pode ter de desfrutar da liberdade de morrer de fome ou de doenças evitáveis, mas pelo menos pode usufruir de todas as liberdades políticas negadas por Estados autoritários.

A realidade provou que isso é um absurdo. O gulag não chegou para a Suécia ou a Noruega apenas porque seus governos pagam as contas médicas das pessoas. Sem falar que a sociedade imaginada pelos socialistas devolve aos trabalhadores o poder de decisão, seja ele econômico ou político, ao invés de concentrá-lo no Estado.

Mas vamos deixar isso de lado por enquanto, porque agora está bem nítido – mais de sete décadas depois de Hayek se preocupar que “aquilo que nos foi prometido como sendo o Caminho para a Liberdade na verdade é o Caminho para a Servidão” – que é o capitalismo neoliberal que nos colocou nessa rodovia.

Nos Eua, existe hoje o que Matt Taibbi descreveu com precisão como um “estado-dentro-do-estado autoritário” e que Tom Engelhardt certa vez chamou de “governo paralelo”. Tem o poder de decidir quem vive e morre com base em evidências que nunca são vistas e que os condenados não podem desafiar, expedindo a morte a um número desconhecido de seres humanos por todo o mundo sem julgamento ou júri – incluindo, às vezes, cidadãos estadunidenses. Esse mesmo Estado paralelo opera um vasto sistema de vigilância global que coleta quantidades impossíveis de dados sobre nosso comportamento íntimo e privado. Às vezes, essas informações são coletadas para serem usadas contra inimigos políticos.

Não foi nenhum socialista de pulso firme quem supervisionou a criação desse Estado paralelo. Em vez disso, o homem que presidiu grande parte disso foi o neoliberal democrata Barack Obama.

Foi sob Obama que informantes do FBI e agentes secretos se infiltraram nas comunidades muçulmanas e incitaram, persuadiram e equiparam homens jovens, desesperados, às vezes pessoas com deficiências de desenvolvimento e muitas vezes com doenças mentais, para cometer crimes que nunca teriam cometido de outra forma – e que então os prenderam por isso. Foi o FBI de Obama que fez uma visita a militantes de esquerda nas semanas que antecederam as convenções do partido democrata de 2016; que escreveu o livro secreto de regras para espionar jornalistas e para se infiltrar em grupos de ativistas; que na véspera da eleição de 2016 cercou famílias muçulmanas por todo o país para fazer algumas perguntas amistosas. Foi aquele presidente, tão diferente dos barulhentos homens fortes de hoje, que lançou uma feroz guerra contra os vazamentos do governo, não importa o quanto eles fossem triviais, que torturou um informante, espionou jornalistas e tentou forçar outro a revelar sua fonte através da ameaça de prisão.

Nem tudo foi culpa de Obama. Em muitos casos, é claro, ele estava apenas aumentando (mesmo que muitas vezes radicalmente) as tendências que haviam sido postas em movimento por aqueles que vieram antes dele. A vasta máquina de deportação de Obama inflou a um tamanho antes nunca visto, com a qual ele arrancou milhões de pessoas de suas casas, separou famílias e colocou crianças em jaulas? Foi gestada pelos democratas neoliberais da década de 1990. O mesmo vale para as políticas que levaram a população carcerária dos EUA que rivalizam com o gulag em seu pico e que excedem em muito a do maior país ainda governado por comunistas, uma situação que Obama em grande parte manteve.

Essas foram empreitadas de ambos os partidos dos EUA na era neoliberal. O Estado paralelo que Obama herdou foi obra de George W. Bush, um irreprimível idoso-propaganda do tipo de liberdade amado por Hayek. O candidato democrata à presidência, Joe Biden, lhe dirá, com razão, que a “Lei Patriótica” que hoje é vista como sinônimo do nome de Bush na verdade sempre foi seu bebê. E Bush só conseguiu treinar o olho-que-tudo vê da inteligência dos EUA sobre seu próprio povo, em primeiro lugar, por causa de uma ordem executiva emitida pelo superfã de Hayek, Ronald Reagan, cujo governo também elaborou um plano de contingência secreto para substituir a democracia e a Constituição estadunidense por um regime militar em caso de “emergência”.

Os EUA não são um caso único, infelizmente. O presidente francês Emmanuel Macron, um amante do mercado, foi vendido como um baluarte contra a tomada fascista, apenas para, em vez disso, lançar as bases potenciais para essa possibilidade. Ele tornou permanentes os poderes emergenciais que permitem às autoridades restringir drasticamente o movimento de supostos “terroristas” e invadir casas sem um mandado; aumentou o financiamento para os militares e os glorificou com caros desfiles; invadiu as casas de seus oponentes políticos e um veículo de comunicação da oposição; e reprimiu protestos “não autorizados”. Nós damos risada dos imperadores romanos que se declaravam deuses, mas o que dizer da declaração de Macron sobre uma “presidência Jupiteriana”?

Em Israel, foi sob o comando do defensor do livre-mercado Benjamin Netanyahu que o país se moveu em uma direção assustadoramente autoritária e racista. Nos últimos anos, Netanyahu espalhou o medo sobre os eleitores árabes para ganhar uma eleição; atacou jornalistas e tentou exercer controle sobre a imprensa; concedeu-se brevemente o poder de declarar guerra de maneira unilateral; manteve sob vigilância e trabalhou para minar grupos políticos de esquerda; e tentou enfraquecer o poder do Supremo Tribunal Federal. Ele tentou deportar dezenas de milhares de migrantes africanos; aprovou uma emenda constitucional racista que, entre outras coisas, rebaixou o árabe à posição de uma língua não-oficial e se aliou a um partido marginal de extremistas explicitamente racistas.

Seria possível citar um exemplo atrás do outro, como a Austrália, que nos últimos anos aprovou algumas das leis ostensivamente anti-terror mais extremas do mundo ocidental. Até a Nova Zelândia, por anos mergulhada no neoliberalismo, concedeu o poder de vigilância sem justificativa a uma agência que espionou um político do Partido Verde desde sua infância até sua época como parlamentar.

Ou poderíamos falar sobre como indiscutivelmente vivemos hoje nas sociedades mais vigiadas de toda a história humana, com nossos movimentos diários sendo constantemente observados e rastreados, seja por câmeras de vídeo que pipocam em todos os cantos de grandes cidades; com tecnologias de reconhecimento facial disfarçadas de publicidade, ou mesmo os cartões que usamos diariamente para pegar o transporte público. Poderíamos até falar sobre a maneira como uma elite supranacional de bilionários da tecnologia – cheia de conexões políticas, ativa e influente sobre políticas públicas – mantém registros do que dizemos e fazemos em nossos momentos mais privados, controla quais notícias e informações chegam até nós e até tenta manipular a maneira como nos sentimos.

Nada disso é exclusividade do neoliberalismo, é claro. Deus sabe que qualquer um pode abrir um livro de História e pousar na descrição de qualquer número de sociedades menos favoráveis ao mercado que seguiram em direção ao autoritarismo. Mas já está na hora de descartarmos a falácia de que haveria algo exclusivamente inerente ao socialismo que desabrocharia em tirania, e de abandonar o boato de que o livre-mercado vai nos salvar. É explícito como eles vem fazendo o oposto.

Nas últimas décadas, temos andado feito sonâmbulos em direção a um Estado policial, alegremente pavimentando o caminho para que qualquer futuro tirano crie a sociedade mais repressiva da história humana. A rota que pegamos para chegar até aqui não foi o socialismo, mas o capitalismo de livre-mercado. Hayek podia estar errado quando disse que deixar os governos cuidar das pessoas e administrar a economia de maneira democrática inevitavelmente criaria mais Hitlers e Stalins, mas ele estava certo sobre uma coisa:

Foram principalmente pessoas de boa vontade... que prepararam o caminho, se não o criaram na prática, para as forças que agora representam tudo o que elas detestam.

Sobre o autor

Branko Marcetic é escritor da redação da Jacobin e mora em Toronto, Canadá.

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