3 de março de 2019

O (não) debate da reforma

Intriga o poder milagroso atribuído à proposta

Luiz Guilherme Piva

Folha de S.Paulo

Gabriel Cabral

Hoje existem duas entidades com onipresença incontestável: a Anitta e, mais do que ela, a reforma da Previdência. A que já foi a terceira, divina, há muito é questionada por muita gente. Não há jornal, TV, rádio ou rede social em que as duas não dominem a cena. Eu prefiro a Anitta, mas vou falar —vejam como é preponderante— de Previdência.

Há, sem dúvida, necessidade de uma reforma previdenciária, dadas as mudanças demográficas e do mercado de trabalho e a situação fiscal. O que intriga é o poder milagroso que se atribui a ela. Como se seu advento substituísse aquela antiga terceira entidade. A julgar pelo que se lê, vê e ouve em todos os veículos, não existe mal que ela não redima: déficit fiscal, entraves à produção, desconfiança de investidores, desemprego, dívida pública e tudo o mais.

E não há analista que não a defenda intransigentemente em todas as oportunidades e lugares. Não sei se há algum bônus de desempenho por quantidade de artigos, entrevistas e palestras enaltecendo o passaporte que ela concede ao paraíso, mas sei que é de espantar que, tendo a reforma o atributo salvacionista que apregoam, não a adotemos por mera aclamação na internet. Bastaria um clique —como poderíamos nos negar o ingresso em tal reino de fartura?

É que as coisas não são bem assim. A versão de que todos ganham e de que tudo se soluciona com a reforma é uma profissão de fé. Os que a repetem são os que creem que, por merecimento —ou que, convertidos, tenham comprado indulgências—, auferirão recompensas adiante —algo como a vida eterna. Os que duvidam temem haver inferno (“abandonai toda ilusão, vós que entrais”), purgatório ou mesmo nada depois do portal a ser transposto.

Pode haver irracionalidade, desconhecimento ou interesse por parte de quem contesta a reforma. Mas o mesmo se aplica aos apóstolos que a defendem tão aguerridamente. Daí a necessidade do debate: não há dúvida acerca dos seus benefícios e alcance? Pode-se duvidar que ela sane todos os males? É possível discutir quem são os escolhidos para pagar as contas? Um só exemplo: vejam-se as fontes de financiamento previstas no art. 195 (incisos I e II) da Constituição e quais são as alterações de alíquotas propostas.

Vou mais longe. Não há mais, para os pregadores, nenhuma menção a outras questões estruturais que superam (e até originam) as da Previdência como explicativas das nossas dificuldades. Desigualdade de renda, miséria, informalidade, atraso tecnológico, distorções fiscais, deficiências educacionais, concentração regional, baixa produtividade, inserção externa precária e de baixo valor —nada mais tem peso? Ou tem menos do que a reforma previdenciária?

Eu, que desgosto de onipresenças —exceto a da Anitta—, acho que a Previdência exige debate mais rico. O Congresso tem a oportunidade de fazê-lo. Mas, por enquanto, entre os formadores de opinião —e de preços; afinal, opiniões têm custos—, a infalibilidade da reforma previdenciária é o maior dos dogmas.

Sobre o autor

Economista, mestre (UFMG) e doutor (USP) em ciência política e autor de "Ladrilhadores e Semeadores" (Editora 34) e "A Miséria da Economia e da Política" (Manole)

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