28 de abril de 2019

A preocupante ascensão da extrema direita na Espanha

Nas eleições gerais de hoje, o partido de extrema direita da Espanha, o Vox, deve entrar no Congresso pela primeira vez. E já está construindo alianças com o centro-direita dominante.

Antonio Maestre

Jacobin

Líder do partido de extrema direita Vox, Santiago Abascal, participa do comício de encerramento do Vox em 26 de abril de 2019 em Madri, Espanha. Pablo Blazquez Dominguez / Getty

Tradução / A discussão sobre o crescente populismo nacional na Europa nos últimos anos muitas vezes trata a Espanha como uma exceção. Pergunta-se como é que se tornou o único país importante na Europa continental onde nenhuma força de extrema-direita conseguiu ter presença no parlamento. Em outras democracias liberais, apesar do profundo antifascismo herdado de 1945, as chamadas forças “pós-fascistas” conseguiram resultados eleitorais favoráveis disfarçando a ideologia que outrora feriu o velho continente.

Mas a Espanha parecia diferente. Até 2018, não tinha o equivalente a organizações de extrema direita como o Front National na França, a Alternative für Deutschland na Alemanha, a Partij voor de Vrijheid na Holanda, a Lega na Itália ou o UKIP no Reino Unido. No entanto, isto mascarou algo que acontecia sob a superfície, que finalmente aflorou com a eleição na Andaluzia em dezembro de 2018. Na votação na maior região da Espanha o partido Vox, de extrema-direita, obteve representação institucional pela primeira vez, ajudando a levar ao poder uma coalizão do centro-direita.

Com a eleição geral a ser realizada neste domingo (28), o Vox poderá ir mais longe e eleger representantes para o parlamento espanhol. Mais do que isso, depois de 28 de abril, espera poder influir na formação do próprio governo. Seu apoio poderá ser decisivo na formação de uma coalizão de direita em nível nacional, unindo o conservador Partido Popular (PP) à direita liberal, corporificada pelo Ciudadanos. Quatro décadas desde o fim da ditadura de Francisco Franco, o avanço do Vox significa dias sombrios para a democracia espanhola.

A pergunta que se poderia fazer é: houve alguma exceção espanhola? Bem, sim, mas não da maneira que a Europa gostaria de pensar. Não havia, de fato, nenhuma presença de extrema-direita explicitamente organizada no parlamento espanhol, além do PP. Isso se deveu tanto a elementos distintos da história da Espanha quanto às condições recentes que adiaram a chegada de uma alternativa nacional-populista ao tradicional partido conservador.

A diferença histórica deve-se à tolerância do que os espanhóis chamam de “ultraright” durante a virada para a democracia que se seguiu à morte de Francisco Franco em 1975. A Espanha viveu uma transição ordenada da ditadura de Franco para a democracia, na qual os elementos fascistas e nacional-católicos daquele regime foram reintegrados como parte da nova direita conservadora. Permaneceram como parte do funcionamento regular da administração do Estado, do judiciário, da polícia e do exército.

Onde constituições democráticas como a da Itália – nascidas da resistência ao nazismo e ao regime de Mussolini – brilhavam com espírito antifascista, isso não existiu no caso espanhol. Em vez disso, as forças filo-fascistas permaneceram como parte normal da política, representada sobretudo pela Alianza Popular. Este partido, o antepassado do conservador Partido Popular atual, foi fundado por sete ministros franquistas. Durante quarenta anos a extrema direita pôde sentir-se confortável em suas fileiras conservadoras, sem ter que se diferenciar.

O segundo fator-chave que retardou o surgimento de uma força nacional-populista na Espanha foi o desenvolvimento do outro lado do espectro político. As mobilizações anti-austeridade de 2011 em diante, que envolveram 15 milhões de pessoas, abriram o caminho para a criação de uma força populista de esquerda – o Podemos – que direcionou as queixas populares no rumo de saídas mais progressistas.

O rompimento do antigo sistema bipartidário (representado pelo conservador Partido Popular, PP e pelo PSOE de centro-esquerda) também impediu o surgimento de uma força mais reacionária para dirigir o mal-estar dos afetados pela globalização. Este “amortecedor” foi entretanto quebrado, graças à normalização do Podemos como um partido institucional e, mais importante, a polarização nacionalista que se desenvolveu desde o controverso referendo de independência da Catalunha, em outubro de 2017. Só se pode entender a ascensão do populismo nacional do Vox à luz da declaração catalã de independência e da reação ultranacionalista em outros lugares da Espanha.

O Vox foi criado em 2013, depois que seu atual líder, Santiago Abascal, se desiludiu com o Partido Popular. Ele havia sido deixado sem nenhum cargo naquele partido após a dissolução de uma fundação que havia sido criada por Esperanza Aguirre – presidente do PP da região de Madri – precisamente para lhe dar um emprego. No mesmo mês em que esta fundação foi fechada, o Vox foi registrado como partido. Surgiu assim em resposta à necessidade de um ex-conservador de encontrar um novo lar e, até as eleições regionais de dezembro de 2018 na Andaluzia, não conseguiu obter representação parlamentar.

O Vox compartilha os mesmos preceitos fundamentais das outras formações comparáveis ​​nos países europeus. É uma força nativista e ultranacionalista, profundamente contrária à imigração, com uma mensagem fortemente islamofóbica. Em termos econômicos, está muito mais próximo das doutrinas ultra-neoliberais de Jair Bolsonaro e dos neo-liberais dos EUA do que das medidas protecionistas prometidas pelo National Rassemblement de Marine Le Pen (ex-Front National).

O Vox apoia medidas fiscais que favorecem os mais ricos e punem os serviços públicos. O Vox não busca o voto de pessoas desencantadas com a esquerda em áreas deprimidas, na linha do que Le Pen conseguiu. Em vez disso, seu único aceno para cortar a divisão ideológica está no apelo identitário. O nacionalismo espanhol está especialmente enraizado na velha classe trabalhadora, especialmente nas regiões do interior e no sul, e entre aqueles que se sentem atacados pelos nacionalismos nas regiões periféricas – o País Basco e a Catalunha.

O arianismo é o valor fundamental do Vox. Seu sucesso deve-se sobretudo a uma mensagem ultranacionalista espanhola, aplicada em reação aos nacionalistas catalães que proclamaram a independência em outubro de 2017. Seu antagonismo contra os catalães baseia-se em um patriotismo romântico; apela à repressão sistemática dos partidos pró-independência e de todos os políticos que participaram na declaração de independência. Este populismo punitivo anda de mãos dadas com o envolvimento no processo contra líderes pró-independência, que atualmente está sendo julgado pela Suprema Corte da Espanha.

Vox não pode, então, ser entendido como um simples transplante de traços de outros populismos nacionais europeus para o contexto espanhol. Pelo contrário, seu surgimento resulta das realidades sociais e nacionais específicas da Espanha. Sem dúvida, a sua ascensão foi encorajada por uma situação internacional em que os movimentos anti-imigrantes avançam – ajudando a legitimar o próprio Vox. No entanto, não poderia ter se enraizado sem o disputado processo de independência na Catalunha e o que a reação contra ele representa.

O avanço do Vox promete algo que o pós-fascismo europeu anteriormente não tinha – o elo espanhol faltante no esforço para implodir a União Europeia a partir de dentro. De fato, seu sucesso na eleição regional da Andaluzia em dezembro passado colocou-o no radar de Steve Bannon e seu think tank anti-liberal de direita, “The Movement”, que busca criar uma espécie de internacional de extrema direita.

Os contatos internacionais mais importantes do Vox operam por meio de Rafael Bardají, membro de seu conselho nacional e, na década de 2000, um proeminente assessor de assuntos estrangeiros do primeiro-ministro conservador (PP), José María Aznar. Um falcão neoliberal, Bardají mantém relações estreitas com o governo de Donald Trump, herdado de seus contatos na era Aznar e com figuras do Partido Republicano próximas a George W. Bush. Ele também faz parte de várias organizações sionistas diretamente ligadas a líderes israelenses do passado, como Ehud Barak.

Paradoxalmente, porém, o sucesso do partido de extrema-direita espanhol logo esfriaria seus contatos com o próprio “Movimento” de Bannon. Logo que se tornou capaz de esperar um avanço nas eleições europeias de maio, não precisava mais da estratégia ou dos contatos de Bannon para fazer obter avanços institucionais.

A distância entre Vox e Bannon também deve-se às suas origens conservadoras e à fraca posição anti-europeia. De fato, em várias entrevistas e declarações, o líder do Vox, Santiago Abascal, insistiu que seus contatos com Bannon estavam limitados ao argumento de que a oposição espanhola ao separatismo catalão também deveria ser traduzida em termos europeus. Vox não participou da recente cúpula organizada pelo ministro de Interior de extrema-direita da Itália, Matteo Salvini, que saudou outras formações nacional-populistas como a Alternative für Deutschland, o Partido do Povo Dinamarquês e o partido dos finlandeses.

Os obstáculos fundamentais para que o Vox seja atraído para uma internacional nacional-populista são os mesmos que impedem qualquer ação coordenada entre tais formações. De fato, os ultranacionalistas têm dificuldade em desenvolver uma política comum em nível internacional, já que a reivindicação pela soberania de um país se choca com as reivindicações dos demais. Isto é especialmente verdade no que diz respeito à partilha de migrantes entre os países da UE com base em quotas. Países do sul da Europa, como Espanha e Itália (principais receptores de migrantes vindos da África), consideram essa medida fundamental, mas é rejeitada por possíveis aliados de extrema direita em países como a França, Polônia ou Hungria, que não estão dispostos a aceitar migrantes.

Ninguém duvida que nas eleições gerais deste domingo, o Vox conseguirá eleger deputados para o parlamento espanhol. As pesquisas de opinião prevêem que terá entre vinte e cinquenta vagas. Este seria um avanço semelhante ao que se pode ver com o Podemos e o Ciudadanos nas eleições de três anos atrás, nas quais saltaram de nenhum deputado para setenta e uma e trinta vagas respectivamente.

O número de assentos do Vox não seria, no entanto, um problema se não fosse pelo fato de que seus argumentos e seu papel foram totalmente aceitos pelos partidos mais estabelecidos da direita. Tanto o PP como o Ciudadanos basearam suas campanhas na necessidade de unir forças com o partido de extrema-direita para criar uma coalizão que possa tirar o PSOE social-democrata de Pedro Sánchez do governo.

Os números do Vox poderiam de fato ajudar a direita a conseguir uma maioria suficiente para assumir o governo. Pode não apenas exercer influência direta sobre a nova administração, mas também se unir ao próprio executivo, se alcançar uma representaação suficiente no novo parlamento espanhol. Isso colocaria no centro as medidas reacionárias que Vox destacou nesta campanha eleitoral. Inspirado em Trump, o partido de extrema-direita propôs a construção de um muro em torno dos enclaves norte-africanos de Ceuta e Melilla, e a expulsão de 52.000 imigrantes “ilegais”.

O líder do Vox, Santiago Abascal, chegou ao ponto de exigir o direito dos cidadãos de manter armas em casa. Além disso, uma de suas principais propostas é a proibição definitiva da independência de regiões da Espanha.

Um líder do Vox, Iván Espinosa de los Monteros, pediu a proibição de todas as organizações que não rejeitem o marxismo. Isso combina com a supremacia masculina do Vox. Culturalmente, é uma cópia do movimento anti-feminista misógino de Trump. De fato, a reação sexista explicada por Susan Faludi em seu livro Backlash é vital para o imaginário espanhol de extrema-direita. O discurso do partido é construído em torno de um ataque constante a todas as medidas destinadas a proteger as mulheres, que consideram “ideologia de gênero”, e um ataque a todo o poderoso movimento feminista espanhol, que tem sido uma força imponente na vida pública, como se viu nas mobilizações do Dia Internacional da Mulher de 2018.

A ascensão do Vox está fadada a colocar os democratas no limite, dada a inclusão em suas listas eleitorais de ex-membros de organizações fascistas e neonazistas. Alguns deles têm ligações diretas com as organizações terroristas ativas contra a transição democrática pós-franquista. É o caso de Jorge Arturo Cutillas, importante membro do Vox, que já fez parte de um partido filo-nazista chamado Fatherland and Freedom. E tinha laços diretos com Leon Degrelle, fundador do partido Rexist da Bélgica na década de 1930 e que foi um homem da SS de Hitler. O Vox também inclui ex-líderes da organização nazista CEDADE, dissolvida em 1993 depois que o parlamentar britânico James Glynn Ford expôs a extensão de seus laços na Europa.

Hoje, preparando-se para entrar no parlamento, o Vox já percebeu um desejo não cumprido da extrema direita pós-franco. Reuniu em uma única força – aceitável para os partidos da direita – todas as organizações neo-nazistas, falangistas, franquistas e tradicionalistas que tão clamorosamente falharam em fazer qualquer avanço nos últimos quarenta anos da democracia espanhola. Um partido de cores nacionalistas católicas com uma estratégia on-line agressiva, um discurso trumpiano que comunica o ódio por meio de notícias falsas conseguiu mudar o debate público mais amplo, aproximando os partidos de direita estabelecidos do populismo nacional. Sua presença na política espanhola já é uma realidade. Após a votação deste domingo, o mundo estará apenas medindo o preço de seu sucesso.

Colaborador

Antonio Maestre é um jornalista e documentarista espanhol, que atua em La Marea, El Diario e na emissora La Sexta.

Pensamentos sobre marxismo e Estado

David McNally



Tradução / Torna-se claro que a crítica de Marx ao Estado é mais uma vez desagradável em muitas partes da esquerda. Muitas vezes esse desagrado disfarça a acomodação política indiscriminada ao Estado-nação (por exemplo, com aqueles na esquerda que se opõem a pedidos pela abertura das fronteiras e contrabandeando algum tipo de argumento ostensivo de “esquerda” para controles migratórios “mais agradáveis”). Mas, além disso, há um novo “realismo” na esquerda que acusa a crítica marxista do Estado de ser “utópica”. Essa linha de argumento ataca com frequência a metáfora de “esmagar” o Estado por não entender que alguns serviços estatais devem ser preservados em uma sociedade pós-capitalista. Nesse caso, devemos estar lidando com uma genuína confusão intelectual sobre alguns conceitos fundamentais em vez de um esforço de má-fé em desacreditá-lo. No espírito de engajar esse debate na boa-fé, inicio hoje uma série de reflexões sobre o tema do marxismo e o Estado.

I

A abordagem de Marx do problema do Estado está imersa em compromissos radicalmente democráticos. Já em 1843, em sua crítica à filosofia do Estado de Hegel, Marx nos informa que a democracia autêntica (ou seja, democracia radical, direta e participativa) “é a primeira unidade verdadeira entre o particular e o universal”. Em contraste com à democracia autêntica, o Estado na sociedade moderna, é uma força social “abstrata”, um poder fora de controle do povo, que se destaca e se opõe contra a ele (em uma relação autoritária e antidemocrática com o demos). Antecipando sua análise do trabalho alienado (e do valor da sociedade capitalista), Marx se concentra em como uma criação humana – o Estado – passou a dominar seu criador. Por essa razão ele descreve como o “desaparecimento” do Estado é a genuína democracia. “Nos tempos modernos”, escreve ele, “os franceses entenderam que isso significa que o Estado político desaparece em uma verdadeira democracia.”[1] Marx destaca a frase “Estado político desaparece” em seu texto. E esse destaque está no centro de uma abordagem socialista genuinamente revolucionária do Estado. A vitória da classe trabalhadora contra o capitalismo significa a desalienação do poder político e sua reconstituição como poder do povo. Significa o fim do Estado como um poder abstrato e separado do povo. Em suma, “o Estado político desaparece”. Toda fala sobre quebrar e substituir o Estado é baseada nessa concepção: que a vitória da democracia socialista revolucionária constitui a transcendência do Estado. Essa vitória sobre o Estado é a derrota da alienação política – sua dissolução pelo poder do podo, do demos.

II: Preliminares sobre Guerra e Colonialismo

A teoria do Estado moderno de Marx se desenvolveu em seu estágio iniciais por meio de um engajamento crítico com a filosofia política de Hegel. Certamente o jovem Marx já entendeu que o Estado moderno expressa o domínio de uma nova forma de propriedade privada (veja seu o artigo no A lei do furto da madeira[2]). Mas esse discernimento ainda não constitui uma teoria do Estado moderno como tal.

A importância da doutrina do Estado de Hegel fez muito para sustentar seu engajamento com a economia política clássica. Através dessa última, Hegel chegou à conclusão de que a economia capitalista moderna gera sistematicamente superprodução, pobreza e uma corrida expansionista em direção à colonização.[3] O colonialismo é para Hegel um produto das contradições e antagonismos inerentes da economia capitalista. É necessário para o Estado moderno, em vez de uma mera escolha política particular. No final de seu texto, Hegel então examina a “individualidade” do Estado moderno arguindo que nele não há nenhum impulso inerente à lei universal e à paz mundial. Ao contrário, cada Estado declara sua independência em oposição “a outros Estados” – o que conduz inevitavelmente à guerra.[4]

Para Hegel, em outras palavras, essa é uma característica constitutiva do Estado no sistema mundial capitalista. Disso segue que a condução ao colonialismo e à guerra são inerentes ao Estado moderno como tal (um reconhecimento que é, sem dúvida, fatal para todas as aproximações reformistas do Estado capitalista).

Em seu comentário sobre a teoria do Estado de Hegel (1843), Marx não lida com cada uma dessas seções da Filosofia do Direito. Mas ele certamente havia as estudado e há poucas dúvidas de que ele estava refletindo sobre elas. Entretanto, em 1843 ele não havia embarcado em seu encontro crítico com a economia política clássica e ainda não estava em posição de abordar essas questões. Na época d’A ideologia alemã (1846) o encontramos aceitando-as.

À medida que desenvolve a concepção materialista da história na Primeira Parte d’A ideologia alemã, Marx retorna brevemente para a questão do Estado. Aqui ele ensaia seu primeiro argumento de que uma característica distintiva do Estado moderno é a forma na qual ele se torna “uma entidade separada” que se destaca e se opõe à sociedade (motivo pelo qual ele afirma que a verdadeira democracia requer o “desaparecimento” de tal Estado).

Então Marx acrescenta que o poder político burguês deve se organizar dessa forma “tanto para objetivos internos quanto externos”. Devemos atentar para o que está sendo dito aqui. O Estado moderno, diz Marx, organiza o poder social da propriedade capitalista contra todas as classes subalternas dentro de seu território e contra todos os outros Estados. O Estado moderno expressa a dominação de classe e a rivalidade interna entre Estados. Como Hegel reconheceu, os Estados existem em um sistema de muitos Estados, e as relações entre eles são inerentemente conflituosas. A força e violência externas são, portanto, tanto características inerentes ao poder estatal moderno quanto a forças e a violência internas contra as classes subalternas.

Nesse sentido, em uma passagem inicial d’A ideologia alemão, Marx escreveu que o sistema da propriedade privada moderna “deve afirmar a si mesmo em suas relações externas como nacionalidade e internamente deve se organizar como Estado”.[5] Em resumo, o Estado moderno é uma Estado-nação. É um Estado que projeta sua soberania dentro de seus limites territoriais e que se afirma como “nacionalidade” em oposição a outros Estados-nações. Disso segue, como foi para Hegel, que o militarismo e a guerra são elementos inerentes ao poder moderno.

O pensamento de Marx sobre colonialismo e a guerra estava pouco desenvolvido nesse ponto. Ele estava ainda nos estágios iniciais de desenvolvimento de sua teoria do capital, da acumulação primitiva e do mercado mundial. Após a morte de Marx, Engels começaria a discernir a condução para a guerra entre as potências europeias de sua época. E, não obstante a inúmeras falhas em sua teorização, foi o mérito de pessoas como Luxemburgo, Liebknecht, Lenin e Bukharin entender que a condução para o imperialismo e à guerra era fundamental para o capitalismo como um sistema mundial. Espero retornar a esse debate em momento futuro.

Para o momento, notemos que o mais sofisticado argumento da esquerda reformista no começo do séc. XX rompeu com os dois lados da argumentação de Marx. Nisso, ao menos, exibiu uma certa consistência (reformista).

Ao defender o uso das instituições do Estado capitalista para os propósitos “socialistas”, Karl Kautsky, líder do “centro” atual da socialdemocracia alemã antes da Primeira Guerra Mundial, proclamou que seu partido não eliminaria “nenhum dos ministérios políticos” do Estado existente. Consistente com isso, ele desenvolver sua teoria do “ultra-imperialismo”, de acordo a qual um impulso à paz mundial, não à guerra, era a lógica inerente do capitalismo internacional. Ironicamente, seu célebre exemplo dessa tendência foram os Estados Unidos da América.

Pretendo examinar esses problemas mais longamente em reflexões subsequentes. Para o momento, no entanto, é importante reconhecer que nenhuma teoria adequada do Estado capitalista pode focar apenas no nível nacional. O “Estado” deve ser analisado em termos de disputa entre muitos Estados. Precisamente porque é organizado “como nacionalidade”, o Estado-nação capitalista expressa uma lógica antagônica em relação a outros Estados. É claro, essa lógica é altamente diferenciada, baseada em um sistema de relações de dominação e subordinação que define um mundo de imperialismo e (pós-) colonialismo. Disso segue que essas relações são constitutivas do Estado capitalista moderno, e não características acidentais que podem ser desejadas no caminho para uma sociedade pós-capitalista.

III: O Estado burocrático-militar vs. Democracia radical e os Comuns Socialistas

Tão diminuídos tornaram-se os horizontes políticos de grande parte da esquerda na era neoliberal que muitos têm se tornado cativos do que uma vez Engels chamou de “supersticiosa reverência ao Estado e de tudo a ele conectado.”[6] Isso se expressa na defesa contundente de tudo que parece “público” na sociedade capitalista, como se isso representasse uma conquista anti-capitalista.

Aqui, um pensamento enfraquecido da “esquerda” une-se involuntariamente com a mídia convencional na identificação dos serviços estatais com socialismo. Apenas na última semana, por exemplo, um colunista da Houston Chronicle entoou que “Os Estados Unidos possuem vários programas socialistas, incluindo Seguro Social e Medicare.”[7] O absurdo dessa afirmação deve ser aparente. Parece, no entanto, que esse absurdo não pode mais ser dado como certo pela esquerda.

Por exemplo, diante da minha crítica do Estado, um crítico opinou que eu deveria me opor logicamente à medicina parcialmente socializada no capitalismo. Como essa é uma afirmação sem sentido, deixe-me afirmar o que deveria ser autoevidente. Todo socialista que se preza (criticamente) apoia programas que tornam a vida na sociedade capitalista um pouco mais fácil para os pobres e para a classe trabalhadora. Mas somos inteiramente capazes de fazê-lo sem confundir tais programas com conquistas socialistas. Evitamos essa confusão insistindo na forma inerentemente antidemocrática do Estado moderno. Isso nos permite diferenciar nitidamente controle público real da propriedade e direção do Estado.

Aqui, seguimos as pistas das ideias de Marx em seu texto de 1852, O dezoito de brumário de Luís Bonaparte. Esse é um trabalho muito importante em vários aspectos. Mas eu quero evidenciar apenas um aspecto dele: a análise de Marx da natureza sufocante da burocracia do Estado moderno. De fato, é nesse curso de análise que Marx introduz a ideia de “esmagar” a forma capitalista do poder político.

“ESSE TERRÍVEL CORPO PARASITÁRIO”

No sétimo capítulo d’O dezoito de brumário, Marx volta sua atenção para o caráter do Estado capitalista na França – um Estado que recentemente havia esmagado uma revolta de trabalhadores (1848) e se consolidado no golpe de 1851 dado por Luís Bonaparte (sobrinho-bisneto de Napoleão Bonaparte). Marx aponta como esse Estado concentra massivamente o poder nas mãos do executivo. Marx, então, denuncia essa “enorme organização burocrática e militar, com sua engenhosa máquina estatal, abrangendo amplos estratos, com um grande número de oficiais com meio milhão, além de um exército com outro meio milho”. Essas tropas e burocratas, ele observa, não estão sujeitos a nenhuma outra autoridade que não seja a do presidente e seus oficiais executivos.

Marx declara que esse Estado sufoca a vida social do povo. Ele o descreve como um “terrível corpo parasitário, que enreda o corpo da sociedade francesa como uma teia e sufoca todos seus poros”. Observando que essas estruturas emergiram sob a monarquia absolutista do séc. XVIII, ele insiste que a burguesia francesa assumiu e “aperfeiçoou” essa forma burocrática e militar de Estado, a adotando aos propósitos capitalistas.[8]

Mas e todas as obras públicas realizadas por esse Estado – de escolas e universidades a pontes e ferrovias públicas? Certamente Marx viu isso como progressivo? Ao contrário. Ele sustenta que tudo isso foi criado separando-se dos interesses comuns do povo – os “alienando” do povo, os escondendo nas mãos da burocracia estatal. Como resultado, “todo interesse comum foi imediatamente desvinculado da sociedade e contraposto a ela como interesse geral mais elevado, subtraído à atividade dos próprios membros da sociedade e transformado em objeto da atividade governamental, desde a ponte, o prédio escolar e o patrimônio comunal de um povoado até as ferrovias, o patrimônio nacional e a universidade nacional da França.”[9]

Em vez de romantizar esses serviços e empresas “públicas”, Marx está criticando sua forma alienada. Essas operações estatais foram “tomadas da própria atividade dos membros da sociedade”. Em vez das terras, escolas e universidade operadas pela comunidade – serviços públicos sujeitos ao controle democrático da comunidade – tudo isso foi separado “dos interesses comuns do povo”. Marx faz aqui sua distinção radical entre propriedade estatal e propriedade comunal. Esta última representa a propriedade social pertencente e regulada pelo povo. Serviços e empresas “públicas” administrados pelo Estado moderno, por outro lado, são meramente controlados pela burocracia que afasta o sangue da vida democrática de comunidades reais do povo.

"EM VEZ DE ESMAGÁ-LO"

É no contexto de análise do caráter alienado da máquina burocrática do governo moderno que Marx introduz a ideia de “esmagar” o Estado. Desde 1789, ele afirma, “todas as revoluções aperfeiçoaram essa máquina em vez de esmagá-la”. Na grande revolta de 1830 e 1848, todos os partidos simplesmente buscaram “apossarem-se do imenso edifício estatal”.

Mas em razão de que a concepção de socialismo de Marx era radicalmente democrática, ele sabia que a revolução dos trabalhadores não poderia ser bem-sucedida se ela simplesmente procurasse “apossar-se” do Estado burocrático.[10] As estruturas antidemocráticas de tal Estado minariam todos os esforços para democratizar radicalmente a vida social e política – se suas estruturas militares não o fizessem antes. É por isso que as estruturas burocráticas e militares do Estado moderno precisariam ser desmanteladas, substituídas... "esmagadas".

Deixe-me adicionar aqui dois breves pontos. Primeiro, como eu devo explicar em uma próxima postagem, a metáfora de “esmagar” deve ser lida dialeticamente. Não há nada de fúria niilista por destruição. Em vez disso, o que precisa ser “esmagado” são os obstáculos inerentes à construção de uma forma democrática e comunitária de vida social. Marx imagina o desmantelamento dos obstáculos burocráticos e militares a uma democratização radical, que provocará o definhamento do Estado político.

É absolutamente verdade, em segundo lugar, que Marx não traça nenhum programa claro para tal esmagamento ou desmantelamento n’O dezoito de brumário. Deveria ser apenas a luz da revolta dos trabalhadores franceses em 1871 e da criação na uma nova Comuna de Paris que ele viria a delinear alguns princípios básicos do Estado dos trabalhadores. Mas aproximadamente vinte anos antes da experiência da Comuna, ele havia identificado o Estado moderno como uma estrutura burocrática sufocante que solapa “a atividade dos próprios membros da sociedade” e suprime “o interesse comum do povo”. Ao fazê-lo, ele põe em primeiro plano a construção dos bens comuns socialistas enraizados na autoatividade democrática do povo como fundamental para o projeto político do socialismo revolucionário.

[1] Marx, Karl. Critique of Hegel’s Doctrine of the State. In: MATX, Karl. Early Writings, trans. Rodney Livingstone e Gregor Benton, Harmondsworth: Penguin Books, 1975, p. 88.

[2]https://www.marxists.org/archive/marx/works/download/Marx_Rheinishe_Zeitung.pdf.

[3] HEGEL, G.W. F. The Philosophy of Right, Part 2, Section C.

[4] Ibid., Section 3, Part AII.

[5] MARX, Karl; ENGELSN, Frederick. The German Ideology, 3. ed. Moscow: Progress Publishers, 1976, p. 99.

[6] ENGELSN, Friedrich. Introduction to Karl Marx and Friedrich Engels. In.: Writings on the Paris Commune, ed. Hal Draper, New York: Monthly Review Press, 1971, p. 34.

[7] TMLINSON, Chris. Demanding a fairer form of capitalism is not the same as socialism, Houston Chronicle, Fev. 22, 2019.

[8] MARX, Karl. The Eighteenth Brumaire of Louis Bonaparte. New York: International Publishers, 1963, pp.121-22.

[9] Ibid., p. 122. Por causa da inanidade de algumas respostas que recebi dessa linha de argumento, deixe-me afirmar que não se segue que Marx queira “esmagar” ferrovias e escolas. Mas segue-se que o desmantelamento do estado militar-burocrático envolve ‘transformar’ todas as instituições estatais em genuinamente públicas.

[10] Sobre o caráter democrático do socialismo marxista, ver Hal Draper, Karl Marx’s Theory of Revolution, v. 1, New York: Monthly Review Press, 1977.

27 de abril de 2019

Conclusões provisórias

Encerro meu percurso nesta Folha com três notas breves

Andre Singer
Professor de ciência política da USP, ex-secretário de Imprensa da Presidência (2003-2007). É autor de "O Lulismo em Crise".


Há mais de seis anos comecei a escrever neste espaço. De lá para cá, a democracia brasileira entrou em crise e ainda não se vê luz no horizonte. Encerro o percurso com três notas breves, a título de considerações finais sobre o tema.

1. Ascensão do Partido da Justiça (PJ). No final de 2012, quando esta coluna tinha início, acabava o julgamento do mensalão. Manobras discutíveis no STF (Supremo Tribunal Federal) visavam prender líderes petistas. Um ano depois, o então presidente da corte, Joaquim Barbosa, mandou-os para a cadeia, num feriado de 15 de novembro.

À época, assinalei que era “o simbolismo ideal para um possível futuro candidato a chefe do Executivo”. Dito e feito: em 2018, Barbosa passou meses na condição de presidenciável pelo PSB (Partido Socialista Brasileiro). Por razões pouco claras, na última hora, desistiu do sonho presidencial.

O metafórico PJ, porém, já havia encontrado um sucessor à altura, o que talvez explique a desistência do ministro aposentado do STF. O juiz Sergio Moro, líder da Lava Jato e hoje ministro da Justiça, é virtual candidato à sucessão de Jair Bolsonaro.

Em janeiro, Bolsonaro teve seu primeiro compromisso internacional como presidente, em Davos (Suíça) para participar do Fórum Econômico Mundial. (Fabrice Coffrini/AFP)

2. Surgimento do Partido Fardado (PF). Em meio ao vazio que tomou conta do sistema partidário, varrido pela Lava Jato, militares da ativa, completamente afastados da cena política desde 1989, voltaram a agir. Em 2017, comandantes do Exército conclamaram a população a se manifestar. Hoje, um deles é vice-presidente da República.

Se a existência do PJ é até hoje motivo de controvérsia, o aparecimento do PF foi um verdadeiro raio em céu azul. As casernas tinham permanecido por 30 anos em rigoroso silêncio. Em questão de meses, no entanto, fardados ocuparam postos-chave na administração do país, tendo à frente um capitão reformado expulso dos quartéis.

A reviravolta foi tamanha que há poucos dias o general Hamilton Mourão, o mesmo que no passado demonstrou simpatia pelo torturador Brilhante Ustra, foi objeto de elogios por uma deputada do PC do B (Partido Comunista do Brasil).

3. Paralisia oposicionista. O golpe à brasileira —lento, gradual e seguro— encontrou a oposição desarticulada. O povo, por sua vez, tem assistido a tudo bestializado, como disse Aristides Lobo em 1889.

O lulismo, que segue vivo na estrutura capilar do PT (Partido dos Trabalhadores), desdobrou a falsa percepção histórica de que seria possível eliminar a pobreza e reduzir a desigualdade de cima para baixo. Não será. Chegado certo limite, as classes dominantes, com o entusiástico apoio da classe média, repõem o atraso.

Agradeço à Folha o privilégio de ter me permitido dialogar por quase 300 sábados com os seus leitores.

26 de abril de 2019

O editor da Jacobin sobre a evolução do socialismo americano

Isaac Chotiner
The New Yorker

Bernie Sanders supera o resto do campo democrata em sua capacidade de mudar as condições em que a política é escrita, diz o editor da Jacobin. Fonte Fotografia de Mark Wilson / Getty

Em 2010, em meio aos destroços de uma crise econômica, Bhaskar Sunkara, então com 21 anos, começou a revista Jacobin. Socialista democrata na perspectiva e com o objetivo de replicar o sucesso que revistas como a National Review tiveram em estimular a revolução conservadora, a Jacobin se tornou um periódico às vezes doutrinário, mas frequentemente envolvente e instigante. E quando a campanha presidencial de Bernie Sanders em 2016 superou as expectativas de quase todos, ficou claro que as ideias que a Jacobin vinha promovendo tinham um apoio mais amplo do que era geralmente compreendido. Dois anos depois, Alexandria Ocasio-Cortez emergiu como uma estrela democrata; Sanders se tornou um favorito em 2020, e retratos de jovens socialistas apareceram em uma reportagem de capa na New York.

Agora vem o primeiro livro de Sunkara, "The Socialist Manifesto: The Case for Radical Politics in an Era of Extreme Inequality", que é tanto uma história do socialismo no século XX quanto um modelo de como as ideias democrático-socialistas podem ter sucesso no século XXI. Abrangendo tudo, desde a ascensão de Lenin até o status da Suécia como "a sociedade mais habitável da história", o livro não defende os fracassos das sociedades de inspiração marxista. No entanto, Sunkara despreza a ideia de que esses fracassos devem limitar as ambições de reformadores e revolucionários com a intenção de criar uma sociedade mais justa.

Recentemente, falei por telefone com Sunkara, que, além de seu trabalho na Jacobin, é colunista do Guardian US. Durante nossa conversa, que foi editada para maior clareza e extensão, discutimos as diferentes abordagens que Sanders e Elizabeth Warren adotaram para a reforma progressiva, por que os americanos votam contra seus interesses econômicos e se os liberais estão muito focados no poder explicativo da raça.

Como você vê a diferença entre socialismo democrático e social-democracia, e por que você acha que essa diferença é tão crucial para o futuro da política radical?

Ótima pergunta. Obviamente temos um ancestral comum, Karl Marx.

Não você e eu, só para esclarecer.

Certo, não nós. Karl Marx e [Friedrich] Engels se autodenominavam social-democratas. Era um movimento unido nos grandes partidos dos trabalhadores no final do século XIX. Então o movimento meio que mudou. Hoje em dia, o que você chamaria de social-democracia é o movimento que busca expandir o estado de bem-estar social, mas dentro dos limites do capitalismo. É um tipo de socialismo funcional. Vamos ceder a propriedade, mas vamos taxar essas empresas produtivas e garantir que pelo menos haja um nível básico de segurança e direitos para as pessoas.

Um socialista democrático diria: "Isso é ótimo. Vamos lutar por todas essas coisas, vamos ter esse tipo de sociedade." Então também queremos fazer perguntas mais profundas sobre propriedade. Uma é, em uma sociedade onde as coisas estão melhorando para os trabalhadores, mas a capacidade de manter o investimento ainda está nas mãos dos capitalistas, os capitalistas sempre podem se rebelar contra o acordo social-democrata. Na Suécia, por exemplo, o capital no final dos anos setenta está basicamente dizendo: "Tudo bem, esse acordo estava funcionando para nós antes, mas agora não estamos lucrando o suficiente. Precisamos reverter o estado de bem-estar social". Se você finalmente puder socializar o investimento e encontrar uma maneira de transferir a produção para cooperativas e para essas outras formas de propriedade socializada, então talvez possamos evitar isso.

A segunda razão é apenas moral e ética. Acho que o trabalho assalariado constitui uma forma de hierarquia e exploração da qual poderíamos prescindir.

Seu livro também demonstra um certo respeito pela política reformista, em vez de radical, e você escreve que está ciente de "quão profundos os ganhos da reforma podem ser". Então por que a Suécia é insuficiente? Acho que muitas pessoas olhariam para a Suécia e diriam: "Ok, não é perfeita. Pode melhorar. Mas é tão boa quanto qualquer sociedade que os humanos foram capazes de construir".

Parte da razão pela qual meu tom é assim é que acredito que uma base de massa de pessoas pressionando por coisas, como o Medicare for All e todas essas outras reformas de que precisamos nos Estados Unidos, serão pessoas que serão exatamente como você descreveu, liberais e progressistas. Se nós, como socialistas, adotarmos esse tipo de mentalidade muito sarcástica e radical, na qual obviamente todos nós podemos cair às vezes, alienaremos a base potencial que poderia realmente fazer um país melhor e um mundo melhor.

Na Suécia, temos que olhar para o que aconteceu nos últimos vinte ou trinta anos. Se você pudesse congelar a Suécia em 1974 ou 1975, seria uma sociedade muito boa. Nos últimos vinte, trinta anos, houve uma guinada para a direita na política sueca. Houve espaço para a direita populista e racista. Muito do estado de bem-estar social se deteriorou.

Não tenho certeza se a social-democracia é sustentável a longo prazo. Eventualmente, os trabalhadores começarão a exigir coisas que farão incursões na lucratividade das empresas capitalistas, e esses capitalistas então se voltarão contra o compromisso social-democrata. Existe um caminho social-democrata para o socialismo? Não os vejo como caminhos separados. Vejo um como uma espécie de parada rápida, parando na linha de cinco ou dez jardas.

Parece que você está tentando fazer um argumento prático, essencialmente dizendo que a social-democracia sempre vai falhar e que há razões estruturais pelas quais isso provavelmente acontecerá. Seria justo dizer isso?

Sim, exatamente.

Não há realmente nenhum antecedente do que você está defendendo. E então, se quisermos discutir praticamente sobre o que pode funcionar, isso o deixa ansioso ou cauteloso?

Sim, definitivamente. Acho que essa é uma das razões pelas quais gosto de dizer: "Vamos para a social-democracia. Vamos ver o que funciona". Mas em algum nível, eu apenas acredito que a democracia é uma coisa boa e que devemos ter um certo conjunto de ideais para nossa sociedade, que é o máximo de democracia possível, o mínimo de hierarquia possível. Agora, pode haver limites para isso. Talvez uma sociedade complexa com uma divisão complexa de trabalho exija algum tipo de hierarquia. Não tenho certeza até onde podemos ir, mas acho que é útil ter o horizonte social.

A Suécia do pós-guerra não era uma sociedade multiétnica e multicultural da maneira que a América moderna é. Você está preocupado que haja uma contradição inerente entre o que estamos falando e uma sociedade que é multicultural e multiétnica — que muitas pessoas não estejam dispostas a fazer parte do socialismo democrático quando as pessoas parecem diferentes delas?

Não estou completamente preocupado. No caso da Suécia, eles estavam se organizando em um país profundamente desigual. Agora, existem certas barreiras de organização nos EUA, um país com uma história muito profunda de racismo e desigualdade racial? Sim. Mas acho que essas barreiras podem ser superadas pela política. Acho que todos os seres humanos querem as mesmas coisas. Todos nós queremos cuidar de nós mesmos, cuidar de nossas famílias. Sabemos quando estamos sendo oprimidos. Sabemos quando estamos sendo explorados. Sempre procuraremos uma maneira de sair dessa situação se ela surgir.

O que faz você pensar que todos os seres humanos querem a mesma coisa?

Somos animais, certo?

Não estou falando de sexo e comida.

Não gostamos de ser oprimidos. Não gostamos de ser maltratados. Acho que queremos um grau de autonomia pessoal. Acho que essas coisas são bastante inatas. Vou dar um exemplo concreto. À medida que as mulheres se tornam mais seguras economicamente, pois estão no local de trabalho, elas conseguem deixar relacionamentos, e as taxas de divórcio aumentam. Isso é porque essas mulheres foram automaticamente doutrinadas com ideais esquerdistas? Acho que tem mais a ver com o fato de que elas são realmente capazes de buscar um melhor negócio para si mesmas, pois recebem mais poder. Quando os trabalhadores estão em condições de baixo desemprego, eles tendem a estar mais dispostos a entrar em greve e lutar. Além disso, se você olhar para as pesquisas, as pessoas realmente têm muitas das mesmas preocupações. Elas têm as mesmas preocupações sobre assistência médica, sobre segurança.

Certo, mas os homens se sentem mais seguros agora que as mulheres têm mais liberdade? Essa parece ser uma pergunta mais perturbadora ou uma resposta possível mais perturbadora. A questão é que acho que algumas pessoas percebem sua segurança como algo que vem às custas de outras.

Sim, essa é uma coisa contra a qual precisamos lutar politicamente, porque há uma mentalidade de jogo de soma zero quando se trata de imigração, quando se trata de ganhos de minorias raciais, de mulheres. Precisamos lutar contra isso. O caso socialista é que quando se trata de, digamos, trabalhadores brancos do sexo masculino, qualquer privilégio que eles possam ter sobre trabalhadores não brancos ou sobre mulheres é um privilégio relativo, não um privilégio absoluto. Não quero minimizar a dificuldade e a necessidade de organização antirracista e feminista, mas é dizer que nossa premissa, como socialistas, é que podemos construir uma coalizão política na qual todas as pessoas oprimidas podem obter ganhos, mesmo que algumas pessoas obtenham menos ganhos do que outras com base em sua posição relativa anterior.

Você escreve no livro: “Os socialistas precisam argumentar contra a ideia de que racismo e sexismo são inatos e que a consciência das pessoas não mudará por meio da luta. O racismo assumiu um papel quase metafísico na política liberal — é de alguma forma a causa, a explicação e a consequência da maioria dos fenômenos sociais. A realidade é que as pessoas podem superar seus preconceitos no processo de luta em massa por interesses compartilhados, mas isso requer envolver as pessoas nessas lutas comuns para começar.” Quando você diz “papel metafísico”, está falando sobre as respostas à eleição de Trump?

I think after Trump’s election there was this idea that there is this original sin of racism in the United States, and we can’t get rid of it. Obviously, the United States is a society that was built on exclusion, that was built, in particular, on the exploitation of black Americans during slavery, and after slavery, too. It’s also a society in which there’s been a mass civil-rights movement and a feminist movement. There have been other things to make it more humane.

I don’t want to be Panglossian, but I want us to look back at the progress of the last half century and say, “There was great progress, but it wasn’t enough.” I think there was too much pessimism coming from liberal quarters about this. I think people could be won over. Do I think the ordinary Trump voter can be won over? I guess it depends. There’s obviously a core of Trump voters who are racist, who cannot be won over to a progressive program, and many of them aren’t even workers. They’re people who are the traditional base of the right in any country, this middle-class base of authoritarianism. There’s also a bunch of people who were just angry and discontented.

Many people voted for Trump because he’s a Republican and they’re Republicans, and they’re often Republicans for reasons having to do with cultural issues like abortion. This gets back to what we were talking about earlier, about people wanting different things.

Yeah, I take your point that there is a caricature of speaking about economic issues that means essentially not speaking about other issues. But for me, for example, the struggle for reproductive rights is not a cultural or social issue; it is an economic issue. It’s an issue that I want to bring into working-class politics. In other words, who are the people who suffer the most if there’s no abortion clinic within fifty, sixty miles of them? It’s the poorest workers. Who are the people who suffer most from harassment on the job? The women workers. There is a way, I think, to foreground economic issues but not downplay other things.

I agree that, by and large, Democrats do better when they talk about economic issues first. But there probably are a lot of poor people who feel like no abortion clinics mean fewer fetuses getting killed. I do think acknowledging that people have a totally different way of looking at things is important.


Yes, definitely. I think maybe one way to do this is to say, “Listen, we’re not going to backtrack or capitulate on anything we think is important, like fighting for immigrant rights or fighting for abortion rights, but we want to be so convincing on other issues that we can win people over.” For example, if someone’s No. 3 issue is immigration, and they’re on the right on immigration, but their No. 1 issue is jobs and their No. 2 issue is health care, we want to convince them that we’re so good on No. 1 and No. 2 that they’ll vote for the Commie bastards anyway.

It’s interesting that Trump thinks that his appeal is based on cultural and racial issues. His closing message in 2018 was not “Hey, struggling guy in Ohio, I improved your pocketbook.” It was “The Muslims are coming” or “The immigrants are coming.” His message in 2020 will likely be the same. I think it’s at least worth paying attention to the fact that he thinks that’s the way he can win those voters.

This is typical of this kind of right-wing populism. It’s pretty slippery. What he’s primarily pointing to is the idea that something was lost. Obviously, we need a counter to that. Part of it is speaking to a loss but in a different way. You want to talk to people about the fact that jobs have been lost. The unions have been devastated. We just want to point to different villains, which, of course, is a dangerous thing. But at least as far as Sanders or A.O.C. and this crop of left-wing politicians that emerged the last couple of years, I don’t see them as doing it in a way that fuels the right. I see them as doing it in a way that is helping to neutralize those on the right, keep it where it is, which is a minority authoritarian movement that’s going to cause a lot of headaches, that’s going to be around for a long time, but we’ve just got to keep them to their thirty-five or forty per cent, and we need to win over the rest.




What have you made of the Jeremy Corbyn experience in Britain? Labour recently said that it wanted to end the principle of the free movement of people in any Brexit deal, and Corbyn hasn’t generally been strongly against Brexit. I wonder how you think he’s dealt with that, and if it’s given you any pause about how socialist or left-wing policymakers sometimes deal with these issues.

Even foregrounding the question of freedom of movement seems to be playing on the terrain of the right. Any voter that is going to vote on the issue of immigration and opposition to freedom of movement as a primary thing is not going to be won over. I think it’s counterproductive even at that political level.

So to synthesize what you’re saying about Corbyn, and Sanders, too, who sometimes seems like he’s in favor of more restrictive immigration policies than some on the left—you want them to neutralize the right by talking about economic issues without engaging in any of the cultural demagoguery. Is that fair?

Yes, I want Sanders, instead of just saying, “Oh, I’m against open borders,” in this very negative way, to just say, “Immigrants are coming here because they want to construct America, and they’re working hard. I’d rather have them in the country than people like Donald Trump.” I just can’t imagine the Democratic electorate would be turned off by that. I can’t imagine it would be a poison pill. That’s the one thing that I see a lot of people on the left have been consistently prodding Sanders on, and he has showed a capacity to evolve on certain things. I do believe that if he were in power, you would see something like amnesty for people already here, and you would see a more humane immigration policy.

Is Donald Trump a neoliberal?


This is a complicated question. Neoliberalism to me means the movement to use the power of the state in order to decrease the power of labor and to deregulate and restore the profitability of firms in the seventies and eighties. Since then it’s become the dominant economic consensus in the U.S. You still have a very strong aggressive state, but you don’t expand social welfare. You make sure things stay deregulated, and so on. In that sense, Trump is with the neoliberal consensus, but I think the term has been used as a pure pejorative to the point that it’s losing its analytical value.

In terms of weakening Wall Street regulations or watering down regulations via Cabinet agencies, or not expanding the welfare state, I don’t think those really fit as a description of the Obama Administration, but maybe you do?

I think the Obama Administration represented a centrist consensus within the Democratic Party, which said that the best way to preserve the welfare state was to insure that the economy was humming and growing and that, broadly, the interests of corporations were served because corporations were the ones generating the wealth that Obama wanted to use in order to sustain and expand social programs like Obamacare. But he, in the construction of the social programs, shied away from the creation of big universal programs that would have required more political struggle and actually might have been impossible to enact under his Administration. Would I call that neoliberal? I mean, maybe. I probably have many times in short columns and things like that, but I’m not sure how much analytical value it has.

If you watch what the Trump Administration is doing at the Environmental Protection Agency or the Consumer Financial Protection Bureau, talking about it as neoliberal seems to miss what’s going on to me because it seems noticeably different than what we—

I don’t think there’s a strong contingent of capital that’s calling for some of the things that Trump is doing. In other words, it seems to me that neoliberal policy would be deregulation that capital demanded, whereas Trump seems to be operating in his own ideological direction—it seems like with a degree of autonomy that I would have to reconcile with Marxist theory. [Laughs]

It seems different than what we’ve seen in the past from either Republican or Democratic Administrations to some extent, no?

There’s definitely been a big departure in certain ways. I think there has been a continuity with Republican Administrations as far as tax cuts and so on. But things have definitely gotten worse, and worse faster than they did under Obama. Obviously, we opposed a lot of Obama’s policies, but there’s no point in saying it’s all the same, because it absolutely isn’t. If push comes to shove and I were in a swing state in 2020, of course, I would vote for anyone in the Democratic field over Trump. I think that’s common sense. It should be hegemonic on the left.

When Sanders was refusing to release his tax returns, you had a series of tweets in which you wrote, “People obsessed with tax returns are narrowly looking for personal corruption as a sign of capture. Politicians serve capitalist interests because they administer a capitalist state dependent on private profits and favorable market conditions to survive and fund programs.” And “Candidates aren’t literally bought by elites, they structurally represent capitalist interests. Bernie is an exception.” Can you explain this?


I was trying to make a broader point about the way in which the interests of businesses exert themselves in government, which is not through direct bribery or coercion or lobbying but more often than not through the dynamics of the economy itself. Things I said, like Bernie is an exception, undermine that point. So I wouldn’t stand by all of that. I would say I agree with my underlying point, but I do want to see Trump’s tax returns. I’m glad that Bernie released his tax returns, too, so I guess I should say that as well.




Corruption occurs in noncapitalist countries, too.

Yeah, of course. But corruption to me isn’t a widespread issue. The conversation often is about Trump only being in power to enrich himself and make his business more profitable. Or back in the Iraq War days, it was, “Dick Cheney only did this war just to make money for Halliburton.” On the one hand, as a populist thing, they’re attacking the right enemies, so maybe it’s O.K., but, to me, it just isn’t the way society actually works. That was the point I was making, but I do think you’re right. There are other levels of corruption that don’t have to do with the things I said that we should obviously be on guard for, and that’s why we need transparency in government. If you’re running for public office, we should know your finances.

Before we go, the Jacobin coverage of Venezuela was more positive during the Chavez regime and earlier in the Maduro regime. Has the way in which that situation has gone downhill made you think any differently about any conception of socialism, or about signs that people should be on the lookout for in leaders that you or other people on the left missed?

There was a lot of debate in the Latin American left about certain things that Venezuela was doing, as opposed to Bolivia and Ecuador. One is, Venezuela seemed to be breaking with some of the “neoliberal consensus” more than Bolivia and Ecuador, but doing it through using oil rents, and I think in the long run that probably created some more macroeconomic instability. In Bolivia and Ecuador there was a more conservative approach on some of the macroeconomic stuff, and that enabled them to create more stability in the long term.

You undermine a lot of the gains of your programs for workers if you’re also going to expose them to hyperinflation. That doesn’t make me some deficit hawk or austerity type to say that. I think there were macroeconomic mistakes. There was obviously, at times, an extremely right-wing opposition in Venezuela. There was a lot of political instability, some of it coming from the United States. I think as a whole, the mentality of the left has been to say that we in the U.S., a country that has been the perpetrator of so much injustice in Latin America and so many interventions, don’t have a right to critically look at states.

I meant that the way Chavez used rhetoric was more important than some people on the left maybe thought. Do you think that it’s worth paying attention to things like this and that we probably shouldn’t be totally surprised by how it played out?

When we were analyzing Venezuela, we analyzed it mostly through the populist tradition, saying that Venezuela was a manifestation of left populism. Maybe this is kind of an academic cop out, but I think some of the rhetoric Chavez was using, some of the approach from his government, the fact that he did have a segment of capital on his side, the fact that he would have all these military officers and a segment of state bureaucracy on his side, the fact that there wasn’t an active labor-backed party in Venezuela and whatever else, meant that we interpreted it all as, Hey listen, this is definitely redistributive. This is vaguely left. This guy seems good, so it’s good. This is a social movement if he says it is.


I guess the underlying point of your question is, Might creating this kind of polarization of us versus them, and pushing very hard to destabilize the country lead to that outcome? Burke had that one line, I’m paraphrasing very brutally, that the only thing worse than existing tyranny is a failed revolution against that tyranny. I think we always have to be on guard with what happens when our revolutions fail, because often it leads to a counterrevolution on the right or a situation of political paralysis. That can’t stop us from trying to make change, but I think a lot of the lesson of the last hundred years is to pay attention to unexpected outcomes and to construct policies in a way that makes sense.

You talk about Sanders a bit at the end of your book. Is it fair to say that in your mind Sanders is a good democratic socialist, and Warren is a good social democrat?

I’m not sure if I would call Warren a social democrat, but in my mind she’s definitely the second-best in the field. I think the gap between Sanders and Warren and the gap between Warren and the rest of the field is equally significant. I think a lot of the things she’s proposing are great. I think she’s pushing the policy debate in a really good direction.

Does any part of you ever think that someone like her being President, given how the government works, would actually be more effective for the left than someone like Sanders?

I see your argument. Let’s say you have a scenario where the world ends in eight years, and you’re talking about what can get passed within this next eight years. Then you would say that maybe Warren has certain skills that might be useful administrating the state. Maybe those skills exceed those of Sanders.

In my mind, thinking about politics over ten, fifteen, twenty years, someone with the strength and moral clarity of Sanders, with the ability to attract people to him and create a movement around him, can really create the conditions in which we’re not just writing policy but we’re changing the conditions in which policy is written. Does that make sense? I think Sanders is better at changing the conditions in which policy is written and being uncompromising in certain things in a way that is actually useful in the long term.







Isaac Chotiner is a staff writer at The New Yorker, where he is the principal contributor to Q. & A., a series of interviews with public figures in politics, media, books, business, technology, and more.

Salário mínimo, fica a dica

Corrigir benefício pelo PIB per capita permitiria aumentos reais a partir de 2021

Nelson Barbosa


Trabalhadores se aglomeram embaixo do viaduto do Chá para tentar pegar senha. Danilo Verpa/Danilo Verpa

Na semana passada, o governo apresentou suas projeções fiscais até 2022. Não haverá aumento real do salário mínimo. Os reajustes previstos incorporam somente a inflação, medida pela expectativa de variação do INPC, como manda a Constituição.

Em outras palavras, a correção do piso nacional de salários pela inflação não é decisão do governo, é regra constitucional. Já aumentos reais podem ou não ser concedidos, via lei.

A “política de valorização do salário mínimo” vigorou de 2007 a 2019, concedendo aumento real igual ao crescimento real do Produto Interno Bruto da economia (PIB). Devido à defasagem na divulgação do PIB, utilizou-se o crescimento verificado dois anos antes do reajuste, quando este número era positivo.

A política de salário mínimo dos governos do PT teve papel importante na redução da desigualdade de renda no Brasil, aumentando o poder de compra da parcela da população que está acima da linha da pobreza, mas abaixo da classe média, grupo que o sociólogo Jessé de Souza corretamente chamou de “batalhadores” em vez de “nova classe média”.

Segundo o Dieese, caso os reajustes tivessem seguido apenas a inflação, o valor do piso salarial nacional seria de apenas R$ 573 hoje, e não os R$ 998 vigentes. Esses R$ 425 adicionais por mês são uma herança bendita do governo do PT, que beneficiou milhões de brasileiros, mas também elevou a despesa primária da União.

O aumento real do salário mínimo tem grande peso na expansão das transferências de renda via Previdência e assistência social, cujo piso de benefício segue o piso salarial nacional.

Segundo estudo dos economistas Bráulio Borges e Manoel Pires, só esse fator elevou a despesa primária da União em três pontos do PIB entre 1994 e 2016. Na ausência de aumentos reais do piso salarial, o gasto primário do governo seria relativamente menor hoje, mas provavelmente o PIB também seria menor, pois o crescimento dos salários mais baixos e das transferências de renda também elevou o consumo e a produção. Difícil separar as duas coisas.

Apesar do custo fiscal, a valorização do salário mínimo foi importante para recuperar o poder de compra de grande parte da população brasileira e deveria continuar, só que de modo mais moderado.

Em outras palavras, justamente porque o PT aumentou substancialmente o piso salarial nacional em termos reais, podemos adotar nova regra de reajuste a partir de agora.

Um bom guia para a nova política seria o PIB per capita, isto é, o crescimento médio da renda real por habitante verificado nos últimos quatro anos. Atualmente, tudo aponta que esse valor será negativo para o quadriênio 2016-19, de modo que não haveria aumento real previsto para 2020, caso adotássemos tal regra.

Porém, se a economia voltar a crescer de modo sustentado, o crescimento médio do PIB per capita voltará a ser positivo no quadriênio 2017-20, permitindo que o salário mínimo real volte a crescer a partir de 2021.

Adotar nova política de piso salarial baseada na média do PIB per capita tem a vantagem de preservar o princípio de que aumentos reais devem acompanhar a evolução da economia, só que de modo mais suave, e sem gerar impacto fiscal em 2020.

Dado que a própria base do governo no Congresso manifestou insatisfação com a decisão de Bolsonaro sobre salário mínimo, talvez a melhor saída seja adotar uma regra que não pressione o Orçamento do próximo ano, mas garanta aumentos reais sustentáveis a partir de 2021, caso a economia volte a crescer de modo satisfatório. Fica a dica do PIB per capita, para governo e oposição.

Sobre o autor

Professor da FGV e da UnB, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016). É doutor em economia pela New School for Social Research.

25 de abril de 2019

A tribo perdedora

Falta a nós conhecimento sobre nossa posição relativa na pirâmide distributiva

Laura Carvalho
Professora da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP, autora de "Valsa Brasileira: do Boom ao Caos Econômico".

Na coluna "A sua tribo está encolhendo", publicada nesta Folha no domingo (21/4), Clóvis Rossi chamou a atenção para o fenômeno da classe média espremida verificado em estudos recentes para os países ricos e para o Brasil e concluiu: "Parece razoável imaginar que essa situação, aqui como no resto do mundo, ajudou muito a dar impulso a populistas de diferentes cores".

Conforme enfatizei nas colunas "Dos motivos de Antônio" e "Desembarque", publicadas nesta Folha em 8/11/2018 e 28/3/2019, a perda de participação na renda nacional dos 40% da população que ganham mais que os 50% mais pobres e menos que os 10% mais ricos —o "squeezed middle" identificado pelo pesquisador Marc Morgan em um estudo de 2017 publicado pelo World Inequality Lab— parece mesmo ter desempenhado um papel crucial no processo eleitoral de 2018.

Fila de desempregados em busca de vaga em SP - Amanda Perobelli - 26.mar.19/Reuters

Em particular, foi exatamente entre os brasileiros do miolo espremido que o PT mais perdeu participação nos votos no segundo turno entre 2014 e 2018.

Só que essa "tribo" está longe de ser aquela a que Clóvis Rossi fez referência quando endereçou sua coluna à "maioria dos leitores da Folha", que, assim como ele, estaria encolhendo por ser "de classe média".

Segundo o próprio banco de dados a que o jornalista fez menção —o World Inequality Database, coordenado por Thomas Piketty—, os brasileiros ultrapassam a renda dos 50% mais pobres quando ganham mais de R$ 1.800 por mês per capita (para cada pessoa do domicílio).

A partir da renda mensal de R$ 5.137, o indivíduo já faz parte da faixa dos 10% mais ricos, que, como destacou Rossi, elevou sua participação na renda nacional desde os anos 2000. Quem ganha mais de R$ 20 mil ou R$ 30 mil por mês está na faixa dos 2% ou 1% mais ricos, respectivamente.

Em um país de renda média com altíssimo nível de desigualdade como o Brasil, o conceito cultural de classe média, que costuma estar associado ao padrão de consumo da classe média europeia, está muito distante daquele observado nas faixas intermediárias de nossa pirâmide distributiva.

A mesma base de dados indica que, em paridade de poder de compra —ou seja, já levando em conta as diferenças no custo de vida de cada país—, a renda média nessa faixa dos 40% do meio da pirâmide no Brasil é 1/3 da francesa, por exemplo. Ao contrário, a renda do 1% mais rico é 1,3 vez maior no Brasil do que na França, tamanha é a nossa concentração de renda.

Caso o leitor queira descobrir qual o percentual de brasileiros que vivem com renda mensal ou anual abaixo da sua, pode usar o simulador disponibilizado em wid.world/simulator.

A falta de conhecimento sobre nossa posição relativa na pirâmide distributiva tem efeitos político-econômicos importantes. Se nós, do topo da distribuição da renda, nos considerarmos de classe média, é natural que nos tornemos resistentes a aumentos nas alíquotas de tributação da renda e do patrimônio, por exemplo. Assim contribuímos para tornar o Estado brasileiro um vetor adicional de concentração de renda, dificultando a redução de nossas desigualdades abissais.

23 de abril de 2019

Como a China está substituindo os Estados Unidos como o titã militar da Ásia

O líder chinês Xi Jinping remodelou o Exército de Libertação Popular numa força que está rapidamente diminuindo a diferença em relação ao poder de fogo americano – e em certas áreas vitais, já o ultrapassou. A vitória americana sobre a China numa guerra regional não é mais garantida.

David Lague e Benjamin Kang Lim


Ilustrações de Christian Inton

Tradução / Em 1938, no meio de uma longa campanha para colocar a China sob domínio do Partido Comunista, o líder revolucionário Mao Zedong escreveu: “Quem quer que tenha um exército, tem poder”.

Xi Jinping, o mais recente sucessor de Mao, leva esse ditado bem a sério.

Ele vestiu uniformes de camuflagem, instalou-se como comandante-chefe e assumiu o controle de dois milhões de militares chineses, o Exército de Libertação Popular. É a maior reforma do ELP desde que Mao o levou à vitória na guerra civil do país e fundou a República Popular em 1949.

Xi acelerou a mudança do ELP de uma força tradicionalmente terrestre para uma potência naval. Ele quebrou sua vasta burocracia militar da era maoísta. Uma nova cadeia de comando aponta diretamente a Xi como presidente da Comissão Militar Central, o principal órgão de tomada de decisões militares da China. A liderança operacional das forças navais, de mísseis, aéreas, terrestres e cibernéticas foi separada da administração e treinamento – uma estrutura que analistas de Defesa chineses e ocidentais dizem que foi emprestada da organização militar estadunidense.

O líder chinês não está apenas revolucionando o ELP. XI está fazendo uma série de manobras que estão transformando tanto a China quanto a ordem global. Ele abandonou a determinação do arquiteto da reforma, Deng Xiaoping, de que a China deveria esconder sua força e esperar sua vez. O jogo da espera acabou. Os discursos de Xi são cheios de referências ao seu “sonho Chinês”, onde uma nação antiga se recupera da humilhação da invasão estrangeira e retoma seu lugar de direito como poder dominante na Ásia.

Guo Boxiong, visto aqui na gravação de seu julgamento em crimes de corrupção, é um dos membros mais velhos do exército a ser expurgado por XI Jinping. Fonte: CCTV

Os esforços incluem demonstrações características de soft power: o programa multibilionário de Xi, “Belt and Road”, para construir uma rede de troca global e infraestrutura com a China no centro, e seu plano “Made in China 2025”, para tornar o país num gigante manufatureiro de tecnologia avançada.

Mas o movimento mais ousado é a expansão do hard power chinês, através de suas reformas no ELP, a maior força armada do mundo. No centro de sua visão de renovação nacional está um exército leal e livre de corrupção, que Xi demanda estar preparado para lutar e vencer.

Seu esforço para projetar poder no exterior foi acompanhado por uma jogada poderosa internamente. Xi expurgou mais de 100 generais acusados de corrupção ou deslealdade, de acordo com a mídia oficial controlada pelo estado.

Uma demonstração pura de sua autoridade apareceu quando a televisão estatal transmitiu uma série de documentários elogiosos sobre o ELP, “Exército Forte”. Em uma cena da série de 2017, um homem idoso está sentado em um tribunal militar em uma mesa marcada como “réu”, aparentando estar bem frágil em uma jaqueta civil azul marinho. Ele é Guo Boxiong, um ex-general e o oficial mais graduado a ser condenado no expurgo de Xi. Ele lê sua confissão de acusações de suborno em um maço de papéis que segura com as duas mãos.

“A Comissão Militar Central lidou com meu caso corretamente”, diz Guo, que já serviu como vice-presidente da instituição. “Devo confessar minha culpa e assumir a responsabilidade”. Guo foi sentenciado à prisão perpétua.

Fontes: Instituto de Estudos Nacionais Estratégicos e o Pentágono.

Numa série de histórias, a Reuters está explorando como o rápido e disruptivo avanço do hard power chinês sob a observância de Xi Jinping acabou com a era da supremacia inquestionável dos Estados Unidos na Ásia. Ao longo de apenas duas décadas, a China construiu uma força de mísseis convencionais que rivalizam ou superam aqueles no arsenal americano. Os estaleiros navais da China criaram a maior marinha do mundo, que agora domina os mares no Leste Asiático. Pequim agora pode lançar mísseis nucleares de uma frota operacional de submarinos de mísseis balísticos, dando uma poderosa capacidade de contra-ataque. E o ELP está fortificando postos em vários locais do Mar do Sul da China, enquanto intensifica os preparativos para recuperar Taiwan, pela força se necessário.

Pela primeira vez desde que comerciantes portugueses chegaram à costa chinesa cinco séculos atrás, a China tem o poderio militar para dominar os mares de sua costa. O conflito entre China e Estados Unidos nessas águas seria destrutivo e sangrento, particularmente uma disputa por Taiwan, de acordo com altos oficiais americanos, em serviço e aposentados. E apesar das décadas de poder incomparável desde o fim da Guerra Fria, não haveria garantia de que os Estados Unidos iriam prevalecer.

“Os EUA poderiam perder”, disse Gary Roughhead, co-presidente de uma revista bipartidária de estratégia de defesa do governo Trump publicada em novembro. “Estamos realmente em um ponto de inflexão significativo da história.”

Roughhead não é um simples teórico. Almirante aposentado, ex-Chefe de Operações Navais, ele obteve o cargo mais alto da marinha americana até 2011. Sua preocupação reflete uma visão crescente do establishment de defesa americano. Em seu relatório, ele e seus colegas emitiram um alerta terrível. Os Estados Unidos enfrentam uma “crise de segurança nacional”, que decorre principalmente do aumento de poderio militar da China e da Rússia. “A superioridade militar americana não está mais garantida e as ameaças para os interesses e a segurança americana são severas”, conclui o painel.

Está claro que Xi quer dar um fim à era do domínio americano na Ásia. “Na análise final, cabe ao povo da Ásia lidar com os assuntos da Ásia, resolver os problemas da Ásia e garantir a segurança da Ásia”, diz ele em um discurso em 2014 para líderes estrangeiros em segurança regional.

O Ministro da Defesa Nacional da China, o Comando do Indo-Pacífico dos Estados Unidos e o Pentágono não responderam às perguntas deste artigo ou aos resumos detalhados de suas descobertas.

Este relato de Xi e do ELP – que apesar do “Exército” em seu nome, compreende todos os ramos militares – é baseado em entrevistas com 17 oficiais militares, atuais e aposentados, da China, dos Estados Unidos, Taiwan e Austrália. Muitos só podiam falar em condição de anonimato. Muito do relato vem de oficiais chineses e pessoas relacionadas à alta liderança em Pequim, que conhecem Xi Jinping e sua família há décadas e estão familiarizados com sua carreira conforme ele ascendeu na burocracia do partido e do governo. Também se baseia nas publicações do governo chinês descrevendo o pensamento político de Xi, seus discursos e documentos oficiais comprovando sua liderança no meio militar.

Ilustrações de Christian Inton

Xi sobe na hierarquia

Em Washington, a potência militar preeminente do mundo está se mobilizando para responder. Após décadas buscando engajamento com a expectativa de que Pequim se tornasse um parceiro cooperativo em assuntos mundiais, os Estados Unidos estão tratando a China como um competidor estratégico, e determinados a substituí-la como força dominante da Ásia.

Em grande parte, em reação a este desafio, Washington está aumentando os gastos com defesa, reconstruindo sua marinha e desenvolvendo urgentemente novas armas, particularmente mísseis convencionais de longo alcance. Está expandindo relações militares com outras potências regionais, como Japão, Coreia do Sul, Taiwan, Austrália, Singapura e India. E está conduzindo uma campanha internacional de diplomacia e inteligência para conter os ciber-ataques, a espionagem tradicional e o roubo de propriedade intelectual da China. Essa campanha inclui esforços para conter o alcance global das empresas de telecomunicações chinesas, Huawei e ZTE Corp.

Foto: Tropas chinesas se preparam para a chegada do presidente Xi Jinping na Guarnição do ELP de Hong Kong durante em evento em 2017 marcando o vigésimo aniversário da transferência da cidade do domínio britânico. Reuters/ Damir Sagolj

Membros do corpo de Fuzileiros Navais do ELP treinam na região oeste de Xinjiang em janeiro de 2016. Reuters/ Stringer

Um caça a jato decola do Liaoning, o único porta-aviões operacional da China, durante um exercício no Mar do Sul da China em janeiro de 2017. Reuters/ Mo Xiaoliang

O confronto vem a medida em que a administração do Presidente Donald Trump está travando uma guerra alfandegária focada em reduzir o massivo superávit de trocas da China para com os Estados Unidos. Quando este conflito for sanado, um risco mais grave é a possibilidade de que tensões mais profundas poderiam gerar um conflito armado entre Pequim, Washington e seus aliados nas contestadíssimas zonas marítimas da costa chinesa.

As melhorias do ELP não são tudo o que Xi está fazendo. Muito antes dele assumir o poder, o exército havia sido transformado numa massiva, porém rudimentar, força terrestre que levou Mao e seus camaradas, incluindo o pai de Xi, à vitória contra os Nacionalistas em 1949. Décadas de avanços exorbitantes nos gastos de defesa resultaram num arsenal de armas de alta tecnologia; milhões de soldados foram desmobilizados. Mas a corrupção se tornou endêmica.

Os dois predecessores de Xi, Jiang Zemin e Hu Jintao, eram civis que tomaram posse sem uma rede de apoio entre os chefes do ELP. Eles tentaram comprar lealdade através de patrocínios, aumentos de salários e orçamentos, de acordo com analistas chineses e taiwaneses e oficiais aposentados. Sob a fraca liderança de Hu em particular, dizem, oficiais superiores exploraram suas posições para desviar dinheiro, principalmente dos orçamentos de logística e equipamentos. A compra de postos tornou-se galopante.

A hierarquia militar que Xi herdou tornou-se uma lei para si mesma sob Hu, de acordo com Li Nan, um estudioso do exército chinês da Universidade Nacional de Singapura. “Estava fora de controle, de certa forma”, disse Li. “Agora o poder é centralizado nas mãos de Xi Jinping”.

Xi, chamado muitas vezes de príncipe, cresceu dentre os membros da aristocracia do Partido Comunista Chinês, mesmo sua família tendo sofrido perseguições durante a caótica Revolução Cultural de Mao. Seu falecido pai, Xi Zhongxun, foi um líder militar revolucionário que se tornou um alto funcionário do governo nos primeiros anos do regime comunista. Mais tarde, ele foi expurgado por Mao, antes de emergir como um dos principais líderes das reformas de mercado da China na década de 1980.

Ao estabelecer controle sobre o exército, Xi Jinping se espelha em Mao Zedong. Souvenires de Mao e Xi podem ser vistos numa loja próxima à Cidade Proibida em Pequim. Reuters/ Thomas Peter

A dramática acumulação de poder de Xi foi inesperada. Ele manteve a discrição enquanto lentamente abria caminho para a burocracia do Partido Comunista e do estado, de acordo com muitos chineses familiarizados com seu início de carreira.

Seu primeiro trabalho fora da universidade em 1979 foi servindo em um posto júnior como auxiliar uniformizado do General Geng Biao, então Ministro da Defesa. A biografia oficial de Xi registra este posto de três anos como “trabalho ativo”. Nesta função, ele teve acesso a documentos militares confidenciais, incluindo arquivos sobre a invasão chinesa ao Vietnã em 1979, de acordo com fontes ligadas à liderança. Ele teve que memorizar centenas de números de telefone e não era autorizado a usar uma agenda telefônica, porque ela poderia ser perdida ou roubada, disseram.

Ele então começou uma série de governos provinciais e postos do partido. Nesses cargos, sua performance foi relativamente normal. Como governador da Província de Fujian, no Sudeste, por exemplo, ele era obcecado com a rotina burocrática das sessões de estudos políticos onde os oficiais revisavam documentos do Partido Comunista e discursos de líderes superiores, de acordo com pessoas que o conheciam na época.

E ele estava longe de ser universalmente popular. Ficou em último lugar nas eleições para membros alternados do Comitê Central do partido, com 200 cadeiras, durante o 15º Congresso do Partido Comunista em 1997.

Esse histórico parece ter funcionado a seu favor. Durante seu período como líder supremo da China, o Presidente Jiang Zemin escolheu Xi a dedo para um cargo sênior porque o jovem parecia não ter ambição, de acordo com fontes ligadas a liderança chinesa. Xi também soava como um candidato influenciável porque não tinha base política, disse uma fonte na condição de anonimato.

Xi Jinping abandonou a postura cautelosa de seus predecessores. Aqui ele é visto entre os ex-presidentes Hu Jintao (esquerda) e Jiang Zemin (direita) no 19º Congresso do Partido Comunista em Pequim, em outubro de 2017. REUTERS/ Thomas Peter

Mas como o principal líder da China, ele mostrou disposição para impor mudanças radicais na cúpula do Partido, no governo e no exército.

“Quando eu falo com meus amigos da China Continental, todos dizem que ele é de assumir riscos”, diz Andrew Yang Nien-Dzu, ex-ministro da Defesa de Taiwan. “Você nunca sabe qual será seu próximo movimento”.

Ilustrações de Christian Inton

Xi doma o exército

Desde o começo, o expurgo à corrupção e a promoção de oficiais leais fez com que ficasse claro os grandes planos que Xi tinha para o ELP. Então, no meio de 2015, ele cortou 300.000 funcionários majoritariamente não-combatentes e administrativos antes de iniciar uma revisão geral da estrutura militar.

Ele separou os quatro “departamentos gerais” do ELP da era maoísta que haviam se tornado superpoderosos, autônomos e altamente corruptos, disse Li da Universidade Nacional de Singapura. Xi os substituiu com 15 novas agências que reportam diretamente à Comissão Militar Central liderada por ele.

Ele também desmantelou as sete regiões militares geográficas e as substituiu por cinco comandos de teatro de serviço combinado. Esses novos comandos regionais, comparáveis aos que lideram as forças armadas americanas, são responsáveis pelas operações militares e tem foco em combinar as capacidades aéreas, navais e mais outras das forças armadas chineses para se adaptar as guerras modernas.

Xi também promoveu seus comandantes favoritos, muitos deles oficiais que ele conheceu nas províncias de Fujian e Zhejiang, onde serviu a maior parte de seu início de carreira como oficial, de acordo com observadores chineses e ocidentais do ELP. Outros vem de sua província natal de Shaanxi ou são outros “príncipes” como ele próprio.

No 19º Congresso do Partido Comunista em 2017, Xi garantiu ainda mais seu controle sobre a liderança militar, diminuindo as cadeiras da Comissão Militar Central de onze para sete e os preenchendo com os homens de sua lealdade. Xi conheceu a maior parte deles em Shaanxi e Fujian.

[Xu Qiliang, 69
General

Xi promoveu Xu a seu principal comandante como vice-presidente sênior da comissão. Xu, um piloto, é o primeiro general da força aérea a ocupar esse posto. Antes, Xu serviu na província de Fujian em alguns postos de comando da força aérea de 1988 a 1993 enquanto XI era um oficial da província, de acordo com suas biografias oficiais. Os dois permaneceram próximos desde então, de acordo com experts militares chineses.

Zhang Youxia, 68
General

Xi promoveu Zhang ao segundo posto de vice-presidente da comissão. Zhang, um veterano da guerra da fronteira da China com o Vietnã de 1979, é outro “príncipe” e nativo de Shaanxi. Num exército em que experiência de combate é rara, a indicação de Zhang traz um soldado endurecido pela guerra ao topo do exército chinês ao tempo em que as tensões se amontoam com rivais regionais, de acordo com experts militares chineses. Xi e Zhang também tem fortes laços familiares. O pai de Zhang, Zhang Zongxun, foi amigo próximo e companheiro da guerra civil do pai de Xi, de acordo com uma fonte ligada a liderança e experts militares chineses.

Zhang Shengmin, 61
General

O oficial mais jovem na comissão é o General Zhang Shengmin, um oficial político de carreira que passou períodos extensivos nas forças de mísseis chinesas. Zhang é uma figura chave no desmantelamento corrente da corrupção no exército promovido por Xi. Ele encabeça o mecanismo de inibição à corrupção, a Comissão Disciplinar de Inspeção. Assim como Xi, Zhang é nativo de Shaanxi.

Li Zuocheng, 65
General

Li é um veterano combatente do conflito fronteiriço com o Vietnã. Ele participou de combates pesado e foi ferido, de acordo com reportagens da mídia continental, e após isso foi condecorado por sua bravura e liderança. Sua carreira aparentava estar estagnada durante as lideranças Jiang Zemin-Hu Jintao mas ele foi promovido rapidamente sob a de Xi. Ele também cumpre um papel chave no comando operacional sênior do exército chinês como chefe do Departamento de Estado-Maior Conjunto.

Wei Fengue, 65
General

Ministro da Defesa Wei, um comandante veterano da força de mísseis do ELP, está no posto para aconselhar sobre o poder de dissuasão nuclear cada vez mais poderoso da China. Wei foi um dos primeiros oficiais promovidos a general depois que Xi tomou o poder.

Miao Hua, 63
Almirante

O Almirante Miao Hua serviu por períodos extensos na Província de Fujian. Ele era um oficial político sênior de uma unidade do exército baseada em Xiamen quando XI era um líder provincial, de acordo com experts militares chineses. Mais tarde, ele foi transferido para a marinha.]

Membros da Comissão Militar Central Xu Qiliang (frente), (atrás, da esquerda para a direita) Zhang Shengmin, Li Zuocheng, Zhang Youxia, Wei Fenghe e Miao Hua fazem um juramento de lealdade no Grande Salão do Povo em Pequim em março do ano passado. REUTERS/Jason Lee

Enquanto lustra suas credenciais militares, Xi usa seu uniforme inicial no serviço militar. Em discursos para audiências militares, ele descreve a si mesmo como um soldado que se tornou oficial, de acordo com relatos da mídia controlada pelo estado. Em distintivos uniformes de camuflagem do ELP, quepe e botas de combate, ele supervisionou alguns dos maiores desfiles militares desde a vitória comunista de 1949. Na mais recente dessas exibições, Xi recebeu a saudação das tropas sem compartilhar o pódio com a formação usual de outros líderes partidários e anciãos.

Num exercício naval massivo em abril do ano passado, Xi embarcou no destroyer de mísseis teleguiados Changsha para revisar a frota chinesa de 48 navios de guerra no Mar do Sul da China. A televisão estatal mostrou o comandante da marinha, Vice Almirante Shen Jinlong, e o comissário político da marinha, Vice Almirante Qin Shengxiang, em posição de atenção enquanto reportavam a Xi e o saudavam. Xi então deu a ordem para prosseguir o exercício.

Ambos os chefes da marinha são protegidos de Xi. Shen foi promovido rapidamente sob Xi, ultrapassando outros oficiais mais antigos, de acordo com analistas chineses e ocidentais. Qin trabalhou próximo ao líder chinês num posto superior na Comissão Militar Central antes de sua promoção em 2017 ao seu cargo na marinha, reportou a mídia oficial militar da China.

Xi também estava de uniforme novamente em julho de 2017, em um desfile militar mássivo para marcar o 90º aniversário do ELP no campo de treinamento Zhurihe, no interior da Mongólia. Ele foi saudado pelo comandante do desfile, General Han Weiguo, um oficial que serviu em Fujian enquanto Xi era oficial do partido e do governo na província. Han teve uma ascensão meteórica sob Xi, tendo sido promovido ao comando das forças terrestres chineses pouco depois de seu desfile.

"Quando eu falo com meus amigos da China Continental, todos dizem que ele é de assumir riscos. Você nunca sabe qual será seu próximo movimento."

Andrew Yang Nien-Dzu, ex-ministro da Defesa de Taiwan, sobre Xi Jinping

"Xi Jinping é obcecado por desfiles militares", disse Willy Lam Wo-lap, um veterano observador dos movimentos pessoais das elites políticas e militares chinesas e professor da Universidade Chinesa de Hong Kong. “Ele ama essas demonstrações de poder bruto”.

Como parte da construção de uma imagem marcial de XI, a máquina de propaganda do partido o retrata como o líder responsável por um giro decisivo na recuperação da China das conquistas e dominação coloniais que começaram na Primeira Guerra do Ópio no meio do século 19.

Nas cenas iniciais do documentário “Exército Forte”, Xi é mostrado embarcando no destruidor de mísseis teleguiados Haikou no porto de Sheikou em 8 de dezembro de 2012, e navegando para o Mar do Sul da China pela primeira vez desde que se tornara chefe do partido e do exército, naquele mesmo ano. Enquanto XI olha para o horizonte através de binóculos, o narrador diz: “Enquanto o navio de guerra atravessa pelas ondas, XI Jinping mira em direção a uma visão obscurecida na névoa da história quando, 170 anos atrás, potências ocidentais vieram do mar abrir as portas para a China, o início de um pesadelo horrível para a China antiga.

O pesadelo acaba, de acordo com o documentário, com a vitória dos comunistas sob Mao e os períodos de crescimento econômico e militar sob o poder de líderes antigos como Deng, Jiang e Hu. Com Xi no comando, mostra a série, uma China fortemente armada está preparada para retomar sua glória.

Propaganda de lado, Xi está se provando muito mais assertivo do que seus predecessores mais recentes ao implementar uma nova potência militar na China. Em 2013, a China começou a dragar e construir ilhas nas disputadas Ilhas Spratly no Mar do Sul da China, uma área em que Pequim trava conflitos territoriais com as Filipinas, Malásia, Taiwan, Vietnã e Brunei.

Esta imagem estática, de um vídeo feito por uma aeronave de vigilância P-8ª Poseidon americana em 2015, supostamente mostra embarcações de dragagem chinesas em torno do Recife Mischief nas disputadas ilhas Spratly no Mar do Sul da China. Marinha Americana/ entregue via Reuters

Xi pessoalmente coordena esses movimentos, de acordo com um comentário de julho de 2017 no Study Times, o porta-voz oficial da Escola Central do Partido Comunista. “É o equivalente a construir uma Grande Muralha no mar”, diz o comentário.

A fortificação extensiva desses postos avançados, incluindo baterias de mísseis, significa que a China praticamente anexou uma vasta faixa desse oceano. Antes de sua nomeação, dia 30 de maio, para chefiar o Comando Indo-Pacífico dos EUA, o Almirante Phillip Davidson disse num comitê do Congresso que a China agora era capaz de controlar o Mar do Sul da China em todos os cenários “sem guerra”.

Xi também está fazendo pressão militar em Taiwan, Japão e Índia. Juntamente com um massivo arsenal de mísseis capazes de atingir Taiwan, a marinha e as forças aéreas chinesas conduzem exercícios cada vez mais complexos que regularmente circundam a ilha autogovernada.

Esses exercícios foram pensados para intimidar Taiwan e desgastar suas forças que devem responder a esses exercícios, de acordo com analistas de defesa taiwaneses. “Eles estão obviamente aplicando força coercitiva sob Taiwan”, diz Yang, o Ex-Ministro da Defesa de Taiwan. Pequim trata Taiwan como uma província renegada e está determinada a trazê-la de volta para o controle da China continental.

Em resposta às perguntas do Reuters, o Ministro da Defesa de Taiwan disse que iria continuar a manter vigilância e implantar aeronaves e navios de guerra para “garantir a segurança do território aéreo e marítimo de nossa nação”.

As forças navais e aéreas chinesas também estão aumentando o ritmo de implantações, exercícios e patrulhas no arquipélago japonês. O Livro Branco militar anual do Japão no ano passado disse que a “escalada unilateral” das atividades da China em todo o Japão estava despertando fortes preocupações com a segurança. Interceptadores japoneses se misturaram 638 vezes no ano passado com aeronaves chinesas, reportou o governo esse mês, um acréscimo de quase trinta por cento em relação ao ano passado.

“A China expandiu e intensificou atividades militares não apenas no Mar do Sul da China, mas também no Oceano Pacífico e nos mares ao redor do Japão”, disse o Ministro da Defesa do Japão em resposta ao Reuters. “Essas atividades parecem ter como objetivo melhorar a capacidade operacional e reforçar a presença chinesa”.

Os pilotos dos caças Mirage taiwaneses caminham na pista de uma base da cidade de Hsinchu em janeiro deste ano, durante os exercícios de preparação militar antes do Ano Novo Chinês. Enquanto o poderio militar chinês cresce, os Estados Unidos estão expandindo laços estratégicos com aliados regionais como Taiwan. REUTERS/ Tyrone Siu

Apesar desses movimentos assertivos, ainda há dúvidas de dentro do ELP sobre a capacidade das forças chinesas de competir com os EUA e outras potências militares avançadas. Em inúmeros comentários publicados, oficiais e estrategistas chineses apontam a falta de experiência em conflito do ELP, deficiências tecnológicas e falha na introdução de comando e controle eficazes.

A tomada de poder e a agenda ousada de Xi também representam um grande risco para ele pessoalmente, o partido e a China. Tem havido especulação generalizada na China de que a repressão à corrupção no exército e o expurgo paralelo no partido e nos funcionários do governo são, pelo menos em parte, uma resposta de Xi para uma violenta luta pelo poder nos bastidores.

Evidências raras disso vieram à tona numa reunião estratégica de oficiais do alto escalão. Próximo do 19º Congresso do Partido em outubro de 2017, Liu Shiyu, até então o principal regulador do mercado de ações na China, acusou um grupo de oficiais sênior expulsos durante o expurgo de planejarem um golpe, incluindo o ex-chefe militar Guo Boxiong. Mais cedo, o jornal oficial militar sugeriu acusações similares, sem citar evidências. Guo, que estava preso sob denúncias de corrupção, não pode ser contatado para comentar. O governo chinês não fez mais comentários sob essa alegação.

Ao derrubar tantos militares poderosos, líderes do partido e suas facções, Xi fez muitos inimigos perigosos, dizem pessoas ligadas à liderança. E aumentos exorbitantes dos gastos militares vão se tornar mais difíceis de sustentar se o crescimento da economia chinesa sobrecarregada de dívidas continuar a desacelerar.

Ainda assim, Xi não mostra sinais de diminuir seu ímpeto para galvanizar os militares chineses. Em 25 de outubro, ele fez um tour no Comando Teatral Sul na cidade de Guangzhou, o quartel general responsável pelo contestado Mar do Sul da China. A televisão estatal mostrou Xi de uniforme e botas de combate, caminhando pelo posto de comando com altos executivos. Xi, reportou a mídia estatal, disse a oficiais para se concentrarem em "se preparar para guerra e para o combate".

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