23 de dezembro de 2019

O colapso do neoliberalismo

A longa ideologia dominante trouxe-nos para sempre guerras, a Grande Recessão e a extrema desigualdade. Boa leitura.

Ganesh Sitaraman

The New Republic

Paul Volcker, presidente do Conselho Consultivo de Recuperação Econômica, e o presidente Obama durante uma reunião em 2009. (Saul Loeb / AFP / Getty Images)

Tradução / Com a Grande Crise Financeira de 2008 e a Grande Recessão, a ideologia do neoliberalismo perdeu a sua força. A abordagem neoliberal da política, do comércio global e da filosofia social que definiu uma era não levou a uma prosperidade sem fim, como anunciava, mas sim a um desastre total. O “Laissez-faire acabou”, declarou o presidente francês Nicolas Sarkozy. O presidente da Reserva Federal, Alan Greenspan, admitiu em testemunho perante o Congresso que a sua ideologia estava errada.

Numa declaração extraordinária, o primeiro-ministro australiano Kevin Rudd declarou que a Grande Crise Financeira “pôs em causa a ortodoxia económica neoliberal dominante nos últimos 30 anos – a ortodoxia que sustentou os quadros regulatórios nacionais e globais que tão espetacularmente falharam em evitar o caos económico a que se chegou”.

Para alguns, e especialmente para aqueles da geração milenar, a Grande Recessão e as guerras no Iraque e no Afeganistão iniciaram um processo de reflexão sobre o que a era neoliberal tinha proporcionado. Falar de desapontamento seria um eufemismo: falar dos destroços completos da vida económica, social e política seria mais preciso e correto para caracterizar a situação atual. Em cada uma dessas arenas, olhando para os resultados que o neoliberalismo produziu, cada vez mais se questiona a própria visão do mundo.

Comecemos pela economia. Ao longo da era neoliberal, as economias em todo o mundo tornaram-se cada vez mais desiguais. Nos Estados Unidos, o grupo dos 1% mais ricos levou para casa cerca de 8,5% do rendimento nacional em 1976. Após uma geração de políticas neoliberais, em 2014 eles capturaram mais de 20% do rendimento nacional. Na Grã-Bretanha, o grupo dos 1% capturaram mais de 14% do rendimento nacional – mais do dobro da quantia que levaram para casa no final da década de 1970. A história é a mesma na Austrália: Os primeiros 1% capturaram cerca de 5% do rendimento nacional nos anos 70 e duplicaram-no para 10% no final dos anos 2000.

Enquanto os ricos ficam mais ricos, os salários dos trabalhadores estagnam desde o final dos anos 70. Entre 1979 e 2008, 100% do crescimento do rendimento nos EUA foi para os primeiros 10% dos americanos. Na verdade, os 90% de rendimentos mais baixos viram um declínio no seu rendimento.

Durante a era neoliberal, a diferença de riqueza entre raças não se mostrou muito melhor. Em 1979, o salário médio por hora de um negro nos EUA era 22% inferior ao de um homem branco. Em 2015, a diferença salarial tinha aumentado para 31 por cento. Para as mulheres negras, a diferença salarial em 1979 era de apenas 6%; em 2015, tinha saltado para 19%.

A compra de casa própria é uma das formas centrais das famílias construírem riqueza ao longo do tempo, mas as taxas de gente com casa própria entre afro-americanos em 2017 eram tão baixas quanto antes da revolução dos direitos civis, quando a discriminação racial era legal.

Também vale a pena colocar em perspetiva a Grande Crise Financeira de 2008 – tanto histórica como global. Entre 1943 e meados da década de 1970, o número de falências bancárias no país foi mínimo – nunca ficando acima de um único dígito em qualquer ano. A desregulamentação das Caixas de Aforro e Crédito (as Saving and Loans) teve como consequência falências e resgastes financeiros generalizados em menos de uma década. A desregulamentação de Wall Street trouxe o épico colapso financeiro de 2008 em menos de uma década.

Isso não deveria ter sido uma grande surpresa, já que as políticas neoliberais já tinham causado estragos em todo o mundo. Olhando para a crise financeira asiática de 1997, o economista Joseph Stiglitz comenta que “a liberalização excessivamente rápida dos mercados financeiros e de capitais foi provavelmente a causa mais importante da crise”; ele também observa que, após a crise, as políticas austeritárias do Fundo Monetário Internacional “exacerbaram as recessões económicas”.

Os neoliberais impulsionaram a rápida privatização na Rússia após a Guerra Fria, juntamente com uma política monetária restritiva. O resultado foi uma economia de permuta crescente, exportações baixas e despojamento de ativos, enquanto oligarcas em ascensão compravam empresas estatais e depois transferiam o seu dinheiro para fora do país.

Apesar do seu suposto compromisso com a concorrência de mercado, a agenda económica neoliberal trouxe, ao invés disso, o declínio da concorrência e o aumento do poder monopolístico em vastas faixas da economia: farmacêutica, telecomunicações, linhas aéreas, agricultura, bancos, indústrias, comércio a retalho, serviços públicos e até mesmo cerveja.

Um estudo do The Economist constatou que, entre 1997 e 2012, dois terços das indústrias tornaram-se mais concentradas. Mesmo os grupos de reflexão centristas como a Brookings Institution reconheceram a perigosa ascensão dos monopólios e argumentaram que a concentração do poder económico traz consigo preços mais altos para os consumidores, maior desigualdade económica e uma economia menos dinâmica.

O aumento da desigualdade económica e a criação de megacorporações monopolistas também ameaçam a democracia. Estudo após estudo, cientistas políticos demonstraram que o governo dos EUA é altamente sensível às preferências políticas das pessoas mais ricas, das grandes empresas e das associações comerciais – e que em grande medida não responde às opiniões das pessoas comuns.

As pessoas mais ricas, grandes empresas e os seus grupos de interesse participam mais na política, gastam mais em política e fazem mais lobby junto dos governos. Cientistas políticos líderes declararam que os EUA já não são caracterizados como uma democracia ou uma república, mas como uma oligarquia – um governo dos ricos, pelos ricos, e para os ricos.

O abraço neoliberal do individualismo e da oposição à “sociedade coletiva”, que Margaret Thatcher defendia, também teve consequências perversas para a vida social e política. Os humanos são animais sociais. Mas o neoliberalismo rejeita tanto a abordagem medieval de ter classes sociais fixas baseadas na riqueza e no poder como a abordagem moderna de ter uma identidade cívica única e compartilhada baseada na participação numa comunidade democrática.

O problema é que no meio da corrida de ratos individualistas do neoliberalismo, as pessoas continuam a precisar de encontrar sentido em alguma coisa das suas próprias vidas. E assim tem havido um recuo a favor do tribalismo e de grupos identitários, com as associações cívicas a serem substituídas por filiações religiosas, étnicas ou outras filiações culturais.

É certo, raça, género, cultura e outros aspetos da vida social sempre foram importantes para a política. Mas o individualismo radical do neoliberalismo tem levantado cada vez mais dois problemas que estão interligados. Primeiro, quando levado ao extremo, a fratura social em grupos identitários pode ser usada para dividir as pessoas e impedir a criação de uma identidade cívica partilhada. A autonomia de governo requer a união através dos nossos pontos em comum e a aspiração de alcançar um futuro partilhado.

Quando os indivíduos se voltam para clãs, tribos e o nós por oposição às suas identidades, a comunidade política fragmenta-se. Torna-se mais difícil para as pessoas verem-se mutuamente como parte desse mesmo futuro compartilhado.

Os demagogos dependem dessa fratura para inflamar antagonismos raciais, nacionalistas e religiosos, o que só alimenta ainda mais as divisões dentro da sociedade. A guerra do neoliberalismo à “sociedade”, empurrando para a privatização e mercantilização de tudo, facilita assim indiretamente um recuo para o tribalismo que mina ainda mais as condições prévias para uma sociedade livre e democrática.

O segundo problema é que os neoliberais de direita e de esquerda às vezes utilizam a política identitária como escudo para proteger as políticas neoliberais. Como argumentou um comentador: “Sem a base da política de classe, a política identitária tornou-se um programa do neoliberalismo inclusivo, na qual os indivíduos podem ser acomodados, mas em que a luta contra as desigualdades estruturais não pode”.

O que isto significa é que alguns neoliberais colocam num ponto alto a bandeira da inclusão de género e de raça e, portanto, afirmam ser reformadores progressistas, mas depois fecham os olhos para as mudanças sistémicas na política e na economia. Os seus críticos argumentam que isso é “política identitária neoliberal”, e isso dá aos seus proponentes o espaço para perpetuar as políticas de desregulamentação, privatização, liberalização e austeridade. Naturalmente, o resultado é deixar no lugar estruturas políticas e económicas que prejudicam os próprios grupos que os neoliberais de inclusão afirmam estar politicamente a apoiar.

As aventuras de política externa dos neoconservadores e dos internacionalistas liberais não se têm saído muito melhor do que a política económica ou a política cultural. Os EUA e os seus parceiros de coligação estão atolados na guerra do Afeganistão há 18 anos e continuarão a estar. Nem o Afeganistão nem o Iraque são uma democracia liberal, nem a tentativa de estabelecer a democracia no Iraque levou a um efeito dominó que varresse o Oriente Médio e reformasse os seus governos para melhor.

Em vez disso, o poder no Iraque passou dos ocupantes americanos para milícias sectárias, para o governo iraquiano, para terroristas do Estado islâmico e de volta para o governo iraquiano – e mais de 100.000 iraquianos estão mortos.

Ou tomemos a intervenção liberal internacionalista de 2011 na Líbia. O resultado não foi uma transição pacífica para uma democracia estável, mas sim uma guerra civil e instabilidade, com milhares de mortos à medida que o país se separava e porções eram invadidas por grupos terroristas. Com base na promoção da democracia, é bem difícil dizer que estas intervenções foram um sucesso. E para aqueles motivados a expandir os direitos humanos em todo o mundo, é difícil justificar estas guerras como vitórias humanitárias – e contando só com a morte dos civis.

De facto, os pressupostos centrais de ancoragem do establishment da política externa americana têm-se mostrado errados. Os formuladores da política externa assumiram em grande parte que todas as coisas boas se iriam verificar em conjunto – democracia, mercados e direitos humanos – e por isso pensaram que a abertura da China ao comércio levaria inexoravelmente a que ela se tornasse uma democracia liberal. Eles estavam errados.

Eles pensavam que a Rússia se tornaria liberal através de uma rápida democratização e privatização. Eles estavam errados.

Achavam que a globalização era inevitável e que a liberalização do comércio em constante expansão era desejável, mesmo que o sistema político nunca fosse corrigido para os vencedores e perdedores do comércio. Eles estavam errados.

Estes não são erros menores. E para ser claro, Donald Trump não teve nada a ver com eles. Todos estes fracassos eram evidentes antes mesmo das eleições de 2016.


Apesar destes fracassos, a maioria dos decisores políticos não tinha uma nova ideologia ou uma visão do mundo diferente através da qual pudessem compreender os problemas desta época. Assim, em geral, a resposta coletiva não foi a de abandonar o neoliberalismo.

Depois do Grande Colapso Financeiro de 2008, os neoliberais ficaram irritados com as tentativas de aplicar fortes programas keynesianos de despesa pública para estimular a procura. Os conselheiros do presidente Barack Obama reduziram o tamanho do pacote de estímulo pós-crise por medo de que parecesse grande demais para o consenso neoliberal da era – e, além disso, comprometeram o seu conteúdo. Cerca de um terço do estímulo acabou sendo um corte nos impostos, o que tem um efeito menos estimulante do que a despesa pública direta.

Depois de os republicanos retomarem o controlo do Congresso em 2010, os EUA foram forçados a uma situação de sequestro, através de um programa de austeridade plurianual que cortou nos orçamentos em todo o governo, mesmo quando o país estava apenas a começar a sair da Grande Recessão. O chanceler do Partido Trabalhista Britânico disse, após o crash de 2008, que os cortes planeados pelos trabalhistas nos gastos públicos seriam “mais profundos e duros” do que os cortes impostos por Margaret Thatcher.

Quando se tratou de uma política afirmativa e voltada para o futuro, o quadro neoliberal também se manteve dominante. Veja-se a legislação de Obamacare sobre cuidados de saúde. Os democratas queriam aprovar um programa nacional de cuidados de saúde pelo menos desde a presidência de Harry Truman. Mas com a tentativa fracassada de Clinton no início dos anos 1990, quando os democratas assumiram o comando da Câmara, do Senado e da presidência em 2009, eles adotaram uma abordagem diferente.

O programa Obamacare foi construído sobre um modelo baseado no mercado que a conservadora Fundação Heritage ajudou a desenvolver e que Mitt Romney, governador republicano de Massachusetts, havia adotado. Vale a pena sublinhar que a característica central do Obamacare é um mercado privado no qual as pessoas podem comprar os seus próprios cuidados de saúde, com subsídios para os indivíduos que estão perto da linha de pobreza.

Não havia um sistema de pagador único, e centristas como o senador Joe Lieberman bloquearam a criação de uma opção pública que pudesse coexistir e competir com opções privadas nos mercados. Com medo de perderem os seus lugares, os centristas sacaram essas concessões dos progressistas. De pouco lhes serviu.

O partido do presidente quase sempre perde lugares em eleições intercalares, e desta vez não foi diferente. Por sua culpa, os centristas perderam os seus lugares e impuseram aos americanos menos e piores opções em termos de cuidados de saúde. Talvez o maior choque tenha sido que os políticos progressistas corajosos que também perderam nos seus distritos ditos de linha vermelha, como Tom Perriello, da Virgínia, na verdade fizeram melhor do que os seus cautelosos colegas.

À direita, a resposta ao crash foi bem para além da cegueira típica das avestruzes em face do falhanço das hipóteses com que sustentavam as suas visões das políticas públicas. Na verdade, a maioria dos conservadores aproveitou o momento para repetir as abordagens fracassadas do passado. O programa do Partido Republicano em 2012, por exemplo, apelou para um relaxamento seja da regulamentação financeira imposta até aí a Wall Street, seja da regulação ambiental e de segurança dos trabalhadores; apelou igualmente a impostos mais baixos para as grandes empresas e para os indivíduos ricos; e uma maior liberalização do comércio. Pediu a abolição dos empréstimos federais aos estudantes, além da privatização das linhas de caminho-de-ferro, das terras do Oeste, da segurança nos aeroportos assim como a privatização dos correios. Os republicanos também continuaram a apoiar o corte dos cuidados de saúde e da segurança na reforma. Após 40 anos de avanços nessa direção – e com isso falhando em cada mudança política – pode-se pensar que eles mudariam as suas opiniões. Mas os republicanos não mudaram, e muitos ainda agora não mudaram.

Embora o neoliberalismo tivesse pouco a oferecer, na ausência de uma nova estrutura ideológica, ele pairava sobre a presidência Obama – mas agora sob uma nova forma. Muitos no centro-esquerda adotaram o que poderíamos chamar de “ideologia tecnocrática”, uma versão rebatizada do minimalismo político dos anos 90 que substituiu os fundamentos táticos e pragmáticos do minimalismo por fundamentos científicos.

O próprio termo é algo oximoro, pois os tecnocratas parecem ser o oposto de ideólogos. Mas uma ideologia é simplesmente um sistema de ideias e crenças, como liberalismo, neoliberalismo ou socialismo, que molda a forma como as pessoas veem o seu papel no mundo, na sociedade e na política. Como ideologia, a tecnocracia sustenta que os problemas do mundo são problemas técnicos que requerem soluções técnicas.

Vale a pena ressaltar o que isso implica: Primeiro, significa que a estrutura do sistema atual não está falhada nem é defeituosa; assim, a maioria dos problemas são relativamente menores e podem ser corrigidos fazendo pequenos ajustamentos no sistema.

Em segundo lugar, os problemas não são uma função de conflitos morais profundos que requerem a persuasão das pessoas a um nível religioso, emocional ou moral. Em vez disso, são problemas de ciência e factos, nos quais podemos conhecer respostas “certas” e descobrir o que funciona porque há consenso sobre quais são os objetivos finais. Em conjunto, o resultado é que a ideologia tecnocrática aceita amplamente o status quo como aceitável.

A ideologia tecnocrática preserva o status quo com uma variedade de táticas. Podemos chamar à primeira de “boato da complexidade”. Os tecnocratas gostam de dizer que setores inteiros das políticas públicas são muito complicados e, portanto, ninguém pode propor reformas ou mesmo compreender o setor sem entrar no sacerdócio da tecnocracia.

As utilizações mais frequentes desta tática são em setores que os economistas passaram a dominar – comércio internacional, anti trustes e regulamentação financeira, por exemplo. O resultado dessa mentalidade é que as reformas estruturais profundas são postas de lado e mudanças altamente técnicas são adotadas em seu lugar.

A regulação financeira é um caso particularmente claro, dado o grande colapso de 2008 e a Grande Recessão. Quando chegou o momento de estabelecer um novo regime regulatório para o setor financeiro, não houve uma reestruturação massiva, apesar de estarmos perante o maior colapso financeiro dos últimos 70 anos.

Em vez disso, na sua maior parte, a Lei Dodd-Frank foi classicamente tecnocrática. Mantinha o setor basicamente na mesma, com alguns ajustes aqui e ali. Não houve nenhuma tentativa de reestruturar completamente o sector financeiro. Os esforços para separar seriamente os bancos não deram em nada.

Nenhum alto executivo da finança foi parar à cadeia. Com exceção da criação do Gabinete de Proteção Financeira ao Consumidor, a maioria das reformas foi relativamente menor: maiores exigências de capital para os bancos ou aumento dos mandatos de apresentação de relatórios. Quando os proponentes afirmaram que estavam a fazer algo de ousado, afinal a lei Dodd-Frank ainda estava presa da ideologia tecnocrática.

A Regra Volcker, por exemplo, procurou proibir os bancos de especularem por conta própria. Mas ao invés de fazer isso através de uma simples e límpida regra de separação de atividades (como a decretada sob o antigo regime Glass-Steagall), a Regra Volcker estava sujeita a uma infinidade de exceções e foram esculpidas medidas que os reguladores federais eram então obrigados a explicar e a implementar com centenas de páginas de regulamentos técnicos.

A lei Dodd-Frank também ilustra um segundo princípio da ideologia tecnocrática: As falhas da tecnocracia podem ser resolvidas por mais tecnocracia. Sempre que soluções tecnocráticas falham, a resposta raramente é questionar a estrutura do sistema como um todo. Ao invés disso, é exigir mais e melhores tecnocratas.

Aqueles que reconhecem que votar a favor da Guerra do Iraque foi um erro lamentaram não ter melhores serviços de informações e melhor planeamento para o pós-guerra. Rara foi a pessoa que questionou o esforço de querer policiar vastas regiões do mundo simultaneamente com pouco conhecimento dos povos, costumes ou cultura locais. Tudo o que era necessário era um melhor planeamento do pós-guerra, disseram eles: Era um problema técnico e burocrático.

Dodd-Frank criou o Conselho de Supervisão da Estabilidade Financeira, um órgão governamental encarregado do que é chamado de regulamentação macroprudencial. Isto significa que os reguladores governamentais devem monitorizar toda a economia e virar um pouco os mostradores da regulação para cima e para baixo para manter a economia longe de outro colapso. Mas perguntem-se isto: Porque haveríamos de acreditar que eles poderiam fazer uma tal coisa ? Sabemos que esses mesmos reguladores não conseguiram identificar, alertar ou agir em relação à crise de 2008. Sabemos que os mercados são dinâmicos e diversificados e que os reguladores não podem ter informações completas sobre eles. E sabemos que os reguladores são tão susceptíveis como qualquer outra pessoa de serem apanhada em comportamentos de exuberância irracional ou de serem capturados pelo setor financeiro. Em vez de estabelecer regras estruturais para atividades financeiras permissíveis, mesmo que sejam um pouco em excesso ou em falta, Dodd-Frank, mais uma vez, coloca a sua fé e os nossos destinos nas mãos de tecnocratas.


Não devemos ficar surpreendidos com estas dinâmicas. A evolução do neoliberalismo seguiu um padrão comum na história. No primeiro estágio, o neoliberalismo ganhou força na sequência das crises dos anos 70. É fácil pensar no Thatcherismo e no Reaganismo como fenómenos que aparecem aos nossos olhos como totalmente formados, brotando da cabeça de Zeus tal como a deusa Atena. Mas vale a pena lembrar que Thatcher por vezes dava verdadeiras punhaladas nesta visão do sistema neoliberal. Retoricamente, ela defendia as causas da ala direita. Mas praticamente, as suas políticas ficavam muitas vezes aquém da grande visão neoliberal desta mesma linha política. Por exemplo, ela recusou-se a permitir qualquer tentativa de privatizar o Royal Mail e os caminhos-de-ferro. Ela preferiu até utilizar a palavra desnacionalização à privatização, achando este termo antipatriótico e demasiado radical. O problema central, como observou nas suas memórias, era que “havia ainda uma revolução a ser feita, mas muito poucos revolucionários”.

Uma história semelhante pode ser contada sobre Ronald Reagan. Em parte, porque ele enfrentou uma Câmara dos Deputados democrática, os radicais conservadores ficaram ocasionalmente desapontados com a medida em que a administração Reagan defendia os seus objetivos. Sob Ronald Reagan, William Niskanen escreve, “nenhum programa federal importante … e nenhuma agência foi abolida”. O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas foi criado durante o governo Reagan, e o presidente Reagan assinou uma variedade de leis ambientais. Os primeiros líderes não eram tão ousados ideologicamente como os mitos posteriores nos podem levar a crer.


Na segunda fase, o neoliberalismo normalizou-se. Persistiu para além das personalidades fundadoras – e, em parte por causa da sua longevidade no poder, cresceu tanto que o outro lado do espetro político o adotou. Assim, quando os Tories expulsaram Thatcher e a substituíram por John Major, sem querer, tornaram possível o Thatcherismo. Major queria oferecer à Grã-Bretanha um “Thatcherismo de face humana”, e propôs-se suavizar as arestas ásperas. O resultado foi consolidar e fazer avançar o projeto neoliberal na Grã-Bretanha. Quando Major foi eleito por direito próprio, em 1992, obteve mais votos do que Thatcher alguma vez teve – e mais do que Tony Blair recebeu em 1997. Como o próprio Major observou, “1992 matou o socialismo na Grã-Bretanha… Essa nossa vitória significou que entre 1992 e 1997 os trabalhistas tiveram que mudar”.

A história americana é semelhante. Reagan passou o facho a George H. W. Bush. Embora Bush não fosse do campo político de Reagan dentro do Partido Republicano (ele tinha concorrido contra Reagan para a presidência em 1980 e foi visto com ceticismo pelos verdadeiros crentes), Bush moveu-se para assumir o Reaganismo nos seus compromissos de campanha eleitoral. Ao mesmo tempo, com as perdas de Carter em 1980, Walter Mondale em 1984 e Michael Dukakis em 1988, os democratas começaram a pensar que tinham de abraçar o neoliberalismo como um caminho para sair do deserto político em que se encontravam.

Finalmente, porém, a ideologia neoliberal estendeu os seus tentáculos a todas as áreas da política e até mesmo da vida social, e na sua terceira etapa, de forma excessivamente alargada. O resultado na política económica foi o Grande Colapso de 2008, a estagnação económica e a desigualdade que atingiu os mais elevados níveis do século. Na política externa, foi a desastrosa Guerra do Iraque e o caos e incerteza em curso no Oriente Médio.

A quarta e última etapa é o colapso, a irrelevância e uma busca errante quanto ao futuro. Com o mundo em crise, o neoliberalismo já não tem nem mesmo soluções plausíveis para os problemas de hoje. Como resposta aos problemas de desregulamentação, privatização, liberalização e austeridade, ele oferece mais do mesmo ou, na melhor das hipóteses, “variações” incrementais e de natureza tecnocrática. As soluções da era neoliberal não oferecem ideias sérias de como enfrentar o colapso da classe média e a disseminação da insegurança económica generalizada.

As soluções da era neoliberal não oferecem ideias sérias de como lidar com a corrupção da política e com a influência dos interesses do dinheiro em todos os aspetos da vida cívica – dos media de notícias à educação, passando pela política e regulamentação. As soluções da era neoliberal não oferecem ideias sérias de como reconstituir o tecido social frágil, no qual as pessoas são cada vez mais tribais, divididas e desligadas da comunidade cívica.

E as soluções da era neoliberal não oferecem ideias sérias de como enfrentar a fusão do capitalismo oligárquico e do autoritarismo nacionalista, que agora capturou grandes governos por todo o mundo – e que procura invadir e minar a democracia a partir de dentro.


Em 1982, quando a cortina neoliberal estava a ser levantada, o governador do Colorado Richard Lamm observou que “a vanguarda do Partido Democrata deve reconhecer que o mundo dos anos 30 mudou e que um novo conjunto de apropriadas respostas em termos de políticas públicas é necessário”. Hoje, as pessoas em todo o mundo reconheceram que o mundo dos anos 80 mudou e que é hora de uma nova abordagem na política. A questão central do nosso tempo é o que é que vem a seguir.

Sobre o autor

Ganesh Sitaraman é professor da Vanderbilt Law School e autor de The Great Democracy: How to Fix Our Politics, Unrig the Economy, and Unite America.

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