Há quarenta e cinco anos, sob o manto do sigilo, foi lançada oficialmente a Operação Condor: uma campanha global de repressão violenta contra a esquerda latino-americana pelas ditaduras militares quase fascistas da região. O governo dos Estados Unidos não apenas conhecia o programa - ajudou a projetá-lo.
Branko Marcetic
Jacobin
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Augusto Pinochet e Henry Kissinger em 1976. (Foto: Archivo General Histórico del Ministerio de Relaciones Exteriores) |
Tradução / Em Buenos Aires, um ex-general chileno volta à sua casa, abre a porta de sua garagem e é lançado ao ar quatro metros acima do chão
quando seu carro explode, incinerando sua esposa. Um opositor conservador da ditadura militar em seu país e sua esposa saem para caminhar numa tarde nas ruas de Roma e são rapidamente
abatidos por tiros. Em uma manhã de outono, um carro explode no meio da Embassy Row [região em que se encontram a maioria das embaixadas], em Washington, DC, matando dois dos três ocupantes: um líder da oposição chilena e seu amigo estadunidense recém-casado.
Estes são alguns dos mais notórios crimes de autoria da Operação Condor, oficialmente inaugurada cinquenta e cinco anos atrás. Com a América do Sul nas garras de ditaduras militares e agitada pelos mesmos tipos de movimentos sociais e políticos que reivindicavam mudanças em todo o mundo nos anos 1960 e 1970, alguns dos governos do continente pactuaram trabalhar em conjunto para conter a crescente onda de “subversivos” e “terroristas”.
O que se seguiu foi uma campanha global e secreta de violenta repressão que abarcou não só alguns países, mas continentes inteiros, que apresentava métodos variados – entre sequestros, tortura e assassinatos. Seria um eufemismo dizer que o governo dos EUA, o qual apoiava tais ditaduras, tinha apenas conhecimento da Operação: mesmo que tenham negado este simples fato na época, anos de investigações e documentos liberados desde então implicaram em um maior conhecimento de como a CIA e autoridades de alto-escalão dos EUA apoiaram, possibilitaram e estiveram diretamente envolvidas nos crimes da Operação Condor.
Em um panorama geral, a Operação Condor dificilmente foi o único exemplo particularmente chocante da paranóia anticomunista saindo fora de controle. Ao passo em que sua relação com o terror anticomunista ficou mais nítida, parece mais se tratar de um caso de sucesso desta guerra secreta que o estado de segurança nacional dos EUA havia colocado em curso ao redor do mundo, contra democracias e a esquerda, uma guerra que contava com relações de cunho fascista e que, em alguns casos, possivelmente constituiu genocídio. Era o sistema atuando exatamente para o que foi feito, em outras palavras, um forte lembrete da extensão do poder das potências voltado à manutenção da ordem.
Terceira guerra mundial
Em meados do século XX, a América Latina viveu o florescer de movimentos populares que ameaçavam abalar as rígidas hierarquias do hemisfério: movimentos feministas e de trabalhadores, movimentos pelos direitos indígenas, movimentos liderados por campesinos por reforma agrária e movimentos de esquerda, para citar alguns. Naturalmente, eles tinham de ser contidos.
Até então, as juntas dos regimes ditatoriais apoiadas por Washington conseguiram conter tais mudanças sociais, ou simplesmente derrubaram qualquer governo que esses movimentos conseguiram formar. Tais mudanças, afinal, ameaçavam diretamente não apenas o poder e os privilégios da elite histórica da região, como também interesses corporativos ocidentais. E foi assim, inclusive pelo
interesse de corporações dos EUA como a Chase, Anaconda Copper e Pepsi, que o
ex advogado corporativo e então presidente, Richard Nixon, apoiou o golpe militar contra o
governo democraticamente eleito de Salvador Allende, em 1973, e sua substituição por uma perversa ditadura sob o General Augusto Pinochet.
Mas para os paranóicos líderes da região, mesmo as campanhas internas de terror não eram o suficiente. Então, em 1975, os governos de Chile, Argentina, Bolívia e Paraguai, se encontraram secretamente em Santiago, Chile, e acordaram em trabalhar juntos para espionar e monitorar “indivíduos suspeitos” e organizações “direta ou indiretamente ligadas ao marxismo.” Em pouco tempo Brasil, Peru e Equador também aderiram ao plano. A iniciativa de coleta de informações foi nomeada “Condor”, em homenagem ao pássaro nacional de diversos países integrantes, incluindo o anfitrião.
Apesar do que diziam as atas, não se tratava de um pacto de vigilância qualquer. O que a Operação Condor significou, na prática, foi que a política estatal deliberada de sequestros, tortura e assassinatos contra dissidentes nestes países, agora avançaria para além das fronteiras nacionais. Se você fosse de esquerda ou qualquer um que o governo visse como ameaça, escapar, se exilar ou mesmo pedir asilo, não te salvaria mais. Não havia onde se esconder.
“A Argentina ainda era uma democracia na época, era um território seguro para muitas pessoas de esquerda que foram forçadas para fora de seus países no Cone Sul,” diz Remi Brulin, professor associado da Universidade de Nova York. “De repente, elas se deram conta de que não era mais seguro.”
Ainda que a Operação Condor oficialmente tenha durado apenas alguns anos, os governos da região colaboraram por muito tempo por vias menos formais para eliminar seus oponentes políticos. De acordo com a
Base de Dados de Violações de Diretos Humanos na América do Sul (“Database on South America’s Transnational Human Rights Violations”), entre 1969 e 1981, as operações interestatais fizeram pelo menos 793 vítimas de atrocidades, usando de sequestros e tortura até mesmo execuções diretas. Pelo menos metade delas foram no Uruguai, cerca de 1/4 na Argentina e 15% no Chile. Muitas dessas atrocidades ocorreram na Argentina, que vivenciou 544 casos, seguida pelo Uruguai, no distante segundo lugar, com 129 casos.
Como explicado em um
relatório de 1976, elaborado por Harry W. Shlaudeman, secretário assistente de Estado para questões Inter-americanas, autoridades sul-americanas como o ministro de Relações Exteriores do Uruguai, Juan Carlos Blanco Estradé (“um dos membros mais brilhantes e constantes do grupo”) se viam lutando uma “Terceira Guerra Mundial”, sendo “os países do cone sul o último bastião da civilização cristã.” Quando chegaram ao poder “na batalha contra a extrema esquerda,” afirmou, estes governos repressores tiveram “seus princípios, seus salários e seus orçamentos” inexoravelmente abrigados nesta concepção.
O resultado foi uma onda de crimes de embrulhar o estômago. A operação mais típica da Condor ocorria da seguinte maneira: a partir da identificação de um alvo, um time – composto por membros nacionais de um ou mais países integrantes, iria encontrar e vigiar o indivíduo alvo, até que um segundo time realizasse o sequestro, encaminhando os alvos para uma prisão secreta, algumas vezes no país em que foram encontrados, às vezes em outros lugares. Lá, estes indivíduos eram encarcerados e passavam por torturas, espancamento, simulação de afogamento, simulação de execuções, eletrocussões, estupros, e coisas piores, por meses a fio. Em alguns casos, membros da família também eram sequestrados e torturados, ou mesmo tendo suas famílias separadas, por nenhuma razão além de sadismo. De acordo com a base de dados, há pelo menos vinte e três casos de sequestro de filhos das vítimas, estes sendo entregues para seus assassinos para serem criados como se fossem seus.
Poucos sobreviveram e mais frequentemente do que raro, não se sabe o destino exato destes filhos sequestrados. Simplesmente
nunca mais se soube deles. Ocasionalmente, sobreviventes traziam notícias sobre desaparecidos, como testemunhas que lembraram do sociólogo,
Jorge Isaac Fuentes Alarcón, detido ao tentar cruzar a fronteira entre Argentina e Paraguai, acusado de ser um mensageiro para o grupo de extrema esquerda chileno, MIR. As histórias nunca eram bonitas. Estas testemunhas, posteriormente, afirmaram terem visto Fuentes chegar ao campo de execuções de Villa Grimaldi, em Santiago, coberto de sarna, uma vítima que teria se tornado colaboradora do regime,
se lembra de ele ser acorrentado à uma casa de cachorro cheia de parasitas, jocosamente referida como “pichicho” (cachorro de rua).
Ainda assim, tal testemunho também era sobre a resiliência do espírito humano e o senso de solidariedade que tecia a malha de união entre esses grupos de esquerda. Fuentes estava determinado,
disseram testemunhas e acalentava outros prisioneiros com suas canções. Um jovem prisioneiro lembra de como Patricio Biedma, outro membro detido do MIR, foi uma figura paternal para ele na prisão, o ensinando como sobreviver. A esposa de Biedma e seus três filhos nunca souberam o que aconteceu com seu amado.
Ainda que a Operação Condor visasse ostensivamente “guerrilheiros” e “marxistas”, os povos sul-americanos aprenderam cedo, e de forma brutal, aquilo que manifestantes estadunidenses e muçulmanos sem histórico criminal aprenderiam após o governo de Bush: tais termos são maleáveis e podem ser estendidos para que se refiram a qualquer pessoa.
“A Operação Condor perseguiu muitos tipos de oponentes políticos, como representantes legislativos, ex-ministros, defensores dos direitos humanos (inclusive da Anistia Internacional), oficiais militares defensores das constituções, líderes campesinos, sindicalistas, padres e freiras, professores e estudantes,” afirma J. Patrice McSherry, professora emérita de ciência política na Universidade de Long Island e autor de
Predatory States: Operation Condor and Covert War in Latin America (“Estados Predadores: A Operação Condor e A Guerra Secreta na América Latina”). “A Operação Condor não visava apenas a esquerda, perseguia também a centro-esquerda e outros setores democráticos que estavam na luta por demandas de direitos, para tornar mais inclusivas as democracias elitistas do período.”
“Primeiramente, o objetivo era deter o terrorismo,”
explicou um operador do Departamento de Inteligência Nacional (DINA), a temida polícia secreta chilena. “E então possíveis extremistas eram visados, posteriormente se perseguia aqueles que pudessem ser convertidos em extremistas.” Ou, nas palavras de um general argentino: “Primeiro vamos matar todos os subversivos; depois mataremos seus colaboradores; depois seus simpatizantes; e então aqueles que são indiferentes a eles.”
Apesar de se justificarem a partir da ameaça direta de violência por parte da esquerda, é difícil levar essa ameaça a sério. Os governos da Operação Condor não apenas estavam perseguindo indivíduos pacíficos ou sem conexão com quaisquer movimentos revolucionários, os quais muitos já haviam sido derrotados ou mesmo haviam desistido da resistência armada. Como Shlaudeman afirmou para Henry Kissinger em 1976: “tanto os terroristas quanto a esquerda pacífica fracassaram. Isso é verdade inclusive para os intelectuais revolucionários.” Fernando Lopez,
argumentou que os regimes “superestimaram grosseiramente a ameaça representada pelos movimentos revolucionários” para que pudessem ir atrás de seus verdadeiros alvos: a oposição em exílio, que atraía simpatia e solidariedade global, isolando os governos da Operação Condor no plano internacional.
Seus planos não se restringiam ao continente. Doze das vítimas das operações transfronteiriças eram de países de fora da região, incluindo Reino Unido, Itália, França e Estados Unidos, ao passo em que alguns dos alvos de alto-perfil foram assassinados em países europeus. A Operação Condor deixara de ser uma operação transnacional, tornando-se global. Enquanto oponentes moderados e de esquerda da ditadura de Pinochet tentavam buscar asilo diplomático, o ditador conspirava para apagá-los.
Agentes da DINA (a polícia secreta chilena) planejaram ataques em Portugal e na França e repetidamente tentaram assassinar Carlos Altamirano, secretário geral do Partido Socialista do Chile: uma vez no México, mas chegaram tarde demais; diversas vezes em Paris, frustradas pela inteligência francesa; e uma vez em Madri, quando a tentativa também não deu certo. Bernardo Leighton, o fundador do Partido Democrata Cristão do Chile, podia não ser um radical – ele se posicionava contra muito do programa de Allende – mas foi culpado de se encontrar com líderes socialistas para formar uma frente de oposição contra o regime. Ele sobreviveu a um tiro atrás de sua cabeça, em Roma, mas ficou com sequelas permanentes no cérebro, o que colocou um fim às suas atividades de oposição.
Ainda que Pinochet tenha tomado a liderança, os alvos não eram apenas chilenos. Em Londres, a Scotland Yard preveniu o assassinato do Senador uruguaio, Wilson Ferreira Aldunate, enquanto o então deputado (e mais tarde prefeito de Nova York) Edward Koch vinha sendo alertado pelo diretor da CIA no período, George H. W. Bush, que havia uma ameaça a sua vida, graças ao sucesso de sua emenda para interromper o auxílio militar dos EUA ao Uruguai. Em Buenos Aires, dois legisladores uruguaios e dois ativistas foram sequestrados logo cedo pela manhã, mais tarde foram encontrados com dois tiros na cabeça em um carro debaixo de uma ponte. Enquanto isso, como apontou o jornalista John Dinges, a onda de mortes aparentemente naturais de oponentes em exílio das diversas ditaduras pelo continente, levanta ainda mais suspeitas.
Talvez a vítima mais famosa da Operação Condor seja
Orlando Letelier, ex-embaixador do governo Allende nos EUA. Após ser detido e torturado pelo regime golpista instaurado, pressões diplomáticas permitiram que Letelier escapasse e eventualmente retornasse para Washington, DC, onde ele logo se tornou um dos membros mais proeminentes e influentes da oposição chilena a se exiliar. Instalado no coração do poder estadunidense e socializando com oficiais dos EUA e suas famílias, Letelier liderou uma campanha legislativa de sucesso para banir a venda de armas ao Chile, num lobby contra o investimento de U$63 milhões por uma empresa holandesa no país, além de criticar ferozmente as reformas de livre-mercado colocadas por Pinochet.
Tudo isso fez dele um homem marcado. Em 1976, entraram nos EUA dois agentes da DINA com passaportes do Uruguai, um membro parceiro da Operação Condor, e com a ajuda de dois anti-comunistas cubanos exilados, plantaram uma bomba no carro de Letelier, que detonou bem na Embassy Row de Washington, DC, matando ele e um de seus dois passageiros estadunidenses. Até 11 de setembro de 2001, se tratava do pior ataque estrangeiro de terrorismo em território dos EUA.
O trabalho sujo
Durante anos, a história oficial contava que o governo dos EUA descobriu sobre a Operação Condor aproximadamente ao mesmo tempo em que todos a descobriram, em 1976. Na realidade, a partir da liberação de documentos antes classificados como secretos, testemunhos de primeira mão e do trabalho de historiadores, hoje sabemos que este programa de terrorismo de Estado foi sancionado, facilitado e encorajado pelo governo dos EUA.
Ao contrário de suas alegações no período, um relatório da CIA, produzido para o Congresso em 2000 admite que “dentro de um ano após o golpe [no Chile em 1973], a CIA e outras agências do governo dos EUA tiveram conhecimento da cooperação bilateral entre os serviços de inteligência regional para monitoramento de atividades e, em algum casos, assassinato de oponentes políticos” – uma iniciativa “precursora” da Operação Condor. Considere também que, Manuel Contreras, o impiedoso diretor da DINA profundamente inserido na Operação, foi um
ativo da CIA (em determinado momento, inclusive remunerado) de 1974 até 1977, apesar de um relatório interno de 1975
tê-lo declarado “o principal obstáculo para uma política razoável de direitos humanos na junta.”
Por décadas, se especulou sobre o quão intencionalmente alienados estavam os segmentos do governo dos EUA na operação de Letelier, especificamente. Apesar de terem sido
repetidamente alertados sobre as tentativas de agentes da DINA de entrarem nos Estados Unidos, e de sua própria natureza suspeita, a CIA nada fez. Meros cinco dias antes do assassinato de Letelier, Kissinger mandou recuar
uma ordem que seria enviada a embaixadores norte americanos em alguns dos países membros da Operação Condor, para que expressassem a “profunda preocupação” do governo dos EUA acerca dos planos reportados de assassinatos no estrangeiro. Mais cedo naquele ano, Pinochet
reclamou pessoalmente com Kissinger acerca das atividades de Letelier, em uma conversa na qual Kissinger assegurou sua posição ao ditador, “somos simpáticos com o que você está tentando realizar.”
E pior, evidências descobertas por figuras como McSherry e Dinges sugerem que o governo dos EUA também não apenas sabia dos crimes da Operação Condor, mas também esteve diretamente envolvido neles.
Documentos arquivados mostram a CIA, o FBI e mesmo embaixadas norte-americanas fornecendo inteligência e nomes de suspeitos para os governos da Operação Condor, com ambos hemisférios investigando suspeitos em seus territórios, a pedido do outro. Isso incluía Fuentes, cujos resultados de seu interrogatório (incluindo nomes que ele forneceu) a embaixada dos EUA em Buenos Aires transmitiu para a polícia chilena. O próprio Contreras posteriormente insistiu, em tribunal e para a imprensa, que a CIA esteve envolvida em ambos os assassinatos de Letelier e de Carlos Prats (o ex-general chileno morto em uma explosão na Argentina, um ano antes da revelação da existência da Operação Condor) e que ele havia fornecido documentos como prova de suas afirmações ao FBI em 2000.
Há
fortes evidências de que autoridades dos EUA desempenharam um papel chave no assassinato de dois norte-americanos, o jornalista Charles Horman e o estudante Frank Teruggi, nos dias seguintes ao golpe, e que a inteligência dos EUA os vigiava. Um relatório elaborado pelo Senado em 1979, afirmou que já em 1974 a CIA alertava autoridades locais na França e Portugal sobre os próximos assassinatos da Condor, e discutiu com a DINA a criação de uma sede da Operação, em Miami – algo que fora rejeitado no período mas que aconteceu alguns anos depois, com os argentinos.
Posteriormente, McSherry encontrou ainda um novo documento condenatório, um telegrama do então embaixador dos EUA no Paraguai, de 1978. O
telegrama reportava que governos da Operação Condor “se mantinham em contato por meio de instalações de comunicação dos EUA na Zona do Canal do Panamá (“CONDORTEL”), as utilizando para “coordenar informações de inteligência entre países do Cone Sul.” Isso aconteceu apenas dois anos após Shlaudeman ter
informado Kissinger da “paranóia” dos governos sul-americanos, que cada vez mais perseguiam “dissidentes não violentos da esquerda e centro-esquerda” e “quase qualquer um que se oponha às políticas do governo,” e após a embaixada dos EUA na Argentina ter
alertado Kissinger de que forças de segurança argentinas, em colaboração com governos vizinhos, estavam envolvidas em “excessos” brutais … algo que frequentemente envolvia inocentes.”
Na verdade, era precisamente gente no topo, como Kissinger, que dava o aval para os planos dos governos da Operação Condor. Ao ser informado pelo novo ditador instalado no Brasil, Emílio Garrastazu Médici, acerca de sua disposição em colaborar com a derrubada do governo socialista eleito no Chile, em 1971, Nixon
ofereceu financiamento e auxílios para a iniciativa, respondendo a Médici que os dois governos precisavam trabalhar juntos para “prevenir novos Allendes e Castros, e onde for possível, reverter estas tendências.” Foi durante estas reuniões, de acordo com um
memorando posterior, que Nixon pediu à Médici por apoio “na proteção da segurança interna e do status quo no hemisfério,” o que um general entendeu como um pedido para que o Brasil fizesse “o trabalho sujo.”
O próprio Kissinger, de maneira infame,
disse ao ministro de relações exteriores da Argentina, em junho de 1976, entre repetidas afirmações de que o governo dos EUA desejava o sucesso da nova junta, que “se há coisas que devem ser feitas, vocês devem fazê-las rapidamente.”
Por trás do trono
Os métodos e estratégias empregadas pelos operadores da Condor têm suas raízes no treinamento dos EUA que militares latino-americanos receberam por meio de instituições como a notória
Escola das Américas (SOA, em inglês), cujo objetivo era repassar lições de combate e contra-insurgência que os militares dos EUA aprenderam em suas últimas décadas de envolvimento em conflitos. Seus “graduados” eventualmente
compunham um entre cada sete membros da equipe de comando da DINA, após aprender exatamente as coisas que em breve se tornaram causas de medo em seus países: assassinatos, extorsão, coerção contra membros familiares, manipulação psicológica, incluindo electrocussões, sabendo até mesmo quais nervos eram especialmente sensíveis para a aplicação de choques – para citar apenas algumas das lições.
O papel do governo dos EUA no nascimento da Operação Condor foi muito além de piscadelas e acenos diplomáticos.
Antes da Operação, os primeiros laboratórios para este treinamento foram Guatemala e Vietnã. A Guatemala viveu o assassinato de aproximadamente
200 mil pessoas entre o golpe de 1954 e 1996, muitas das vítimas daquilo que fora inicialmente um
programa de assassinatos e guerra paramilitar, liderado pelos EUA nos anos 1950 e, durante os anos 1960,
um programa de contra-insurgência que contava com bombardeios, sequestros, tortura e assassinatos de “comunistas e terroristas” – a primeira instância de desaparecimentos em massa na América Latina, com tudo
ensinado e facilitado pelas forças de segurança dos EUA.
Paralelamente, estava em curso no Vietnã o
Programa Phoenix, coordenado pela CIA, nas quais as forças dos EUA financiavam, dirigiam e supervisionavam uma campanha de assassinatos, terror e tortura, executado por Sul-Vietnamitas locais contra os Viet Cong e, especialmente, seus apoiadores civis. As atrocidades resultantes não impediram a experiência do Programa Phoenix de disponibilizar informações para manuais de treinamento de futuros operadores da Condor.
Além disso, os Estados Unidos também construíram os alicerces para a Operação Condor ao instigar e formalizar uma frente anti-comunista unificada entre poderosos militares latino-americanos. O governo dos EUA
alertava seus comandantes acerca da ameaça comunista desde pelo menos 1945, financiando, armando e logo depois realizando treinamentos. Isso se
intensificou após a Revolução Cubana de 1959, com o Presidente John F. Kennedy, formalizando a doutrina de defesa interna e desenvolvimento (IDAD), encorajando a repressão militar na região, e a Conferência de Exércitos Americanos (CAA) que acontecia anualmente desde 1960. Como enfatizado por um telegrama do departamento de estado dos EUA em 1971, “é especialmente desejável que tais países vizinhos como Argentina e Brasil colaborem efetivamente com as forças de segurança uruguaias e onde for possível devemos encorajar tal cooperação.”
Como a SOA e as redes de telecomunicações dos EUA, a CAA era parte da estrutura mais ampla de segurança nacional dos EUA no hemisfério, que eventualmente se tornou uma estrutura para a Condor. O estatuto da CAA definia como a missão de seus exércitos membros a “proteção do continente contra ações agressivas do Movimento da Internacional Comunista,” suas
reuniões iniciais envolviam muitas das marcas registradas da Condor: a luta contra “agressões comunistas”, compartilhamento de inteligência acerca de subversivos, e sistemas escolares, redes de telecomunicação e programas de treinamento com este propósito. Em uma reunião realizada em 1966, o ditador militar argentino
recomendou a criação de “um centro de inteligência coordenado entre Chile, Argentina, Uruguai e Paraguai,” sete anos depois, o comandante do exército brasileiro
sugeriu “estender a troca de informações” entre os integrantes para “lutar contra a subversão.”
Os Estados Unidos tomaram para si o papel de liderança na instituição de agências de espionagem nos regimes pós golpes, que forneciam os soldados em territórios da Operação Condor, incluindo a La Técnica do Paraguai, a SNI do Brasil e, é claro, a DINA no Chile. Contreras
posteriormente diria que oficiais da CIA enviados para fazer as honras, na verdade “queriam permanecer no Chile, encarregados dos principais postos na DINA,” uma ideia que Pinochet rejeitou.
Sancionado por suas forças de segurança e oficiais de alto-escalão, o envolvimento dos EUA por vezes suscitou objeções e até mesmo horror por parte das camadas mais baixas. A embaixada dos EUA na Argentina, alertou Kissinger, em 1976 que o “tipo de contra-violência” empregado pela ditadura do país “eventualmente poderia criar mais problemas do que resolveria” e que “muitos daqueles que apoiavam o gvrn [sic] eram alienados por sua tolerância aos excessos por parte das forças de segurança – frequentemente envolvendo inocentes.” O que reverberou na mais desavergonhada indignação de uma autoridade da embaixada da Guatemala, em 1968, que perguntou: “É aceitável que estejamos tão obcecados com a insurgência que estejamos prontos para conceber assassinatos como uma arma justificável de contra-insurgência?”
Quanto mais informações chegam ao nosso conhecimento, melhor conhecemos a profundidade da cumplicidade do governo dos EUA. A
revelação neste ano de que a empresa suíça de criptografia, Crypto AG, era secretamente um front da CIA que garantia à agência acesso às portas traseiras (ou “back doors”, que permitem acesso a dados desviando dos mecanismos de criptografia) de comunicações criptografadas dos governos que a utilizavam, sugere que o governo dos EUA muito provavelmente sabia em tempo real o que os membros da Operação Condor faziam. Os países da Condor, no fim das contas, construíram toda sua rede de comunicação em torno dos dispositivos da Crypto AG.
“Não há regras”
Que o governo dos EUA estivesse por trás de uma campanha secreta continental de políticas de terror e repressão, diz muito sobre a paranóia das elites nacionais, inflamadas pela ascensão ao poder da União Soviética e de movimentos que elas enxergavam como sendo manipulados por esse país. Como apresentado pelo
Relatório Doolittle, um estudo sobre as operações e eficácia da CIA de 1954, quando “em face de um inimigo implacável cujo objetivo declarado é a dominação global por quaisquer meios … não há regras nesse jogo,” as “normas aceitáveis de conduta humana não se aplicam,” e “conceitos históricos norte-americanos do que constitui ‘jogo limpo’ devem ser reconsiderados.”
Não é uma surpresa que os oficiais cobertos de sangue dos países da Operação Condor enxergassem espíritos semelhantes nos EUA. “A única coisa que nos separa são nossos uniformes, pois entre os homens dos exércitos da América, creio eu, nunca houve uma relação tão boa como temos neste momento,”
disse o comandante da junta uruguaia em uma reunião da CAA, em 1975. “Existe uma coordenação entre exércitos do continente para combater e impedir a infiltração marxista ou qualquer outra forma de subversão.”
Noam Chomsky,
apontou os paralelos entre o pensamento fascista e a “doutrina de segurança nacional” que levaram à ditaduras opressoras na América Latina, com sua crença na preeminência do Estado acima do indivíduo e de guerra permanente. No entanto, autoridades dos EUA também notaram esse paralelo. Como afirma Shlaudeman, as ditaduras latino-americanas eram dirigidas não só pelo anti-marxismo, bem como por uma ideologia de “desenvolvimentismo” nacionalista, na qual o establishment militar se associava com tecnocratas para gerarem industrialização.
“O nacional-desenvolvimentismo tem nítidos e importunos paralelos com o Nacional-Socialismo,” escreveu. “Os oponentes dos regimes militares os chamam de fascistas. É um pejorativo eficaz, ainda mais porque pode ser dito como um termo tecnicamente preciso.” O governo dos EUA se deitou com autoritários e ditadores e até mesmo fascistas declarados.
Estes paralelos eram assustadoramente nítidos no tratamento dos militares com dissidentes. Figuras como o fotógrafo
João de Carvalho Pina, e o historiador
Daniel Feierstein, denotaram que a sobrelotação, fome, torturas e o tratamento desumano generalizado de prisioneiros pelas ditaduras da Operação Condor, exibiam óbvias semelhanças com as condições dos campos de concentração nazistas.
Mas esses paralelos iam além de meras semelhanças. Os campos de concentração argentinos estavam inundados de nazismo: decorados com suásticas e retratos de Hitler, gravações de discursos nazistas tocando nas instalações, prisioneiros com suásticas desenhadas e obrigados a gritar “Heil Hitler,” e torturas especialmente sádicas reservadas para prisioneiros judeus. Oficiais nazistas que escaparam foram
bem-vindos pelas ditaduras militares na América Latina, incluindo o ex-líder da Gestapo em Lyon, Klaus Barbie. Procurado na França por crimes indescritíveis, Barbie se acomodou na Bolívia, ensinando técnicas de tortura e repressão para militares de todo continente, antes de eventualmente
ajudar a organizar o “Golpe da Cocaína” em 1980 e
se envolver na subsequente ditadura militar.
Ex-fascistas “se infiltraram em diversos setores da sociedade argentina,”
explicou Tomás Eloy Martínez, jornalista argentino. “Seria útil perguntar se é apenas uma coincidência que o uso de torturas alcançou altos níveis de sofisticação e crueldade. Devemos continuar nos perguntando se o surgimento de campos de concentração, valas coletivas e centenas de corpos flutuando nos rios argentinos após 1974 constitui ou não uma coincidência.”
Esta conexão com fascistas europeus, associa a Operação Condor com outra iniciativa continental, secreta e anti-comunista: o programa “stay-behind” (ficar para trás, em português), conduzido pela OTAN, na Europa, cuja ação mais famosa foi a Operação Gladio, na Itália. Assim como a Condor, os exércitos da stay-behind eram uma rede planejada e apoiada pelos EUA de paramilitares locais de direita, que seriam ativados em caso de invasão comunista ou mesmo no caso de uma simples vitória eleitoral; a qual, nesse meio tempo, realizou uma campanha de assassinatos, desestabilização e violência política generalizada em seus respectivos países. Também como a Operação Condor, empregava “ex”-fascistas e fascistas declarados, geralmente em aliança direta com as forças de segurança de alto-escalão destes países.
Há diversas conexões entre os dois programas. Antes de
auxiliar Barbie em sua fuga para a América Latina, o governo dos EUA o utilizou como um recrutador para a stay-behind na Europa. Oficiais da CIA como
Vernon Walters e
Duane Clarridge se envolveram pela primeira vez em operações da stay-behind na Eurasia, antes de supervisionar a repressão de direita ao sul da fronteira.
Foi a organização neofascista
ligada à Gladio, a Avanguardia Nazionale, contratada pela DINA, que executou o atentado fracassado contra a vida de Bernardo Leighton. Agentes da DINA e o próprio Pinochet, se conheceram antes do assassinato de seu líder, Stefano Delle Chiaie, que posteriormente
trabalhou para a DINA, e conforme
declarou, ajudou a criá-la, antes de
servir junto a Barbie no governo golpista da Bolívia. Delle Chiaie, também se encontrou pessoalmente com Pinochet, poucos dias antes do ditador formalizar a criação da Operação Condor, em pouco tempo chegando ao Chile para começar a trabalhar.
Particularmente notável foi o poderoso empresário fascista Licio Gelli (“Eu sou fascista e morrerei fascista,”
proclamou ele certa vez), grão-mestre da Propaganda Due (P-2), uma franquia italiana maçônica de extrema-direita, cujos membros estavam virtualmente em todos os segmentos do establishment italiano, incluindo o futuro primeiro ministro, Silvio Berlusconi. Gelli e a P-2 trabalharam em
estreita colaboração com a CIA e a rede Gladio, para manipular a política italiana, “cuidadosamente assegurando que o Partido Comunista nunca deveria surgir,” como ele explicou em 2008. Durante a década de 1970, ele e a franquia realizaram um
duplo serviço na Argentina, se inserindo nos mais altos níveis do empresariado nacional e do governo, com Gelli constituindo “um mobilizador fundamental no desenvolvimento da continuidade entre democracia e terrorismo de Estado durante o período de 1974 até 1981,” como escreveu o sociólogo Claudio Tognonato.
Em outras palavras, há mais do que uma mera insinuação de que “forças dos EUA transferiram o modelo da stay-behind para a América Latina” na forma de programas como a Operação Condor, como
argumentou McSherry. Conforme
revelado pelos documentos do Pentagon Papers (documentos secretos dos EUA acerca do planejamento interno para a Guerra do Vietnã), o governo dos EUA já havia feito isso em outro palco de operações durante a Guerra Fria, em 1956 no Vietnã, quando encarregou a uma unidade de forças especiais “a missão inicial de preparar organizações da stay-behind no Vietnã do Sul, logo abaixo do Paralelo 17 [a demarcação militar da partição do Vietnã], para uma guerra de guerrilha em caso de uma invasão direta pelas forças vietnamitas do norte.”
Mas as evidências sugerem algo ainda mais obscuro: um “acordo global anti-marxista,” nas palavras do testemunho em tribunal de Michael Townley, o agente da DINA por trás dos assassinatos de Prats, Leighton e Letelier.
Completando o ciclo
Apesar da Operação Condor ter se encerrado há muito tempo, sua linguagem e suas práticas ainda ecoam nos dias atuais.
De acordo com Brulin, foi com a ascensão de
Ronald Reagan em 1981 que o discurso político belicista acerca do terrorismo que sufocara os países da Operação Condor passou a infectar os Estados Unidos, com a retórica reaganista “anti-terror” inicialmente focada na América Central. Com o passar dos anos, seu espírito segue assombrando a política dos EUA, mesmo quando seu foco mudou para o Oriente Médio.
“Depois do 11 de setembro, tudo que os EUA vêm dizendo é algo que Reagan dizia sobre a América Central e do Sul nos anos 1980, e o que autoridades nacionais diziam para ditadores latino-americanos em 1950 e 1960,” diz Brulin. “Sempre baseados na mesma mentira: o quão forte é o inimigo e o que estamos fazendo a respeito dele, algo que, no mundo real, é o uso de esquadrões da morte.”
Obviamente, não era só discurso. É impossível falar sobre os detalhes da Operação Condor sem pensar na “Guerra ao Terror”, lançada por George W. Bush, quase vinte anos atrás.
“Testemunhamos como os EUA usaram forças anti-terroristas para sequestros, detenções em fronteiras, tortura, cativeiros secretos nos países, dentre outros recursos, todos aprovados pelas autoridades civis,” diz McSherry. “Todos estes métodos caracterizavam a Operação Condor.”
“Outras práticas ao estilo da Condor emergiram e seguem aparecendo há décadas deste então,” afirma Francesca Lessa, que pesquisa os crimes e a responsabilização da Operação Condor, na Universidade de Oxford. “Se você pensar nas práticas de rendição clandestina na Guerra ao Terror, por exemplo – elas possuem todas as marcas registradas do que era a Condor na América Latina décadas antes.”
Até mesmo a tortura empregada por operadores da Condor, como ameaças de morte ou estupro a entes queridos, prisioneiros em condições degradantes que forçavam total dependência dos captores, simulação de afogamento – em muitos casos, foram
exatamente as mesmas técnicas usadas por forças dos EUA contra acusados de terrorismo, e
ensinadas às forças latino-americanas por oficiais dos EUA décadas antes.”
Conforme progredia a “Guerra ao Terror”, vimos algumas das marcas registradas de operações da Condor, crescentemente utilizadas contra a população dos próprios EUA. Isso, particularmente, sob Donald Trump, o qual, por vezes, para o aplauso entusiasmado de políticos liberais, atacou repetidamente socialistas e outros inimigos domésticos, e mais recentemente
se engajou em um discurso familiar às vítimas da Operação Condor: a retórica da lei e ordem, a ameaça de proclamação dos dissidentes como terroristas, e a superestimação massiva do poder dos grupos que se opõe a ele. E algo talvez ainda mais alarmante, sequestros em vias públicas e outras táticas de contra-insurgência parecem agora ter se tornado elementos legítimos de aplicação da lei em território doméstico, sob sua presidência.
Ironicamente, isso aconteceu no mesmo período em que perpetradores da Operação Condor e seus governos integrantes crescentemente eram colocados perante à justiça, expondo ainda mais sobre seu funcionamento nesse processo. Ao passo em que a impunidade se mantinha firme no hemisfério até os anos 2000, campanhas e esforços legais por sobreviventes e famílias de vítimas mudaram o cenário, apoiados por um vasto rastro de documentos incriminadores – criado, ironicamente, pela própria natureza deste programa altamente organizado e transnacional.
De acordo com os dados compilados por Lessa em seu
projeto sobre a Operação Condor, desde a década de 1970, houve 44 investigações de crimes relacionados à Operação Condor em oito países diferentes, incluindo nações que não faziam parte da Condor, como Itália, França e também os EUA.
Vinte e oito destas investigações resultaram em pelo menos uma sentença inicial, diz Lessa, que já viu 118 réus condenados por seus crimes contra 213 vítimas. Entre estes, em 2018,
vinte agentes da DINA processados por atividades da Operação Condor; dezoito ex oficiais militares da Argentina a
condenados por sua participação na Operação Condor, em 2016; e o próprio Contreras, sentenciado a
526 anos de prisão, em 1995, que morreu em cárcere duas décadas depois. Segundo Lessa, atualmente há dois processos ocorrendo e doze investigações em fase de pré-julgamento.
Em um raro momento de justiça poética no mundo real, agora quem parece não ter onde se esconder são os perpetradores da Operação Condor. Anos de pressão por parte daqueles que buscam justiça ganharam um impulso a partir da prisão de Pinochet, e sua detenção por quase dois anos em Londres, cujo mandado de prisão se baseou parcialmente em um crime da Operação Condor. Isso
estabeleceu firmemente que indivíduos poderiam ser processados por crimes contra a humanidade, independente de onde estivessem, onde os crimes ocorreram ou qual a nacionalidade dos envolvidos. Apesar de escapar da extradição, isso
abriu as portas para seu indiciamento em 2004, no Chile, que por sua vez,
pavimentou o caminho para futuras tentativas de justiça retroativa por crimes da ditadura.
“O caso Pinochet, em 1998, de fato foi fundamental para estimular esforços de justiça internacional na América do Sul e além,” diz Lessa. “Mas se a demanda e os esforços de justiça anteriores não existissem, o caso de Pinochet poderia não ser o suficiente por si só.”
Isso reverberou para além do Chile. A prisão de Pinochet e a investigação de oficiais militares argentinos em tribunais estrangeiros levou a uma onda de novos casos e até mesmo a prisões e indiciamentos na Argentina, relacionado aos crimes da era Condor, levando à anulação das leis de anistia do país em 2003, por décadas usadas para proteger violadores de direitos humanos. Um ano depois, um tribunal argentino
declarou que o estatuto das limitações não se aplicava a crimes de direitos humanos, em um caso relativo ao assassinato de Carlos Prats, em 1974.
A repressão transnacional deu lugar à justiça sem fronteiras, ao que parece. O ano de 2019, sozinho, presenciou a
prisão de Adriana Rivas, na Austrália, ex-secretária de Contrera, e alegadamente uma das “mais brutais torturadoras” da DINA (sua extradição ao Chile foi aprovada
mês passado), e a
sentença de prisão perpétua, na Itália, de um ex-oficial naval uruguaio, devido seu papel na Operação Condor. A sentença mais recente ocorreu
há pouco tempo, quatro ex-funcionários de segurança argentinos condenados por diversos crimes, incluindo o sequestro e detenção de duas crianças, privadas de sua mãe como forma de torturá-la, posteriormente abandonadas em uma praça pública no Chile.
Enquanto isso, seguimos aprendendo mais sobre este programa uma vez tão secreto. Em 2019, o governo dos EUA liberou dezenas de milhares de páginas de arquivos classificados relacionados à ditadura argentina durante os anos da Condor. Entre as
revelações: em setembro de 1977, “representantes dos serviços de inteligência da Alemanha Ocidental, França e Inglaterra visitaram o secretariado da Operação Condor em Buenos Aires [...] para discutir os métodos da criação de uma organização anti-subversiva similar a Condor.”
Com veteranos franceses da brutal guerra contra-insurgente na Argélia e Vietnã tendo repassado seus próprios treinamentos e experiências para as contrapartes latino-americanas, talvez um dia iremos descobrir que o “acordo global anti-marxista” de que fizera parte a Condor, foi apenas uma fração de algo ainda mais amplo do que pensávamos.
Uma história reescrita
Como é sempre contada, a história do século XX é resumida mais ou menos assim: após uma breve luta para deter o fascismo, Estados Unidos e União Soviética tornaram o restante do século em uma batalha de ideologias, que sempre ameaçou irromper em uma guerra direta entre potências, mas que nunca ocorreu. Sem atirar uma única bala, o capitalismo de livre-mercado ganhou, graças aos corações e mentes vencidos pelo poder da televisão, hambúrgueres e eletrodomésticos convenientes.
Entretanto, programas como a Operação Condor lançam outra luz sobre essa história. Com eles em mente, aquele triunfo parece intensamente violento – um triunfo no qual o governo dos EUA rapidamente se aliou com autocratas e até mesmo fascistas, para atacar a democracia e destruir de maneira brutal movimentos populares de todos os tipos ao redor do mundo, já que seus objetivos de um mundo mais justo e igualitário ameaçavam a estratégia ocidental e os interesses das corporações. Além disso, com esse sistema econômico agora em ebulição sob o peso de diversas crises, as medidas repressivas reservadas para o resto do mundo estão se tornando mais visíveis no âmbito nacional, ao passo em que um agitado público nos Estados Unidos torna-se cada vez mais indisciplinado, em face da decadência de seus próprios padrões de vida.
É um episódio particularmente relevante para a era pós-Trump, em que agências como a CIA obtiveram sucesso em se passar por defensoras da democracia e de valores liberais contra o fascismo iminente. Nos lembra da mais crua e bem organizada brutalidade que se encontra por trás da ordem global que Trump e seus predecessores herdaram, uma brutalidade por vezes neo-fascista, arquitetada e liderada por essas mesmas agências para proteger o poder das elites e interesses corporativos.
Um temor bem fundado sobre o fascismo e a subversão da democracia se manterá uma parte fundamental do discurso político dos EUA, para muito além de Trump. Analisar o legado da Operação Condor deve nos incitar a pensar sobre quais instituições da vida estadunidense têm sido mais hostis à democracia e, sempre que necessário, têm se mostrado ávidas em se alinhar com fascistas. Mas é também um lembrete de que, em face da luta popular, mesmo esta violência tem um prazo de validade e que as impunidades não duram para sempre.
Sobre o autor
Branko Marcetic é escritor da redação da Jacobin e mora em Toronto, Canada.