30 de novembro de 2020

Diego Maradona era tudo

Diego Maradona era um gênio e um trapaceiro, gregário e desesperado, um mentiroso e um livro aberto. Os argentinos o amavam como nós amamos a nós mesmos: muito, não em tudo. E nós o odiamos como você só pode odiar alguém que realmente ama, alguém que lhe trouxe tanta alegria, tantas vezes, e depois a destruiu.

Marianela D'Aprile


Diego Maradona dando a sua famosa caneta na sua estreia no Argentinos Juniors x Talleres de Córdoba. Humberto Speranza / Wikimedia Commons

Minha primeira lembrança de Maradona foi sua ausência. Era a Copa do Mundo de 1998 e ele não estava na escalação.

Naqueles dias, como agora, a empresa italiana de colecionáveis ​​Panini e a FIFA publicaram a lista de todos os países nas páginas de um álbum de figurinhas. Crianças como eu juntaram moedas e pequenas notas para comprar pacotes de adesivos com rostos de jogadores e completar o conjunto. Claro, você esperava concluir o primeiro do seu próprio país. No meu álbum de figurinhas, olhei para os rostos dos jogadores argentinos - Verón, Simeone, Crespo, Zanetti, Batistuta - e sabia, simplesmente sabia, que esse time, e portanto meu álbum, não seria tão bom quanto ele poderia ter sido, de outra forma. Estava faltando um brilho.

Crescer na Argentina na década de 1990 significou balançar constantemente à beira de um precipício que você realmente não podia ver, mas tinha absoluta certeza de que estava lá. Houve a glória do uno a uno, os poucos anos em que o Currency Board atrelou o peso argentino ao dólar americano na tentativa de estabilizar a inflação e facilitar a participação no mercado de câmbio. Esse era um motivo estranho e específico de orgulho para alguns argentinos de classe média e trabalhadora, que buscavam constantemente um forte senso de identidade por meio da comparação: se nosso dinheiro valia tanto quanto o deles, éramos tão bons quanto eles.

Houve o influxo da cultura americana, especialmente para os argentinos em ascensão, que veio com essa política monetária específica: McDonald's, viagens à Disneylândia, moletons GAP, cabelo loiro tingido, VISA, plástico, linhas de crédito pessoal. Tudo estava ao alcance da mão, pronto para ser levado. E então, em 2001, a crise econômica, a queda repentina da noite, o grito de que se vayan todos nas ruas quando as pessoas perdiam tudo o que haviam economizado, quando a Argentina passava por cinco presidentes em onze dias, quando bancos pegavam fogo.

Se esse foi um dos cenários da minha infância na Argentina, outro foi Maradona. Ele, e as coisas que as pessoas diziam sobre ele - que ele era o melhor jogador de futebol do mundo, indiscutivelmente; que ele havia perdido o controle; que ele estava rodeado de abutres; que ele era arrogante; que ele era um pobre tipo sendo aproveitado; que ele teve sorte de ter sua esposa Claudia ao seu lado - segurou algum canto da tela da minha vida e da vida de um país inteiro.

Não precisávamos exatamente que ele nos lembrasse que a altura que você alcança é a distância que você pode cair, mas ele o fez. Ele ressuscitou a alma de um país após anos de uma ditadura militar brutal, derrotou os ingleses em campo quatro anos depois que a Grã-Bretanha derrotou a Argentina em Las Malvinas, uma guerra criminosa na qual jovens de 18 anos foram enviados para morrer para salvar a face do regime de direita do presidente argentino Leopoldo Galtieri. Ele também nos envergonhou meros oito anos depois, com um teste positivo para efedrina em um teste de doping aleatório durante a Copa do Mundo de 1994. Sem ele em campo, perdemos para a Romênia e voltamos para casa nas oitavos-de-final.

Maradona era tudo o que éramos, para o bem e para o mal, e tudo o que esperávamos ser. Exuberante, cheio de sentimento, astuto, implacável, excessivo, bem-sucedido, alegre, destruído. Ele era nosso herói, el Diez, el D10S, e também era el Diego, como um primo ou vizinho. Eu nasci tarde demais para ver seus dias de glória em campo, tarde demais para vê-lo jogar e me lembrar disso. Mas eu conhecia e sentia essa glória.

Eu sabia outras coisas também. Ele tinha a mesma idade da minha mãe. Suas duas filhas tinham mais ou menos a minha idade. Claudia, sua esposa, me lembrava minha tia Gabi. Alguns anos após o crash, minha família, como muitas famílias argentinas, deixou a Argentina. A empresa para a qual meu pai trabalhou durante toda a vida havia deixado o país e não tínhamos escolha a não ser segui-la. Viemos para os EUA. Na pequena cidade rural do Tennessee onde acabamos, os olhares de soslaio das pessoas para mim e sua falta de vontade de aprender meu nome me deixaram saber que eu não tinha nada em comum com meus novos vizinhos.

Ninguém que conheci sabia nada sobre de onde eu vim - exceto que às vezes alguém conhecia Maradona. E eles sabiam que ele era bom, talvez até o melhor. Se ele e eu viemos do mesmo lugar, pensei comigo mesmo, talvez eu não fosse tão ruim, afinal.

Pensei nele e em sua família paralelamente a mim e à minha, porque ele se entregou ao seu público de uma forma grandiosamente íntima. Ele sempre estivera lá, claro para todos verem, cada erro e cada consequência tão clara quanto cada vitória. Você não pode ser amado tanto, por tantas pessoas, e não desnudar sua alma. A descoberta aconteceu primeiro, para provocar o amor? Ou o amor despiu Maradona?

De qualquer forma, ele cometeu todos os erros e todas as recuperações aos olhos do público e continuou em frente, porque se lançar à vida era a única coisa que sabia fazer. Ele renasceu dentro e fora do campo. Ele nunca se deixou levar por isso - tanto glórias quanto erros. Em entrevistas pós-jogo, você pode vê-lo celebrando a si mesmo tantas vezes quanto você pode vê-lo se criticando.

Em 1996, jogando novamente no Boca Juniors, ele perdeu um pênalti e fez um incrível gol de um toque, dando um balão em uma bola arremessada no mesmo jogo. Na entrevista que se seguiu à partida, sua avaliação de si mesmo foi implacável: “Eu entendo que qualquer um pode cometer um erro, mas duas penalidades perdidas seguidas - eu não perdoo isso. Eu não me perdoo por isso. Mesmo que eu também tenha marcado um belo gol, não me perdoo por isso.” Mas nunca é autoflagelação. É olhar a verdade bem nos olhos e dizer: Vou aprender com ela.

Claro, Diego também mentia. Ele não reconheceu seu primeiro filho, Diego Armando Junior, até 2016. Ele escondeu - primeiro bem, depois mal, e depois não - um vício em cocaína perigoso até que tudo desabou em sua cabeça. Ele foi julgado em Nápoles por porte de cocaína com a intenção de distribuir (ele frequentemente dava cocaína para as trabalhadoras do sexo que contratava), se declarou culpado e se esquivou do que poderia ter sido uma sentença de prisão de vinte anos. Quase duas décadas depois, ele finalmente contaria a verdade sobre seu vício em cocaína, embora nunca tivesse sido um segredo.

Na televisão ao vivo, ele chorava e perdia as palavras, descrevendo como sua família tentou ajudá-lo a lutar contra o vício, como eles só queriam vê-lo bem. Não era emoção fingida; era só ele. Como você pode não amá-lo? Como não sentir por aquele homem que aos quinze anos começou a carregar nos ombros o peso da identidade de todo um país - o legislador de Buenos Aires do Partido Obrero Gabriel Solano disse em uma homenagem que Maradona costumava fazer pelos argentinos o que seu próprio governo se recusava a fazer - e nunca mais parou?

E ao mesmo tempo, como você poderia não odiá-lo? Odeio por aquela Copa do Mundo de 1994. Odeio por estragar seu próprio legado ao marcar com a mão. Odeio por ser o macho estereotipado, usando e abusando de mulheres. Odeie-o por não nos dar um ídolo simples e limpo para adorar, mas uma versão de um deus grego de um herói, cheio de falhas humanas e talentos sobrenaturais em igual medida.

Ele era tudo. Um gênio e um trapaceiro, gregário e desesperado, um mentiroso e um livro aberto. Os argentinos o amavam como nós amamos a nós mesmos (muito, não em aboluto), e nós o odiamos porque você só pode odiar alguém que realmente ama, alguém que lhe trouxe tanta alegria, tantas vezes, e depois a destruiu.

E agora, finalmente, ele realmente se foi. Sua ausência veio para ficar. Seu legado é de implacabilidade; de cair e se levantar, literal e figurativamente (em campo, sua técnica de queda era perfeita); de uma rebelião violentamente enérgica que trouxe tantas perdas quanto vitórias. Ele foi um ícone não só para os argentinos, mas para quem se reconhece naquele garoto operário, e para todos nós que buscamos coragem para enfrentar a verdade: que a beleza da vitória significa uma vida de luta.

Sobre a autora

Marianela D'Aprile é uma escritora de Chicago. Ela é um membro do Democratic Socialists of America’s National Political Committee.

Chris Killip: fotógrafo da classe trabalhadora

Chris Killip, que faleceu no mês passado, capturou as comunidades do Norte na linha de frente da resistência ao thatcherismo - e deu a suas lutas um rosto humano.

Rachel Collett



Enraizado na observação aguda e na imersão íntima nas comunidades que fotografou, o trabalho de Chris Killip capturou o impacto doloroso da desindustrialização, registrando a vida de pessoas comuns em detalhes nítidos, mas poéticos. Essas imagens em preto e branco são reconhecidas como alguns dos registros visuais mais importantes da Grã-Bretanha dos anos 1980 e, como Gerry Badger descreveu, "foram tiradas de um ponto de vista oposto a tudo que [Thatcher] representava".


Killip nasceu na Ilha de Man em 1946, deixando a escola aos 16 anos e fotografando as praias da ilha em seu tempo livre. Em 1964 começou a trabalhar como assistente de fotografia comercial em Londres, antes de decidir desenvolver a sua prática pessoal como fotógrafo documental. No início dos anos 1970, Killip trabalhou no pub de seu pai durante a noite e começou a capturar o desaparecimento do modo de vida tradicional na Ilha de Man durante o dia. Foi essa experiência que deu o tom para sua abordagem de trabalho continuamente imersiva e sua escolha da comunidade como tema.


Galvanizado pela greve dos mineiros de 1974, Killip mudou-se para Newcastle em 1975, embarcando em um projeto prolongado para fotografar o povo do Nordeste e sua paisagem industrial em declínio. As imagens em preto e branco resultantes, em sua maioria feitas em filme 4 × 5, são expressões pungentes de sua raiva pela destruição de suas comunidades de mineração, pesca e construção naval: crianças de Tyneside brincando na rua enquanto um navio superpetroleiro assoma ao fundo, fileiras de condomínios abandonados emoldurados por chaminés de gás de combustão, um jovem skinhead agachado em desespero contra uma parede.


Embora muitas vezes considerados sombrios, elas ofereciam, como Martin Parr refletiu, 'um tipo diferente de foto documental ao que estávamos acostumados na Grã-Bretanha... elas escaparam da interpretação caprichosa da vida da classe trabalhadora e mostraram um ponto de vista direto, mais subjetivo, livre de sentimento e nostalgia” Para Killip, isso significava capturar um instantâneo verdadeiro da vida de seus retratados - da classe trabalhadora lutando para sobreviver ao doloroso processo de desindustrialização - sem reduzi-los a metáforas políticas vazias. Como Clive Dilnot argumentou, o trabalho de Killip se concentrou em "pontos localizados de revelação": comunidades pequenas o suficiente para que Killip pudesse formar relacionamentos pessoais com seus retratados.

Em Lynemouth, Northumberland, Killip viveu 14 meses em uma caravana na praia entre 1983 e 1984. Aqui, depois de inicialmente ser tratado com suspeita por moradores locais, ele tentou estabelecer um vínculo profundo de confiança com a pequena comunidade indigente construída em torno da busca precária de colher carvão trazido para a costa. Ultrapassando os limites da reportagem usual, os relacionamentos que ele construiu permitiram-lhe criar retratos íntimos que refletiam a dignidade e a luta pungente de seus retratados e evocavam humores conflitantes.


A imagem de uma menina brincando com um bambolê na praia cheia de detritos é, a princípio, um retrato da inocência e do devaneio. No entanto, após uma reflexão mais aprofundada, seu ângulo chocante e pano de fundo austero consegue expressar a sensação de que uma força implacável e não identificável determinou a vida individual retratada (ao lado de muitas outras vidas jovens que Killip fotografou no Nordeste).


O foco sustentado de Killip nesta corajosa fotografia documental em preto e branco até a década de 1980 indica seu compromisso com as tendências historicamente políticas desta forma de arte. Em uma época em que fotógrafos como Martin Parr usavam cores vibrantes para capturar o individualismo emergente da próspera classe média britânica, Killip permaneceu dedicado a expor a situação da classe trabalhadora em um estilo de fotografia cada vez mais fora de moda. A incompatibilidade entre sua fotografia documental e um mundo da arte que recompensou a irreverência de Jeff Koons (e mais tarde, dos Young British Artists), refletiu a marginalização das comunidades industriais da classe trabalhadora e do movimento trabalhista, à medida que a sociedade se reestruturava em torno de valores neoliberais.

Embora Killip tenha rejeitado a sugestão de que suas fotos personificassem a Grã-Bretanha de Thatcher (apontando que na verdade foram tiradas por quatro primeiros-ministros diferentes), elas se tornaram expressões visuais icônicas da destruição das vidas da classe trabalhadora, comunidades e indústrias que definiram o neoliberalismo. Quer pretendesse fazer essa leitura ou não, Killip estava ciente do poder da fotografia como uma ferramenta política com a qual documentar e comentar um período de desintegração industrial, econômica e social.


O senso de urgência evidente em suas imagens reflete esse desejo de dar agência aos mais afetados pelas forças históricas. Identificando suas fotos In Flagrante como "história das pessoas", Killip demonstrou que seu trabalho não apenas registrava a vida das pessoas, mas permitia que suas histórias fossem valorizadas, contextualizadas e imortalizadas. Embora essas fotos não pudessem trazer mudanças políticas ou sociais por conta própria, elas encorajaram - e continuam a - encorajar uma compreensão da desindustrialização do Norte, o desaparecimento de certos tipos de trabalho e "as pessoas a quem a história aconteceu".


Em última análise, suas imagens de dor e estoicismo em face de um governo conservador vicioso falam às comunidades da classe trabalhadora hoje. Assim como os lugares capturados por Killip se opuseram ao thatcherismo na década de 1980 - da greve dos mineiros à rebelião de limite de taxas - o Norte está mais uma vez se afirmando em resistência ao tratamento incompetente do governo da Covid e o retorno inevitável da austeridade. Andy Burnham, como prefeito de Manchester, descobriu uma forma de radicalismo no governo local que o aludiu em Westminster, seu discurso agora viral condenando a falta de apoio financeiro ao Norte ecoando a própria condenação de Killip do "sistema que considera as vidas [da classe trabalhadora do Norte] como descartáveis".


Em um momento em que a República do Norte está se tornando um objetivo político cada vez menos irônico, o trabalho de Killip não apenas articula lindamente a alienação política e econômica do Norte, mas também captura historicamente como esses desejos de autonomia e independência já existem há muito tempoo. O que precisamos, agora mais do que nunca, é tirar lições de seu compromisso intransigente com a comunidade local como base para realinhar e restabelecer vínculos com as classes trabalhadoras do Norte.

Existe, fundamentalmente, um duplo poder em seu trabalho: ele nos lembra da importância do lugar e da comunidade na promoção de solidariedades dentro da esquerda e na resistência às forças do capitalismo, mas também do papel da arte em dar agência ao movimento operário. Ao manter a conexão da fotografia com a história e a política, podemos registrar de forma semelhante a situação das comunidades hoje, tornando suas vidas significativas ao representar com veracidade a experiência atual da classe trabalhadora. As fotos de Killip pertencem a um determinado tempo e lugar, mas suas evocações de classe, luta e resiliência têm uma ressonância atemporal que deve ser lembrada.

Sobre o autor

Rachel Collett é assistente de galeria e pós-graduada em história da arte na Universidade de Oxford.

A guerra secreta global da CIA contra a esquerda

Há quarenta e cinco anos, sob o manto do sigilo, foi lançada oficialmente a Operação Condor: uma campanha global de repressão violenta contra a esquerda latino-americana pelas ditaduras militares quase fascistas da região. O governo dos Estados Unidos não apenas conhecia o programa - ajudou a projetá-lo.

Branko Marcetic

Jacobin

Augusto Pinochet e Henry Kissinger em 1976. (Foto: Archivo General Histórico del Ministerio de Relaciones Exteriores)

Tradução / Em Buenos Aires, um ex-general chileno volta à sua casa, abre a porta de sua garagem e é lançado ao ar quatro metros acima do chão quando seu carro explode, incinerando sua esposa. Um opositor conservador da ditadura militar em seu país e sua esposa saem para caminhar numa tarde nas ruas de Roma e são rapidamente abatidos por tiros. Em uma manhã de outono, um carro explode no meio da Embassy Row [região em que se encontram a maioria das embaixadas], em Washington, DC, matando dois dos três ocupantes: um líder da oposição chilena e seu amigo estadunidense recém-casado.

Estes são alguns dos mais notórios crimes de autoria da Operação Condor, oficialmente inaugurada cinquenta e cinco anos atrás. Com a América do Sul nas garras de ditaduras militares e agitada pelos mesmos tipos de movimentos sociais e políticos que reivindicavam mudanças em todo o mundo nos anos 1960 e 1970, alguns dos governos do continente pactuaram trabalhar em conjunto para conter a crescente onda de “subversivos” e “terroristas”.

O que se seguiu foi uma campanha global e secreta de violenta repressão que abarcou não só alguns países, mas continentes inteiros, que apresentava métodos variados – entre sequestros, tortura e assassinatos. Seria um eufemismo dizer que o governo dos EUA, o qual apoiava tais ditaduras, tinha apenas conhecimento da Operação: mesmo que tenham negado este simples fato na época, anos de investigações e documentos liberados desde então implicaram em um maior conhecimento de como a CIA e autoridades de alto-escalão dos EUA apoiaram, possibilitaram e estiveram diretamente envolvidas nos crimes da Operação Condor.

Em um panorama geral, a Operação Condor dificilmente foi o único exemplo particularmente chocante da paranóia anticomunista saindo fora de controle. Ao passo em que sua relação com o terror anticomunista ficou mais nítida, parece mais se tratar de um caso de sucesso desta guerra secreta que o estado de segurança nacional dos EUA havia colocado em curso ao redor do mundo, contra democracias e a esquerda, uma guerra que contava com relações de cunho fascista e que, em alguns casos, possivelmente constituiu genocídio. Era o sistema atuando exatamente para o que foi feito, em outras palavras, um forte lembrete da extensão do poder das potências voltado à manutenção da ordem.

Terceira guerra mundial

Em meados do século XX, a América Latina viveu o florescer de movimentos populares que ameaçavam abalar as rígidas hierarquias do hemisfério: movimentos feministas e de trabalhadores, movimentos pelos direitos indígenas, movimentos liderados por campesinos por reforma agrária e movimentos de esquerda, para citar alguns. Naturalmente, eles tinham de ser contidos.

Até então, as juntas dos regimes ditatoriais apoiadas por Washington conseguiram conter tais mudanças sociais, ou simplesmente derrubaram qualquer governo que esses movimentos conseguiram formar. Tais mudanças, afinal, ameaçavam diretamente não apenas o poder e os privilégios da elite histórica da região, como também interesses corporativos ocidentais. E foi assim, inclusive pelo interesse de corporações dos EUA como a Chase, Anaconda Copper e Pepsi, que o ex advogado corporativo e então presidente, Richard Nixon, apoiou o golpe militar contra o governo democraticamente eleito de Salvador Allende, em 1973, e sua substituição por uma perversa ditadura sob o General Augusto Pinochet.

Mas para os paranóicos líderes da região, mesmo as campanhas internas de terror não eram o suficiente. Então, em 1975, os governos de Chile, Argentina, Bolívia e Paraguai, se encontraram secretamente em Santiago, Chile, e acordaram em trabalhar juntos para espionar e monitorar “indivíduos suspeitos” e organizações “direta ou indiretamente ligadas ao marxismo.” Em pouco tempo Brasil, Peru e Equador também aderiram ao plano. A iniciativa de coleta de informações foi nomeada “Condor”, em homenagem ao pássaro nacional de diversos países integrantes, incluindo o anfitrião.

Apesar do que diziam as atas, não se tratava de um pacto de vigilância qualquer. O que a Operação Condor significou, na prática, foi que a política estatal deliberada de sequestros, tortura e assassinatos contra dissidentes nestes países, agora avançaria para além das fronteiras nacionais. Se você fosse de esquerda ou qualquer um que o governo visse como ameaça, escapar, se exilar ou mesmo pedir asilo, não te salvaria mais. Não havia onde se esconder.

“A Argentina ainda era uma democracia na época, era um território seguro para muitas pessoas de esquerda que foram forçadas para fora de seus países no Cone Sul,” diz Remi Brulin, professor associado da Universidade de Nova York. “De repente, elas se deram conta de que não era mais seguro.”

Ainda que a Operação Condor oficialmente tenha durado apenas alguns anos, os governos da região colaboraram por muito tempo por vias menos formais para eliminar seus oponentes políticos. De acordo com a Base de Dados de Violações de Diretos Humanos na América do Sul (“Database on South America’s Transnational Human Rights Violations”), entre 1969 e 1981, as operações interestatais fizeram pelo menos 793 vítimas de atrocidades, usando de sequestros e tortura até mesmo execuções diretas. Pelo menos metade delas foram no Uruguai, cerca de 1/4 na Argentina e 15% no Chile. Muitas dessas atrocidades ocorreram na Argentina, que vivenciou 544 casos, seguida pelo Uruguai, no distante segundo lugar, com 129 casos.

Como explicado em um relatório de 1976, elaborado por Harry W. Shlaudeman, secretário assistente de Estado para questões Inter-americanas, autoridades sul-americanas como o ministro de Relações Exteriores do Uruguai, Juan Carlos Blanco Estradé (“um dos membros mais brilhantes e constantes do grupo”) se viam lutando uma “Terceira Guerra Mundial”, sendo “os países do cone sul o último bastião da civilização cristã.” Quando chegaram ao poder “na batalha contra a extrema esquerda,” afirmou, estes governos repressores tiveram “seus princípios, seus salários e seus orçamentos” inexoravelmente abrigados nesta concepção.

O resultado foi uma onda de crimes de embrulhar o estômago. A operação mais típica da Condor ocorria da seguinte maneira: a partir da identificação de um alvo, um time – composto por membros nacionais de um ou mais países integrantes, iria encontrar e vigiar o indivíduo alvo, até que um segundo time realizasse o sequestro, encaminhando os alvos para uma prisão secreta, algumas vezes no país em que foram encontrados, às vezes em outros lugares. Lá, estes indivíduos eram encarcerados e passavam por torturas, espancamento, simulação de afogamento, simulação de execuções, eletrocussões, estupros, e coisas piores, por meses a fio. Em alguns casos, membros da família também eram sequestrados e torturados, ou mesmo tendo suas famílias separadas, por nenhuma razão além de sadismo. De acordo com a base de dados, há pelo menos vinte e três casos de sequestro de filhos das vítimas, estes sendo entregues para seus assassinos para serem criados como se fossem seus.

Poucos sobreviveram e mais frequentemente do que raro, não se sabe o destino exato destes filhos sequestrados. Simplesmente nunca mais se soube deles. Ocasionalmente, sobreviventes traziam notícias sobre desaparecidos, como testemunhas que lembraram do sociólogo, Jorge Isaac Fuentes Alarcón, detido ao tentar cruzar a fronteira entre Argentina e Paraguai, acusado de ser um mensageiro para o grupo de extrema esquerda chileno, MIR. As histórias nunca eram bonitas. Estas testemunhas, posteriormente, afirmaram terem visto Fuentes chegar ao campo de execuções de Villa Grimaldi, em Santiago, coberto de sarna, uma vítima que teria se tornado colaboradora do regime, se lembra de ele ser acorrentado à uma casa de cachorro cheia de parasitas, jocosamente referida como “pichicho” (cachorro de rua).

Ainda assim, tal testemunho também era sobre a resiliência do espírito humano e o senso de solidariedade que tecia a malha de união entre esses grupos de esquerda. Fuentes estava determinado, disseram testemunhas e acalentava outros prisioneiros com suas canções. Um jovem prisioneiro lembra de como Patricio Biedma, outro membro detido do MIR, foi uma figura paternal para ele na prisão, o ensinando como sobreviver. A esposa de Biedma e seus três filhos nunca souberam o que aconteceu com seu amado.

Ainda que a Operação Condor visasse ostensivamente “guerrilheiros” e “marxistas”, os povos sul-americanos aprenderam cedo, e de forma brutal, aquilo que manifestantes estadunidenses e muçulmanos sem histórico criminal aprenderiam após o governo de Bush: tais termos são maleáveis e podem ser estendidos para que se refiram a qualquer pessoa.

“A Operação Condor perseguiu muitos tipos de oponentes políticos, como representantes legislativos, ex-ministros, defensores dos direitos humanos (inclusive da Anistia Internacional), oficiais militares defensores das constituções, líderes campesinos, sindicalistas, padres e freiras, professores e estudantes,” afirma J. Patrice McSherry, professora emérita de ciência política na Universidade de Long Island e autor de Predatory States: Operation Condor and Covert War in Latin America (“Estados Predadores: A Operação Condor e A Guerra Secreta na América Latina”). “A Operação Condor não visava apenas a esquerda, perseguia também a centro-esquerda e outros setores democráticos que estavam na luta por demandas de direitos, para tornar mais inclusivas as democracias elitistas do período.”

“Primeiramente, o objetivo era deter o terrorismo,” explicou um operador do Departamento de Inteligência Nacional (DINA), a temida polícia secreta chilena. “E então possíveis extremistas eram visados, posteriormente se perseguia aqueles que pudessem ser convertidos em extremistas.” Ou, nas palavras de um general argentino: “Primeiro vamos matar todos os subversivos; depois mataremos seus colaboradores; depois seus simpatizantes; e então aqueles que são indiferentes a eles.”

Apesar de se justificarem a partir da ameaça direta de violência por parte da esquerda, é difícil levar essa ameaça a sério. Os governos da Operação Condor não apenas estavam perseguindo indivíduos pacíficos ou sem conexão com quaisquer movimentos revolucionários, os quais muitos já haviam sido derrotados ou mesmo haviam desistido da resistência armada. Como Shlaudeman afirmou para Henry Kissinger em 1976: “tanto os terroristas quanto a esquerda pacífica fracassaram. Isso é verdade inclusive para os intelectuais revolucionários.” Fernando Lopez, argumentou que os regimes “superestimaram grosseiramente a ameaça representada pelos movimentos revolucionários” para que pudessem ir atrás de seus verdadeiros alvos: a oposição em exílio, que atraía simpatia e solidariedade global, isolando os governos da Operação Condor no plano internacional.

Seus planos não se restringiam ao continente. Doze das vítimas das operações transfronteiriças eram de países de fora da região, incluindo Reino Unido, Itália, França e Estados Unidos, ao passo em que alguns dos alvos de alto-perfil foram assassinados em países europeus. A Operação Condor deixara de ser uma operação transnacional, tornando-se global. Enquanto oponentes moderados e de esquerda da ditadura de Pinochet tentavam buscar asilo diplomático, o ditador conspirava para apagá-los.

Agentes da DINA (a polícia secreta chilena) planejaram ataques em Portugal e na França e repetidamente tentaram assassinar Carlos Altamirano, secretário geral do Partido Socialista do Chile: uma vez no México, mas chegaram tarde demais; diversas vezes em Paris, frustradas pela inteligência francesa; e uma vez em Madri, quando a tentativa também não deu certo. Bernardo Leighton, o fundador do Partido Democrata Cristão do Chile, podia não ser um radical – ele se posicionava contra muito do programa de Allende – mas foi culpado de se encontrar com líderes socialistas para formar uma frente de oposição contra o regime. Ele sobreviveu a um tiro atrás de sua cabeça, em Roma, mas ficou com sequelas permanentes no cérebro, o que colocou um fim às suas atividades de oposição.

Ainda que Pinochet tenha tomado a liderança, os alvos não eram apenas chilenos. Em Londres, a Scotland Yard preveniu o assassinato do Senador uruguaio, Wilson Ferreira Aldunate, enquanto o então deputado (e mais tarde prefeito de Nova York) Edward Koch vinha sendo alertado pelo diretor da CIA no período, George H. W. Bush, que havia uma ameaça a sua vida, graças ao sucesso de sua emenda para interromper o auxílio militar dos EUA ao Uruguai. Em Buenos Aires, dois legisladores uruguaios e dois ativistas foram sequestrados logo cedo pela manhã, mais tarde foram encontrados com dois tiros na cabeça em um carro debaixo de uma ponte. Enquanto isso, como apontou o jornalista John Dinges, a onda de mortes aparentemente naturais de oponentes em exílio das diversas ditaduras pelo continente, levanta ainda mais suspeitas.

Talvez a vítima mais famosa da Operação Condor seja Orlando Letelier, ex-embaixador do governo Allende nos EUA. Após ser detido e torturado pelo regime golpista instaurado, pressões diplomáticas permitiram que Letelier escapasse e eventualmente retornasse para Washington, DC, onde ele logo se tornou um dos membros mais proeminentes e influentes da oposição chilena a se exiliar. Instalado no coração do poder estadunidense e socializando com oficiais dos EUA e suas famílias, Letelier liderou uma campanha legislativa de sucesso para banir a venda de armas ao Chile, num lobby contra o investimento de U$63 milhões por uma empresa holandesa no país, além de criticar ferozmente as reformas de livre-mercado colocadas por Pinochet.

Tudo isso fez dele um homem marcado. Em 1976, entraram nos EUA dois agentes da DINA com passaportes do Uruguai, um membro parceiro da Operação Condor, e com a ajuda de dois anti-comunistas cubanos exilados, plantaram uma bomba no carro de Letelier, que detonou bem na Embassy Row de Washington, DC, matando ele e um de seus dois passageiros estadunidenses. Até 11 de setembro de 2001, se tratava do pior ataque estrangeiro de terrorismo em território dos EUA.

O trabalho sujo

Durante anos, a história oficial contava que o governo dos EUA descobriu sobre a Operação Condor aproximadamente ao mesmo tempo em que todos a descobriram, em 1976. Na realidade, a partir da liberação de documentos antes classificados como secretos, testemunhos de primeira mão e do trabalho de historiadores, hoje sabemos que este programa de terrorismo de Estado foi sancionado, facilitado e encorajado pelo governo dos EUA.

Ao contrário de suas alegações no período, um relatório da CIA, produzido para o Congresso em 2000 admite que “dentro de um ano após o golpe [no Chile em 1973], a CIA e outras agências do governo dos EUA tiveram conhecimento da cooperação bilateral entre os serviços de inteligência regional para monitoramento de atividades e, em algum casos, assassinato de oponentes políticos” – uma iniciativa “precursora” da Operação Condor. Considere também que, Manuel Contreras, o impiedoso diretor da DINA profundamente inserido na Operação, foi um ativo da CIA (em determinado momento, inclusive remunerado) de 1974 até 1977, apesar de um relatório interno de 1975 tê-lo declarado “o principal obstáculo para uma política razoável de direitos humanos na junta.”

Por décadas, se especulou sobre o quão intencionalmente alienados estavam os segmentos do governo dos EUA na operação de Letelier, especificamente. Apesar de terem sido repetidamente alertados sobre as tentativas de agentes da DINA de entrarem nos Estados Unidos, e de sua própria natureza suspeita, a CIA nada fez. Meros cinco dias antes do assassinato de Letelier, Kissinger mandou recuar uma ordem que seria enviada a embaixadores norte americanos em alguns dos países membros da Operação Condor, para que expressassem a “profunda preocupação” do governo dos EUA acerca dos planos reportados de assassinatos no estrangeiro. Mais cedo naquele ano, Pinochet reclamou pessoalmente com Kissinger acerca das atividades de Letelier, em uma conversa na qual Kissinger assegurou sua posição ao ditador, “somos simpáticos com o que você está tentando realizar.”

E pior, evidências descobertas por figuras como McSherry e Dinges sugerem que o governo dos EUA também não apenas sabia dos crimes da Operação Condor, mas também esteve diretamente envolvido neles.

Documentos arquivados mostram a CIA, o FBI e mesmo embaixadas norte-americanas fornecendo inteligência e nomes de suspeitos para os governos da Operação Condor, com ambos hemisférios investigando suspeitos em seus territórios, a pedido do outro. Isso incluía Fuentes, cujos resultados de seu interrogatório (incluindo nomes que ele forneceu) a embaixada dos EUA em Buenos Aires transmitiu para a polícia chilena. O próprio Contreras posteriormente insistiu, em tribunal e para a imprensa, que a CIA esteve envolvida em ambos os assassinatos de Letelier e de Carlos Prats (o ex-general chileno morto em uma explosão na Argentina, um ano antes da revelação da existência da Operação Condor) e que ele havia fornecido documentos como prova de suas afirmações ao FBI em 2000.

fortes evidências de que autoridades dos EUA desempenharam um papel chave no assassinato de dois norte-americanos, o jornalista Charles Horman e o estudante Frank Teruggi, nos dias seguintes ao golpe, e que a inteligência dos EUA os vigiava. Um relatório elaborado pelo Senado em 1979, afirmou que já em 1974 a CIA alertava autoridades locais na França e Portugal sobre os próximos assassinatos da Condor, e discutiu com a DINA a criação de uma sede da Operação, em Miami – algo que fora rejeitado no período mas que aconteceu alguns anos depois, com os argentinos.

Posteriormente, McSherry encontrou ainda um novo documento condenatório, um telegrama do então embaixador dos EUA no Paraguai, de 1978. O telegrama reportava que governos da Operação Condor “se mantinham em contato por meio de instalações de comunicação dos EUA na Zona do Canal do Panamá (“CONDORTEL”), as utilizando para “coordenar informações de inteligência entre países do Cone Sul.” Isso aconteceu apenas dois anos após Shlaudeman ter informado Kissinger da “paranóia” dos governos sul-americanos, que cada vez mais perseguiam “dissidentes não violentos da esquerda e centro-esquerda” e “quase qualquer um que se oponha às políticas do governo,” e após a embaixada dos EUA na Argentina ter alertado Kissinger de que forças de segurança argentinas, em colaboração com governos vizinhos, estavam envolvidas em “excessos” brutais … algo que frequentemente envolvia inocentes.”

Na verdade, era precisamente gente no topo, como Kissinger, que dava o aval para os planos dos governos da Operação Condor. Ao ser informado pelo novo ditador instalado no Brasil, Emílio Garrastazu Médici, acerca de sua disposição em colaborar com a derrubada do governo socialista eleito no Chile, em 1971, Nixon ofereceu financiamento e auxílios para a iniciativa, respondendo a Médici que os dois governos precisavam trabalhar juntos para “prevenir novos Allendes e Castros, e onde for possível, reverter estas tendências.” Foi durante estas reuniões, de acordo com um memorando posterior, que Nixon pediu à Médici por apoio “na proteção da segurança interna e do status quo no hemisfério,” o que um general entendeu como um pedido para que o Brasil fizesse “o trabalho sujo.”

O próprio Kissinger, de maneira infame, disse ao ministro de relações exteriores da Argentina, em junho de 1976, entre repetidas afirmações de que o governo dos EUA desejava o sucesso da nova junta, que “se há coisas que devem ser feitas, vocês devem fazê-las rapidamente.”

Por trás do trono

Os métodos e estratégias empregadas pelos operadores da Condor têm suas raízes no treinamento dos EUA que militares latino-americanos receberam por meio de instituições como a notória Escola das Américas (SOA, em inglês), cujo objetivo era repassar lições de combate e contra-insurgência que os militares dos EUA aprenderam em suas últimas décadas de envolvimento em conflitos. Seus “graduados” eventualmente compunham um entre cada sete membros da equipe de comando da DINA, após aprender exatamente as coisas que em breve se tornaram causas de medo em seus países: assassinatos, extorsão, coerção contra membros familiares, manipulação psicológica, incluindo electrocussões, sabendo até mesmo quais nervos eram especialmente sensíveis para a aplicação de choques – para citar apenas algumas das lições.

O papel do governo dos EUA no nascimento da Operação Condor foi muito além de piscadelas e acenos diplomáticos.

Antes da Operação, os primeiros laboratórios para este treinamento foram Guatemala e Vietnã. A Guatemala viveu o assassinato de aproximadamente 200 mil pessoas entre o golpe de 1954 e 1996, muitas das vítimas daquilo que fora inicialmente um programa de assassinatos e guerra paramilitar, liderado pelos EUA nos anos 1950 e, durante os anos 1960, um programa de contra-insurgência que contava com bombardeios, sequestros, tortura e assassinatos de “comunistas e terroristas” – a primeira instância de desaparecimentos em massa na América Latina, com tudo ensinado e facilitado pelas forças de segurança dos EUA.

Paralelamente, estava em curso no Vietnã o Programa Phoenix, coordenado pela CIA, nas quais as forças dos EUA financiavam, dirigiam e supervisionavam uma campanha de assassinatos, terror e tortura, executado por Sul-Vietnamitas locais contra os Viet Cong e, especialmente, seus apoiadores civis. As atrocidades resultantes não impediram a experiência do Programa Phoenix de disponibilizar informações para manuais de treinamento de futuros operadores da Condor.

Além disso, os Estados Unidos também construíram os alicerces para a Operação Condor ao instigar e formalizar uma frente anti-comunista unificada entre poderosos militares latino-americanos. O governo dos EUA alertava seus comandantes acerca da ameaça comunista desde pelo menos 1945, financiando, armando e logo depois realizando treinamentos. Isso se intensificou após a Revolução Cubana de 1959, com o Presidente John F. Kennedy, formalizando a doutrina de defesa interna e desenvolvimento (IDAD), encorajando a repressão militar na região, e a Conferência de Exércitos Americanos (CAA) que acontecia anualmente desde 1960. Como enfatizado por um telegrama do departamento de estado dos EUA em 1971, “é especialmente desejável que tais países vizinhos como Argentina e Brasil colaborem efetivamente com as forças de segurança uruguaias e onde for possível devemos encorajar tal cooperação.”

Como a SOA e as redes de telecomunicações dos EUA, a CAA era parte da estrutura mais ampla de segurança nacional dos EUA no hemisfério, que eventualmente se tornou uma estrutura para a Condor. O estatuto da CAA definia como a missão de seus exércitos membros a “proteção do continente contra ações agressivas do Movimento da Internacional Comunista,” suas reuniões iniciais envolviam muitas das marcas registradas da Condor: a luta contra “agressões comunistas”, compartilhamento de inteligência acerca de subversivos, e sistemas escolares, redes de telecomunicação e programas de treinamento com este propósito. Em uma reunião realizada em 1966, o ditador militar argentino recomendou a criação de “um centro de inteligência coordenado entre Chile, Argentina, Uruguai e Paraguai,” sete anos depois, o comandante do exército brasileiro sugeriu “estender a troca de informações” entre os integrantes para “lutar contra a subversão.”

Os Estados Unidos tomaram para si o papel de liderança na instituição de agências de espionagem nos regimes pós golpes, que forneciam os soldados em territórios da Operação Condor, incluindo a La Técnica do Paraguai, a SNI do Brasil e, é claro, a DINA no Chile. Contreras posteriormente diria que oficiais da CIA enviados para fazer as honras, na verdade “queriam permanecer no Chile, encarregados dos principais postos na DINA,” uma ideia que Pinochet rejeitou.

Sancionado por suas forças de segurança e oficiais de alto-escalão, o envolvimento dos EUA por vezes suscitou objeções e até mesmo horror por parte das camadas mais baixas. A embaixada dos EUA na Argentina, alertou Kissinger, em 1976 que o “tipo de contra-violência” empregado pela ditadura do país “eventualmente poderia criar mais problemas do que resolveria” e que “muitos daqueles que apoiavam o gvrn [sic] eram alienados por sua tolerância aos excessos por parte das forças de segurança – frequentemente envolvendo inocentes.” O que reverberou na mais desavergonhada indignação de uma autoridade da embaixada da Guatemala, em 1968, que perguntou: “É aceitável que estejamos tão obcecados com a insurgência que estejamos prontos para conceber assassinatos como uma arma justificável de contra-insurgência?”

Quanto mais informações chegam ao nosso conhecimento, melhor conhecemos a profundidade da cumplicidade do governo dos EUA. A revelação neste ano de que a empresa suíça de criptografia, Crypto AG, era secretamente um front da CIA que garantia à agência acesso às portas traseiras (ou “back doors”, que permitem acesso a dados desviando dos mecanismos de criptografia) de comunicações criptografadas dos governos que a utilizavam, sugere que o governo dos EUA muito provavelmente sabia em tempo real o que os membros da Operação Condor faziam. Os países da Condor, no fim das contas, construíram toda sua rede de comunicação em torno dos dispositivos da Crypto AG.

“Não há regras”

Que o governo dos EUA estivesse por trás de uma campanha secreta continental de políticas de terror e repressão, diz muito sobre a paranóia das elites nacionais, inflamadas pela ascensão ao poder da União Soviética e de movimentos que elas enxergavam como sendo manipulados por esse país. Como apresentado pelo Relatório Doolittle, um estudo sobre as operações e eficácia da CIA de 1954, quando “em face de um inimigo implacável cujo objetivo declarado é a dominação global por quaisquer meios … não há regras nesse jogo,” as “normas aceitáveis de conduta humana não se aplicam,” e “conceitos históricos norte-americanos do que constitui ‘jogo limpo’ devem ser reconsiderados.”

Não é uma surpresa que os oficiais cobertos de sangue dos países da Operação Condor enxergassem espíritos semelhantes nos EUA. “A única coisa que nos separa são nossos uniformes, pois entre os homens dos exércitos da América, creio eu, nunca houve uma relação tão boa como temos neste momento,” disse o comandante da junta uruguaia em uma reunião da CAA, em 1975. “Existe uma coordenação entre exércitos do continente para combater e impedir a infiltração marxista ou qualquer outra forma de subversão.”

Noam Chomsky, apontou os paralelos entre o pensamento fascista e a “doutrina de segurança nacional” que levaram à ditaduras opressoras na América Latina, com sua crença na preeminência do Estado acima do indivíduo e de guerra permanente. No entanto, autoridades dos EUA também notaram esse paralelo. Como afirma Shlaudeman, as ditaduras latino-americanas eram dirigidas não só pelo anti-marxismo, bem como por uma ideologia de “desenvolvimentismo” nacionalista, na qual o establishment militar se associava com tecnocratas para gerarem industrialização.

“O nacional-desenvolvimentismo tem nítidos e importunos paralelos com o Nacional-Socialismo,” escreveu. “Os oponentes dos regimes militares os chamam de fascistas. É um pejorativo eficaz, ainda mais porque pode ser dito como um termo tecnicamente preciso.” O governo dos EUA se deitou com autoritários e ditadores e até mesmo fascistas declarados.

Estes paralelos eram assustadoramente nítidos no tratamento dos militares com dissidentes. Figuras como o fotógrafo João de Carvalho Pina, e o historiador Daniel Feierstein, denotaram que a sobrelotação, fome, torturas e o tratamento desumano generalizado de prisioneiros pelas ditaduras da Operação Condor, exibiam óbvias semelhanças com as condições dos campos de concentração nazistas.

Mas esses paralelos iam além de meras semelhanças. Os campos de concentração argentinos estavam inundados de nazismo: decorados com suásticas e retratos de Hitler, gravações de discursos nazistas tocando nas instalações, prisioneiros com suásticas desenhadas e obrigados a gritar “Heil Hitler,” e torturas especialmente sádicas reservadas para prisioneiros judeus. Oficiais nazistas que escaparam foram bem-vindos pelas ditaduras militares na América Latina, incluindo o ex-líder da Gestapo em Lyon, Klaus Barbie. Procurado na França por crimes indescritíveis, Barbie se acomodou na Bolívia, ensinando técnicas de tortura e repressão para militares de todo continente, antes de eventualmente ajudar a organizar o “Golpe da Cocaína” em 1980 e se envolver na subsequente ditadura militar.

Ex-fascistas “se infiltraram em diversos setores da sociedade argentina,” explicou Tomás Eloy Martínez, jornalista argentino. “Seria útil perguntar se é apenas uma coincidência que o uso de torturas alcançou altos níveis de sofisticação e crueldade. Devemos continuar nos perguntando se o surgimento de campos de concentração, valas coletivas e centenas de corpos flutuando nos rios argentinos após 1974 constitui ou não uma coincidência.”

Esta conexão com fascistas europeus, associa a Operação Condor com outra iniciativa continental, secreta e anti-comunista: o programa “stay-behind” (ficar para trás, em português), conduzido pela OTAN, na Europa, cuja ação mais famosa foi a Operação Gladio, na Itália. Assim como a Condor, os exércitos da stay-behind eram uma rede planejada e apoiada pelos EUA de paramilitares locais de direita, que seriam ativados em caso de invasão comunista ou mesmo no caso de uma simples vitória eleitoral; a qual, nesse meio tempo, realizou uma campanha de assassinatos, desestabilização e violência política generalizada em seus respectivos países. Também como a Operação Condor, empregava “ex”-fascistas e fascistas declarados, geralmente em aliança direta com as forças de segurança de alto-escalão destes países.

Há diversas conexões entre os dois programas. Antes de auxiliar Barbie em sua fuga para a América Latina, o governo dos EUA o utilizou como um recrutador para a stay-behind na Europa. Oficiais da CIA como Vernon Walters e Duane Clarridge se envolveram pela primeira vez em operações da stay-behind na Eurasia, antes de supervisionar a repressão de direita ao sul da fronteira.

Foi a organização neofascista ligada à Gladio, a Avanguardia Nazionale, contratada pela DINA, que executou o atentado fracassado contra a vida de Bernardo Leighton. Agentes da DINA e o próprio Pinochet, se conheceram antes do assassinato de seu líder, Stefano Delle Chiaie, que posteriormente trabalhou para a DINA, e conforme declarou, ajudou a criá-la, antes de servir junto a Barbie no governo golpista da Bolívia. Delle Chiaie, também se encontrou pessoalmente com Pinochet, poucos dias antes do ditador formalizar a criação da Operação Condor, em pouco tempo chegando ao Chile para começar a trabalhar.

Particularmente notável foi o poderoso empresário fascista Licio Gelli (“Eu sou fascista e morrerei fascista,” proclamou ele certa vez), grão-mestre da Propaganda Due (P-2), uma franquia italiana maçônica de extrema-direita, cujos membros estavam virtualmente em todos os segmentos do establishment italiano, incluindo o futuro primeiro ministro, Silvio Berlusconi. Gelli e a P-2 trabalharam em estreita colaboração com a CIA e a rede Gladio, para manipular a política italiana, “cuidadosamente assegurando que o Partido Comunista nunca deveria surgir,” como ele explicou em 2008. Durante a década de 1970, ele e a franquia realizaram um duplo serviço na Argentina, se inserindo nos mais altos níveis do empresariado nacional e do governo, com Gelli constituindo “um mobilizador fundamental no desenvolvimento da continuidade entre democracia e terrorismo de Estado durante o período de 1974 até 1981,” como escreveu o sociólogo Claudio Tognonato.

Em outras palavras, há mais do que uma mera insinuação de que “forças dos EUA transferiram o modelo da stay-behind para a América Latina” na forma de programas como a Operação Condor, como argumentou McSherry. Conforme revelado pelos documentos do Pentagon Papers (documentos secretos dos EUA acerca do planejamento interno para a Guerra do Vietnã), o governo dos EUA já havia feito isso em outro palco de operações durante a Guerra Fria, em 1956 no Vietnã, quando encarregou a uma unidade de forças especiais “a missão inicial de preparar organizações da stay-behind no Vietnã do Sul, logo abaixo do Paralelo 17 [a demarcação militar da partição do Vietnã], para uma guerra de guerrilha em caso de uma invasão direta pelas forças vietnamitas do norte.”

Mas as evidências sugerem algo ainda mais obscuro: um “acordo global anti-marxista,” nas palavras do testemunho em tribunal de Michael Townley, o agente da DINA por trás dos assassinatos de Prats, Leighton e Letelier.

Completando o ciclo

Apesar da Operação Condor ter se encerrado há muito tempo, sua linguagem e suas práticas ainda ecoam nos dias atuais.

De acordo com Brulin, foi com a ascensão de Ronald Reagan em 1981 que o discurso político belicista acerca do terrorismo que sufocara os países da Operação Condor passou a infectar os Estados Unidos, com a retórica reaganista “anti-terror” inicialmente focada na América Central. Com o passar dos anos, seu espírito segue assombrando a política dos EUA, mesmo quando seu foco mudou para o Oriente Médio.

“Depois do 11 de setembro, tudo que os EUA vêm dizendo é algo que Reagan dizia sobre a América Central e do Sul nos anos 1980, e o que autoridades nacionais diziam para ditadores latino-americanos em 1950 e 1960,” diz Brulin. “Sempre baseados na mesma mentira: o quão forte é o inimigo e o que estamos fazendo a respeito dele, algo que, no mundo real, é o uso de esquadrões da morte.”

Obviamente, não era só discurso. É impossível falar sobre os detalhes da Operação Condor sem pensar na “Guerra ao Terror”, lançada por George W. Bush, quase vinte anos atrás.

“Testemunhamos como os EUA usaram forças anti-terroristas para sequestros, detenções em fronteiras, tortura, cativeiros secretos nos países, dentre outros recursos, todos aprovados pelas autoridades civis,” diz McSherry. “Todos estes métodos caracterizavam a Operação Condor.”

“Outras práticas ao estilo da Condor emergiram e seguem aparecendo há décadas deste então,” afirma Francesca Lessa, que pesquisa os crimes e a responsabilização da Operação Condor, na Universidade de Oxford. “Se você pensar nas práticas de rendição clandestina na Guerra ao Terror, por exemplo – elas possuem todas as marcas registradas do que era a Condor na América Latina décadas antes.”

Até mesmo a tortura empregada por operadores da Condor, como ameaças de morte ou estupro a entes queridos, prisioneiros em condições degradantes que forçavam total dependência dos captores, simulação de afogamento – em muitos casos, foram exatamente as mesmas técnicas usadas por forças dos EUA contra acusados de terrorismo, e ensinadas às forças latino-americanas por oficiais dos EUA décadas antes.”

Conforme progredia a “Guerra ao Terror”, vimos algumas das marcas registradas de operações da Condor, crescentemente utilizadas contra a população dos próprios EUA. Isso, particularmente, sob Donald Trump, o qual, por vezes, para o aplauso entusiasmado de políticos liberais, atacou repetidamente socialistas e outros inimigos domésticos, e mais recentemente se engajou em um discurso familiar às vítimas da Operação Condor: a retórica da lei e ordem, a ameaça de proclamação dos dissidentes como terroristas, e a superestimação massiva do poder dos grupos que se opõe a ele. E algo talvez ainda mais alarmante, sequestros em vias públicas e outras táticas de contra-insurgência parecem agora ter se tornado elementos legítimos de aplicação da lei em território doméstico, sob sua presidência.

Ironicamente, isso aconteceu no mesmo período em que perpetradores da Operação Condor e seus governos integrantes crescentemente eram colocados perante à justiça, expondo ainda mais sobre seu funcionamento nesse processo. Ao passo em que a impunidade se mantinha firme no hemisfério até os anos 2000, campanhas e esforços legais por sobreviventes e famílias de vítimas mudaram o cenário, apoiados por um vasto rastro de documentos incriminadores – criado, ironicamente, pela própria natureza deste programa altamente organizado e transnacional.

De acordo com os dados compilados por Lessa em seu projeto sobre a Operação Condor, desde a década de 1970, houve 44 investigações de crimes relacionados à Operação Condor em oito países diferentes, incluindo nações que não faziam parte da Condor, como Itália, França e também os EUA.

Vinte e oito destas investigações resultaram em pelo menos uma sentença inicial, diz Lessa, que já viu 118 réus condenados por seus crimes contra 213 vítimas. Entre estes, em 2018, vinte agentes da DINA processados por atividades da Operação Condor; dezoito ex oficiais militares da Argentina a condenados por sua participação na Operação Condor, em 2016; e o próprio Contreras, sentenciado a 526 anos de prisão, em 1995, que morreu em cárcere duas décadas depois. Segundo Lessa, atualmente há dois processos ocorrendo e doze investigações em fase de pré-julgamento.

Em um raro momento de justiça poética no mundo real, agora quem parece não ter onde se esconder são os perpetradores da Operação Condor. Anos de pressão por parte daqueles que buscam justiça ganharam um impulso a partir da prisão de Pinochet, e sua detenção por quase dois anos em Londres, cujo mandado de prisão se baseou parcialmente em um crime da Operação Condor. Isso estabeleceu firmemente que indivíduos poderiam ser processados por crimes contra a humanidade, independente de onde estivessem, onde os crimes ocorreram ou qual a nacionalidade dos envolvidos. Apesar de escapar da extradição, isso abriu as portas para seu indiciamento em 2004, no Chile, que por sua vez, pavimentou o caminho para futuras tentativas de justiça retroativa por crimes da ditadura.

“O caso Pinochet, em 1998, de fato foi fundamental para estimular esforços de justiça internacional na América do Sul e além,” diz Lessa. “Mas se a demanda e os esforços de justiça anteriores não existissem, o caso de Pinochet poderia não ser o suficiente por si só.”

Isso reverberou para além do Chile. A prisão de Pinochet e a investigação de oficiais militares argentinos em tribunais estrangeiros levou a uma onda de novos casos e até mesmo a prisões e indiciamentos na Argentina, relacionado aos crimes da era Condor, levando à anulação das leis de anistia do país em 2003, por décadas usadas para proteger violadores de direitos humanos. Um ano depois, um tribunal argentino declarou que o estatuto das limitações não se aplicava a crimes de direitos humanos, em um caso relativo ao assassinato de Carlos Prats, em 1974.

A repressão transnacional deu lugar à justiça sem fronteiras, ao que parece. O ano de 2019, sozinho, presenciou a prisão de Adriana Rivas, na Austrália, ex-secretária de Contrera, e alegadamente uma das “mais brutais torturadoras” da DINA (sua extradição ao Chile foi aprovada mês passado), e a sentença de prisão perpétua, na Itália, de um ex-oficial naval uruguaio, devido seu papel na Operação Condor. A sentença mais recente ocorreu há pouco tempo, quatro ex-funcionários de segurança argentinos condenados por diversos crimes, incluindo o sequestro e detenção de duas crianças, privadas de sua mãe como forma de torturá-la, posteriormente abandonadas em uma praça pública no Chile.

Enquanto isso, seguimos aprendendo mais sobre este programa uma vez tão secreto. Em 2019, o governo dos EUA liberou dezenas de milhares de páginas de arquivos classificados relacionados à ditadura argentina durante os anos da Condor. Entre as revelações: em setembro de 1977, “representantes dos serviços de inteligência da Alemanha Ocidental, França e Inglaterra visitaram o secretariado da Operação Condor em Buenos Aires [...] para discutir os métodos da criação de uma organização anti-subversiva similar a Condor.”

Com veteranos franceses da brutal guerra contra-insurgente na Argélia e Vietnã tendo repassado seus próprios treinamentos e experiências para as contrapartes latino-americanas, talvez um dia iremos descobrir que o “acordo global anti-marxista” de que fizera parte a Condor, foi apenas uma fração de algo ainda mais amplo do que pensávamos.

Uma história reescrita

Como é sempre contada, a história do século XX é resumida mais ou menos assim: após uma breve luta para deter o fascismo, Estados Unidos e União Soviética tornaram o restante do século em uma batalha de ideologias, que sempre ameaçou irromper em uma guerra direta entre potências, mas que nunca ocorreu. Sem atirar uma única bala, o capitalismo de livre-mercado ganhou, graças aos corações e mentes vencidos pelo poder da televisão, hambúrgueres e eletrodomésticos convenientes.

Entretanto, programas como a Operação Condor lançam outra luz sobre essa história. Com eles em mente, aquele triunfo parece intensamente violento – um triunfo no qual o governo dos EUA rapidamente se aliou com autocratas e até mesmo fascistas, para atacar a democracia e destruir de maneira brutal movimentos populares de todos os tipos ao redor do mundo, já que seus objetivos de um mundo mais justo e igualitário ameaçavam a estratégia ocidental e os interesses das corporações. Além disso, com esse sistema econômico agora em ebulição sob o peso de diversas crises, as medidas repressivas reservadas para o resto do mundo estão se tornando mais visíveis no âmbito nacional, ao passo em que um agitado público nos Estados Unidos torna-se cada vez mais indisciplinado, em face da decadência de seus próprios padrões de vida.

É um episódio particularmente relevante para a era pós-Trump, em que agências como a CIA obtiveram sucesso em se passar por defensoras da democracia e de valores liberais contra o fascismo iminente. Nos lembra da mais crua e bem organizada brutalidade que se encontra por trás da ordem global que Trump e seus predecessores herdaram, uma brutalidade por vezes neo-fascista, arquitetada e liderada por essas mesmas agências para proteger o poder das elites e interesses corporativos.

Um temor bem fundado sobre o fascismo e a subversão da democracia se manterá uma parte fundamental do discurso político dos EUA, para muito além de Trump. Analisar o legado da Operação Condor deve nos incitar a pensar sobre quais instituições da vida estadunidense têm sido mais hostis à democracia e, sempre que necessário, têm se mostrado ávidas em se alinhar com fascistas. Mas é também um lembrete de que, em face da luta popular, mesmo esta violência tem um prazo de validade e que as impunidades não duram para sempre.

Sobre o autor

Branko Marcetic é escritor da redação da Jacobin e mora em Toronto, Canada.

29 de novembro de 2020

Literatura e Cinema entre o Segundo e o Terceiro Mundo

Selim Nadi


O antigo prédio da Progress Publishers, que já imprimiu mais de 2.000 títulos em 72 idiomas por ano. Após a sua privatização no início dos anos 1990, os restantes livros e documentação da editora foram queimados no pátio pelos “seguranças” dos novos “donos” enquanto os editores viam anos de trabalho a desaparecer na fogueira.

Nota dos editores do LeftEast: uma versão resumida da entrevista de Selim Nadi com Rossen Djagalov foi publicada na Jacobin.

Poderia haver um Terceiro Mundo sem o “Segundo”? Certamente, poderia ter havido - mas teria parecido muito diferente. A maioria das histórias desses blocos geopolíticos e de suas sociedades e culturas constituintes são escritas em sua relação com o Ocidente. No entanto, a interdependência do Segundo e do Terceiro Mundos é evidente não apenas por uma nomenclatura comum, mas também por seu desaparecimento quase simultâneo por volta de 1990.

O livro From Internationalism to Postcolonialism: Literature and Cinema between the Second and the Third Worlds (McGill-Queens University Press, 2020) de Rossen Djagalov aborda este ponto cego histórico, recontando a história de duas formações culturais da era da Guerra Fria que afirmavam representar o Terceiro Projeto mundial em literatura e cinema: a Afro-Asian Writers Association (1958-1991) e o Tashkent Festival for African, Asian, and Latin American Film (1968-1988). A inclusão de escritores e cineastas do Cáucaso soviético e da Ásia Central, bem como amplo apoio soviético, alinhou essas organizações com o internacionalismo soviético.

Essas alianças culturais entre o Segundo e o Terceiro Mundo nunca alcançaram seu objetivo declarado - a independência literária e cinematográfica do Ocidente dessas sociedades do Ocidente. Mas eles forjaram o que Ngũgĩ wa Thiong’o chamou de "os elos que nos unem", ao longo dos quais autores, textos e filmes pós-coloniais canônicos puderam circular pelo mundo não ocidental até o fim da Guerra Fria. No processo desta reconstrução histórica, From Internationalism to Postcolonialism inverte a relação tradicional entre os estudos soviéticos e pós-coloniais: em vez de estudar a experiência (pós-) soviética através das lentes da teoria pós-colonial, ele documenta as múltiplas maneiras em que essa teoria e e sua produção literária e cinematográfica concomitante foi moldada pela experiência soviética.

Selim Nadi

Em seu livro, você está interessado na interdependência cultural entre o Terceiro Mundo e o estado soviético. Como você se interessou por tal assunto? Qual é a situação da pesquisa acadêmica neste campo?

Meu interesse pelo tema nasceu dos arquivos soviéticos, onde estava fazendo minha pesquisa para dissertação sobre um tema relacionado. O que aconteceu foi que autores pós-coloniais canônicos, como Ngũgĩ wa Thiong’o ou Sembène Ousmane, que ocupavam um compartimento totalmente diferente do meu cérebro, continuaram aparecendo em vários relatórios da União dos Escritores Soviéticos. Uma descoberta semelhante aguardava nos arquivos da União dos Cineastas Soviéticos. Minhas perguntas sobre essas justaposições foram crescendo e se tornando mais complicadas: como esses escritores e cineastas entraram na órbita soviética? O que eles viram durante suas visitas a conferências de escritores, festivais de cinema ou estudos universitários na URSS? Quantos de seus textos / filmes foram traduzidos / exibidos na URSS e quem os leu / viu? A literatura russa / soviética e o cinema foram influentes em seu trabalho? As formações culturais transnacionais que eles procuraram construir com a ajuda soviética influenciaram os padrões globais de circulação literária e cinematográfica? Qual é o legado dessas trocas após o fim do Segundo e do Terceiro Mundo? Qual é a relação entre essas formações da era da Guerra Fria e os estudos pós-coloniais contemporâneos? Algumas dessas perguntas consegui responder melhor do que outras, nas quais ainda estou trabalhando.

Se você tivesse me perguntado sobre a pesquisa acadêmica do Segundo para o Terceiro Mundo dez anos atrás, eu teria lutado para fornecer uma bibliografia básica. Os historiadores foram além dos estudos literários ou de cinema. A Guerra Fria Global de Odd Arne Westad (2005) apresentou uma estrutura que explodiu o esquema anteriormente bipolar. Meu favorito, The Darker Nations: People’s History of the Third World (2007) de Vijay Prashad, começa com um par de frases fantásticas - “O Terceiro Mundo não era um lugar. Era um projeto”- e passou a fazer um retrato desse projeto e de suas interações com o Primeiro e o Segundo Mundos. Nos estudos literários e cinematográficos, a pesquisa acadêmica demorou a chegar. Talvez as duas exceções que vêm à mente sejam Postcolonialism: An Historical Introduction de Robert Young (2001) e o livro de Masha Salazkina, Eisenstein in Mexico (2009). Mas, entre a adoção de estruturas de literatura / cinema mundial pelos eslavos e o reexame acelerado da história de seu próprio campo pelos estudiosos pós-coloniais, na última década, houve uma explosão de estudos excelentes sobre o tema e um diálogo produtivao entre (estudos pós-) soviéticos e (pós-) coloniais. Um dos prazeres de escrever este livro foi ter muitos interlocutores de ambos os lados.

Selim Nadi

Embora a parte principal do seu estudo diga respeito à Guerra Fria, no primeiro capítulo você enfoca o início do Estado soviético e a importância da África, da Ásia e da América Latina para os primeiros bolcheviques. Sabemos que este último organizou eventos como o Congresso dos Povos do Leste de Baku (1920) e instituiu instituições como a Universidade Comunista para Trabalhadores do Leste (KUTV, 1921-1938). Qual a importância das questões culturais para o envolvimento bolchevique no mundo (semi) colonial?

Em certo sentido, a primeira fase do envolvimento soviético com o mundo colonial, que ocorreu no período entre guerras, foi mais significativa do que a segunda, que começou com a conferência Ásia-África de 1955 em Bandung, mesmo que os investimentos soviéticos em apoio aos movimentos de independência e estados recém-descolonizadosfossem incomparavelmente maiores durante a última fase.

Pode-se encontrar muitas falhas no antiimperialismo dos bolcheviques, mesmo durante o período entre as guerras: muito paternalismo para com os emancipados e uma compreensão altamente estadista da história; crescente lógica de grande poder e constantes reviravoltas. Antes de lançar uma pedra sobre eles, porém, vale lembrar que a URSS no período entre guerras foi o único país que não apenas denunciou verbalmente o imperialismo, mas colocou muito dinheiro onde estava sua boca. E mesmo que aceitássemos sem reservas a crítica existente às intenções bolcheviques vis-à-vis as colônias e seus esforços concretos, o efeito absoluto da Revolução de Outubro no mundo (semi-) colonial foi imenso. Lá, foi interpretado não tanto como uma revolução anti-capitalista (como foi no Ocidente), mas como uma revolta anti-imperial e, portanto, uma grande inspiração por trás de movimentos como o movimento de 4 de maio na China, Rowlatt Satyagraha na Índia, a Revolução egípcia de 1919 e uma boa parte do ativismo anticolonial nos anos que se seguiram.

Como um componente deliberado dessas primeiras iniciativas antiimperialistas soviéticas, a literatura e o cinema desempenharam um papel relativamente menor: afinal, as redes que se estendiam entre a URSS e o mundo colonial eram principalmente clandestinas e ofereciam pouco espaço para a cultura. No entanto, os textos russos / soviéticos penetraram nas sociedades (semi-) coloniais, muitas vezes por meio de rotas tortuosas e várias traduções e, quer tenham sido escritos antes ou depois de 1917, eles vieram com o halo da Revolução Russa, simbolicamente apontando para uma alternativa de modernidade à do Ocidente. Os intelectuais (semi-) coloniais que leram esses textos interpretaram-nos de acordo com suas lutas anticoloniais e nacionalistas específicas.

Selim Nadi

Como mudou o interesse soviético no mundo (semi) colonial na década de 1930?

O que mudou foi a consolidação do stalinismo e também da geopolítica europeia. Grande parte do trabalho anticolonial do período entre guerras foi realmente decretado dentro do Comintern, o Secretariado Oriental de seu Comitê Executivo e instituições afiliadas, como a Liga contra o Imperialismo e a KUTV. Quando apareceu pela primeira vez no final da década de 1910, o Comintern era uma entidade bastante distinta do Comissariado do Povo para as Relações Exteriores (o Ministério das Relações Exteriores soviético). Seu apoio à organização comunista na Grã-Bretanha e na França, por exemplo, e levantes anticoloniais em suas colônias, contrariava os esforços diplomáticos do estado soviético para garantir o reconhecimento das principais potências europeias. Na década de 1930, entretanto, o stalinismo havia reduzido a Internacional Comunista a um instrumento da política externa soviética. Embora o Comintern tenha sido formalmente fechado em 1943, provavelmente como um gesto de boa vontade para com os Aliados, suas atividades foram permanentemente debilitadas desde os Expurgos de 1937-38, durante as quais uma proporção extraordinária de seu pessoal baseado em Moscou, incluindo da Secretaria do Leste e suas estruturas afiliadas, foi executado, preso ou demitido. No final da década de 1930, Moscou perdeu muitos dos comunistas residentes vindos do mundo (semi-) colonial, as redes, bem como muito do conhecimento sobre a África, Ásia e América Latina.

Houve também fatores internacionais por trás do declínio do anticolonialismo soviético inicial na década de 1930. Como Fredrik Petersson mostra em sua história da Liga contra o Imperialismo, a conquista nazista na Alemanha em 1933 resultou na perda da sede da Liga em Berlim, da qual nunca se recuperou. A adoção comunista de uma ampla Frente Popular antifascista em resposta à ascensão do nazismo prejudicou ainda mais o internacionalismo anticolonial. Embora essa política tenha sido frequentemente saudada como um sucesso na Europa e nos Estados Unidos, no que diz respeito aos ativistas anticoloniais, a Frente Popular significava de fato a aliança da União Soviética com as principais potências imperialistas (Grã-Bretanha, França) contra a Alemanha e, portanto, um desinvestimento de sua causa. Como um todo, a expectativa de uma guerra europeia desviou o interesse da liderança soviética no anti-imperialismo.

Selim Nadi

A Conferência de Bandung de 1955 mudou algo na forma como o estado soviético apreendeu o mundo (semi) colonial? Como essa mudança teve consequências nas produções culturais?

Não foi até a morte de Stalin e o início lento da desestalinização que o estado soviético pôde mais uma vez reentrar no reino da política anticolonial. Antes disso, mesmo os principais eventos, como a descolonização do subcontinente em 1947, mal foram abordados ​​na política externa do final da era Stalin. O surgimento de uma Índia e Paquistão independentes foi tratado como um ajuste formal dentro da ordem mundial capitalista, ao invés do início de um Terceiro Mundo novo e potencialmente não capitalista. A Conferência de Bandung, que inaugurou esse mundo, colocou em ação o establishment da política externa soviética e trouxe consigo um novo investimento na política anticolonial. A lacuna de duas décadas entre a primeira e a segunda fase da política anticolonial soviética e os ziguezagues dessas políticas, entretanto, conseguiram alienar muitos movimentos de independência de Moscou. Além disso, nesta segunda fase de engajamento com o mundo (semi- / pós-) colonial, a URSS havia perdido seu monopólio do discurso anticolonial e anti-racista: que vinha de muitos quadrantes agora, e especialmente do próprio projeto Terceiro Mundo, que se tornou a principal voz moral contra o colonialismo.

Além dos empréstimos soviéticos e ajuda econômica, especialistas e apoio militar, esta segunda fase do anticolonialismo soviético incluiu um importante componente cultural, um grande programa de tradução de literatura da Ásia, África e América Latina para o russo e outras línguas da URSS e aproximação ativa com escritores e cineastas desses continentes. Afinal, como um herdeiro da intelligentsia russa do século XIX, o estado soviético, até sua própria burocracia, era um estado centrado na cultura, que acreditava na capacidade da cultura, e especialmente da literatura, de mudar a mente das pessoas, mudar sociedades inteiras. Fantasticamente, extrapolou essa crença para sociedades com tradições e estruturas muito diferentes das suas. Pela lógica da Guerra Fria, esse investimento teve que ser retribuído pelo lado ocidental. Nunca antes (ou depois) a CIA foi pega apoiando literatura; durante as décadas de 1950 e 1960, quando subsidiou de maneira conhecida todo um império de revistas literárias nos cinco continentes. Como Monica Popescu e vários outros estudiosos mostraram, esse investimento transformou as circunstâncias estruturais da literatura pós-colonial. Apesar de toda a devastação que a Guerra Fria trouxe para a África, Ásia e América Latina, escritores desses continentes foram alguns de seus principais beneficiários - e também o foram os leitores, enquanto o bloco soviético e o Ocidente tentavam distribuir "seus" textos tão amplamente (e, portanto, mais barato) quanto possível. A literatura foi uma das principais beneficiárias da Guerra Fria, especialmente no mundo pós-colonial.

Selim Nadi

Em outubro de 1958, várias figuras importantes como WEB Du Bois, Nâzim Hikmet, Mao Dun e outros se reuniram em Tashkent - capital do Uzbequistão - no Congresso de Escritores Afro-asiáticos. Por que foi importante organizar este evento em Tashkent? Até que ponto os participantes estavam cientes dos escritos uns dos outros?

A escolha de Tashkent como cenário do congresso inaugural, de 1958, da Afro-Asian Writers Association (e dez anos depois, para o festival bianual de filmes africanos, asiáticos e latino-americanos de Tashkent) foi, obviamente, muito deliberada sobre parte das burocracias culturais soviéticas. Uma cidade exibindo os sucessos do desenvolvimento soviético e poderosas tradições históricas locais, Tashkent impressionou positivamente até mesmo os delegados do congresso que não estavam inclinados a simpatizar com o projeto soviético. Eles não estavam vendo outra metrópole europeia - o que teriam visto se o evento tivesse sido ambientado em Moscou -, mas sim uma sociedade altamente diversificada e principalmente não branca. Além disso, como todos sabem, os uzbeques são muito mais simpáticos e hospitaleiros do que os russos. Assim, do final dos anos 1950 até o fim da União Soviética, Tashkent (e, em menor medida, Alma-Ata, Samarcanda e Bukhara, Yerevan, Baku e Tbilisi) figurou desproporcionalmente nos itinerários das delegações culturais africanas e asiáticas à União Soviética.

Um dos temas recorrentes no Congresso de Escritores Afro-Asiáticos de Tashkent e nos festivais de cinema realizados lá foi o espanto dos participantes por terem de viajar a Tashkent para se encontrarem. Se estivessem cientes das nuances da literatura ou do cinema ocidentais, teriam pouco conhecimento dos processos que ocorrem nos países vizinhos da África, da Ásia ou da América Latina. Afinal, as periferias não falam umas com as outras e era a própria ambição da Associação de Escritores Afro-asiáticos e do Festival de Tashkent desafiar o status desses países como periferias culturais ocidentais, construindo essas interconexões.

Selim Nadi

Até que ponto a produção cultural do Terceiro Mundo foi recebida (e discutida) no estado soviético?

Essa é realmente uma parte um tanto triste da história do livro. Literatura da África e da Ásia foi amplamente traduzida por editoras soviéticas, mas não pode rivalizar com a popularidade dos textos ocidentais. Encontrei várias cópias da era soviética em bibliotecas russas totalmente virgens, com páginas não consultadas. Especialmente aos olhos da intelectualidade soviética de Moscou e Leningrado centrada no Ocidente, a Literatura Real só poderia vir da França, Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos e qualquer texto originário da África ou da Ásia era a priori inferior.

Houve exceções: o romance do boom latino-americano gozou de imensa popularidade na URSS depois de receber o imprimatur ocidental, assim como a literatura japonesa. Vários escritores individuais, como o poeta turco Nâzim Hikmet e seu compatriota, o satírico Aziz Nesin, desfrutaram de uma popularidade genuína e popular entre os leitores soviéticos. Além disso, por mais influente que fosse na formação da opinião popular, a intelectualidade russa das duas capitais não esgota todos os leitores soviéticos: havia várias pessoas genuinamente interessadas na descolonização e especialistas no campo. Curiosamente, leitores vindos da Ásia Central soviética ou do Cáucaso estavam particularmente interessados ​​em literaturas de países vizinhos: azerbaijanos na literatura turca, tadjiques na literatura iraniana, uzbeques em textos vindos do Afeganistão e da Índia.

Com o cinema, a história é um pouco diferente: certos cinemas não ocidentais, como o da Índia, gozavam de imensa popularidade entre os espectadores soviéticos. Três dos 25 filmes mais assistidos nas telas soviéticas (uma categoria que inclui filmes soviéticos e estrangeiros, ocidentais e não ocidentais) vêm da Índia. Há um egípcio, The White Dress (1975). No topo desta lista, com mais de 90 milhões de espectadores, está o pouco conhecido melodrama mexicano Yesenia (1971). O gênero aqui é fundamental: como o estado soviético produzia poucos melodramas e importava ainda menos do Ocidente, a principal fonte desse gênero mais popular, para os telespectadores soviéticos, eram os cinemas não ocidentais.

Ao mesmo tempo, o Terceiro Cinema - cinema de conscientização política, que associamos aos documentários produzidos e exibidos em ambiente underground por cineastas latino-americanos como os argentinos Octavio Getino e Fernando Solanas ou o filme de ficção perfeitamente legal, mas ainda assim revolucionário, de Mrinal Sen na Índia e Sembene Ousmane no Senegal - não era nada popular com o público soviético. Essa falta de interesse do público em massa é parcialmente compreensível: esses filmes raramente são populares por seu próprio gênero, pelo menos quando comparados ao melodrama. Alguns filmes políticos foram comprados pela URSS em 2 ou 3 cópias (essencialmente em exibição em 2-3 cinemas em Moscou) como um gesto diplomático em relação a um importante cineasta de esquerda. Mas muitas vezes, eles nem mesmo foram comprados. Preferindo trabalhar com estados em vez de movimentos, o falecido estado soviético suspeitava de guerrilheiros, com rifles ou câmeras.

Selim Nadi

A tentativa de criar um “campo literário do Terceiro Mundo de tendência soviética” funcionou? Que consequências isso teve sobre os próprios escritos dos autores do Terceiro Mundo?

Normalmente tendemos a imaginar a Guerra Fria como uma competição de duas forças iguais, no processo, não apenas apagando várias partes do Terceiro Mundo, mas também exagerando a capacidade soviética vis-à-vis a dos Estados Unidos ou da Europa Ocidental. Mesmo em seu auge, a economia soviética representou apenas metade da dos Estados Unidos. Nem os estados do bloco soviético do Leste Europeu eram economicamente páreo para a Europa Ocidental. Além disso, as redes colonialistas que os Estados Unidos, Grã-Bretanha, França, Portugal e Bélgica desenvolveram, e as línguas e a escolaridade que impuseram, tornaram as sociedades recém-descolonizadas estruturalmente dependentes delas no campo da literatura, entre outros. Tão importante quanto, a dominação ocidental na República Mundial das Letras tem sido bastante estável nos últimos dois séculos. Assim, embora apoiado pelo capital moral do Terceiro Mundo recentemente assertivo e pelo apoio material das burocracias culturais soviéticas, este esforço para forjar um campo literário abrangendo o bloco soviético e o Terceiro Mundo enfrentou forças muito mais poderosas e acabou sendo derrotado. Assim como a tentativa de criar um Terceiro Mundo político ou econômico unificado por meio da industrialização por substituição de importações, do comércio Sul-Sul e do Sul-Leste e de alianças políticas contra o Ocidente. No entanto, esses esforços não foram sem consequências: que o público indiano pudesse ler literatura africana e vice-versa e que escritores dos três continentes se imaginassem como parte de uma única frente cultural se devia ao trabalho da Afro-Asian Writers Association, seu congressos, suas iniciativas de tradução, seu prêmio literário e revista multilíngue.

Em termos de consequências formais sobre a escrita, a erudição pós-colonial já deu conta da construção literária da nação na qual narrativas da África, Ásia e América Latina se engajaram durante esse período. Além disso, vários autores desses continentes buscaram representar a solidariedade internacional vis-à-vis outras forças terceiro-mundistas, ou fazer um gesto para utopias distantes como a URSS (ou a China). Por meio de subgêneros como o romance da cadeia de suprimentos latino-americana, que conectou minas e plantações, com políticos corruptos na capital do país, com salas de diretoria em Chicago e Nova York, esta literatura terceiro-mundista procurou situar imaginativamente seu leitor dentro de um sistema mundial mais amplo.

Selim Nadi

Tashkent também sediou o Festival bienal de Filmes Africanos e Asiáticos. Qual a importância do cinema nessas conexões culturais? Foram debates estéticos sobre o cinema do Terceiro Mundo?

Quando questionado sobre sua mudança da escrita de romances para a produção de filmes, Sembène Ousmane costumava falar sobre o analfabetismo em seu Senegal nativo que atrapalhava a capacidade dos escritores pós-coloniais de se dirigirem a seus próprios povos. Ele chamou o cinema de "universidade noturna da África". As burocracias culturais soviéticas gradualmente chegaram a uma conclusão semelhante. Mas havia também outro fator por trás de seu trabalho para expandir as redes cinematográficas soviéticas para a África, Ásia e América Latina, que distinguia esse esforço de sua promoção de livros russos ou soviéticos no exterior: os lucros. Muito mais do que a literatura, os ganhos dos filmes soviéticos no exterior (ou a bilheteria de filmes estrangeiros nas telas soviéticas) eram importantes para as burocracias soviéticas. A Sovexportfilm - a monopolista soviético da compra e venda de filmes no exterior - foi, durante a maior parte desse período, uma filial do Ministério do Comércio.

No entanto, no Ocidente, e em particular em Hollywood, o domínio foi ainda maior no campo cinematográfico global do que no literário. Como Sembène e a Sovexportfilm descobriram, era muito difícil exibir um filme não ocidental nos cinemas senegaleses. A solução proposta pelos cineastas africanos, asiáticos e latino-americanos, que se reuniam a cada dois anos, a partir de 1968, no Festival de Cinema de Tashkent, era nacionalizar toda a indústria cinematográfica nacional, da produção à distribuição. Mas isso só aconteceria em países que tivessem seguido um caminho de desenvolvimento explicitamente socialista.

Principal festival do Terceiro Mundo cinematográfico, o Tashkent foi importante para familiarizar cineastas dos três continentes com o trabalho uns dos outros e, mais especificamente, para internacionalizar o Terceiro Cinema além de seu núcleo latino-americano.

Selim Nadi

Quão influente foi o filme soviético no Terceiro Cinema? Por que os cineastas latino-americanos decidiram não seguir o caminho do sovietismo?

Na década de 1960, a URSS havia perdido muito de seu brilho como força revolucionária aos olhos de muitos radicais terceiro-mundistas. Dependendo de quão confiantes e fortes eles eram, mesmo os partidos comunistas pró-soviéticos estavam cada vez mais dispostos a desafiá-lo para que pudessem corresponder melhor às suas próprias realidades. Muitos esquerdistas buscavam inspiração em outros lugares: em certas épocas e em certas regiões, a China ou Cuba pareciam onde realmente estava a revolução. Além disso, se sua luta contra o (neo) colonialismo - sua independência - valesse alguma coisa, eles não podiam simplesmente esperar por outra superpotência, mesmo que fosse Moscou, para obter instruções. Portanto, a maioria dos cineastas do Terceiro Cinema, especialmente na América Latina, onde o movimento se originou, recusou-se a homenagear Moscou em seus filmes ou declarações públicas.

Ainda assim, é difícil - senão impossível - produzir cinema engajado sem fazer alguma referência ao cinema soviético dos anos 1920, a Sergei Eisenstein e Dziga Vertov, e a muitos outros que ajudaram a desenvolver a gramática do cinema político. Um gênero particular cuja evolução estudei desde o início do período soviético (Dziga Vertov, Roman Karmen) até a realização do Terceiro Cinema na América Latina foi o documentário solidário. As conexões estão aí. E ainda, como Masha Salazkina - que fez mais pesquisas do que qualquer um sobre o internacionalismo cinematográfico soviético vis-à-vis o Terceiro Mundo - mostrou, alguns cineastas latino-americanos negaram ter visto filmes soviéticos da década de 1920 ou lido a teoria do cinema soviética, mesmo quando provavelmente sim.

Selim Nadi

Esse interesse pela literatura e pelo cinema do Terceiro Mundo continuou após o colapso da União Soviética?

Não. Entre outras coisas, o fim do bloco soviético e seu socialismo de estado ao seu redor em 1990 significou a reintegração da região em um sistema mundial literário e cinematográfico dominado pelo Ocidente em um status (semi-) periférico. Neste novo e unipolar Um Mundo, havia pouco espaço para os fluxos culturais que conectavam o antigo Segundo e Terceiro Mundos. Olhando para as livrarias de Moscou hoje, é impossível imaginar que trinta e cinco anos atrás elas vendiam muitas traduções soviéticas de literaturas africanas e asiáticas. Nos cinemas russos (antes da pandemia), até os filmes indianos sumiram completamente e o domínio de Hollywood é quase total. A experiência russa de hoje em estudos africanos, asiáticos e latino-americanos é uma fração do conhecimento gerado pelo aparato de estudos da área soviética. Para minha pesquisa, por exemplo, eu estava lendo vários volumes de pesquisa acadêmica da era soviética sobre o cinema africano. Posso dizer com segurança que nem uma pessoa mais trabalha nesse campo na Rússia, embora o cinema africano tenha crescido significativamente desde aqueles dias, principalmente graças ao trabalho de vários cineastas formados na União Soviética, como Sembène, Souleymane Cissé e Abderrahmane Cissako.

Essas não foram transformações sistêmicas mundiais completamente estruturais e impessoais e o papel dos membros da intelectualidade russa e da Europa Oriental, correndo para reivindicar os privilégios da branquitude quando o bloco soviético chegou ao fim, deve ser lembrado. Com o desaparecimento da censura soviética durante a perestroika, o que costumava ser uma visão marginal expressa apenas por uma fração de dissidentes anti-soviéticos, ou seja, o Terceiro Mundo é um retrocesso que impede "nós" de nos juntarmos à família das nações ocidentais civilizadas, tornou-se um tropo entre a nova geração de políticos democráticos. Durante a perestroika, a mídia de massa passou da celebração do Congresso Nacional Africano (ANC) - que o bloco soviético, ao contrário de seus homólogos ocidentais, apoiou - para elogiar o governo do apartheid. Hoje, esse legado é responsável pela reação dos intelectuais liberais aos protestos do Black Lives Matter deste verão, que iam do anti-anti-racismo ao racismo aberto.

Selim Nadi

Finalmente, voltando ao título do livro, que papel os estudos pós-coloniais desempenham nele?

O Orientalismo de Said surgiu em 1978, um momento em que a Afro-Asian Writers Association estava entrando em um período de declínio. Os Acordos de Camp David e o consequente realinhamento geopolítico do Egito significaram que a Associação - sediada no Cairo - entrou em um período de falta de sede, do qual nunca se recuperou totalmente. No último congresso da Associação em Túnis, em 1988, havia uma sensação de que os escritores mais conhecidos, participantes do movimento, haviam falecido ou se retirado e nenhum novo estava vindo.

Na verdade, o declínio maior no prestígio do Segundo Mundo e as "armadilhas" e "assassinatos" (como disse Vijay Prashad) que diminuíram a unidade, a confiança e a força do Terceiro Mundo significou que os produtores culturais da África, da Ásia, e a América Latina não olhou mais para Moscou, as forças do Terceiro Mundo ou esforços conjuntos como a Associação com qualquer tipo de esperança. O desaparecimento do bloco soviético por volta de 1990 e, com ele, do Terceiro Mundo cimentou ainda mais o status do Ocidente como o único árbitro global do valor cultural, um local onde reputações são feitas e desfeitas.

É nesse contexto que devemos pensar a emergência dos estudos pós-coloniais na academia anglo-americana dos anos 1990. A trajetória de Ngũgĩ wa Thiong’o, de um participante da Afro-Asian Writers Association e recebedor do Prêmio Lotus a um professor de estudos pós-coloniais nos Estados Unidos, é ilustrativa a esse respeito. Embora algumas das obras seminais do campo tenham sido escritas na década de 1980, foi só depois do fim da Guerra Fria que o campo foi institucionalizado, com financiamento, centros, publicações especializadas e cargos de ensino. E embora os estudos pós-coloniais hoje realizem parte do mesmo trabalho que os escritores da Afro-Asian Writers Association ou os participantes do Fórum de Cineastas do Festival de Tashkent, condenando o centrismo ocidental e defendendo o trabalho de produtores culturais africanos, asiáticos e latino-americanos, o campo está fazendo isso enquanto está localizado em instituições acadêmicas ocidentais. No processo, evita ser manchado pelo pragmatismo político das relações interestatais, mas também permanece distante dos movimentos sociais vivos que antes animaram as lutas terceiro-mundistas.

Claro, as diferenças vão ainda mais fundo do que isso: a retórica revolucionária das formações do Terceiro Mundo deu lugar ao pós-estruturalismo francês sofisticado dos estudos pós-coloniais; os rudes binários colonizadores (neo) colonizados com os quais operaram os soviéticos e terceiro-mundistas foram postos de lado em favor de uma celebração (autobiográfica e desconstrucionista) do hibridismo; a adoção de nacionalismos progressistas, discursivamente compatíveis com o internacionalismo soviético, substituídos pelo interesse pós-colonial em diásporas e transnacionalidade. Os principais teóricos pós-coloniais têm suspeitado da nação, que constituiu um dos principais horizontes políticos das primeiras lutas de libertação nacional. Eles têm sido ainda mais críticos do estado (pós-colonial), no qual os primeiros intelectuais terceiro-mundistas e as burocracias soviéticas depositaram tantas esperanças: para reduzir a desigualdade, industrializar o país, aumentar a cultura nacional. A fim de refletir sobre essa transformação e suas consequências políticas e estéticas, no entanto, os estudiosos pós-coloniais precisam se envolver nessa história mais ampla que se estende além do Orientalismo de Said, além mesmo de Bandung, e através do engajamento soviético e marxista mais amplo com a questão colonial.

Selim Nadi é um candidato a Ph.D. no Centre d'histoire da Sciences Po Paris (França) e da Universität Bielefeld (Alemanha). É membro do conselho editorial das revistas Période e Contretemps e escreve sobre os movimentos operários europeus e americanos e a questão do racismo e do colonialismo.

Rossen Djagalov é professor assistente de russo na NYU e membro do coletivo editorial de LeftEast, uma plataforma da Esquerda do Leste Europeu.

Guia essencial para a Jacobin

A Jacobin tem divulgado conteúdo socialista em ritmo acelerado desde 2010. Eis aqui um guia prático para algumas das obras mais importantes ...