11 de novembro de 2000

Ideologia banida?

André Singer


Por força das regras deste Jornal de Resenhas não pude tomar conhecimento dos argumentos contrapostos à minha réplica por Fábio Wanderley Reis. Como não se quer dar a qualquer dos polemistas o privilégio da última palavra, fico privado da possibilidade de responder ao que você, leitor, acaba de ler.

Compreendo a intenção de manter a equidade, mas é pena que o debate seja interrompido. O tema é relevante e atual, como acabam de demonstrar as eleições municipais, em que o confronto entre esquerda e direita ficou claro em cidades do porte de São Paulo, Curitiba e Recife. Está em jogo nesta discussão saber se a oposição entre esquerda e direita (que envolve também o posicionamento ao centro, uma vez que no Brasil vigora o pluripartidarismo) merece ser levada em consideração como um dos determinantes do voto ou deve ser banida do rol de motivos que influenciam o eleitor.

Sustento no meu livro que parcela significativa do eleitorado, de acordo com pesquisas quantitativas realizadas na primeira metade da década de 90 -e reproduzidas este ano pelo Datafolha, com resultados coerentes-, possui uma percepção intuitiva da existência da divisão dos partidos e candidatos entre esquerda, centro, direita. Indico, ainda, que cerca de 80% dos eleitores aceitam se posicionar numa escala que vai de 1 a 7, sendo 1 mais à esquerda e 7 mais à direita (situação confirmada uma vez mais pelo Datafolha no "survey" divulgado pela Folha em 16/7 passado). Por fim, apresento evidências de que tal posicionamento tende a ser coerente com o voto e com determinadas opiniões, como a de ser contrário ou favorável ao uso de tropas militares para reprimir greves.

A conclusão da análise dos dados é que a variável identificação ideológica deve ser incluída como uma das que têm peso na hora de decidir o voto. Outras variáveis estruturais, como escolaridade, grau de urbanização e identificação partidária, também influenciam o eleitor, sem falar de fatores de curto prazo, como avaliação retrospectiva do governo, propostas de políticas específicas, avaliação do candidato e andamento da campanha.

A proposta que defendo em "Esquerda e Direita no Eleitorado Brasileiro" (Edusp) não é, portanto, como disse meu crítico, "considerar "ideológico" o eleitorado brasileiro" (Jornal de Resenhas, 9/9/ 2000), mas incorporar à compreensão do voto uma variável que a ciência política até então deixava de lado.

Já o resenhista acredita que a escala esquerda-direita não tem consistência para o eleitorado, uma vez que este declara não saber o significado dos termos. Seria, assim, um equívoco raciocinar sobre as motivações do eleitor a partir de categorias que não fazem sentido para o próprio eleitor. Além de apontar a baixa capacidade deste, expressa em sua incompetência para verbalizar o significado de esquerda e direita, o crítico esgrime a dimensão cognitiva do conceito de ideologia, que remeteria para uma visão mais estruturada do universo da política, como não sendo compatível com o comportamento da massa dos votantes, cuja percepção é sabidamente fragmentada. A meu ver, nenhuma das razões trazidas à baila justificam a barreira que o resenhista quer opor à inclusão da identificação ideológica como uma das variáveis do comportamento eleitoral. Em primeiro lugar, porque os dados evidenciam que um contigente importante dos eleitores reconhece significados políticos na divisão esquerda-direita quando estimulados a isso. Aceito que o elemento cognitivo seja importante para qualificar corretamente a identificação ideológica, mas não para excluí-la do campo de visão analítica.

Em segundo lugar, o fato de que a ideologia seja uma forma de organizar o pensamento a partir de princípios abstratos, como liberdade e igualdade, utilizada em geral por quem dispõe de maior treino intelectual, não implica que ela não possa ser absorvida como sinalizadora de posicionamentos políticos por parte de uma massa de eleitores chamada a escolher entre grupos que se distribuem ao longo do espectro esquerda-direita. Ou seja, é um erro, a meu ver, desconsiderar, em nome da complexidade das categorias ideológicas, o fato de que elas também ajudam a entender a massa dos eleitores.

Esse é o fulcro da divergência. Reafirmo que, aceita a concepção do meu oponente, deixaremos de lado um dos elementos que orientam o voto nas democracias em geral e também no Brasil. Trata-se de uma discordância científica. Posta em seus devidos termos, cabe ao leitor chegar a uma conclusão.

André Singer é professor do departamento de ciência política da USP e repórter especial da Folha.

14 de outubro de 2000

Quem tem medo da esquerda e da direita?

André Singer responde a resenha de Fábio Wanderley Reis

André Singer

Folha de S.Paulo


Em "Esquerda e Direita no Eleitorado Brasileiro" (Edusp), revelo que pesquisas realizadas entre 1989 e 1994 traziam uma novidade. A autolocalização do eleitor no espectro ideológico se mostrava relacionada ao voto nos pleitos presidenciais que conduziram Fernando Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Passo a sugerir, então, que o posicionamento do eleitor na esquerda, no centro ou na direita deveria ser levado em conta como um dos determinantes do voto no Brasil. Tratava-se, como foi escrito neste Jornal de Resenhas (9/9/2000) por Fábio Wanderley Reis, de um propósito "simples e claro", a meu ver sustentado por argumentação lógica. Mesmo tendo evidenciado pleno entendimento do propósito do trabalho, o resenhista optou por ignorar os argumentos, em lugar de combatê-los abertamente.

Alega três motivos para rejeitar a tese. Primeiro, coloca em dúvida a relação entre o autoposicionamento do eleitor no espectro ideológico e o voto. Segundo, critica a idéia de que os eleitores possam intuir sentidos políticos nas palavras "esquerda" e "direita", a ponto de saberem se posicionar no espectro ideológico, mesmo que não consigam verbalizar o significado de tais vocábulos. Por fim, afirma, contraditoriamente, que, se a premissa anterior for aceita, ela conduzirá a categorias irrelevantes para a compreensão do comportamento eleitoral. Acusa-me ainda de não estabelecer um "diálogo adequado" com estudos anteriores -"como os de minha própria autoria", esclarece o resenhista. Responderei pela ordem.

Será verdade que os dados apresentados no livro não sustentam a hipótese de um significativo vínculo entre a autolocalização do eleitor em uma escala de sete pontos (na qual "um" corresponde ao posicionamento mais à esquerda e "sete", mais à direita), com o voto nas eleições de 1989 e 1994? O núcleo da dúvida está no suposto "fato de que os eleitores entrevistados, que ignoram o significado das categorias e se colocam às cegas numa ou noutra, têm uma chance razoável de estabelecer por acaso a correspondência "correta" entre o voto e a autocolocação na escala esquerda-direita" (grifo meu).

Relação não-casual

Ora, tal afirmação desconhece as inúmeras evidências, apresentadas no livro, de que tal relação não é casual. Ou será que o fato de 60% dos eleitores que se posicionaram à direita, pesquisados pelo Datafolha por meio de uma mostra nacional, terem votado em Collor no primeiro turno de 1989, contra 24% de votantes em Collor entre os que se posicionaram à esquerda, não quer dizer nada? Será que a decisão de votar em Lula por parte de 47% dos que se colocaram à esquerda, na mesma ocasião, contra apenas 16% dos que se colocaram à direita, não chama a atenção de um pesquisador experiente como Fábio Wanderley Reis? Por falta de espaço, deixo de mencionar muitos outros dados significativos que se encontram no livro sobre a eleição de 1989.

Na eleição de 1994, decidida com a vitória de Fernando Henrique logo no primeiro turno, os dados revelados pela Toledo e Associados, numa pesquisa feita no Estado de São Paulo, foram ainda mais reveladores. Dos eleitores paulistas que se posicionaram à direita, 85% preferiram FHC, enquanto esse número caía para 35% entre os que se colocaram à esquerda. Dos entrevistados que se posicionaram à esquerda, 64% optaram por Lula, apesar do apoio que havia, mesmo na esquerda, ao Plano Real. Em contrapartida, o número de eleitores de direita que escolheram Lula despenca para 14%.

Como é possível, diante desses dados, que um intelectual de primeira linha, como Fábio Wanderley Reis, sugira que os entrevistados acertaram por acaso? Cumpre mencionar que as relações citadas foram submetidas, sem exceção, a teste estatístico para verificar exatamente se as associações entre a autolocalização na escala e o voto estavam fora da margem de acaso. Os resultados dos testes, à disposição de todos no livro, foram inequívocos. Eles mostraram que as relações encontradas não eram casuais.

Para contornar a força das evidências apresentadas por mim, o resenhista recorreu a um artifício. Afirmou que os resultados poderiam decorrer do fato de eu não ter separado os eleitores que sabem explicar o que é esquerda e direita daqueles que não sabem fazê-lo. De acordo com o crítico, a minoria dos que sabem, ao votar de modo coerente, teria contaminado a aferição das associações. Caso fossem separados os que sabem dos que não sabem, ficaria demonstrado que a grande maioria, formada pelos que não sabem, revelaria absoluta falta de coerência. Pois bem, fiz o teste com dados da pesquisa Datafolha de março de 1990, e o resultado mostrou que a associação entre posicionamento e voto é fortemente significativa também entre os que não sabem verbalizar o que é esquerda e direita.

Mas como posso afirmar que essa associação revela algo sobre o voto se eu mesmo reconheço que a grande maioria não sabe o que quer dizer esquerda e direita? Eis a segunda crítica. Embora pareça uma observação dotada de bom senso, trata-se de outra recusa em apreciar os argumentos do livro. Definir esquerda e direita não é tarefa fácil. Qualquer observador medianamente informado da política sabe que há várias acepções possíveis para uma e outra. Tome-se, apenas a título de exemplo, o caso da direita no Brasil. Diante da pergunta o que é direita, um eleitor sofisticado poderia afirmar: direita é a corrente política que defende a liberdade. O analista talvez considerasse a resposta "correta", se imaginasse que o entrevistado estava a pensar na livre iniciativa. No entanto, dada a associação da direita brasileira com o regime militar recente, deveríamos também aceitar como certa uma resposta segundo a qual a direita seria a defensora da ordem, mesmo que a custo da liberdade. Portanto duas definições contraditórias do que seja direita revelam-se igualmente aceitáveis.

O conteúdo de esquerda e direita é relativamente variável e subjetivo. Como mostrou Giovanni Sartori -a quem eu teria lido mal, segundo o resenhista-, esquerda e direita são elementos tão usados na gramática política justamente por funcionarem como caixas vazias, nas quais é possível colocar sempre novos conteúdos. Mas, se são caixas vazias, qual é a sua utilidade, afinal?

Ocorre que esquerda e direita funcionam como sinalizadores de diferentes posicionamentos dos partidos e candidatos ao longo de um mesmo eixo. São úteis porque organizam, concentram e simplificam um feixe variável de conteúdos, muitas vezes percebidos vagamente pelo público de massa, que permitem aos candidatos, partidos e eleitores "conversarem" sobre as disputas democráticas. Por isso, de 80% a 90% dos eleitores reconhecem, de modo intuitivo, que há partidos e candidatos de esquerda, centro e direita. Mesmo que não consiga verbalizar com palavras próprias o significado dos termos, o eleitor percebe, por exemplo, que Lula estava à esquerda de Collor em 89 e de Fernando Henrique em 94.

O PT foi o primeiro partido abertamente de esquerda a disputar a Presidência com chances de vitória. Isso tornou a divisão ideológica mais explícita e difundida pelos meios de comunicação. Desse modo, não espanta que o eleitor intua quem está em que lugar na divisão espacial esquerda-direita. Os dados que apresento no livro a respeito são igualmente contundentes. As pesquisas que pedem ao eleitor que indique, na escala de um a sete, em que ponto se encontram os partidos brasileiros, mostram que os entrevistados tendem a reconhecer corretamente a posição relativa dos mesmos. Mas, quando questionada, grande parte dos entrevistados não sabe explicar o que é esquerda e direita.

Isso quer dizer que esquerda e direita são termos destituídos de conteúdo e, portanto, que a relação entre o autoposicionamento do eleitor e o voto, embora existente, seria irrelevante? Tal a terceira crítica.

Se o eleitor intui a divisão espacial que existe entre partidos e candidatos, se identifica com determinado ponto dentro da mesma escala e, finalmente, vota de modo coerente com o ponto em que se coloca no espectro ideológico, é evidente que a identificação ideológica configura um bom preditor do voto. Como insisto em meu livro, não se trata do único nem necessariamente do preditor mais importante. Todavia ele existe e, nas duas eleições que analisei, mostrou-se um dos melhores preditores do voto, mesmo quando, em 94, o Plano Real foi um importante determinante do sufrágio.

Devolvo, portanto, a pergunta ao meu crítico: mesmo aceitas as premissas acima -de que esquerda e direita estejam associadas a um conteúdo político frouxo, uma vez que os eleitores não sabem verbalizá-lo-, por que desconhecer a variável da identificação ideológica?

Não creio que o posicionamento à esquerda e à direita seja destituído de conteúdo para o eleitor. No último capítulo indico linhas de associação cujo aprofundamento, em novas pesquisas, poderia descobrir aspectos importantes dos sistemas de crença presentes no eleitorado brasileiro. Sugiro que o posicionamento à direita está vinculado, sobretudo nas camadas de baixa renda e escolaridade, a uma adesão à ordem, evidenciada pelo apoio a medidas repressivas contra manifestações oriundas da organização popular.

Por fim, longe de me furtar ao "diálogo adequado" com os estudos anteriores, deixo claro no livro que pretendo apenas aduzir uma peça ao quebra-cabeça do comportamento eleitoral no Brasil e não reinventar a roda. A menos que por "adequado" Reis entenda a mera repetição do que ele e sua geração descobriram com "argúcia e rigor", como está escrito no próprio volume resenhado. Por que tanto medo da esquerda e da direita?

André Singer é professor de ciência política na USP e repórter especial da Folha.

Palestinos sob sítio

Edward Said coloca a Palestina no mapa

Edward Said

Vol. 22 No. 24 · 14 December 2000

Tradução / [Este artigo faz referência a diversos mapas. O Mapa Um mostra a situação em Hebron hoje, com a cidade árabe dominada por assentamentos israelenses. O Mapa Dois segue a seqüência das transferências israelenses do território da Cisjordânia para a autonomia palestina entre 1994 e 1999. O Mapa Três oferece um quadro detalhado da Cisjordânia após o segundo envio de tropas israelenses no início de 2000. A situação demográfica atual de Jerusalém Oriental anexada pode ser vista no Mapa Quatro. O Mapa Cinco detalha as expropriações de terra na mesma parte da cidade, entre 1967 e 1999. Todos os mapas foram fornecidos pela Foundation for Middle East Peace, de Washington.]

Em 29 de setembro, um dia após Ariel Sharon, protegido por cerca de mil policiais e soldados israelenses, marchar para dentro do Haram al-Sharif (o “Santuário Nobre”), de Jerusalém, num gesto planejado para asseverar seu direito de, como israelense, visitar o local sagrado muçulmano, iniciou-se uma conflagração que continua quando escrevo estas linhas no final de novembro de 2000. O próprio Sharon não se arrepende e culpa a Autoridade Palestina por “incitação deliberada” contra Israel “como uma democracia forte” cujo “caráter judeu e democrático” os palestinos querem mudar. Ele foi ao Haram al-Sharif, escreveu no Wall Street Journal alguns dias depois, “para inspecionar e certificar-se de que todos têm liberdade de culto e livre acesso ao Monte do Templo”, mas não mencionou a sua enorme comitiva armada ou o fato de que a área foi isolada antes, durante e após a sua visita, o que dificilmente garante a liberdade de acesso. Também se esqueceu de dizer algo sobre a conseqüência de sua visita: no dia 29, o exército israelense matou oito palestinos a tiros. O que todos ignoraram, ademais, é que os habitantes originais de um lugar sob ocupação militar - o que Jerusalém Oriental tem sido desde que foi anexada por Israel em 1967 - têm o direito, pela lei internacional, a resistir por qualquer meio possível. Além disso, dois dos mais antigos e maiores santuários muçulmanos do mundo, que remontam a 1.500 anos atrás, foram, na suposição de arqueólogos, construídos no local do Monte do Templo – uma convergência de lugares religiosos que uma visita provocadora de um general israelense extremista nunca iria ajudar a resolver. Um general, vale a pena lembrar, que desempenhou um papel em várias atrocidades que remontam à década de 1950, e incluem Sabra, Chatila, Qibya e Gaza.2

Segundo a União de Comitês de Ajuda Médica Palestina, até o início de novembro de 2000, 170 pessoas haviam sido mortas e 6 mil, feridas; estes números não incluem 14 mortes de israelenses (oito delas soldados) e um número ligeiramente maior de feridos. Entre os palestinos mortos havia pelo menos 22 com menos de 15 anos e, segundo a organização israelense B’tselem, 13 palestinos cidadãos de Israel, mortos pela polícia israelense em manifestações dentro de Israel. Tanto a Anistia Internacional quanto a organização Human Rights Watch condenaram severamente Israel pelo emprego desproporcional da força contra civis; a Anistia publicou um relatório detalhando a intimidação, tortura e detenção ilegal de crianças árabes em Israel e Jerusalém. Parte da imprensa israelense foi consideravelmente mais informativa e direta em seus relatos e comentários sobre o que está acontecendo do que a mídia européia e dos Estados Unidos. Escrevendo no Ha’aretz em 12 de novembro, Gideon Levy observou com alarme que dos poucos membros árabes do Knesset (o parlamento israelense) a maioria foi punida por se opor à política de Israel para os palestinos: alguns foram substituídos nas comissões parlamentares, outros estão sendo julgados, e outros estão sendo interrogados pela polícia. Tudo isso, conclui, faz parte do “processo de demonização e deslegitimação que está sendo movido contra os palestinos dentro de Israel, assim como contra aqueles nos Territórios Ocupados”.

“A vida normal”, tal como existia para palestinos que vivem na Cisjordânia ocupada e na Faixa de Gaza, é agora impossível. Mesmo os mais ou menos 300 palestinos aos quais foi permitida liberdade de movimento e outros privilégios VIP, nos termos do processo de paz, já perderam essas vantagens, e, a exemplo dos mais ou menos três milhões restantes que agüentam o duplo peso da vida sob a Autoridade Palestina e o regime de ocupação israelense – sem mencionar a brutalidade dos milhares de colonos israelenses, alguns dos quais agem como “vigilantes” aterrorizando vilarejos e grandes cidades palestinas como Hebron – estão sujeitos a bloqueios, cercos e estradas com barricadas impossibilitando o deslocamento. Até Yasser Arafat tem de pedir permissão para deixar ou entrar na Cisjordânia ou Gaza, onde seu aeroporto é aberto e fechado à vontade pelos israelenses, e seu quartel tem sido bombardeado punitivamente por mísseis disparados por helicópteros. Quanto à circulação de mercadorias para dentro e fora dos territórios, está paralisada. Segundo o Escritório de Coordenação Especial das Nações Unidas nos Territórios Ocupados, o comércio com Israel representa 79,8% das transações dos palestinos; o comércio com a Jordânia, que vem em seguida, responde por 2,39%. O fato deste percentual ser tão baixo é atribuível diretamente ao controle israelense sobre a fronteira entre a Palestina e a Jordânia (além das fronteiras com a Síria, o Líbano e o Egito). Com o fechamento da fronteira com Israel, portanto, a economia palestina vem perdendo US$ 19,5 milhões por dia em média, o que equivale a três vezes a ajuda total recebida de fontes doadoras durante os primeiros seis meses do ano. Para uma população que continua a depender da economia israelense – graças a acordos econômicos firmados pela Organização para a Libertação da Palestina (OLP) em Oslo – isso significa um duro golpe. O que não diminuiu foi o ritmo de construção de assentamentos israelenses. Ao contrário, de acordo com o abalizado Relatório sobre os Assentamentos Israelenses em Territórios Ocupados (RISOT, em inglês), quase dobraram nos últimos anos. O Relatório acrescenta que “1.924 unidades de assentamentos foram iniciadas” desde o começo do regime “pró-paz” de Ehud Barak, em julho de 1999 – e existe, além disso, o programa em andamento de construção de estradas e de expropriação de propriedades para este fim, além da degradação da terra agrícola palestina, tanto pelo Exército quanto pelos colonos. O Centro Palestino de Direitos Humanos, com sede em Gaza, documentou “as limpezas” de olivais e cultivos de legumes pelo Exército Israelense (ou, como prefere ser conhecido, a Força de Defesa Israelense) perto da fronteira de Rafah, por exemplo, e em ambos os lados do bloco de assentamento de Gush Katif. Gush Katif é uma área de Gaza – cerca de 40% – ocupada por alguns milhares de colonos que podem regar seus jardins e encher suas piscinas, enquanto 1 milhão de habitantes palestinos da Faixa (800 mil deles são refugiados da ex-Palestina) vivem numa zona ressecada e sem água. De fato, Israel controla todo o abastecimento d’água dos Territórios Ocupados e reserva 80% dela para o uso pessoal de seus cidadãos judeus, racionando o resto entre a população palestina: esta questão nunca foi seriamente debatida durante o processo de paz de Oslo.

Qual o significado deste alardeado processo de paz? O que se alcançou? E, se é que foi um processo de paz, por que a condição miserável dos palestinos e o número de mortos aumentaram muito mais do que antes da assinatura dos Acordos de Oslo, em setembro de 1993? Por que, como observou o New York Times em 5 de novembro, a “paisagem palestina encontra-se agora decorada com as ruínas de projetos baseados na integração pacífica”? O que significa falar de paz se tropas e colonos israelenses ainda estão presentes em números tão grandes? Segundo o já citado Relatório RISOT, 110 mil judeus viviam em assentamentos ilegais em Gaza e na Cisjordânia antes dos Acordos de Oslo; de lá para cá, o número cresceu para 195 mil, uma cifra que não inclui os judeus – mais de 150 mil – que fixaram residência na Jerusalém Oriental árabe. O mundo foi iludido ou a retórica da “paz” foi na essência um gigantesco embuste?

Algumas das respostas a essas questões acham-se enterradas em maços de documentos assinados pelas duas partes sob os auspícios dos Estados Unidos, que só foram lidos pelo reduzido grupo de pessoas que os negociaram. Outras são simplesmente ignoradas pela mídia e governos que, é o que parece agora, se dedicaram a promover políticas desastrosas de informação, investimento e cumprimento da lei, independentemente dos horrores que aconteciam na prática. Poucos, entre os quais me incluo, tentaram relatar o que estava acontecendo, desde a rendição inicial dos palestinos, em Oslo, até o presente, mas, em comparação com a mídia convencional e os governos, para não falar dos relatórios e recomendações sobre a situação divulgados por grandes agências de financiamento, como o Banco Mundial, a União Européia e muitas fundações privadas – notadamente a Fundação Ford – que cooperam com a impostura, nossas vozes tiveram um efeito desprezível, exceto tristemente como profecia.

Os distúrbios das últimas semanas não se limitaram à Palestina e Israel. As demonstrações de sentimento antiamericano e antiisraelense nos mundos árabe e islâmico são comparáveis às de 1967. Manifestações de rua furiosas ocorrem diariamente em Cairo, Damasco, Casablanca, Túnis, Beirute, Bagdá e no Kuwait. Milhões de pessoas expressaram seu apoio à Intifada al-Aqsa, como ficou conhecida, assim como seu repúdio ao comportamento submisso de seu governos. A Cúpula árabe realizada em Cairo, em outubro, produziu as costumeiras denúncias grandiloqüentes de Israel e alguns dólares a mais para a Autoridade de Arafat, mas sequer o menor protesto diplomático – a retirada de embaixadores – foi feito por qualquer dos participantes. No dia posterior à Cúpula, o Abdullah da Jordânia, que estudou nos Estados Unidos e cujo conhecimento da língua árabe consta como tendo progredido até o nível de escola secundária, voou para Washington para assinar um acordo comercial com os Estados Unidos, o principal apoio de Israel. Após seis semanas de turbulência, Mubarak relutantemente retirou seu embaixador de Tel Aviv, mas ele depende grandemente dos US$ 2 bilhões de dólares que o Egito recebe de ajuda anual dos Estados Unidos e é improvável que vá muito além disso. A exemplo de outros líderes no mundo árabe, ele também precisa dos Estados Unidos para protegê-lo de seu povo. Enquanto isso, a raiva, humilhação e frustração árabes continuam a crescer, ou porque seus regimes são tão antidemocráticos e impopulares, ou porque as questões básicas – emprego, renda, nutrição, saúde, educação, infraestrutura – caíram abaixo de níveis toleráveis. Apelos em prol do Islã e as expressões generalizadas de indignação funcionam como substitutos de um sentido de cidadania e democracia participativa. Isso é um mau presságio para o futuro, tanto dos árabes, quanto de Israel.

Nos círculos ligados a relações internacionais durante os últimos 25 anos, o comentário é que a causa da Palestina morreu, o pan-arabismo é uma miragem, e os líderes árabes, a maioria desacreditados, aceitaram Israel e os Estados Unidos como parceiros, e no processo de se livrar de seu nacionalismo, conformaram-se à panacéia da desregulamentação numa economia global, cujo primeiro profeta no mundo árabe foi Anwar al- Sadat e cujo influente propagandista foi o colunista do New York Times e especialista em Oriente Médio, Thomas Friedman. Em outubro último, após sete anos elogiando em suas colunas o processo de paz acertado em Oslo, Friedman viu-se em Ramallah sitiado pelo Exército Israelense (e sob fogo). “A propaganda israelense de que os palestinos na maioria das vezes têm governo próprio na Cisjordânia é pura besteira,” anunciou. “É verdade que os palestinos controlam suas próprias cidades, mas os israelenses controlam todas as estradas que ligam essas cidades entre si e, portanto, todos os seus movimentos. O confisco israelense de terra palestina para mais assentamentos prossegue até hoje, sete anos depois de Oslo.” Conclui que apenas “um Estado Palestino em Gaza e na Cisjordânia” pode trazer a paz, mas nada diz sobre o tipo de Estado que seria. Nem fala nada sobre o fim da ocupação militar, mas isso tampouco fazem os documentos de Oslo. Por que Friedman nunca discutiu isso nos milhares de centímetros que publicou desde setembro de 1993, e por que mesmo agora ele nada diz que os eventos de hoje são o desfecho lógico de Oslo desafia o senso comum, mas isso é típico da falta de sinceridade que cerca o assunto.

O otimismo daqueles que se encarregaram de assegurar que a miséria dos palestinos fosse mantida afastada do noticiário parece ter desaparecido numa nuvem de poeira juntamente com a “paz” que os Estados Unidos e Israel se empenharam tanto em consolidar em seus próprios interesses estreitos. Ao mesmo tempo, a velha estrutura que sobreviveu à Guerra Fria está esfarelando lentamente com o envelhecimento das lideranças árabes, sem sucessores viáveis à vista. Mubarak até se recusou a nomear um vicepresidente, Arafat não tem nenhum sucessor claro; nas repúblicas Ba’ath “socialistas democráticas” do Iraque e Síria, assim como no Reino da Jordânia, os filhos assumiram – ou assumirão – no lugar dos pais, cobrindo o processo de autocracia dinástica com um remendo de legitimidade.

No entanto, chegou-se a um ponto crítico, e para isso a Intifada palestina é um sinal significativo. Pois ela é não apenas uma rebelião anticolonial do tipo visto periodicamente em Setif, Sharpeville, Soweto e em outros lugares, mas também mais um exemplo do descontentamento geral com a ordem pós-Guerra Fria (econômica e política) demonstrada nos eventos de Seattle e Praga. A maioria dos muçulmanos do mundo vê o levante como parte de um quadro mais amplo que inclui Sarajevo, Mogadício, Bagdá sob as sanções comandadas pelos Estados Unidos, e Chechênia. O que deve estar claro para todo governante, inclusive Clinton e Barak, é que o período de estabilidade garantido pela dominação tripartite de Israel, Estados Unidos e regimes árabes locais acha-se agora ameaçado por forças populares de magnitude incerta, direção desconhecida, e visão não nítida. Qualquer que seja a forma que assumam futuramente, será de uma cultura não oficial dos despossuídos, silenciados e desprezados. Muito provavelmente, também, trará em si as distorções de anos de política oficial do passado.

Enquanto isso, é correto dizer que a maioria das pessoas que ouvem frases como “as partes estão negociando,” ou “vamos voltar à mesa de negociação,” ou “você é meu parceiro de paz,” supuseram que exista paridade entre palestinos e israelenses e que, graças às corajosas almas de cada lado que se encontraram secretamente em Oslo, as duas partes finalmente estiveram acertando as questões que as “dividem”, como se cada uma tivesse um pedaço de terra, um território onde pudesse estar de frente para a outra. Isso é seriamente – na verdade, maliciosamente – enganador. Com efeito, a desproporção entre os dois antagonistas é imensa, em termos do território que controlam e das armas de que dispõem. O noticiário tendencioso oculta a extensão da disparidade. Considere o seguinte: citando um levantamento de editoriais publicados na grande imprensa americana, feito pela Liga de Anti-Difamação, o Ha’aretz de 25 de outubro constatou “uma tendência de apoio” a Israel, com 19 jornais expressando solidariedade a Israel em 67 editoriais, 17 fazendo uma “análise equilibrada”, e apenas nove “manifestando crítica aos líderes israelenses (particularmente Ariel Sharon), a quem acusavam de responsabilidade pela conflagração”. Em novembro, o relatório da Fairness and Accuracy in Reporting (Noticiário Imparcial e Exato) registrou que, das 99 notícias sobre a Intifada transmitidas pelas três maiores redes dos Estados Unidos, entre 28 de setembro e 2 de novembro, apenas quatro faziam referência aos “Territórios Ocupados”. O mesmo relatório chamou atenção para frases como “Israel (...) novamente se sente isolada e sitiada”, “os soldados israelenses sob ataque diário”, e, num confronto onde seus soldados foram obrigados a recuar, “os israelenses cederam território à violência palestina.” Fórmulas altamente parciais desse tipo são inseridas em comentários dos noticiários das redes, obscurecendo os fatos da ocupação e desequilíbrio militar: as Forças de Defesa de Israel têm usado tanques, helicópteros de ataque Cobra e Apache, mísseis, morteiros e metralhadoras pesadas, fornecidos pelos americanos e britânicos; os palestinos não possuem nada disso.

O New York Times só publicou um artigo de opinião de um palestino ou um árabe (e acontece de o autor apoiar os acordos de Oslo) numa avalanche de comentários editoriais favoráveis às posições dos Estados Unidos e Israel; o Wall Street Journal não publicou nenhum artigo nessa linha; nem o Washington Post. Em 12 de novembro, um dos mais populares programas de televisão dos Estados Unidos, o Sessenta Minutos da CBS, transmitiu uma seqüência que parecia planejada para deixar o Exército Israelense “provar” que o assassinato de Mohammad al-Dura, de 12 anos, símbolo do sofrimento palestino, foi orquestrado pela Autoridade Palestina. Foi dito que a Autoridade teria plantado o pai do menino na frente das posições das armas israelenses e levado para uma posição próxima a equipe de TV francesa que gravou o assassinato - tudo para provar um argumento ideológico.

A deturpação fez com que se tornasse quase impossível o público americano entender a base geográfica dos eventos, e este é um dos mais geográficos dos litígios. Não se pode esperar que ninguém acompanhe e, mais importante, retenha um quadro cumulativamente preciso das disposições ocultas que prevalecem em condições práticas, resultado de negociações, a maioria delas secretas, entre Israel e uma equipe palestina desorganizada, pré-moderna e tragicamente incompetente, sob o domínio de Arafat. Numa hora decisiva, as resoluções específicas - 242 e 338 - do Conselho de Segurança das Nações Unidas são agora esquecidas, tendo sido marginalizadas por Israel e pelos Estados Unidos. Ambas as resoluções estipulam inequivocamente que a terra adquirida por Israel como resultado da guerra de 1967 deve ser devolvida em troca da paz. O processo de Oslo começou jogando efetivamente essas resoluções na lata de lixo - e, por isso, foi muito mais fácil, após o fracasso da Cúpula de Camp David, em julho último, alegar, como o fizeram Clinton e Barak, que os palestinos eram os culpados pelo impasse, e não os israelenses, cuja posição continua sendo a de que os territórios conquistados em 1967 não devem ser devolvidos. A imprensa americana mencionou seguidamente a oferta “generosa” de Israel e a vontade de Barak em ceder parte de Jerusalém Oriental e algo entre 90 e 94% da Cisjordânia aos palestinos. Mas ninguém na imprensa americana ou européia definiu exatamente o que seria “cedido” ou de qual território da Cisjordânia ele estava “oferecendo” 90%. Toda a história era uma quimérica tolice, conforme Tanya Reinhart mostrou no Yediot Aharanot, o maior diário de Israel. Na matéria “A Farsa de Camp David” (13 de julho), ela informa que foram oferecidos 50% da Cisjordânia aos palestinos em cantões separados; 10% seriam anexados por Israel e nada menos do que 40% seriam deixados “para discussão”, para usar o eufemismo que designa a continuação do controle israelense. Se você anexa 10%, não desmonta nem interrompe os assentamentos (como fez Barak), recusase repetidamente a voltar às linhas de 1967 ou a devolver Jerusalém Oriental, decidindo, ao mesmo tempo, reter áreas inteiras como o Vale do Jordão, e assim cercar completamente os territórios palestinos de modo que eles não tenham fronteira com nenhum Estado a não ser com Israel, além de reter as estradas de “desvio”, de triste fama, e suas áreas adjacentes, os famosos “90%” caem rapidamente para algo entre 50-60%, cuja maior parte só vai ser discutida no futuro muito distante. Afinal de contas, mesmo o último envio de tropas israelenses, acertado nos encontros de Wye River Plantation, em 1998, e reconfirmado em Sharm el Sheikh, em 1999, ainda não aconteceu. É oportuno repetir que Israel é o único Estado do mundo sem fronteiras oficialmente declaradas. E se olharmos para os 50-60% em termos da antiga Palestina, veremos que correspondem a cerca de 12% da terra de onde os palestinos foram expulsos em 1948. Os israelenses falam em “ceder” esses territórios. Mas eles foram tomados por conquista e, num sentido estrito, a oferta de Barak só significaria que eles estariam sendo devolvidos, de modo algum na sua totalidade.

Para começar, alguns fatos. Em 1948 Israel tomou a maior parte do que era a Palestina histórica ou sob mandato, destruindo e despovoando 531 vilarejos árabes no processo. Dois terços da população foram expulsos: eles são os quatro milhões de refugiados de hoje. A Cisjordânia e Gaza, no entanto, ficaram com a Jordânia e o Egito, respectivamente. Ambos foram posteriormente perdidos para Israel, em 1967, e permanecem sob o seu controle até hoje, exceto algumas áreas que funcionam sob uma “autonomia” palestina altamente limitada – o tamanho e os contornos dessas áreas foram decididos unilateralmente por Israel, conforme especifica o processo de Oslo. Poucos percebem que, mesmo nos termos dos acordos de Oslo, as áreas palestinas com esta autonomia ou auto-governo não gozam de soberania: ela só pode ser decidida como parte das Negociações da Situação Final. Em outras palavras, Israel pegou 78% da Palestina em 1948 e os 22% restantes em 1967. Só esses 22% estão em questão agora, e eles excluem Jerusalém Ocidental (dos 19 mil dunams, os judeus possuíam 4.830 e os árabes, 11.190, o resto era terra do Estado), tudo cedido antecipadamente por Arafat a Israel em Camp David.3

Qual terra, então, Israel já devolveu até agora? É impossível detalhar isso de qualquer maneira direta – propositalmente impossível. É parte do gênio maligno de Oslo que mesmo as “concessões” de Israel foram tão fortemente oneradas com condições, qualificações e vinculações – tal como uma das propriedades fisicamente inatingíveis e interminavelmente adiadas de um romance de Jane Austen – que os palestinos não conseguem sentir que gozam de qualquer aparência de auto-determinação. Por outro lado, elas podem ser classificadas como concessões, possibilitando a qualquer um (inclusive à liderança palestina) dizer que certas áreas de terra estavam agora (na maioria) sob controle palestino. É o mapa geográfico do processo de paz que mostra, da maneira mais dramática, as distorções que vêm se acumulando e foram sistematicamente disfarçadas pelo discurso calculado de paz e negociações bilaterais. Ironicamente, em nenhuma das dezenas de notícias publicadas ou veiculadas desde o começo da crise atual foi fornecido um mapa para ajudar a explicar porque o conflito atingiu tamanha intensidade.

A estratégia dos acordos de Oslo foi redividir e subdividir um território palestino já dividido em três subzonas, A, B e C, de formas inteiramente planejadas e controladas pelo lado israelense, pois, conforme venho sublinhando há vários anos, os palestinos não tinham nenhum mapa, até recentemente. Eles não tinham nenhum mapa detalhado em Oslo; inacreditavelmente, tampouco havia nenhum indivíduo na equipe de negociação com suficiente familiaridade com a geografia dos Territórios Ocupados para contestar decisões ou apresentar planos alternativos. Daí as bizarras providências para subdividir Hebron após o massacre de 29 palestinos em 1994, na mesquita de Horahimi, por Baruch Goldstein – medidas tomadas para “proteger” os colonos, não os palestinos. O Mapa Um mostra como o núcleo da cidade árabe (120 mil habitantes) – 20% dela, de fato – está sob o controle de mais ou menos 400 colonos judeus, cerca de 0,03% do total, protegido pelo Exército Israelense.

O Mapa Dois mostra o primeiro de uma série planejada de recuos israelenses feitos em áreas largamente separadas, ou seja, não contíguas. Gaza é separada de Jericó por quilômetros e quilômetros de terra controlada por israelenses, mas ambas pertencem à área autônoma A, que, na Cisjordânia, limitava-se a 1,1% do território. O componente de Gaza da área A é muito maior principalmente porque, com sua terra árida e superpovoada com massas rebeldes, Gaza sempre foi considerada um peso para a ocupação israelense, que se contentava em se livrar de toda a terra, menos a terra agrícola de primeira em seu coração, os vários assentamentos, retidos até agora por Israel juntamente com o porto, as fronteiras, entradas e saídas. Os Mapas Dois, Três e Quatro (o mapa quatro foi apresentado por Israel como um mapa ideal de retirada na cúpula de Camp David, embora anunciado antes) mostram o ritmo de passo de tartaruga em que se permitiu a desafortunada Autoridade Palestina assumir o controle dos grandes centros populacionais (Área A); na Área B, Israel deixou a Autoridade policiar as principais áreas de vilarejos, perto de onde os assentamentos estavam constantemente em construção. Apesar das patrulhas conjuntas de oficiais palestinos e israelenses, Israel mantinha em suas mãos toda a segurança real da Área B. Na Área C, manteve todo o território para si, 60% da Cisjordânia, para construir mais assentamentos, abrir mais estradas e estabelecer áreas militares, todas elas – nas palavras de Jeff Halper - destinadas a montar uma matriz de controle da qual os palestinos nunca se veriam livres.4

Uma olhada em qualquer um dos mapas revela, não apenas que as várias partes da Área A são separadas umas das outras, mas que são cercadas pela Área B e, mais importante, pela Área C. Em outras palavras, os bloqueios e cercos que transformaram as áreas palestinas em pontos sitiados no mapa vêm sendo planejados há muito tempo e, pior ainda, a Autoridade Palestina conspirou para isso: aprovou todos os documentos relevantes desde 1994. Em outubro, Amira Hass, correspondente do Ha’aretz nos territórios palestinos, escreveu que em 1993 os dois lados “acertaram um período de cinco anos para a conclusão do novo envio de tropas e as negociações num acordo final. A liderança palestina concordou, repetidamente, em prorrogar o seu período de experiência, diante da perspectiva dos ataques terroristas do Hamas e das eleições israelenses. A ‘estratégia de paz’ e a tática de gradualismo adotada pela liderança foi, a princípio, apoiada pela maioria do público palestino, que anseia por normalidade” – e, penso, pelo fim real da ocupação, que, vale repetir, não foi mencionado em nenhum dos documentos de Oslo.

Prossegue a correspondente: “a Fatah (a principal facção da OLP) era a espinha dorsal do apoio à idéia de liberação gradual do jugo da ocupação militar. Seus integrantes eram os que vigiavam a oposição palestina, detinham suspeitos cujos nomes eram dados a eles por Israel, prendiam os que assinavam manifestos afirmando que Israel não pretendia renunciar a sua dominação sobre a nação palestina. A vantagem pessoal obtida por alguns desses integrantes da Fatah não basta para explicar o seu apoio ao processo: por muito tempo, eles acreditavam real e verdadeiramente que este era o caminho para a independência”.

Quando escreve “vantagem” Hass quer dizer os privilégios VIP que mencionei antes. Mas, conforme a correspondente salienta, estes homens eram também membros da “nação palestina”, com esposas, filhos e parentes que sofriam as conseqüências da ocupação israelense, e estavam fadados, em algum momento, a se perguntar se o apoio ao processo de paz não significava também apoio à ocupação. Conclui Hass: 

“Passados mais de sete anos, Israel detém controle administrativo e da segurança de 61,2% da Cisjordânia e cerca de 20% da Faixa de Gaza (Área C), e controle da segurança de outros 26,8% da Cisjordânia (Área B).”

Este controle é o que permitiu a Israel dobrar o número de colonos em 10 anos, ampliar os assentamentos, continuar sua política discriminatória  de reduzir quotas de água para 3 milhões de palestinos, impedir o desenvolvimento palestino na maior parte da área da Cisjordânia, e isolar uma nação inteira em áreas restritas, presa numa rede de estradas de desvio reservadas apenas aos judeus. Durante estes dias de restrição interna rigorosa de movimentos na Cisjordânia, pode-se ver como cada estrada foi cuidadosamente planejada para 200 mil judeus terem liberdade de movimento e cerca de 3 milhões de palestinos ficarem trancados em seus bantustões até se submeterem às demandas israelenses.

Ao que se deve acrescentar, a título de esclarecimento, que as principais vias aqüíferas para o abastecimento de água de Israel ficam na Cisjordânia; que a “nação inteira” exclui os 4 milhões de refugiados a quem é categoricamente negado o direito de retorno, muito embora qualquer judeu de qualquer lugar ainda desfrute do direito absoluto de “retorno” a qualquer momento; que a restrição de movimento é tão severa em Gaza quanto na Cisjordânia; e que os 200 mil judeus em Gaza e na Cisjordânia que gozam de liberdade de movimento, citados pela correspondente Hass, não incluem os 150 mil novos habitantes israelenses-judeus que foram trazidos para “judaizar” Jerusalém Oriental.

A Autoridade Palestina está presa num mecanismo espantosamente engenhoso, se bem que infrutífero a longo prazo, de comitês de segurança compostos pelo Mossad, a CIA e os serviços de segurança palestinos. Ao mesmo tempo, Israel e os membros do alto escalão da Autoridade Palestina operam monopólios lucrativos em materiais de construção, tabaco, petróleo etc (os lucros são depositados em bancos israelenses). Não apenas os palestinos estão sujeitos à intimidação pelas tropas israelenses, mas seus próprios homens participam deste abuso de seus direitos, ao lado de odiadas agências não palestinas. Estes comitês de segurança, em grande parte secretos, também possuem um mandato para censurar qualquer coisa que possa ser interpretada como “incitação” contra Israel. É claro que os palestinos não possuem tal direito contra incitações americanas ou israelenses.

O ritmo lento desse processo em curso é justificado pelos Estados Unidos e Israel como salvaguarda da segurança do segundo; nada se fala sobre a segurança palestina. Claramente, devemos concluir, conforme sempre estipulado pelo discurso sionista, que a própria existência dos palestinos, não importa quão confinados ou destituídos de poder estejam, constitui uma ameaça racial e religiosa à segurança de Israel. O que é mais extraordinário é que, em meio a tanta surpreendente unanimidade, no auge da crise atual, Danny Rabinowitz, antropólogo israelense, falou corajosamente no Ha’aretz (17 de outubro) do “pecado original” de Israel ao destruir a Palestina em 1948, o que, com poucas exceções, os israelenses preferiram ou negar ou esquecer completamente.

Se a geografia da Cisjordânia foi alterada em proveito de Israel, a de Jerusalém foi mudada inteiramente. A anexação de Jerusalém Oriental, em 1967, acrescentou 70 quilômetros quadrados ao Estado de Israel; outros 54 quilômetros quadrados foram surrupiados da Cisjordânia e acrescentados à área metropolitana, administrada por muito tempo pelo prefeito Teddy Kollek, o preferido dos liberais ocidentais, que, com seu vice, Meron Benvenisti, foi responsável pela demolição de centenas de casas palestinas em Haret al-Maghariba, para dar lugar à imensa praça em frente ao Muro da Lamentação.5 Desde 1967, Jerusalém Oriental foi sistematicamente judaizada, suas fronteiras, inflacionadas, com a implantação de enormes projetos habitacionais e novas estradas e desvios construídos de modo a fazer com que o retorno seja virtual e inequivocamente impossível e, para a população árabe intimidada e declinante da cidade, transformada em tudo, menos habitável. Como disse o vice-prefeito Abraham Kehila em julho de 1993, “Eu quero que os palestinos abram os olhos para a realidade e compreendam que a unificação de Jerusalém sob a soberania de Israel é irreversível.” (Ver o Mapa Cinco.) Recentes disparos de armas leves contra o novo assentamento de Gilo, em Jerusalém, provenientes do vilarejo palestino vizinho de Beit Jala, teve cobertura total da mídia, mas ninguém mencionou que Gilo foi construída em terra confiscada de Beit Jala. Poucos palestinos esquecerão seu passado tão facilmente.

A cúpula de Camp David em julho fracassou porque Israel e os Estados Unidos apresentaram todas as medidas territoriais que vim discutindo aqui – apenas ligeiramente modificadas para devolver aos palestinos duas “áreas naturais”, eufemismo para deserto, de modo a aumentar a sua parte da área total – como a base para a solução final do conflito palestino-israelense. As reparações foram, com efeito, rejeitadas pelos israelenses, embora essa idéia não seja inteiramente estranha a muitos judeus. Não vi nenhuma menção na mídia ocidental de uma extensa matéria sobre Camp David escrita por Akram Haniyeh, chefe de redação do diário Al-Ayyam, de Ramallah, e um fiel seguidor da Fatah que, desde sua deportação pelos israelenses em 1987, tem estado próximo a Arafat. Haniyeh deixa claro que, do ponto de vista palestino, Clinton simplesmente reforçou a posição israelense, e que, para salvar sua carreira, Barak queria uma conclusão rápida para questões críticas, como os refugiados e Jerusalém, assim como uma declaração formal de Arafat de fim definitivo do conflito. (Desde então Barak convocou eleições antecipadas como meio de afastar uma derrota parlamentar total.) O relato envolvente de Haniyeh sobre o que aconteceu deve sair logo em tradução inglesa na revista Journal of Palestine Studies, de Washington. Mostra que a posição israelense “sem precedentes” sobre Jerusalém foi na verdade talhada para a direita israelense – em outras palavras, que Israel reteria soberania definitiva até sobre a mesquita al- Aqsa. “A posição israelense,” diz Haniyeh, “era ‘faturar’ tudo” – e não dar nada em troca. Israel teria a “assinatura de ouro” de Arafat, o reconhecimento final e “a preciosa promessa de ‘fim do conflito’”. Tudo isso sem uma devolução completa do território ocupado, um reconhecimento de soberania total ou um reconhecimento da questão dos refugiados.

Desde 1967 os Estados Unidos desembolsaram mais de US$ 200 bilhões de dólares em ajuda financeira e militar incondicional a Israel, enquanto ofereciam apoio político geral que permitia a Israel fazer o que quisesse. A Grã-Bretanha, cuja política externa é uma cópia carbono da de Washington, também fornece equipamentos militares que vão diretamente para Cisjordânia e Gaza, para facilitar o assassinato de palestinos. Nenhum Estado recebeu tanta ajuda externa quanto Israel e nenhum Estado (afora os próprios Estados Unidos) desafiou a comunidade internacional em tantas questões por tanto tempo. Se Al Gore se tornar presidente, essa política permaneceria inalterada.6 Gore é intransigentemente pró-Israel e um associado próximo de Martin Peretz, o principal defensor nos Estados Unidos da posição de Israel pela rejeição e com retórica anti-árabe, e dono da publicação New Republic. Pelo menos George W. Bush fez um esforço durante a campanha para tratar de preocupações árabe-americanas, mas, a exemplo da maioria dos ex-presidentes republicanos, ele seria apenas ligeiramente menos pró-Israel do que Gore.

Por sete anos, Arafat vinha assinando acordos do processo de paz com Israel. Pretendia-se obviamente que Camp David fosse o último. Ele rejeitou, sem dúvida, porque percebera a monstruosidade que já havia assinado (eu gostaria de pensar que seus pesadelos são feitos de viagens intermináveis pelos desvios da Área C); sem dúvida, também, porque estava ciente de quanta popularidade havia perdido. Esqueça a corrupção, o despotismo, o desemprego em disparada, agora de até 25%, a pobreza absoluta da maioria do seu povo: ele finalmente compreendeu que, tendo sido mantido vivo por Israel e pelos Estados Unidos, seria jogado de volta para seu povo sem Haram al-Sharif e sem um Estado verdadeiro, ou mesmo a perspectiva de um Estado viável. Os jovens palestinos se cansaram e, a despeito dos débeis esforços de Arafat de controlá-los, ocuparam as ruas para jogar pedras e usar estilingues contra os Merkavas e Cobras dos israelenses.

Os fatos de que Israel dependia no passado, a ignorância, cumplicidade ou preguiça de jornalistas fora de Israel, são agora contrabalançados pelo volume fantástico de informações alternativas disponíveis na Internet. Ciberativistas e hackers abriram um vasto e novo reservatório de material que qualquer um com um mínimo de instrução pode explorar. Há relatos não apenas de jornalistas da imprensa britânica (não existe nenhum equivalente na mídia do “sistema” dos Estados Unidos), mas também da imprensa israelense e árabe com sede na Europa; existem pesquisas realizadas por pesquisadores individuais e informações compiladas em arquivos, organizações internacionais e agências das Nações Unidas, assim como de coletivos de ONGs na Palestina, Israel, Europa, Austrália e América do Norte. Aqui, como em muitos outros casos, a informação confiável é o maior inimigo da opressão e da injustiça.

O aspecto mais desmoralizante do conflito sionista-palestino é a oposição quase total entre os pontos de vista israelense e palestino convencionais. Fomos despossuídos e desenraizados em 1948, eles pensam que conquistaram a independência e que os meios foram justos. Lembramos que a terra que deixamos e os territórios que tentamos liberar da ocupação militar fazem todos parte de nosso patrimônio nacional; eles pensam que é deles por decreto bíblico e filiação da diáspora. Hoje, por qualquer padrão concebível, somos as vítimas da violência; eles pensam que eles são as vítimas. Não há simplesmente nenhum terreno comum, nenhuma narrativa comum, nenhuma área possível para a reconciliação sincera. Nossas reivindicações são mutuamente exclusivas. Mesmo a noção de uma vida comum compartilhada no mesmo pedaço de terra é impensável. Cada um de nós pensa em separação, talvez em isolar e esquecer o outro.

A maior pressão moral para mudar é sobre os israelenses, cujas ações militares e imprudente estratégia de paz derivam de uma preponderância da força do seu lado, e uma falta de vontade de ver que estão acumulando anos de ressentimento e ódio por parte dos muçulmanos e árabes. Daqui a 10 anos haverá paridade demográfica entre árabes e judeus na Palestina histórica: o que acontecerá então? Os envios de tanques, os bloqueios de estradas e as demolições de casas poderão continuar como antes? Não faria sentido um grupo de historiadores e intelectuais respeitados, compostos igualmente de palestinos e israelenses, realizar uma série de encontros para tentar acordar um pouquinho de verdade sobre este conflito, para ver se as fontes conhecidas podem orientar os dois lados para concordar sobre um conjunto de fatos – quem tirou o que de quem, quem fez o que com quem, e assim por diante – que, por sua vez, podem apontar uma saída do impasse atual? Talvez seja muito cedo para uma Comissão de Verdade e Reconciliação, mas algo como um Comitê de Verdade Histórica e Justiça Política seria apropriado.

Está claro para todos que o velho esquema de Oslo, que tantos danos causou, não é mais viável (uma recente pesquisa de opinião pública, conduzida pela Universidade Bir Zeit, mostra que apenas 3% da população palestina quer voltar às velhas negociações) e que a equipe de negociação palestina liderada por Arafat não pode mais centralizar o poder, muito menos a nação. Todos sentem que estão fartos: a ocupação durou tempo demais, as conversações de paz se arrastaram com poucos resultados, a meta, se era a independência, não parece mais próxima (agradeça a Rabin, Peres e seus equivalentes palestinos por este fracasso), e o sofrimento do povo comum foi maior do que o suportável. Daí o arremesso de pedras nas ruas, mais outra atividade inútil, com suas próprias conseqüência trágicas. A única esperança é continuar tentando confiar numa idéia de coexistência entre dois povos numa mesma terra. No momento, no entanto, os palestinos estão precisando desesperadamente de orientação e, sobretudo, proteção física. O plano de Barak de punir, conter e sufocá-los já apresentou resultados calamitosos, mas não consegue submetê-los, como ele e seus mentores americanos supõem. Por que é que os israelenses não percebem - como alguns já perceberam - que uma política de brutalidade contra árabes numa parte do mundo contendo 300 milhões de árabes e 1,2 bilhão de muçulmanos não tornará o Estado judeu mais seguro?

Notas

2 Gostaria de agradecer a Shifra Stern, Ali Abunimah, Andrew Rubin, Mostapha Barghuti, Ibrahim Abu-Lughod, Linda Butler, Sara Roy, Raji Sourani, Noam Chomsky e Jeffrey Aronson pela ajuda neste
artigo. O livro Reflections on Exile (Reflexões sobre o Exílio) deve sair no ano que vem pela Granta, no Reino Unido, e pela Harvard, nos Estados Unidos

3 Estes dados foram extraídos do livro Salim Tamari (org.), Jerusalem 1948: The Arab neighbourhoods and their fate in the war, Institute of Jerusalem Studies, 1998.

4 Halper escreveu os estudos mais impressionantes sobre o planejamento territorial israelense durante o processo de Oslo; ver, por exemplo, seu estudo da rodovia trans-Israel “The road to apartheid”, News from Within, mai. 2000, e “The 94 per cent solution: a matrix of control”, Middle East Report, n. 216, 2000. O geógrafo holandês Jan de Jong, autor de dois dos mapas reproduzidos aqui, também fez um trabalho importante nessa área.

5 Um relato ponderado da era dourada de Kollek é o de Amir Cheshin, Bill Hutman e Avi Melamed. Separate and unequal: The inside story of Israeli rule in East Jerusalem, Nova York, Harvard, 1999.

1 de junho de 2000

Meu encontro com Sartre

Edward Said

London Review of Books

Vol. 22 No. 11 · 1 June 2000

Após ter sido um dos mais célebres intelectuais do nosso tempo, Jean-Paul Sartre, nos últimos anos, foi praticamente esquecido, até recentemente. Pouco depois de sua morte, em 1980, denunciava-se sua cegueira em relação aos gulags soviéticos e questionava-se mesmo o otimismo, o voluntarismo, a energia pura erigida em nome de seu existencialismo humanista. Toda a carreira de Sartre foi chocante, tanto para os chamados “novos filósofos”, cujos talentos medíocres não dispunham senão do ardor de seu anticomunismo para atrair alguma atenção, como para os pós-estruturalistas que, com raras exceções, soçobravam em um narcisismo moroso visando esfolar o populismo de Sartre e suas corajosas tomadas de posição políticas. A imensa abrangência da obra de Sartre — romancista, ensaísta, dramaturgo, biógrafo, filósofo, intelectual político, homem engajado — parecia então mais afastar do que ganhar leitores. Caíram no esquecimento suas corajosas posições políticas sobre as guerras da Argélia e do Vietnã, seu trabalho em favor dos imigrantes, sua aparição como maoísta quando da revolta estudantil de Paris, em 1968, assim como a amplitude e a distinção extraordinárias de sua obra literária (que lhe fizeram ganhar e recusar o Nobel de Literatura). Ele era então uma ex-celebridade caluniada, salvo no mundo anglo-saxão, onde jamais havia sido levado a sério como filósofo e onde sempre havia merecido certa condescendência, como romancista e biógrafo ocasional, bastante insuficiente do ponto de vista do anticomunismo, bem menos chique e sedutor que um Albert Camus, cujo talento porém era menor.

Depois, como ocorre freqüentemente na França, a moda começou a ser invertida. Nos últimos anos, surgiram diversas obras consagradas a Sartre, que acabou se tornando, talvez de modo passageiro, um tema de conversação, e mesmo de estudo e reflexão. Devo dizer que minha geração sempre o considerou como um dos heróis intelectuais do século, alguém cuja profundidade e dons intelectuais pareciam estar a serviço de todas as causas progressistas de nosso tempo. Não achávamos que era infalível, nem o tomávamos por profeta. Mas admirávamos os esforços que fazia para compreender uma situação, e assegurar, se preciso, seu apoio a uma causa, sem condescendência nem subterfúgios. Ele podia se enganar, era freqüentemente suscetível de erros ou exageros, mas sempre foi um pensador importante. Um leitor do meu gênero considerava digno de interesse tudo o que ele escrevia, ou quase tudo, por sua audácia única, sua liberdade — incluindo aí a de ser tagarela — e sua generosidade de espírito.

Com exceção de um caso particular, que eu gostaria de evocar aqui. Eu estava animado pela publicação de dois artigos, tão fascinantes como deprimentes, sobre sua viagem ao Egito, nos primeiros meses de 1967, os quais pudemos ler recentemente no suplemento literário do jornal egípcio Al Ahram. [1] Minha própria experiência não passou de um episódio menor numa existência verdadeiramente plena de grandeza, mas o que ela comporta de elementos irônicos e pungentes justifica sua lembrança.


Era o início de janeiro de 1979 e eu estava em minha casa, em Nova York, preparando um seminário. A campainha de minha porta tocou, anunciando a chegada de um telegrama. Ao abri-lo, observei com prazer que vinha de Paris: “O senhor é convidado pela revista Les Temps Modernes a participar de um seminário sobre a paz no Oriente Médio, que será realizado em Paris nos dias 13 e 14 de março deste ano. Por favor, queira confirmar sua presença. Assinado: Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre”. Primeiro pensei que se tratava de uma brincadeira. Para alguém como eu, não era exatamente normal receber tal convite de figuras tão legendárias. Era como se recebesse um convite de Cosima e Richard Wagner para Bayreuth, ou de T.S. Eliot e Virgina Woolf para passar uma tarde nos escritórios da revista Criterion. [2] Foram precisos dois dias para verificar, junto a alguns amigos em Paris e Nova York, que o telegrama era autêntico, mas bem menos para manifestar meu acordo incondicional (considerando que as “modalidades”, para empregar o eufemismo francês que designa os custos de viagem, ficavam por conta de Les Temps Modernes, a célebre revista que Sartre havia fundado depois da Segunda Guerra). Algumas semanas mais tarde, eu partia para Paris.


Les Temps modernes desempenhou um papel extraordinário na vida intelectual francesa, e mais tarde europeia e até do Terceiro Mundo. Sartre reuniu ao seu redor um conjunto notável de mentes — nem todas concordando com ele — que incluía Beauvoir, é claro, seu grande oposto Raymond Aron, o eminente filósofo e colega de classe da École Normale Maurice Merleau-Ponty (que deixou o periódico alguns anos depois) e Michel Leiris, etnógrafo, africanista e teórico das touradas. Não houve uma questão importante que Sartre e seu círculo não tenham assumido, incluindo a guerra árabe-israelense de 1967, que resultou em uma edição monumentalmente grande de Les Temps modernes — por sua vez, o assunto de um ensaio brilhante de I.F. Stone. Isso por si só deu à minha viagem a Paris um precedente digno de nota.


À minha chegada, encontrei em meu modesto hotel do Quartier Latin um bilhete breve e misterioso: “Por razões de segurança”, dizia a mensagem, “as reuniões ocorrerão no apartamento de Michel Foucault.” De posse do endereço, na manhã do dia seguinte dirigi-me à residência de Foucault e, quando cheguei, já fervilhava de gente. Mas Sartre ainda não tinha chegado. Não houve ninguém para explicar as misteriosas razões de segurança que haviam provocado a mudança de endereço, mesmo que, em razão deste fato, tenha sido criado um clima de conspiração totalmente desnecessário que perdurou durante todas as nossas discussões. Simone de Beauvoir já estava lá, com seu famoso turbante, concedendo, a quem quisesse ouvir, uma pequena conferência sobre a viagem que ia fazer a Teerã com Kate Millet, onde pretendiam se manifestar contra o chador (vestimenta utilizada pelas mulheres muçulmanas). O contexto chocou-me por sua condescendente estupidez e, apesar de meu desejo de saber o que ela tinha a dizer, percebi que estava particularmente imbuída de si mesma e particularmente inacessível a qualquer conversa naquele momento. De resto, ela partiu cerca de uma hora depois (um pouco antes da chegada de Sartre) e eu não a vi nunca mais.


Michel Foucault estava presente, mas ele me fez compreender rapidamente que não tinha nada a dizer sobre o tema do seminário, e que ia se retirar logo — como fazia todos os dias — para seu trabalho de pesquisa na Biblioteca Nacional. Eu estava feliz por meu livro Beginnings [3] aparecer com destaque em sua biblioteca, onde se amontoavam uma multidão de livros, papéis e revistas. Conversamos amavelmente, mas só bem mais tarde (quase uma década após sua morte, em 1984, para ser sincero) fui me dar conta das razões pelas quais Michel Foucault mostrou-se tão reticente em falar comigo sobre a situação política do Oriente Médio. Em suas biografias, Didier Eribon e David Macey revelaram que, em 1967, ela dava aulas na Tunísia e que foi obrigado a deixar rapidamente este país, em circunstâncias pouco normais, após a guerra de junho. Segundo a versão de Foucault, sua partida voluntária deveu-se ao horror das perseguições anti-semitas da época, freqüentes nas grandes cidades árabes após a derrota na guerra contra os israelenses. Um de seus colegas tunisianos me explicou, na década de 80, que ele tinha sido expulso. Jamais fiquei sabendo qual a versão certa. Na época do seminário parisiense, Foucault me contou que estava acabando de regressar de uma viagem ao Irã, para onde tinha ido como enviado especial do jornal italiano Corriere Della Serra. “Muito excitante, muito estranho, louco”. Lembro-me bem de tê-lo ouvido falar deste modo de seus primeiros dias na República islâmica. Um pouco depois da aparição de seus artigos, ele tratou rapidamente de manter distância. Para terminar, ao final da década de 80, Gilles Deleuze confidenciou-me que ele e Foucault, antes muito próximos, tinham rompido relações devido a divergências sobre a questão palestina. Foucault defendeu Israel, Deleuze os palestinos.


O apartamento de Foucault, se bem que vasto e extremamente confortável, era radicalmente branco e austero, o reflexo exato do filósofo solitário e do pensador rigoroso, que parecia viver só. Entre os palestinos e judeus israelenses presentes, só reconheci Ibrahim Dakkak, que tornou-se mais tarde um bom amigo de Jerusalém, Nafez Nazzal, professor em Bir Zeit, que eu tinha conhecido superficialmente nos Estados Unidos, e Yehoshofat Harkabi, o principal especialista israelense em “mentalidade árabe”, que em outros tempos tinha sido um agente do serviço secreto militar de Israel, e que Golda Meir demitiu por ter colocado, por engano, o exército em estado de alerta. Três anos mais tarde, passei um ano com ele em Stanford realizando estudos aprofundados em ciências do comportamento. Ambos estávamos sobrecarregados de cursos e acabamos não desenvolvendo a menor relação. Éramos sempre polidos, jamais cordiais. Em Paris, ele parecia estar em processo de mudança de pensamento, o que acabaria por transformá-lo no mais influente mensageiro de paz de Israel, defendendo abertamente a necessidade de um Estado palestino, considerado como uma vantagem estratégica para Israel. Os demais participantes eram essencialmente judeus israelenses ou franceses. Representavam toda a gama de tendências, da mais religiosa à mais laica, sendo todos porém, de um modo ou de outro, pró-sionistas. Um deles, Elie Ben Gal, aparentemente era um velho conhecido de Sartre: tinha sido, segundo nos disseram, seu guia por ocasião de uma recente viagem a Israel.

Quando o grande homem fez enfim sua aparição, bem depois da hora prevista, tive a oportunidade de ver a que ponto ele parecia velho e frágil. Lembro-me com toda clareza de minha impressão imediata: Sartre estava sempre acompanhado, sustentado e apoiado por uma pequena corte, sobre a qual ele se apoiava totalmente, e para a qual ele constituía a principal atividade. Faziam parte dela sua filha adotiva, de origem argelina, creio, que também desempenhava a função de sua agente literária. Havia também Pierre Victor, um ex-maoísta, co-editor com Sartre de La Cause du peuple, e que era contudo um judeu profundamente religioso, provavelmente ortodoxo. Fiquei estupefato quando soube mais tarde, de um dos membros da redação, que era um judeu egípcio chamado Benny Levy, e irmão de Adel Rafat, que formava com Baghat El-Nadi a dupla conhecida pelo nome Mahmud Hussein. É sob este nome que os dois trabalhavam na Unesco e que escreveram La lutte des classes en Egypte, um ensaio célebre publicado por Maspero. Victor não tinha aparentemente nada de egípcio; fazia o tipo intelectual rive gauche. Em terceiro lugar vinha Helena von Bulow, que, trilingüe, trabalhava na revista e fazia traduções para Sartre. Fiquei um pouco surpreso e decepcionado quando percebi que, apesar de suas estadas na Alemanha, de seus escritos sobre Heidegger, sobre Faulkner e Dos Passos, Sartre não conhecia nem o alemão nem o inglês. Amável e elegante, Helena von Bullow permaneceu ao lado de Sartre durante os dois dias do seminário, sussurrando-lhe na orelha uma tradução simultânea. Com exceção de um palestino de Viena que só falava árabe e alemão, nosso debate ocorreu em inglês. Não saberei jamais o quanto Sartre compreendeu do que estava sendo dito, mas foi profundamente desconcertante (para mim e outros presentes) vê-lo permanecer absolutamente silencioso durante todo o primeiro dia. Michel Contat, seu biógrafo, também estava presente, mas não participou da discussão.

De acordo com o estilo francês, o almoço — que em outro contexto não teria levado mais de uma hora — revelou-se uma operação complexa. Ocorreu num restaurante pouco afastado da casa de Foucault. Com a chegada dos participantes em táxis separados, por causa da chuva, mais a sucessão de quatro pratos e depois o retorno do grupo, esse importante evento acabou durando cerca de três horas e meia. Deste modo, no primeiro dia, nossas discussões sobre a paz duraram relativamente pouco. Os temas da discussão foram expostos por Victor, que apresentou-os sem ter consultado ninguém, até onde sei. Desde o início, senti que ele fazia a lei, aproveitando sua relação privilegiada com Sartre (com quem, às vezes, trocava algumas palavras em voz baixa) e exibindo uma auto-confiança arrogante. Segundo ele, devíamos discutir: 1) O valor do tratado de paz entre Egito e Israel (era a época de Camp David); 2) A paz entre Israel e o mundo árabe em geral, e 3) as condições de uma possível coexistência entre Israel e o mundo árabe. Nenhum dos árabes me parecia satisfeito. Eu, por meu lado, lamentava que se escamoteasse a questão palestina. Dakkak não recebeu qualquer satisfação e, ao final do primeiro dia, foi embora. Alguém tinha lhe assegurado que haveria intelectuais egípcios presentes. Quando ele não viu ninguém chegar, percebeu que tinha pouca coisa a fazer ali.

Ao longo desse primeiro dia, fui descobrindo pouco a pouco que o seminário tinha sido precedido de uma grande negociação, e que a participação do mundo árabe — pelo pouco número de representantes lá — estava comprometida por todas estas negociações precedentes. Lamentei não ter participado dessas negociações. Era muita ingenuidade de minha parte ter pretendido vir a Paris para discutir a preparação do seminário com Sartre, eu me dizia. Ele fez questão da participação de Emmanuel Levinas, mas este não foi mais visto que os egípcios. Todas as discussões eram registradas e posteriormente foram publicadas numa edição especial de Les Temps Modernes (setembro de 1979). Achei que foi bem insatisfatório. Estávamos cobrindo um terreno mais ou menos familiar, sem nenhum encontro real de mentes.


Simone de Beauvoir tinha se revelado uma grande decepção. Após uma hora de dissertação dogmática sobre o Islã e o uso do véu, ela partiu. Considerando as circunstâncias, não lamentei sua ausência. Mais tarde, tive a convicção que ela teria insuflado vida ao debate. Quanto à presença de Sartre, ou melhor, o que restou dela, foi estranhamente passiva, muito pouco impressionante, desprovida de paixão. Durante horas, ele não disse absolutamente nada. No almoço, ficou sentado do outro lado da mesa, com ar aborrecido, totalmente fechado. Tentei, em vão, iniciar uma conversa. Talvez estivesse um pouco surdo, mas não estou certo disso. Seja como for, ele me pareceu um fantasma do que tinha sido, e sua proverbial feiúra, seu cachimbo, suas roupas neutras e sem forma pareceram-me mais acessórios em uma cena deserta. Durante o almoço e na sessão da tarde, me dei conta de que Pierre Victor desempenhava o papel de chefe da gare e, entre os trens, figurava o próprio Sartre. Independentemente de suas misteriosas conversações na mesa, ele e Victor levantavam-se de vez em quando. Victor conduzia o velho homem, de passo vacilante, para um canto da sala, falava-lhe rapidamente, obtendo aqui e ali um balanço de cabeça, e ambos retornavam à mesa. Na época, eu era muito atuante na política palestina. Em 1977, tornei-me membro do Conselho Nacional Palestino, e por ocasião de minhas numerosas viagens a Beirute (durante a guerra civil no Líbano), para visitar minha mãe, eu via regularmente Arafat e a maioria dos líderes de então. Pensava que seria um grande êxito conseguir uma declaração de Sartre favorável aos palestinos, num momento tão crucial de nossa rivalidade mortal com Israel.

Cada participante tinha algo a dizer, se bem que fosse impossível desenvolver uma argumentação, mesmo que eu tivesse visto claramente que o verdadeiro tema do encontro era a consolidação de Israel (o que hoje se conhece por “normalização”), e não a situação dos palestinos ou dos árabes. Eu me encontrava exatamente na mesma posição da maioria dos árabes diante de mim. Com as melhores intenções, tínhamos acreditado que poderíamos tentar convencer um intelectual de primeira linha (como Sartre ou outros de sua importância), na esperança de que ele pudesse se tornar um novo Arnold Toynbee ou um Sean McBride — o que ocorre raramente. Se depositei esta esperança em Sartre é porque eu não podia simplesmente esquecer sua posição a respeito da Argélia, o que, considerando que se tratava de um território francês, devia ter sido bem mais difícil de defender que uma posição crítica em relação à Israel. Evidentemente eu estava enganado.

No desenrolar de algumas discussões fechadas e vãs, interrompi sem vergonha os debates e insisti que se ouvisse Sartre imediatamente, o que provocou consternação entre seus apoiadores satélites. Numa dessas ocasiões, a sessão foi suspensa, enquanto eles deliberavam em clima de catástrofe. A maioria dos participantes, devo dizer, partilhava comigo a sensação de farsa ou tragédia, pois o próprio Sartre parecia não tomar nenhum partido nestas deliberações que diziam respeito justamente à sua participação. Afinal, fomos chamados à mesa por um Pierre Victor visivelmente irritado, que, com toda afetação pomposa de um senador romano, anunciou em tom solene: “Amanhã, Sartre falará”. E então nos retiramos todos, para nos reencontrarmos na manhã seguinte a fim de escutar o grande homem.

No dia seguinte, Sartre tinha algo a nos oferecer: um texto datilografado de duas páginas que, no essencial — o que escrevo se baseia unicamente numa velha lembrança de vinte anos — recorria às piores banalidades para louvar a coragem de Sadat. Eu não consigo me lembrar bem das palavras para evocar os palestinos, os territórios ocupados ou seu passado trágico. Não houve, tenho certeza, nenhuma referência ao colonialismo israelense, comparável sob muitos aspectos às práticas francesas na Argélia. Era tão instrutivo quanto um despacho da agência Reuters, escrito obviamente por Victor, para apresentar um Sartre que ele parecia ter inteiramente sob seu domínio. Fiquei completamente abalado ao ver que este herói intelectual tinha sucumbido em seus últimos anos a um mentor tão reacionário e que, a propósito da Palestina, uma questão que assumia aos meus olhos uma urgência moral e política — no mesmo plano que Argélia e Vietnã —, o velho partidário dos oprimidos não encontrasse algo além das palavras mais convencionais para elogiar um líder egípcio já grandemente célebre. Durante o resto do dia, Sartre voltou ao seu silêncio, e o resto dos participantes continuou como antes. Pelo resto do dia, Sartre retomou seu silêncio, e os procedimentos continuaram como antes. Lembrei-me de uma história apócrifa na qual vinte anos antes Sartre havia viajado para Roma para encontrar Fanon (então morrendo de leucemia) e o repreendeu sobre os dramas da Argélia por (foi alegado) 16 horas ininterruptas, até que Simone o fez desistir. Aquele Sartre se foi para sempre.


Na transcrição do seminário publicado alguns meses mais tarde, a intervenção de Sartre — e este é um ponto interessante — foi reescrita e reduzida. Por que razão, não posso imaginar e na verdade nem quero saber. Sei somente que, mesmo se ainda tivesse o número de Les Temps Modernes onde aparecemos todos, não seria capaz de reler mais do que algumas linhas, sob pena de não ver ali nada além de discursos vazios. Fui escutar Sartre em Paris no mesmo espírito do convite que lhe tinha sido feito para ir ao Egito, onde intelectuais árabes queriam vê-lo e conversar com ele — com um resultado idêntico, mesmo que meu encontro tenha sido marcado, para não dizer maculado, pela presença de um intermediário, o pouco sedutor Pierre Victor, que, depois, desapareceu, parece-me, numa obscuridade perfeitamente justificada. Fiquei reduzido, como Fabrice em Waterloo, ao fracasso e à decepção.

Um último detalhe. Há alguns meses, participei do programa de televisão de Bernard Pivot, Bouillon de culture, retransmitido nos Estados Unidos pouco depois de sua difusão na França. O programa era dedicado a Sartre, sua lenta reabilitação póstuma, seu recente retorno ao primeiro plano, apesar da crítica persistente aos seus pecados políticos. Bernard Henry-Lévy — difícil encontrar alguém, tanto do ponto de vista das qualidades intelectuais como da coragem política, tão diferente de Sartre — estava lá para assegurar a promoção do ensaio aparentemente favorável que ele tinha escrito sobre o velho filósofo. (Confesso que não li o ensaio e que não tenho a menor intenção de fazê-lo.) Sartre não era tão mau afinal de contas, concedeu BHL, pois pode-se encontrar nele posições constantemente admiráveis e politicamente corretas. BHL pretendia, assim, fazer um contraponto ao que considerava ser uma crítica fundada, aquele de Sartre sempre se ter enganado a respeito do comunismo. “Por exemplo”, assinalou BHL, “suas posições sobre Israel eram perfeitas: ele jamais transigiu sobre suas posições quanto a Israel, manifestando sempre seu total apoio ao Estado judeu.”

Sartre efetivamente permaneceu sempre constante em seu filo-sionismo fundamental. Medo de passar por anti-semita, sentimento de culpa diante do Holocausto, recusa em se permitir uma percepção profunda dos palestinos como vítimas em luta contra a injustiça de Israel, ou qualquer outra razão? Jamais saberei a resposta. Tudo o que sei é que, em sua velhice, não era quase nada diferente do que tinha sido antes: a mesma fonte amarga de decepção para qualquer árabe (exceção feita aos argelinos) que admirasse justificadamente suas outras posições e sua obra. Bertrand Russell certamente fez melhor: em seus últimos anos, quando foi orientado e, segundo alguns, totalmente manipulado por meu camarada de classe de Princeton e velho amigo Ralph Schoenman, ele assumiu efetivamente posições razoavelmente críticas da política de Israel em relação aos árabes. Por quê os grandes homens, em sua velhice, sucumbem tanto aos artifícios de um jovem aprendiz, a um tipo de rigidez que os encerra em uma convicção política inatingível? É um pensamento desmoralizante, mas há um pouco disso no caso de Sartre. À exceção da Argélia, a justeza da causa árabe não lhe provocou jamais uma grande impressão, talvez por causa de Israel, ou então pelo fato de uma ausência elementar de simpatia, ligada a razões culturais ou eventualmente religiosas, não sei. Neste domínio, ele era radicalmente diferente de seu ídolo, Jean Genet, seu velho amigo, que celebrou sua estranha paixão pelos palestinos permanecendo longo tempo entre eles e também escrevendo o extraordinário Quatre heures à Sabra et Chatila e Le Captif amoureux.

Um ano após nosso breve e decepcionante encontro em Paris, Sartre morreu. Lembro-me vividamente de quanto lamentei sua morte.

1 de fevereiro de 2000

Renovações

Enquanto a New Left Review entra em sua quinta década, um balanço da revista. De onde veio e para onde vai? Como avaliar o cenário político e cultural dos anos noventa? Um manifesto para a nova série de NLR que começa com esta edição.

Perry Anderson



Tradução / A duração de uma revista não é nenhuma garantia para seus êxitos. Um par de números, depois do qual uma repentina extinção pode significar mais na história de uma cultura do que um século de publicação contínua. Em seus três anos, a Athenaeum pôs em órbita o romantismo alemão. A explosão de ira da Revue Blanche, a primeira revista da vanguarda moderna, iluminou Paris durante apenas uma década. Em Moscou, a Lef fechou depois de sete números. Foram revistas na interseção da inovação estética com a filosofia e a política. As revistas de crítica freqüentemente sobreviveram mais tempo: The Criterion, em diferentes encarnações, durante a maior parte do período entre-guerras; Scrutiny, da década de 1930 à de 1950. As causas do fechamento podem ser externas, inclusive acidentais, mas por regra geral a vitalidade de uma revista está unida à daqueles que a criaram. Há casos heroicos, nos quais um só indivíduo pode desafiar o tempo compondo um monumento pessoal: Kraus escrevendo Die Fackel sozinho durante 25 anos; Croce igualando a façanha com A Crítica. Em geral, os ciclos vitais das revistas são adventícios e dispersos. Os editores lutam, mudam de opinião, se aborrecem ou se arruínam em sua maioria muito antes deles mesmos serem enterrados.

Uma revista política está tão sujeita a incidentes da mortalidade como qualquer outra. Em certo sentido, está mais ainda, na medida em que o político é sempre um Kampfplatz, um campo de divisões, que rompe vínculos e impõe conflitos. A este respeito, naufragar por causa de disputas ou divisões resulta mais freqüente do que qualquer outra causa. Além do mais, contudo, as revistas políticas têm uma razão de ser diferente que faz da renovação posterior em seu primeiro impulso uma prova de que é específica. Adere-se a determinados princípios objetivos, assim como à capacidade que estes têm de decifrar o curso do mundo. A este respeito, o emudecimento editorial significa uma derrota intelectual. Assim, as constrições materiais ou institucionais podem truncar uma publicação periódica no auge de sua vida. Mas, a não ser por tais circunstâncias, não resta outra opção às revistas políticas: para continuar sendo fiéis a si mesmas devem aspirar a prolongar sua vida real para além das condições ou gerações que lhes deram origem.

Esta revista, que agora entra em sua quinta década, chegou a este ponto. Quarenta anos pressupõem um importante período de atividade. Ainda que não extraordinário: Les Temps Modernes, da qual a New Left Review aprendeu muito em seus primeiros anos, se mantém há muito mais tempo. Mas é suficiente para se colocar uma revisão geral. Com este número damos início a uma nova série da revista, marcada por uma mudança de numeração, de acordo com a tradição radical, e por um novo layout da publicação, como sinal das modificações que acontecerão. Encarregado, no momento, da transição para outro estilo de revista, algo que não se consegue da noite para o dia, exponho a seguir minha própria visão da situação atual da NLR, assim como das orientações que seria conveniente que tomasse. Anunciado como um “editorial”, o resultado é, contudo, uma declaração pessoal e, portanto, provisória: exposta à contradição. Assim serão também os editoriais que acompanharão cada número, escritos por outros sobre temas de seu interesse, sem que tenha que se pressupor qualquer acordo automático.

1

Toda consideração acerca do futuro da NLR deve partir de sua differentia specifica. O que fez dela uma revista característica da esquerda? Caberiam várias respostas a esta pergunta, mas a mais simples e sucinta é a seguinte: nenhuma outra revista deste tipo tentou atravessar os mesmos domínios, que abarcam desde a política, a economia, a estética, a filosofia, inclusive a sociologia, com as mesmas liberdades de extensão e detalhe exibidas em cada momento. Esta extensão nunca foi equânime ou regularmente explorada, por conseguinte, caso omisso das dificuldades para se mover entre registros da escritura tão completamente diferentes, a expensas inclusive dos leitores mais pacientes. Mas, de fato, foi aqui que se definiu o caráter da New Left Review. Esta é uma revista política com base em Londres que tentou tratar as ciências sociais e morais – a “teoria”, se se prefere – as artes e os costumes – a “cultura”, para sermos concisos – com o mesmo espírito histórico que corresponde ao político. O melhor modo de apreender a presente situação da revista consiste em voltar os olhos para o contexto no qual o formato da NLR foi concebido originalmente, tornando possível a combinação destes interesses. A conjuntura de princípios da década de 1960, quando a revista tomou forma nas mãos de um novo coletivo, apresentava os seguintes traços:

  • Politicamente, um terço do planeta havia rompido com o capitalismo. Poucos tinham dúvidas acerca dos despropósitos do domínio de Stálin, ou da falta de democracia em qualquer dos países que se declaravam socialistas. Mas o bloco comunista, inclusive em seu momento de divisão, continuava sendo uma realidade dinâmica: Isaac Deutscher, escrevendo na NLR, pôde ver no conflito chino-soviético um sinal de vitalidade.1 Krustchev, visto como um “revolucionário romântico” pelos atuais historiadores da Rússia, fez a promessa de reformas na União Soviética. O prestígio da China maoísta continuava praticamente intacto. A revolução cubana era um novo farol na América Latina. Os vietnamitas combatiam com êxito contra os Estados Unidos no Sudeste Asiático. O capitalismo, apesar de sua estabilidade e prosperidade em suas zonas centrais do Norte, estava ameaçado e sentia isso na maior parte do mundo circundante. Mesmo em casa, na Europa ocidental e no Japão, movimentos comunistas de massas continuavam posicionando-se contra a ordem estabelecida.
  • Intelectualmente, o descrédito da ortodoxia estalinista depois de 1956 e o ocaso do consenso doméstico do período da Guerra Fria depois de 1958 deram pé a um processo de descobrimento de tradições escamoteadas da esquerda e do marxismo que, nas condições de inanição britânicas, tomou ares de uma febre teórica. Começaram a circular veios alternativos de um marxismo revolucionário ligado à política de massas: luxemburguistas, trotskistas, maoístas, comunistas conselhistas. Simultaneamente, os diferentes legados do marxismo ocidental nascido da derrota da política de massas, desde a época de Lukács, Korsch e Gramsci em diante, se apresentavam suscetíveis de reativação. Na influência dessas tradições ocidentais foi crucial para sua continuidade até aquele momento: Sartre, Lefebvre, Adorno, Marcuse, Della Volpe, Colletti, Althusser eram autores contemporâneos que produziam novos textos enquanto entravam na gráfica os números da NLR. O isolamento britânico a respeito dos citados modelos continentais fez com que o contato com eles, repentino e concentrado, tivesse um efeito embriagador.
  • Culturalmente, a saída da atmosfera conformista da década de 1950 significava um fenômeno muito mais amplo e igualmente brusco. Os dois marcos dominantes do período são o surgimento da música rock enquanto onipresente onda sonora da revolta juvenil em oposição à produção, em regra geral melosa, do período anterior: uma onda popular que reclamava da mesma maneira uma ruptura estética, assim como uma efervescência social. Por sua vez, a Grã-Bretanha liderava essa transformação, cujos efeitos convulsivos estavam longe ainda de se tornarem rotina, como posteriormente haveria de ocorrer. O segundo deslocamento crítico foi o surgimento do cinema do autor como percepção e projeto. A este respeito tornou-se decisiva a influência dos Cahiers du Cinéma e da nouvelle vague que surgiu da revista. Nessa recepção, a posição outorgada aos diretores clássicos de Hollywood por parte dos cineastas franceses abriu um veio que em grande medida definiu o período. De fato, o novo predomínio do cinema e da música liberou uma dialética entre planos de referência “altos” e “baixos” na vida cultural da década de 1960, que, retrospectivamente, aparece como um traço distintivo. Brincalhona ou séria, a facilidade de circulação entre ambas sem grandes tensões era muito devida à corrente teórica mais importante do movimento, exceto o marxismo, que foi o estruturalismo. A importância do primeiro Barthes ou de Levi-Strauss (Mythotologie ou Tristes tropiques), que proporcionam um método comum para o estudo de cada uma delas, foi crucial para a mediação entre as formas altas e baixas. Recuperando o legado do formalismo russo, tratava-se de um estruturalismo cujas preocupações continuavam sendo perfeitamente coerentes com as da esquerda cultural.

2

Nesse tipo de contexto, a NLR desenvolveu uma série de programas que naquele momento resultou inovadora para o mundo de fala inglesa. Politicamente, a revista orientou sua bússola para os movimentos antiimperialistas do Terceiro Mundo, e, ainda que os reflexos denunciadores da estreiteza de olhares continuavam tendo força na esquerda britânica, reuniu uma equipe cujos interesses abarcaram com o tempo boa parte do planeta: América Latina, África Negra, Oriente Médio, Ásia Oriental e Sul-Oriental, todas e cada uma dessas áreas estavam representadas. Em casa desenvolvia uma série de argumentos característicos acerca do Reino Unido, que chegou a ter uma certa influência. Daí que, quando se deu a explosão de finais da década de 1960 no Ocidente, desencadeada pela Guerra do Vietnã – a revolta estudantil, em primeiro lugar, e, mais tarde, a irrupção dos trabalhadores –, a NLR ocupava uma posição favorável para desempenhar um certo papel no posterior alvoroço, conseguindo atrair assim um público internacional de leitores em meados da década de 1970.

Intelectualmente, a revista dedicou boa parte de suas energias para a introdução e a recepção crítica das diferentes escolas do pensamento marxista ocidental, uma empresa suficientemente avultada para ocupá-la por quase uma década. O estruturalismo, o formalismo e a psicanálise também estiveram presentes, e textos canônicos ou material de referência, que quase sempre eram publicados pela primeira vez, sulcaram suas páginas. Nessas frentes, a NLR estava bastante à frente da cultura circundante, assentando as bases de um horizonte de referência mais cosmopolita e radical daquilo que resultava facilmente exeqüível em qualquer outro ponto do mundo de fala inglesa.

Da mesma maneira, culturalmente, a revista desenvolveu novos estilos de intervenção, unindo o interesse pelas artes tradicionais ao compromisso com as formas de vanguarda e a intervenções sobre o cinema e a música populares. A famosa série de artigos de Peter Wollen sobre diretores de cinema, ou, citemos por acaso, a Dialectic of Fear, de Franco Moretti, são exemplos dessa liberdade de movimentos entre terrenos “altos” e “baixos”. As iniciativas a que deu lugar essa ebulição resistem a qualquer classificação estreita. Era um período criativo.

3

Quatro décadas mais tarde, o ambiente em que tomou forma a NLR praticamente se dissipou. O bloco soviético desapareceu. O socialismo deixou de ser um ideal difundido. O marxismo já não predomina na cultura da esquerda. Até mesmo o trabalhismo se dissolveu em sua grande parte. Dizer que essas mudanças são enormes seria insuficiente. Não se pode dizer que fizeram calar a revista. Cada um a seu modo, diferentes escritores ligados à revista responderam energicamente à conjuntura. Em registros distintos, caberia incluir o “Fin-de-Siécle: Socialism after the Crash”, de Robin Blackburn; “Our Post-Communism: the Legacy of Karl Kautsky”, de Peter Wollen; The Golden Age is Within Us, de Alexander Cockburn; “The Ends of Cold War”, de Fred Halliday; Faces of Nationalism, de Tom Naim; “Radicalism after Communism”, de Benedict Anderson; Fear of Mirrors, de Tariq Alí, e a lista poderia continuar.2 Seria interessante explorar a variedade dessas reações, assim como de outras contribuições publicadas pela revista. Cabe avaliar a hora de apreciá-las. Mas, em seu conjunto, a tradição da revista manteve-se sem desdouro.

Contudo, dez anos depois do colapso do comunismo o mundo mudou, e uma das condições para o relançamento da revista consiste numa aproximação específica e sistemática de seu estado atual. Qual é o aspecto principal da década passada? Em poucas palavras, pode se definir como a consolidação praticamente irrefutável, unida à sua difusão universal, do neoliberalismo. O que não estava de todo dentro do previsto. Por mais que os anos 1989-1991 contemplassem a destruição do comunismo do bloco soviético, não se podia dar por certo, inclusive para seus defensores, que um capitalismo de livre mercado sem limites ganharia todos os prêmios tanto no Ocidente como no Oriente. Muitos dissidentes do Leste, progressistas euro-ocidentais e conservadores estadunidenses previram um certo “reequilíbrio” da paisagem global; a esquerda talvez recobraria um certo alento vital, uma vez liberada do incômodo legado moral do estalinismo, enquanto os corporativismos japonês ou renano demonstrariam sua superioridade em relação a Wall Street ou à City, tanto no plano da igualdade social como da eficiência econômica. Estas não eram opiniões isoladas, eram referendas por prestigiosos especialistas. Ainda em 1998, Eric Hobsbawm e os antigos redatores de Marxism Today continuavam anunciando esperançosos o fim do neoliberalismo.[3]

Na prática, a tendência da época se moveu na direção contrária. Cinco processos interconectados transformaram radicalmente o cenário:

  • O capitalismo estadunidense reafirmou estrondosamente seu predomínio em todos os campos – econômico, político, militar, cultural – com um boom sem precedentes que já dura oito anos. Por mais supervalorizados que estejam os ativos de Wall Street, sob o fardo da dívida privada familiar, e apesar dos atuais déficits da balança comercial, o indubitável é que a posição competitiva fundamental das empresas estadunidenses se reforçaram decisivamente.
  • A social-democracia européia, que se tornou governo em diferentes locais da Europa, reagiu às baixas taxas de crescimento econômico e ao elevado desemprego do continente com o giro geral em direção ao modelo estadunidense, com a aceleração da desregulamentação e da privatização, não só das indústrias, mas também dos serviços sociais, freqüentemente para além dos limites dos regimes conservadores anteriores. A Grã-Bretanha ocupa o primeiro lugar em desregulamentação, mas a Alemanha e a Itália lutam por se colocar à sua altura, enquanto a França fica para trás, mais pelas palavras do que pelos fatos.
  • O capitalismo japonês se precipitou numa profunda recessão, daí que, juntamente com o coreano, se veja cada vez mais pressionado a fim de que se dobre aos modelos da desregulamentação, com o conseguinte aumento de desemprego. Em outra parte da Ásia, a República Popular da China está ansiosa por ingressar na OMC praticamente a qualquer preço, confiando em que as pressões competitivas do capital estrangeiro acabarão com as indústrias estatais sem que seu governo tenha que assumir responsabilidade alguma por seu destino; entretanto, pela primeira vez, a Índia passou a depender das boas graças do FMI.
  • A nova economia russa, o elo mais débil do sistema do mercado global, não provocou nenhum tipo de resposta popular, apesar de uma regressão catastrófica em termos de volume de produção e esperança de vida. Confia agora na estabilização de sua oligarquia financeira sob uma liderança plebiscitária capaz de centralizar o poder e privatizar a terra. 

Estão se dando imponentes mudanças socioeconômicas que vão abrindo caminho em todo o planeta e que já foram canonizadas pelo entusiasta estudo de Daniel Yergin e Joseph Stanislaw, The Commanding Heights. Essas mudanças vieram acompanhadas de dois movimentos complementares, um político e outro militar.

  • Ideologicamente, o consenso neoliberal encontrou um novo ponto de estabilização na “terceira via” dos governos Clinton-Blair. Essa fórmula vitoriosa, que sela o triunfo do mercado, não pretende impugnar, mas conservar o placebo de uma autoridade pública compassiva, exaltando a compatibilidade da concorrência com a solidariedade. O núcleo duro das políticas governamentais consiste no prosseguimento do legado Reagan-Thatcher, em certas ocasiões com medidas que seus predecessores não se atreveram decretar: reforma da seguridade social nos Estados Unidos e das taxas acadêmicas no Reino Unido. Mas agora se rodeia cuidadosamente de concessões secundárias e de uma retórica mais branda. O resultado dessa combinação, que na atualidade se estende por toda a Europa, é a eliminação do potencial conflitivo dos regimes pioneiros da direita radical e o rigoroso extermínio da oposição à hegemonia neoliberal. Poderia se dizer que, por definição, o modelo Tina (There is no alternative) só assume toda a sua força quando um governo alternativo demonstra que não restam políticas alternativas críveis. Para dar o golpe de misericórdia na social-democracia européia ou acabar com a memória do New Deal eram indispensáveis os governos de centro-esquerda. Nesse sentido, e adaptando a máxima de Lênin que diz que a “república democrática é o arcabouço ideal do capitalismo”, poderíamos dizer que a “terceira via” é atualmente o melhor arcabouço ideológico do neoliberalismo. Apenas cabe considerar acidental o fato de que a teorização mais ambiciosa e intransigente do ultracapitalismo como ordem global, The Lexus and the OliveTree, de Thomas Friedman, seja ao mesmo tempo uma cínica louvação da hegemonia mundial estadunidense e uma defesa incondicional do clintonismo, sob o lema “hoje em dia não é aconselhável ser globalizador se alguém não é um social-democrata”.[4]
  • Por último, a Guerra dos Bálcãs arredondou a década com uma demonstração diplomáticomilitar da ascensão dessa constelação. A comparação com a Guerra do Golfo indica até que ponto se reforçou a Nova Ordem Mundial desde o início da década de 1990. Bush teve que mobilizar um vasto exército para repelir a invasão iraquiana do Kuwait, em nome da proteção do fornecimento de petróleo ao Ocidente e de uma dinastia feudal, sem que conseguisse nem derrubar o regime de Bagdá nem envolver a Rússia, que continua sendo imprescindível para a aliança contra ele. Clinton subjugou a Sérvia com os bombardeios sem que um só soldado tenha dado um tiro em nome do imperativo moral de parar com a limpeza étnica, o que com toda probabilidade não tardará por acabar com a supressão do regime de Belgrado; e conseguiu envolver a Rússia sem grandes esforços na força de ocupação num papel simbólico de tropa auxiliar. Entretanto, a China, depois da destruição de sua embaixada um pouco antes da respeitosa visita de seu primeiro ministro aos Estados Unidos, colaborou docilmente na utilização da ONU como fantoche para o protetorado da Otan em Kosovo, deixando claro que não vai permitir que nada atrapalhe suas boas relações com Washington. Por sua vez, a União Européia se sente em toda sua amplitude como companheira de armas dos Estados Unidos e une seus esforços para a reconstrução generosa dos Bálcãs. Nesse sentido, a vitória em Kosovo não foi só militar e política. Foi além do mais um triunfo ideológico que determina um novo modelo de intervenção em favor dos direitos humanos em todo o planeta, de acordo com a interpretação dos mesmos por Washington: não por que aplicá-lo ao caso dos chechenhos e dos palestinos. A sociedade criada pela refrega capitalista dos últimos vinte anos necessitava de um banho de boa consciência. A operação Força Aliada o proporcionou. 

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A atmosfera intelectual nos países avançados, que se estende para muito além de suas fronteiras, reflete essas mudanças. Ainda que o grosso da inteligência ocidental parecia satisfeito com o status quo, com uma minoria mais inquieta e imaginativa empurrando-a para a direita, a esquerda continuou tendo uma presença importante na maioria dos principais países capitalistas ao longo da década de 1980, por mais que se dessem mudanças importantes: os britânicos se tornaram menos conservadores, enquanto que aos italianos e franceses acontecia o contrário, etc. Com a homogeneização da cena política na década de 1990, cabia esperar por sua vez uma Gleichschaltung da opinião aceitável. No final da década, esse processo começou a tomar um ritmo. Se dermos uma olhada no espectro do que era a esquerda tradicional, antes socialista, são dois os tipos de reação predominante antes da nova conjuntura.

O primeiro é a acomodação. Em sua hora de triunfo generalizado, o capitalismo convenceu a muitos, que antes o consideravam um mal evitável, que é uma ordem social necessária, saudável e equilibrada. Os que se somam, explícita ou tacitamente, à “terceira via” são exemplos óbvios. Mas a gama de disfarces pela qual se pode chegar à acomodação é muito mais extensa e resulta de fato compatível com uma atitude cética ou até mesmo gozadora diante dos falsos pintores, Blumenthal Campbell, da nova ordem: compreende desde o franco reconhecimento da superioridade em toda linha da empresa privada, sem muitos adereços, até a omissão pura e simples da questão dos regimes de propriedade em seu conjunto. Uma das conseqüências dessa modificação do clima ideológico em sentido lato consiste em que se torna cada vez menos necessário expressar uma postura sobre esses temas, na medida em que se vêem expurgados dos limites dos debates importantes. A retratação ruidosa é bastante rara; o mais comum é limitar-se a mudar de tema. Não obstante, a profundidade das concessões reais pode ser vista em episódios como o da Guerra dos Bálcãs, onde o papel da Otan simplesmente se deu como certo como um componente normal e conveniente do universo político por parte de uma ampla parcela da opinião pública que jamais havia sonhado fazê-lo há dez ou vinte anos. A atitude de fundo é: há capitalismo para muito tempo, vamos nos adaptar a ele.

O melhor modo de descobrir o segundo tipo de reação é em termos de desconsolo.5 Aqui estamos diante de uma acomodação sem princípios e os ideais de antes não são abandonados, mas chegam inclusive a ser reafirmados incondicionalmente. Mas diante do desalentador das perspectivas, há uma inclinação humana natural para encontrar resquícios de esperança em algo que do contrário se apresentaria como um entorno ameaçadoramente hostil. A necessidade de albergar uma mensagem de esperança estimula a inclinação para superestimar a importância dos processos contrários, a apoiar ações inapropriadas com possibilidades desinteressadas, a alimentar ilusões acerca de forças imaginárias. Provavelmente, nenhum dos que nos situamos na esquerda ficamos a salvo desta tentação, que pode inclusive buscar uma justificação na regra geral das conseqüências inesperadas derivadas de toda transformação histórica: o sentido dialético segundo o qual, inesperadamente, as vitórias podem gerar por sua vez vencedores sobre as mesmas. Também é certo que nenhum movimento político pode sobreviver sem oferecer a seus aderentes um certo alívio emocional, que em períodos de derrota desenvolverá inevitavelmente elementos de ressarcimento psicológico. Todavia, as tarefas de uma revista intelectual são outras. Sua primeira obrigação consiste em proporcionar uma descrição precisa do mundo, com independência de sua orientação moral. Tanto mais se temos em conta que há um terreno intermediário no qual o desconsolo e acomodação podem se superpor: isto é, quaisquer mudanças na ordem estabelecida calculadas para fortalecer seu domínio são festejadas como passos para sua dissolução, ou talvez como uma transformação qualitativa do sistema. O livro recentemente publicado de Russe Jacoby, End of Utopia, oferece mordazes reflexões sobre alguns aspectos da questão.

Que tipo de postura deveria a New Left Review adotar diante da nova situação? Creio que a atitude geral deveria consistir num realismo intransigente. Intransigente em dois sentidos: negando-se a toda acomodação com o sistema imperante e rejeitando toda piedade e eufemismo que possam subvalorizar seu poder. Disso não se depreende nenhum tipo de maximalismo estéril. A revista deveria expressar sempre sua solidariedade com os esforços em favor de uma vida melhor, por mais modesta que seja sua envergadura, mas deve apoiar todo tipo de movimento local ou de reforma limitada, sem pretender além do mais que alterem a natureza do sistema. O que não pode, ou não deveria fazer, é dar crédito às ilusões de que o sistema avança numa direção de progresso, ou então sustentar mitos reformistas de que é urgente e necessário proteger-lhe das forças reacionárias: atitudes manifestas, para colocar dois exemplos recentes, nas amostras de adesão à princesa e ao presidente por parte da esquerda bien-pensant, como se a monarquia britânica necessitasse de mais popularidade ou a presidência estadunidense de maior proteção. Esse tipo de histeria merece um ataque sem contemplações.

Os chamamentos a veneráveis tradições ou a instituições estabelecidas para, por assim dizer, viver segundo suas próprias normas constituem um assunto de outro matiz. Boa parte da melhor literatura da esquerda em nossos dias tenta levar ao pé da letra as convenções dominantes, tratando da hipocrisia oficial, o desajuste entre as palavras e os fatos, como a homenagem que o vício deve render à virtude, que promete um final feliz. Essa foi a orientação clássica privilegiada e praticada com eloqüência pela primeira New Left. Muitas contribuições à revista continuaram sendo redigidas nesses termos e há que se julgá-las por, freqüentemente consideráveis, méritos. Contudo, há um perigo com esse tipo de discurso. A linha entre o desejável e o factível pode não ficar clara, dando pé à mistificação em torno das realidades do poder e ao que racionalmente deve se esperar delas. A este respeito, é melhor que não fique nenhuma ambigüidade. A prova da capacidade da New Left Review para dar um tom político deveria estar na freqüência com que seja capaz de surpreender a seus leitores, chamando o pão de pão e o vinho de vinho, em vez de cair numa hipocrisia bem-intencionada ou enganar-se a si mesma acerca da esquerda. Hoje em dia, é o espírito da Ilustração, menos que o dos Evangelhos, que mais nos faz falta.

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Uma década não faz uma época. O grande golpe neoliberal da década de 1990 não é nenhuma garantia de poder perpétuo. De uma perspectiva histórica mais ampla, cabe fazer uma leitura mais esperançosa da época. Depois de tudo, este foi também um período em que foi derrotada a ditadura Suharto na Indonésia; a tirania clerical no Irã perdeu o seu vigor; na Venezuela, uma oligarquia venal foi expulsa; o apartheid terminou na África do Sul; os diferentes generais e seus fantoches civis foram dobrados na Coréia, e no Timor Oriental a libertação afinal venceu. Esses não eram movimentos que gozassem da confiança dos investidores ocidentais, como o que aconteceu com a primavera dos povos na Europa. Um ponto de vista otimista os consideraria como os germes de um próximo ajuste de contas: os últimos atos de uma contínua emancipação das nações, que constitui o verdadeiro processo de democratização em escala mundial e cujo resultado não estamos ainda em condições de imaginar. Outra versão apontaria muito mais a atenuação da hierarquia dos sexos, graças às pressões em escala mundial em favor da emancipação das mulheres como relato central da época. Ou então o aumento da consciência ecológica, que inclusive os Estados mais recalcitrantes se vêem agora obrigados a respeitar. O comum de todas estas visões é a insinuação de que o capitalismo poderá ser invencível, mas que poderia finalmente acabar dissolvido nas profundas águas de maiores cotas de igualdade, desenvolvimento sustentável e autodeterminação, de modo que esqueceríamos sua existência.

Sendo assim, tais profundidades continuam sendo insondáveis. A extensão da democracia como substituto do socialismo, como esperança ou reivindicação, fica em evidência diante da moldura dessa mesma democracia em suas terras natais capitalistas, para não falar de suas acompanhantes pós-comunistas: diminuição constante das percentagens de participação eleitoral, aumento da corrupção financeira e mediatização mortal. De modo geral, o vigor não pertence às aspirações democráticas vindas de baixo, mas à asfixia do debate público e da diferença política a partir de cima por parte do capital. A força dessa ordem não está na repressão, mas na adulteração e neutralização, e até o momento ela conseguiu resolver seus desafios mais recentes com destreza. As conquistas dos movimentos feminista e ecologista no mundo desenvolvido são reais e para serem apreciadas: trata-se dos elementos mais importantes do progresso humano dessas sociedades nos últimos trinta anos. Mas até agora demonstraram ser compatíveis com os hábitos da acumulação. Logicamente, contribuíram em boa medida para uma normalização política. O comportamento das feministas nos Estados Unidos e dos Verdes na Alemanha, países nos quais respectivamente é mais forte cada um desses movimentos, a serviço do governo Clinton na Casa Branca e da Otan nos Bálcãs, fala por si mesmo.

Isto não quer dizer que alguma outra força nos países capitalistas avançados tenha mostrado uma maior cota de antagonismo contra o status quo. Salvo raras exceções, a França no inverno de 1995, a classe trabalhadora encontra-se há vinte anos em letargia. Suas condições não é um mero resultado das mudanças econômicas ou dos deslocamentos ideológicos. Foram necessárias violentas lutas de classes para subjugá-la na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. Ainda que algo menos acovardados na Europa, os trabalhadores continuam na defensiva em todas as partes. O único ponto de partida para uma esquerda realista em nossos dias é numa lúcida constatação de uma derrota histórica. O capital repeliu ponto por ponto todas as ameaças contra o seu domínio, as bases de cujo poder as pressões da concorrência acima de tudo foram persistentemente subvalorizadas pelo movimento socialista. As doutrinas da direita que teorizaram o capitalismo como uma ordem sistêmica conservam todo o seu implacável vigor; em comparação, as atuais tentativas de enganar suas realidades por parte de um pretenso centro radical não passam de uma frouxa operação de relações públicas. Entre os que sempre acreditaram no valor primordial dos mercados livres e na propriedade privada dos meios de produção se contam muitas figuras de alto teor intelectual. Não se pode afirmar o mesmo da recente colheita de expurgadores e especialistas da beleza, que somente ontem deploravam a repugnância do sistema que hoje se encarregam de enfeitar.

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Para a esquerda, a lição do século passado é a ensinada por Marx. Sua primeira obrigação é prestar atenção no desenvolvimento real do capitalismo como uma complexa maquinaria de produção e lucro, em constante movimento. The Economics of Global Turbulence, de Robert Brenner, que ocupou todo um número da New Left Review, proporciona o exemplo adequado.[6] Não aparece no horizonte nenhuma agência coletiva capaz de enfrentar o poder do capital. Vivemos num tempo, enquanto a engenharia genética amadurece ameaçadora, em que a única força revolucionária capaz nesse momento de perturbar seu equilíbrio parece ser o próprio progresso científico: as forças produtivas, tão detestadas pelos marxistas convencidos da primazia das relações de produção quando o movimento socialista ainda estava vivo. Mas se por acaso as energias humanas para uma mudança de sistema voltarem a se libertar, o farão a partir de dentro do próprio metabolismo do capital. Não podemos dar-lhe as costas. Só na revolução dessa ordem caberia encontrar os segredos do outro. Esse é o sentido de investigações como as de Robin Blackburn na New Left Review acerca da marcha das instituições financeiras.[7] Aqui não há certezas; no máximo cabe fazer propostas e conjecturas teóricas.

Ideologicamente, a novidade da situação presente salienta-se a partir de uma perspectiva histórica. Pode se expressar da seguinte maneira. Pela primeira vez desde a Reforma, já não se dão oposições significativas, isto é, perspectivas sistematicamente opostas, no seio do mundo do pensamento ocidental; tampouco, apenas uma ou outra, em escala mundial, se deixamos de lado as doutrinas religiosas como arcaísmos inoperantes em sua maioria, como parecem nos indicar as experiências da Polônia e do Irã. Com independência das limitações que continuam impedindo seu exercício, o neoliberalismo como conjunto de princípios impera sem fissuras em todo o globo: a ideologia mais vitoriosa da história mundial. O que isso implica para uma revista como a New Left Review é uma descontinuidade radical na cultura de esquerda, quando esta se renova em termos de geração. Em nenhum outro aspecto é mais agudo o contraste como o contexto original da revista. Todo o horizonte de referência no qual se formou a geração da década de 1960 praticamente foi varrido do mapa: os fios do socialismo reformista e revolucionário igualmente. A lista dos nomes de Bebel, Bernstein, Luxemburg, Kautsky, Jauré, Lukács, Lênin, Tróstky e Gramsci aparece hoje para a maioria dos estudantes tão remota como uma lista de bispos arianos. Como retecer fios de significado entre o século passado e este seria uma das tarefas mais delicadas e difíceis que deveria enfrentar toda revista que leve a sério o termo “esquerda”. Não parece que haja muitos cartazes indicadores que ajudem a realizá-la.

Se damos uma olhada nas tradições intelectuais mais próximas no tempo e influência na primeira New Left Review, à primeira vista a situação não parece muito melhor. A maior parte do corpus do marxismo ocidental ficou também fora da circulação geral: Korsch, o Lukács de História e consciência de classe, quase todo Sartre e Althusser, a escola de Della Volpe, Marcuse. O que melhor sobreviveu é menos diretamente político: no essencial, a teoria da Escola de Frankfurt do período pós-guerra e algumas obras escolhidas de Benjamin. Em nosso país, Raymond Williams foi esquecido, quase como Wrigth Mills nos Estados Unidos há vinte anos; Deutscher desapareceu; o nome de Miliband fala de outro tempo.

Por outra parte, a história das idéias não é um processo darwiniano. Os principais sistemas de pensamento raras vezes desaparece, como se se tratasse de outras tantas espécies extintas. Ainda que não permaneçam compreendidas dentro de um contexto coerente, alguns filamentos dessas tradições continuaram demonstrando uma notável vitalidade. Poderíamos dizer que a historiografia marxista britânica conseguiu ser lida em escala mundial, algo que nunca havia acontecido anteriormente, graças a The Age of Extremes, de Hobsbawm, que provavelmente permanecerá como a interpretação do século passado mais influente neste século, enquanto história global de uma vitória a partir do ponto de vista dos vencidos. O trabalho de Jameson sobre a pós-modernidade, herdeiro direto do marxismo continental, não tem equivalentes fiéis como versão cultural da época. Robert Brenner nos proporcionou a única análise econômica coerente sobre o desenvolvimento capitalista a partir da Segunda Guerra Mundial; Giovanni Arrighi, a projeção mais ambiciosa de sua evolução a longo prazo. Tom Naim e Benedict Anderson são de primeira ordem acerca das ambigüidades políticas do nacionalismo moderno. Régis Debray desenvolveu uma das teorias mais sistemáticas acerca dos meios de comunicação de massa contemporâneos de que dispomos na atualidade. Terry Eagleton no campo literário, T. J. Clark nas artes visuais e David Harvey na reconstrução da geografia são figuras centrais para todos aqueles interessados nessas disciplinas

É suficiente a enumeração desses nomes para se dar conta de que não é concebível sua unificação forçada dentro de um único paradigma. A diversidade dos diferentes métodos, interesses e acentuação é muito grande. Ainda que em certa medida isso seja conseqüência da fragmentação da cultura da esquerda, é também uma expressão de desinibição criativa e de diversificação das linhas de investigação. A respeito dessas últimas, a revista deveria aspirar a apresentar uma paisagem inteligível na qual as distintas séries de trabalho encontrem uma relação recíproca acessível.

Ao mesmo tempo, há um aspecto intelectual mais extenso, de origem pouco ou nada marxista, que se define de esquerda no sentido lato e que continua hoje em movimento. Se considerarmos os campos da filosofia, da sociologia e da economia, teria que se incluir os trabalhos de Habermas, Derrida e Barry; Bourdieu, Mann e Runciman; Stiglitz, Sen e Dasgupta. Aqui podemos comprovar como se entrecruzam as mudanças de uma posição à outra: pensadores antes moderados vão se radicalizando na medida em que a hegemonia neoliberal vai se tornando absoluta, enquanto outros antes mais radicais vão se adaptando a elementos do saber convencional. Mas há um traço comum a boa parte desse leque de trabalhos, mais importante que esses redemoinhos: a combinação de uma atrevida ambição intelectual e uma ampla síntese disciplinar com um compromisso tímido ou trivial no próprio campo político, o qual constitui um eco longínquo do mundo vigoroso e apaixonado de Weber, Keynes ou Russell. Aqui se deixam ver particularmente as conseqüências da extirpação de todas as continuidades da tradição socialista, por mais indireta que pudesse ser a relação com esta última. O resultado característico é um espetáculo de impressionante energia e produtividade teórica, o produto cuja soma social é sensivelmente menor do que suas partes intelectuais.

Ao contrário, dominando o campo das construções diretamente políticas do momento, a direita proporcionou uma visão eloqüente uma depois de outra de para onde vai o mundo ou de onde parou: Fukuyama, Brzezinski, Huntington, Yergin, Luttwark, Fridrnan. Trata-se de escritores que combinam uma tese simples e poderosa com um estilo popular loquaz, destinado não tanto a leitores acadêmicos, mas a um público internacional amplo. Este gênero confiado, do qual até o momento os Estados Unidos ostentam praticamente o monopólio, não tem equivalentes na esquerda. No melhor dos casos, os programas normativos de “democracia cosmopolita” ou de “lei dos povos”, que colocam entre parênteses o curso real das coisas, continuam sendo a alternativa defeituosa. A New Left Review tampouco se ocupou muito do tema. Esta deveria ser uma das prioridades. É pouco provável que essa desigualdade no terreno intelectual se modifique sensivelmente antes que se produza uma mudança na correlação de forças políticas, que provavelmente permanecerá estável a não ser que ecloda uma profunda crise econômica no Ocidente. Só uma depressão de proporções não muito diferentes da do período entre-guerras está em condições de sacudir os parâmetros do consenso atual. O que não é razão suficiente para deixar, entretanto, passar o tempo, polêmico ou analítico.

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Assim, o panorama cultural apenas se assemelha àquele no qual florescera a primeira New Left Review. Três mudanças fundamentais definiram o lapso de tempo transcorrido. Em primeiro lugar, houve um imponente deslocamento de dominação dos códigos verbais para os visuais, com a preponderância da televisão sobre qualquer outro meio de comunicação anterior, seguido ulteriormente pela ascensão dos media eletrônicos, com o que se reproduziu tecnologicamente essa mesma correção. Certamente, esse modelo determinou a chegada das formas pósmodernas em geral. Em segundo lugar, outra marca distintiva destas últimas, grande parte da tensão entre os impulsos desviados ou insurgentes a partir de baixo e a ordem estabelecida a partir de cima foi absorvida, na medida em que o mercado se apropriou e institucionalizou a cultura juvenil quase da mesma forma que como antes conseguira limitar as práticas das vanguardas; mas, por se tratar de um mercado de massas, nesse caso muito mais a fundo. O resultado é a apoteose da mercadoria de ídolos como Jackson ou Jordan. Em terceiro lugar, a voltagem que conectava os sistemas altos e baixos, cujo circuito constituía um dos traços do período moderno, foi se encurtando na medida em que a distância, que era uma de suas condições, foi sendo derrubada progressivamente. O resultado é uma mútua caricatura, na medida em que ambos convergem num terreno comum: espetáculo da sordidez na Royal Academy e da pretensão nos óscares: Sensation e Dreamworks como formas complementares de kitsch. A literatura arrastada para o próprio turbilhão pelos prêmios em dinheiro e os gastos em publicidade gera um Eco ou o último Rushdie.

Para a revista o importante é o lado crítico da situação. A este respeito, se inverteu o modelo do lado da produção. Desde muito antes dava-se um vivo intercâmbio entre os níveis altos e baixos, se instalou uma polarização que tende a atar cada qual em seus próprios discursos hipertrofiados. Deste modo, as formas altas caíram vítimas das tortuosas rotinas da desconstrução filosófica, enquanto as formas populares se converteram no paraíso dos “estudos culturais” de tipo subsociológico. Ambos fundam suas raízes em filões de trabalho radicais de finais da década de 1950 e da de 1960: Hoggart e Williams por um lado, Bataille e Derrida, por outro. Em termos formais, as respectivas mutações continuam identificando-se, em sua maior parte, com a esquerda: para dizer a verdade, nas grandes ocasiões, como se ufanam em ressaltar os críticos de direita, praticamente como a esquerda, pelo menos nos Estados Unidos. Não obstante, quase sempre não vão além de uma alternativa entre obscurantismo e populismo ou, o que é pior ainda, de uma mescla de ambos, fazendo alarde de uma estranha combinação do demagógico com o apolítico.

O obscurantismo, como impedimento deliberado do significado, tem poucos defensores. Por sua parte, às vezes se pensa que o populismo tem um potencial progressista. Mas se deixarmos de lado suas origens legendárias na Rússia, onde, seguindo os critérios atuais, teria que se considerar os narodniki como astutos elitistas, o peculiar do populismo hoje em dia consiste na simulação de uma situação de igualdade vigente entre votantes, leitores ou espectadores que não existe na maioria dos casos e que serve para se passar por cima das desigualdades reais de conhecimento ou de alfabetização: um terreno no qual com muita facilidade se encontram uma direita cínica e uma esquerda piedosa. Assim, não surpreende o fato de que, das duas hermenêuticas disponíveis, os estudos culturais desfrutem de uma maior influência na atualidade, nem que, em suas formas deterioradas, constituam o principal obstáculo de toda recreação num sentido natural do movimento entre o alto e o baixo. Não faltam análises elogiosas da cultura de massas que determinam uma continuidade com as intenções originais que animaram a linha Hoggart-Williams. Todavia, salvo raras exceções, a prole da escola de Birmingham se encaminhou aos tropeções para uma adesão acrítica ao mercado como manancial entusiasta da cultura popular. Em tais condições, o papel da New Left Review deveria consistir em jogar resolutamente do lado contrário, procurando evitar toda nota neoleavisina. As contribuições de Julian Stallabrass à revista deram o tom preciso, abordando criticamente por sua vez os mais recentes meios eletrônicos, no âmbito das salas de videojogos, assim como a última pintura britânica no ponto em que atua, em todos os sentidos, para a galeria.

Em toda revista radical sempre é razoável uma tensão entre duas formas de crítica, igualmente necessárias, mas marcadamente distintas. Em linhas gerais, podemos identificá-las como os enfoques da cultura “de vanguarda” e “hegeliano”: o primeiro preocupado em assinalar uma postura agressiva e apressada, inclusive ao preço da unilateralidade, enquanto o segundo se empenha em decifrar de maneira mais indicativa a inteligibilidade histórica ou filosófica de um cenário mais vasto: Clement Greenberg e Fredric Jameson destacam-se aqui, respectivamente, como virtuosos. Ambos os estilos não são excludentes e a revista deveria estimulá-los por igual. Inevitavelmente, a necessidade de um e de outro varia em função do tema ou da conjuntura. Num âmbito como o cinematográfico, as reflexões mais sérias sobre o último êxito de bilheteria de Hollywood ou Elstree, ainda que bem-intencionadas, são um desperdício do espaço da New Left Review em comparação com o tratamento de diretores, sobretudo não pertencentes ao mundo de fala inglesa, que não fazem por merecer atenção ou resultam difíceis de ver. Como contrapeso às evoluções negativas do período anterior na zona metropolitana houve um enorme crescimento cultural em geral, como fica demonstrado pela multiplicação de produtores periféricos na Ásia, África, Oriente Médio e América Latina. No Ocidente essa realidade apenas está documentada, daí que constitua uma prioridade à qual a esquerda deveria se dedicar. Um bom texto sobre Hou Xiao Xien, Kiarostami, Sembene ou Leduc vale mais do que cem, por mais críticos que sejam, sobre Spielberg ou Coppola. Uma continuação deste procedimento trasladado para o novo cinema europeu (Amélio, Reitz, Jacquot, Zonka) suporia uma sucessão natural do ciclo pioneiro de Peter Wollen na primeira New Left Review.

Em termos mais gerais, o tipo de geografia literária que Franco Moretti veio elaborando, na medida em que centra sua atenção tanto no mercado como na morfologia das formas, proporciona uma ponte natural entre as zonas da cultura de massas e de elite, assim como, ultimamente, um “giro para o exterior” dos sistemas globais que propõe um modelo diferente. Em todos os campos, a New Left Review deveria tentar contra-arrestar o providencialismo, o narcisismo, na realidade do mundo de fala inglesa, centrando sua atenção, desproporcionada, se necessária, nas obras e nos produtores de fala não-inglesa. Um dos traços mais surpreendentes do panorama inglês atual (e a fortiori também do estadunidense) consiste em que, apesar de que nas escolas e nas universidades se ensinam muito mais línguas, literaturas e políticas estrangeiras do que há vinte anos, as referências culturais das gerações mais recentes, até as mais sofisticadas, freqüentemente são mais estreitas, já que a hegemonia de Hollywood, da CNN e do Bookerismo aumentou exponencialmente. Basta passar os olhos na esteira dos atuais estilos jornalísticos para se dar conta do paradoxo. Em consonância com sua tradição, a revista terá que se opor a essa involução.

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Editar uma revista com este conjunto de preocupações sempre foi um exercício de equilibrismo. Conseguir esse equilíbrio entre âmbitos tão díspares como o econômico e o estético, o sociológico e o filosófico, já seria um tanto complicado em si mesmo. Não obstante, aqui se consegue citar todos esses âmbitos, dada a natureza da publicação, sob a primazia do político, que coloca seus próprios problemas de definição e seleção. A estrutura da revista reflete tacitamente o centro de interesse que a organiza: os editoriais e os artigos principais se ocupam em regra geral de temas internacionais da atualidade. A New Left Review continua sendo antes de tudo uma revista política, afastada de todo consenso educado e de qualquer perímetro estabelecido de opinião. Mas não se trata de uma política que absorva os terrenos que aborda. A cultura de qualquer sociedade sempre excede o espectro da política ativa em seu seio, como uma reserva de significados dentre os quais só um leque limitado tem a ver com a divisão do poder, que é o objeto da ação política.[8]

Uma política eficaz respeita esse excesso. As tentativas de recrutamento forçado de qualquer âmbito teórico ou cultural com fins instrumentais serão sempre inúteis ou contraproducentes. O que não significa indiferença. A esquerda necessita de uma “política cultural”; mas o que isto supõe é, antes de tudo, uma ampliação dos limites de sua própria cultura. Em conseqüência, a New Left Review publicará artigos sem levar em conta a relação ou ausência de relação imediata destes a respeito das mencionadas agendas radicais.

Uma transformação fundamental da época anterior, freqüentemente comentada, foi a migração generalizada de intelectuais da esquerda para instituições de educação superior. Esta evolução, resultado não só das mudanças na estrutura profissional, mas também do esvaziamento das organizações políticas, da idiotização das editoras e da atrofia das contraculturas, dificilmente poderá inverter seu curso nos próximos tempos. Não é preciso dizer que isso gerou perdas específicas. Recentemente Edward Said chamou nossa atenção sem rodeios para as piores delas: níveis de redação que teriam deixado sem fala Marx ou Morris. Mas a academização causou estragos em outros aspectos: aparelhos inúteis, mais para justificar méritos do que por motivos intelectuais, referências repetitivas às autoridades na matéria, citações pretensiosas dos próprios trabalhos, etc. Na medida em que o considera oportuno, a New Left Review aspira a ser uma publicação erudita, mas não acadêmica. Diferentemente da maioria das revistas acadêmicas de hoje, para não falar das que não são, não deixa as notas para o fim dos artigos nem recorre a pobres referências sobre “Harvard”, mas respeita a clássica cortesia das notas de pé de página, como indicação de fontes ou como exposições tangenciais ao texto, acessíveis no ato ao leitor. Quando são necessárias, o autor pode usá-las como quiser. Mas não se aceitará mera proliferação pela proliferação, essa praga do excesso de autoridades em nossos dias. Deveria ser uma questão de honra para a esquerda escrever pelo menos tão bem como seus adversários, sem redundâncias nem confusão.

A revista oferecerá uma seção regular de resenhas de livros e fomentará o intercâmbio polêmico. A New Left Review sempre gozou de uma vantagem comparativa imerecida devido à língua em que se publica, já que o inglês desfruta de um público mundial que não possui nenhum outro idioma. A modo de compreensão, deveria tentar chamar a mesma atenção de seus leitores para obras importantes não publicadas em inglês, como sobre aquelas que o foram neste idioma. A resenha deste número proporciona uma amostra improvisada do que poderíamos fazer. Quanto às polêmicas, tradicionalmente foi se consolidando seu escasseamento nas páginas da revista. Confiamos em mudar esta circunstância. O presente número contém uma delas, como acontecerá no próximo. A respeito deste tipo de artigo, do mesmo modo do que em todo o restante da revista, o critério não é a correção política, como queira que se interprete, mas a originalidade e o vigor do argumento. Não se necessita de colaboradores que sejam convencionalmente de esquerda: há muitas áreas, talvez especialmente no âmbito das relações internacionais, nas quais os argumentos contra os sentimentos piedosos do progressismo habitual, compartilhado de modo geral pelos pilares do liberalismo respeitável, superam estes últimos. Freqüentemente, as críticas mais devastadoras da expansão da Otan e da Guerra dos Bálcãs vinham da direita. A revista deveria acolher intervenções deste tipo. Em troca, o que sobram são apologias das políticas oficiais da esquerda, muitas das quais puderam ser escutadas quando os B-52 decolaram rumo ao Kuwait ou a Kosovo. Estes tipos de discurso estão disponíveis todos os dias na imprensa do sistema. Neste sentido, o valor da troca polêmica deveria se situar distante dessa zona saturada de clorofórmio.

Por último, queria referir-me à situação da revista. A New Left Review é uma publicação concebida na Grã-Bretanha, um Estado cuja vida cabe esperar que não se prolongue muito, pelos motivos mordazmente expostos por Tom Naim. Por tal motivo, foi muito o que teve que dizer sobre o Reino Unido, e não deixará de fazê-lo agora. Ao mesmo tempo, muitos de seus editores vivem e trabalham atualmente nos Estados Unidos, país ao qual a revista também dedicou um sem-número de páginas. Durante décadas, os escritos de Mike Davis, que foi o colaborador mais constante deste país, sobre os Estados Unidos deixaram uma marca indelével. Não se pode esquecer tampouco os antecedentes europeus, que estimularam a maioria das idéias que deram origem à publicação. O alcance da New Left Review sempre ultrapassou esta linha de base ocidental. Mas, ainda que a revista tenha coberto o resto do mundo – tanto o Terceiro e o Segundo como o Primeiro, se é que tais termos continuam sendo válidos – na fortuna e na adversidade, segundo o período, seus autores continuaram precedendo essencialmente de suas terras de origem. Gostaríamos que isto mudasse. Chegará um momento em que os colaboradores da revista serão tão não-atlânticos como seus conteúdos. No momento, este objetivo está fora de nosso alcance. Mas é um horizonte que se tem que ter presente.

[1] Isaac Deutscher, “Three Currents in Communism”, em New Left Review, jan./fev., 1964. 
[2] Respectivamente, New Left Review, no 185, jan.-fev., 1991 (Blackburn); New Left Review, no 202, nov.-dez., 1993 (Wollen); Verso, 1994 (Cockburn); New Left Review, no 180, mar.-abril, 1990 (Halliday); Verso, 1997 (Nairn); New Left Review, no 202, nov.-dez., 1993 (Anderson); Arcadia, 1998 (Ali). 
[3] “The Dead of Neo-Liberalism”, em Marxism Today, nov./dez., 1998, primeiro número após seu reaparecimento. 
[4] The Lexus and Olive-Tree (Nova York, 1999), p. 354. Numa via semelhante, Yergin e Stanislaw terminam seu percurso entusiasta sobre o triunfo dos mercados em escala mundial com uma homenagem a Blair, artífice da “extraordinária façanha de fundir os valores social-democratas de eqüidade e integração com o programa econômico thatcheriano”, ver The Commanding Heights (Nova York, 1999), p. 390. 
[5] Logicamente há uma terceira reação possível ao curso dos tempos, isto é, nem acomodação nem desconsolo: a saber, a resignação; em outros termos, um reconhecimento lúcido da natureza e do triunfo do sistema, sem pretensões de adaptação, nem ilusões vãs, mas também sem fé alguma nas possibilidades de qualquer alternativa. Contudo, uma conclusão tão amarga rara vez se articula como posicionamento público. 
[6] New Left Review, no 229, maio-junho, 1998; está prevista a publicação de uma edição aumentada pela Verso. 
[7] “The Colletivism”, em New Left Review, no 223, jan.-fev., 1999. 
[8] Pode se encontrar um argumento excepcional em favor da assimetria entre cultura e política em Francis Mulhern, The Present Last a Long Time (Cork, 1998), pp. 6-7, 52-53.

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