Volume 58, Issue 09 (February) |
François Chesnais definiu três etapas no processo de globalização financeira. A primeira ocorreu na década de 1970 e ele chama de "internacionalização financeira indireta de sistemas nacionais fechados". Países latino-americanos, incluindo o Brasil, participaram desse processo de atrair um volume substancial de empréstimos. A segunda etapa, 1980-85, começou com a "ditadura dos credores" de Paul Volcker e a descoberta do neoliberalismo pela Margaret Thatcher como a doutrina para a nova era. Os países centrais, começando pelos Estados Unidos e Grã-Bretanha, desbloquearam seus mercados financeiros liberalizando o fluxo internacional de capital. A interligação dos sistemas nacionais tornou-se mais direta e imediata através das finanças do mercado. Na América Latina, a crise da dívida explodiu com o aumento das taxas de juros (após o choque Volcker negativo) envolvendo uma dívida maciça contratada no período anterior negociado pelo sistema bancário.[1]
Segundo Chesnais, a última etapa começou em 1986 com a acelerada interligação dos sistemas nacionais pelos mercados financeiros através da incorporação de países periféricos. A abertura e a desregulamentação dos mercados de ações e obrigações dos chamados Países Recentemente Industrializados e do Terceiro Mundo em geral começaram nos anos 90. Medidas tomadas pelos governos Collor / Itamar e Cardoso foram fundamentais na preparação da economia brasileira para participar plenamente da reviravolta financeira da economia capitalista. A administração Luiz Inácio Lula de Silva (Lula) perpetuou esse processo.
A natureza da presença internacional de nossa economia como articulada pela atual administração provou que, se houve uma "especialização" do Brasil nos últimos quinze anos, foi a capacidade de oferecer lucros fantásticos ao capital financeiro internacional, uma habilidade adquirida gradualmente. Em suma, não foi o comércio que tem cada vez mais inserido o Brasil na economia mundial, mas as finanças. Os esforços do governo Lula concentraram-se na consolidação da posição do país como provedor de ativos baratos e como uma plataforma internacional para a valorização financeira. Esta tendência torna-se clara se acompanharmos a evolução dos pagamentos de juros no balanço de pagamentos estrangeiros: de menos de US $ 12 bilhões em 1990 para US $ 21 bilhões em 2002 (último ano de Cardoso no cargo) e US $ 29 bilhões em 2005, talvez chegando a US $ 35 bilhões 2006. A evolução dos investimentos em carteira (o investimento paradigmático nesta última fase da globalização financeira) foi ainda mais clara: de quase 400 milhões de dólares em 1990 para 9,8 bilhões de dólares em 2002 e 12,5 bilhões em 2005. À luz das medidas adotadas no início de 2006 para fornecer incentivos para as vendas de títulos brasileiros entre os não-residentes, a despesa vai passar facilmente a marca de US $ 15 bilhões este ano.
Ao contrário da propaganda governamental, o resultado líquido desse tipo de crescente "presença" econômica internacional tem sido o de tornar o país mais, não menos vulnerável. A atual evolução positiva dos movimentos voluntários de capitais não foi apenas o resultado do "choque externo positivo". Houve também um fator interno em jogo, o tipo de política monetária e cambial articulada durante o último período de Cardoso e continuada até agora por Lula. O problema com esse tipo de política foi que ele criou um novo círculo no qual as conseqüências das decisões dos investidores geram sua própria continuidade. O dilúvio de dólares que penetrou a economia brasileira por meio de investimentos em carteira não veio depois de altas taxas de juros apenas, mas também depois da valorização da moeda nacional, o que aumenta ainda mais os lucros potenciais em moedas internacionais fortes. A crescente entrada de moeda estrangeira tem garantido que o real brasileiro continuará a apreciar, e que isso trará cada vez maiores quantidades de moeda forte, representando uma espécie de bolha especulativa centrada no real. Em suma, as expectativas geram decisões que criam os resultados esperados - por enquanto. Os mercados de derivados reforçaram ainda mais este movimento circular, aparentemente auto-perpetuado. Considerando a instabilidade dos fatores que alimentam esse processo (a abundante liquidez dos mercados internacionais), é óbvio que quando o processo reverter, o mesmo mecanismo que agora magnifica "os bons resultados" ampliará o eventual desastre - não importa quão bons os indicadores de vulnerabilidade externa possam.
Lula e seu Partido dos Trabalhadores (PT) têm sido os críticos mais severos da política de concessões de Cardoso aos interesses financeiros. No entanto, uma vez no poder, Lula não tomou as medidas necessárias para tirar o país da armadilha. Pelo contrário, seguiu com entusiasmo a estrada já tomada, não apenas seguindo uma política macroeconômica ultraconservadora, mas intensificando a abertura financeira da economia. Ele se beneficiou de uma espécie de "choque externo positivo". Mas quando o vento se transforma (começou a virar em 2006) sua irresponsabilidade será clara e a casa de cartas em que o crescimento falso e morno do país sob sua administração foi erigida será evidente para todos.
A evolução da balança de pagamentos do Brasil
The unfavorable international situation, resulting from the global financial crisis of 1997–99 (usually referred to as the “Asian Financial Crisis” but also extending to Latin America, and in particular Mexico, Brazil, and Argentina) enormously complicated Fernando Henrique Cardoso’s second term (1999–2002). The winds changed for the better both in international trade and finance in 2003–05, the first three years of the Lula administration. Bearing in mind the continuity in economic policy vis-à-vis the former government, our hypothesis is that the benign international situation, not internal economic policy, was the fundamental factor in the seemingly improved Brazilian external situation in the Lula period. It is from this standpoint that common assumptions regarding Brazil’s reduced external vulnerability have to be questioned.
The position of Brazil’s economy within international markets has undoubtedly undergone important changes in the first three years of the Lula administration. This can be gauged by following the evolution of the two main items in the payments balance sheet of the period: the current account balance and the capital and financial account balance. The net result of current account transactions showed a growing surplus (the first since 1992) during these three years of $4.2 billion in 2003, $11.7 billion in 2004, and $14.2 billion in 2005 based on growing trade surpluses obtained since 2001 (rising from $13.1 billion in 2001 to $44.8 billion in 2005).
At the same time as a surplus grew in the current account, the capital and financial account went into deficit in 2004 and 2005, reflecting the fact that Brazil was reducing its external financial liabilities. Nevertheless, this deficit in the capital and financial account balance, which might at first glance suggest that Brazil is moving from a debtor to a creditor position in the world economy, must be looked on with extreme caution because it masks the behavior of capital dominated by two different dynamics: voluntary capital (non-IMF regulated capital movements) and operations regulated by the IMF. The favorable international conditions alleviated external restrictions and made possible the payment of all debts to the IMF in 2004–05. In 2005 capital and financial accounts were negative by more than $9 billion. However, the voluntary capital balance showed a surplus of $13.8 billion based on foreign direct investment as well as portfolio investments—a reality that was disguised in the overall capital and financial account balance by the early payments to the IMF (registered under “regulated operations”).
This performance of the two primary accounts (the current account and the capital and financial account) in the balance of payments—reflecting the evolution of the international presence during this period—is associated with “legacies” from the Cardoso government, such as the floating exchange rate adopted after the exchange crisis of 1998–99, the devaluations in 2001 and 2002, and the intensifying of the financial opening. Those changes are closely related to a benign international situation of those years on the trade and the financial fronts.[2] But they also reflect the financial globalization of the Brazilian economy in ways that point to continuing structures of external vulnerability. The Brazilian economy remains highly vulnerable to volatile movements in financial capital.
Liberalização financeira
A presença financeira durante o governo Lula tem sido condicionada por três fatores principais: abertura financeira crescente, novo ciclo de liquidez nos mercados internacionais para os países periféricos e taxa de câmbio flutuante. A abertura financeira do Brasil teve início cauteloso no final da década de 1980, durante o governo Sarney, mas foi decisivamente intensificada nos governos Collor/Itamar e Cardoso. O governo Lula deu continuidade a esse processo usando a mesma abordagem ad hoc que seus antecessores, por meio de resoluções e decisões do Banco Central, e pela emissão de decretos sobre a liberalização financeira. As pessoas físicas e jurídicas (corporações) foram autorizadas, pela primeira vez, a comprar moeda estrangeira ilimitada diretamente dos bancos (esse tipo de operação era regulada anteriormente pelo Banco Central) para ser investido no exterior. No caso de venda ou cessação de investimentos estrangeiros, deixou de ser obrigatório devolver o dinheiro feito ao país, podendo ser reinvestido livremente no exterior. Daí em diante, qualquer indivíduo poderia enviar dinheiro para o exterior sem ter que operar através de um velho expediente - as chamadas contas CC5 - que tornava essas remessas mais caras. As saídas de capital se tornaram não apenas mais simples, mas mais baratas. O resultado líquido dessas mudanças foi que se tonou muito mais simples converter reais em dólares e enviá-los para o exterior. Ao mesmo tempo, o governo Lula estendeu o tempo para que os exportadores pudessem manter suas divisas no exterior e, mais recentemente (maio de 2006), anunciou que está estudando a possibilidade de permitir que os exportadores mantivessem no estrangeiro a moeda obtida pelas exportações e precisassem comprar importações.3 Finalmente, a partir de fevereiro de 2006, incentivos fiscais foram fornecidos a investidores estrangeiros para comprar títulos de dívida interna, reduzindo impostos. A medida também permite ofertas públicas iniciais e aberturas de capital por parte de empresas privadas. A abundante liquidez internacional e a intensificação da abertura financeira no Brasil combinaram-se para produzir um influxo substancial de US $ 13,8 bilhões em capital voluntário em 2005.
Apesar do aumento do valor do dólar, a bolsa brasileira permaneceu a mais barata entre os países emergentes. Isso e a expectativa de uma reavaliação contínua do real atraíram investimentos estrangeiros com a promessa de grandes lucros em moeda forte. Nestas circunstâncias, é racional alertar sobre a natureza deste tipo de fluxo circular, repetido com outros tipos de ativos financeiros. O frenesi de auto-alimentação que isso implica é uma característica normal de qualquer aumento na especulação financeira. Mas esse círculo virtuoso é quase certo se tornar um círculo vicioso na desaceleração.
Essas e outras mudanças alteraram a composição e aumentaram os passivos externos da economia brasileira. Com o crescimento do investimento estrangeiro direto, e principalmente com o crescimento do investimento em carteira, as ações de ativos produtivos e financeiros pertencentes a não residentes foram ampliadas, enquanto a dívida soberana estrangeira perdeu peso relativo. A reavaliação contínua do real e a taxa de juros muito alta foram críticas para esse resultado, particularmente após a desvalorização aguda do final de 2002.
A presença do comércio
O período 2003-2005 foi, como vimos, um de crescentes superávits comerciais, produzindo resultados positivos em transações correntes. Uma vez que o período também se caracterizou por um processo contínuo de reavaliação do real, pode-se perguntar como e por que os superávits comerciais passaram de US $ 13,1 bilhões em 2002 para US $ 24,8 bilhões em 2003, US $ 33,7 bilhões em 2004 e US $ 44,8 bilhões em 2005. O Estudo da UNCTAD mostra que os termos de troca não explicam a evolução, uma vez que cresceram apenas 3% entre 2002 e 2004.[4] A explicação é a expansão do comércio internacional liderada pelos Estados Unidos e pela China, os dois gigantes, e o preço dos recursos naturais, crucial para a posição de exportação do Brasil, que constituiu um "choque externo positivo" na esfera comercial (choque que também afeta, como vimos, a esfera financeira). De fato, a recuperação do setor de comércio exterior brasileiro começou em 1999, após os anos de déficit de Cardoso. As mudanças na política monetária após a crise que abruptamente desmoronou o real no início de 1999 levou a um aumento das exportações, particularmente de produtos básicos e semi-manufaturados em 1999-2002.
O período 2003-2005 foi, como vimos, um de crescentes superávits comerciais, produzindo resultados positivos em transações correntes. Uma vez que o período também se caracterizou por um processo contínuo de reavaliação do real, pode-se perguntar como e por que os superávits comerciais passaram de US $ 13,1 bilhões em 2002 para US $ 24,8 bilhões em 2003, US $ 33,7 bilhões em 2004 e US $ 44,8 bilhões em 2005. O Estudo da UNCTAD mostra que os termos de troca não explicam a evolução, uma vez que cresceram apenas 3% entre 2002 e 2004.[4] A explicação é a expansão do comércio internacional liderada pelos Estados Unidos e pela China, os dois gigantes, e o preço dos recursos naturais, crucial para a posição de exportação do Brasil, que constituiu um "choque externo positivo" na esfera comercial (choque que também afeta, como vimos, a esfera financeira). De fato, a recuperação do setor de comércio exterior brasileiro começou em 1999, após os anos de déficit de Cardoso. As mudanças na política monetária após a crise que abruptamente desmoronou o real no início de 1999 levou a um aumento das exportações, particularmente de produtos básicos e semi-manufaturados em 1999-2002.
No entanto, apesar dos bons resultados globais, as exportações brasileiras permaneceram tecnologicamente atrasadas e, portanto, não dinâmicas em termos de comércio mundial. As exportações brasileiras são alimentadas pelo setor agrário, minerais, siderúrgicos e pelos setores em que o Brasil é competitivo por causa dos baixos salários e dos abundantes recursos naturais.[5] A contínua importância das commodities na carteira de exportações é um indicador de sua fragilidade, tanto que commodities - principal motor da performance exportadora brasileira - foram o fator menos importante no desempenho exportador de países em desenvolvimento como Índia, México e China.
As importações brasileiras permaneceram concentradas nos produtos de média e alta tecnologia. A participação desses setores nas compras externas permaneceu estável em 60% entre 2002 e 2005. Esses setores (eletrônicos, elétricos, químicos e farmacêuticos) foram dominados por empresas transnacionais e não houve substituição das importações após as desvalorizações. Tais substituições teriam requerido a coordenação estatal da indústria, ciência, tecnologia e política de comércio exterior.
A conclusão geral deve ser que o padrão que governa a posição do comércio exterior na economia brasileira não mudou durante o governo de Lula. Esse padrão foi consolidado na década de 1990, através da abertura do comércio, da reavaliação da moeda nacional em termos reais e de novas estratégias por parte das transnacionais (no caso do Brasil, as agências locais atuam mais como compradoras para o mercado interno do que produtoras para o mercado global). Esse processo resultou em uma especialização regressiva da indústria brasileira, uma perda de importantes setores intensivos em capital e tecnologia, e simultaneamente uma diversificação e crescimento de setores tradicionais, baseados em recursos naturais e mão-de-obra.
O relatório da UNCTAD de 2003 classificou os países em desenvolvimento em quatro grupos: países industriais maduros, como a Coréia e Taiwan, onde o crescimento industrial se desacelerou porque atingiram um alto nível de industrialização; países em rápida industrialização, como a China e a Índia, que apresentam altas taxas de investimento interno devido à sua política industrial e incentivos à exportação; países com postos industriais avançados, como o México, que mostra crescimento nas exportações industriais, mas fica aquém de investimentos, adição de valor e produtividade total; e os países em desindustrialização, economias com uma decrescente participação da produção industrial no seu PIB. O Brasil está diretamente no último grupo e a complacência do governo Lula com a situação e seus resultados no comércio exterior indicam que o país terá em breve de deixar para trás mesmo um rótulo tão pouco favorável. De fato, uma dialética da desindustrialização e da globalização financeira constitui a experiência econômica recente do Brasil sob Lula, que, infelizmente, continuou com as mesmas políticas básicas de seus antecessores. Quando o vento finalmente virar, como deve acontecer, as terríveis consequências desta política irresponsável tornar-se-ão demasiado evidentes.
Notas
[1] Introdução a F. Chesnais, ed., A Mundialização Financeira (São Paulo: Xamã, 1998).
[1] Introdução a F. Chesnais, ed., A Mundialização Financeira (São Paulo: Xamã, 1998).
[2] Analysis of the financial presence precedes that of the trade presence because the level of financial opening and decisions of investment by foreign portfolio managers exercise a decisive influence on the behavior of real and nominal exchange rates, crucial factors for the country’s trade presence.
[3] O álibi do governo para essa medida é que há um excesso de dólares no mercado interno, o que poderia levar a uma reavaliação do real. No entanto, esse tipo de medida torna o país muito mais externamente vulnerável no caso de uma mudança de direção dos ventos suaves que ainda sopram nos mercados financeiros internacionais (ninguém sabe ao certo por quanto tempo). Enquanto isso, o Senado vai debater uma lei que elimina qualquer obrigação, abrindo assim o caminho para a abertura financeira final, ou seja, a possibilidade de manter os lucros das exportações em contas denominadas em dólares no sistema bancário nacional. Isso significaria que o influxo de moeda forte criado pelas exportações estaria subordinado às mesmas variáveis que governam os fluxos financeiros: diferenciais entre taxas de juros internas e internacionais, expectativas de mudança nas taxas de câmbio e risco de inadimplência. Assim, o espaço de manobra seria reduzido e o Banco Central teria dificuldade de estocar reservas estrangeiras.
[4] UNCTAD, Trade & Development Report (Geneva, United Nations Conference on Trade & Development, September 2005), chap. 3.
[5] A metodologia agrega produtos da Standard Internacional Trade Classification (SITC).