A política social do governo Lula, marcada pela reforma da Previdência e pela focalização do Bolsa Família, foi estruturada para gerar grandes superávits e servir aos interesses do capital financeiro, desmantelando direitos sociais universais em nome da estabilidade econômica.
Áquilas Mendes e Rosa Maria Marques
O conceito de proteção social do governo Lula não consta de nenhum documento oficial, nem de seu Partido dos Trabalhadores (PT), nem de suas plataformas eleitorais. É por isso que é tão difícil para o público em geral, desconhecedor dos princípios da política social, compreender o significado de suas propostas e políticas efetivas. Na tentativa de explicar esse conceito, discutiremos a reforma do sistema previdenciário do governo, destacando seu impacto no aparato estatal. Analisaremos o cerne de sua política social, representado pelo Programa Bolsa Família, e descreveremos a forma como o gabinete econômico concebe a política social. Desde já, destacamos que a política pública de Lula suspende avanços anteriores no campo dos direitos sociais, busca criar um sistema de saúde privado e erige redes de assistência social não fundadas em direitos. Este último fator é crucial para a criação de uma nova base de apoio ao governo, não estruturada em torno de organizações sociais, sindicais e políticas de trabalhadores.
A contrarreforma da previdência
A reforma da Previdência aprovada em dezembro de 2003 retomou a questão exatamente onde ela havia sido deixada durante o governo Fernando Henrique Cardoso: a idade é o único critério para a aposentadoria de servidores públicos; o valor das aposentadorias não é mais definido pela renda média da ativa1; os impostos e as contribuições previdenciárias são recolhidos dos aposentados, embora essa ideia contrarie os próprios princípios do direito previdenciário, uma vez que não gera benefícios futuros; e estão criadas as condições para a futura privatização do sistema em benefício de fundos de pensão administrados por sindicatos e empresas privadas. Para levar adiante sua proposta, Lula utilizou todos os tipos de expedientes — de meias verdades a preconceitos e desinformação.
Nessa disputa por corações e mentes, o governo se valeu da crença geral de que há um grande déficit no sistema previdenciário, crença essa construída por governos anteriores ao longo de muitos anos. No entanto, o argumento acabou sendo abandonado devido à enxurrada de informações contrárias vindas da mídia e de formadores de opinião, e não figurou na minuta final de votação. No Brasil, as aposentadorias, juntamente com a saúde, o seguro-desemprego e a assistência social, são administradas pela Secretaria de Previdência Social. Por determinação constitucional, os recursos fiscais que as financiam, provenientes de diferentes bases tributárias, não podem ser tratados isoladamente. No entanto, o governo descartou essa determinação constitucional e comparou os valores pagos como aposentadorias com os recursos arrecadados de trabalhadores com carteira assinada, ou seja, aqueles que trabalham em condições legais do ponto de vista das relações de trabalho. Mas, se o princípio constitucional da previdência social for seguido, o sistema apresenta um superávit (R$ 47,3 bilhões em 2005) maior do que o gasto federal total com saúde, por exemplo.
Outra estratégia foi apresentar a ideia de que o Estado é ineficiente e que os servidores públicos são privilegiados e preguiçosos. Para reforçar esse argumento, foi feita uma comparação entre a aposentadoria de um funcionário público relativamente sênior e a remuneração média dos trabalhadores do setor privado, diluída pela média de milhões que ganhavam o salário mínimo imposto pela Constituição na época da restauração democrática.² Assim, um público já acostumado à ideia de que o serviço público era de baixa qualidade e ineficiente por anos de bombardeio da mídia e de pensadores antigovernamentais se opôs aos servidores públicos. Assim, isolados, os servidores públicos dispunham apenas de seus próprios recursos para lutar contra as reformas de Lula.
Uma motivação apresentada para a reforma é o entendimento de que os fundos de pensão criariam uma poupança nacional significativa, ajudando a financiar o desenvolvimento doméstico. Além disso, o governo declarou que usaria os fundos de pensão para financiar futuras infraestruturas e programas sociais — como parte de seu plano de introduzir um sistema de benefícios indefinidos, ou seja, sem garantia de valor para as aposentadorias. Há quem defenda isso como uma forma de os trabalhadores ganharem poder em um mundo dominado pela globalização financeira, uma leitura da realidade comum a vários ex-funcionários do governo Lula, atualmente afastados do cargo devido a alegações de corrupção. Mesmo assim, as regras de aposentadoria para funcionários públicos foram alteradas e foram emitidas licenças para sindicatos criarem seus próprios fundos de pensão.
Outro motivo alegado para a reforma, também a serviço do capital financeiro, é a obtenção de grandes superávits primários. Nos últimos anos, o Brasil fez um enorme esforço para gerar superávits e pagar sua dívida externa. O novo governo manteve essa política, como demonstrado em uma carta do ministro da Economia, Antonio Palloci, a Horst Köhler, diretor-geral do FMI, enviada em 28 de maio de 2003, um mês após o envio da lei de reforma ao Congresso.
O governo agiu rapidamente para implementar sua agenda de recuperação econômica e reforma. Após um importante esforço de construção de consenso, um ambicioso pacote de reforma tributária e previdenciária foi enviado ao Congresso antes do esperado. A política fiscal concentrou-se na redução da dívida pública: a Lei de Diretrizes Orçamentárias enviada ao Congresso eleva a meta de superávit primário para 4,25% do PIB. Além disso, foi aprovada a emenda constitucional que flexibiliza a regulamentação financeira — medida necessária para consolidar a autonomia do Banco Central.
Contrarreforma da previdência e o Estado
A reforma do sistema previdenciário foi antidemocrática e promoveu uma redistribuição inversa da renda dos servidores públicos para o capital financeiro. Foi antidemocrática principalmente porque ignorou a necessidade de regras transitórias adequadas. No caso dos servidores públicos, a lei costumava garantir pagamentos de aposentadoria iguais aos salários da ativa, o que significa que os trabalhadores não tinham perda de renda no momento da aposentadoria. Tudo isso sob o entendimento de que o sistema compensava os servidores por salários inferiores aos pagos pelo setor privado, especialmente os dos servidores públicos menos qualificados. Ao longo da vida, a renda total auferida pelos servidores públicos e privados tendia a convergir, uma vez que os servidores do setor privado sofrem uma perda abrupta de renda no momento da aposentadoria (quanto maior o salário, maior a perda) e os servidores públicos, que ganham menos na ativa, não têm perda na aposentadoria. Em outras palavras, o acordo entre o setor público e seus trabalhadores era uma garantia de renda vitalícia, embora inferior à oferecida pelo setor privado para o mesmo nível de qualificação. Por meio desse sistema, os servidores públicos se protegeram da incerteza do futuro e conseguiram criar uma relação renda/poupança diferente daquela dos trabalhadores do setor privado. Embora sua renda líquida fosse menor, os servidores públicos precisavam poupar menos para o futuro, pois sua renda futura estava garantida.
As reformas de Lula significaram a quebra desse pacto entre o Estado e seus servidores públicos. Essa ruptura foi extremamente violenta, pois não considerou o fato de que os servidores públicos não têm como corrigir sua relação renda/poupança passada. Vale lembrar que são poucos os que se qualificariam para uma aposentadoria integral sob as novas condições (idade, tempo de serviço e anos de contribuição ao sistema). Em qualquer sociedade democrática, quando as leis de aposentadoria são alteradas, um sistema transitório deve ser aplicado para minimizar as perdas daqueles que já estão no mercado de trabalho. Parece que a promessa do governo de não quebrar contratos, declarada publicamente em diversas ocasiões, não se aplica a quem trabalha para ele.
Como não há expectativa de que os servidores públicos deixem de receber salários inferiores aos dos servidores do setor privado, a mudança no sistema previdenciário desestimulará profissionais qualificados a se candidatarem a empregos públicos. O único cenário em que isso não ocorreria seria um cenário de alto desemprego, quando os empregos públicos seriam mais valorizados. A reforma previdenciária implementada pelo governo Lula é um passo decisivo para a destruição do Estado de bem-estar social brasileiro, processo iniciado pelo governo Collor.
Bolsa Família: O carro-chefe da política social do Governo Lula
O Projeto Fome Zero: Seguro Alimentação para o Brasil, do governo Lula, utiliza como referência a linha de pobreza mundial do Banco Mundial (US$ 1,08 por dia), ajustada pelo custo de vida regional e pela existência ou ausência de agricultura autossustentável. O principal alvo do projeto era a população vivendo abaixo dessa linha de pobreza — 44,043 milhões de pessoas, abrangendo 9,32 milhões de famílias — um número que abrange 21,9% de todas as famílias, 27,8% da população total, 19,1% da população urbana, 25,5% da população urbana não metropolitana e 46,1% da população rural. O tamanho da população empobrecida dificulta a visão de que as políticas direcionadas a ela sejam de alguma forma focadas. De fato, é lógico que a política não seja universal, visto que o tamanho da população-alvo é enorme.
Após os primeiros meses de governo Lula, os esforços se concentraram no Programa Bolsa Família, que substituiu programas pré-existentes. O Bolsa Família não criou um direito social, mas, como o nome sugere, foi um benefício criado pelo governo federal (ver tabela 1). Pesquisa realizada por Marques e outros em 2004 estimou que, em dezembro de 2003, quando 4,1 milhões de famílias recebiam o Bolsa Família, a população atendida, considerando a média de pessoas por família, era de 16,5 milhões. No segundo ano de governo Lula, em 2004, o programa atingiu 5,7 milhões de famílias. Em dezembro de 2005, atingiu 8,7 milhões de famílias em todas as secretarias municipais do Brasil. Em maio de 2006, o programa beneficiava 9,1 milhões de famílias, número abaixo da população-alvo total de 11,1 milhões.
Bolsa Família, benefícios mensais à população-alvo, 2006
A maior parte da população beneficiada pelo programa (69,1%) reside na região Nordeste, a região mais pobre do Brasil. O percentual da população beneficiada foi bastante elevado, com alguns municípios apresentando proporções de 13% a 45%. Este último percentual foi alcançado em cidades com menos de 20.000 habitantes, bem como em municípios rurais com populações de 20.000 a 100.000 habitantes, com Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M) abaixo da média nacional e economias dominadas por atividades do terceiro setor, ou seja, sem fins lucrativos.
Os resultados alcançados na região Nordeste refletem a pobreza generalizada de sua população, mas a concentração do Bolsa Família nessa região não significa que outras áreas não tenham populações consideráveis que poderiam se beneficiar do programa. Um exemplo seria Itaguatins (cidade com menos de 20.000 habitantes, com IDH-M abaixo da média e economia dominada por atividades do terceiro setor) ou Tocantins, na região Norte, onde 38% da população total utiliza o programa. Com exceções, a população atendida na região Sul é relativamente pequena, reflexo da situação econômica e social local. Mesmo assim, o programa ainda cumpre o papel de sustentar um nível mínimo de renda. Por exemplo, em Porto Alegre, sede de vários encontros do Fórum Social Mundial e cidade com IDH-M acima da média nacional, 5% da população se beneficia do programa, uma proporção nada desprezível.
Limitações do Programa
O padrão de vida de milhões de brasileiros foi melhorado pelo Bolsa Família do governo Lula. Mas a pré-condição para aderir ao programa é uma renda real muito baixa, bem abaixo do salário mínimo, o que por si só é inadequado. Embora o programa beneficie uma parcela considerável da população brasileira, um grande setor da população, aqueles que ganham o salário mínimo, não tem direito a esses benefícios — sob a alegação de que sua renda é muito alta. No entanto, é fato que o salário mínimo é o limite inferior da escala salarial legítima, e qualquer salário abaixo dele seria ilegal e imoral para os padrões sociais. De acordo com a legislação que o tornou possível, o salário mínimo deve constituir um salário real para os trabalhadores e suas famílias. No entanto, apesar de, durante o governo Lula, ter recuperado parte de seu poder de compra real, o salário mínimo permanece muito abaixo da renda mínima real necessária para a sobrevivência de uma família de dois adultos e duas crianças, conforme estipulado em lei.3
O fato de o Bolsa Família não levar em consideração o significado legal do salário mínimo, o de ser a renda mínima nacional legal, aponta para a realidade de que o governo não vê a necessidade de a população ter uma renda mínima comum ao nível do salário mínimo.4 A noção de que o salário mínimo deve corresponder à renda mínima necessária à sobrevivência expressa o fato óbvio de que não há diferença entre as necessidades básicas absolutas de um trabalhador no mercado formal e as de, por exemplo, um barqueiro na Bacia Amazônica.
É necessário que medidas sejam tomadas para romper com a lógica maligna da acumulação de riqueza no Brasil e, ao mesmo tempo, é urgente instituir como direito a garantia de um nível básico de renda para todos. Essa renda deve ser entendida como um direito derivado do conceito de cidadania, portanto consagrado na Constituição. Somente assim a renda mínima seria assegurada como um direito básico de qualquer cidadão brasileiro, assim como a saúde e o ensino fundamental — e não uma mera política de assistência social.
Mesmo que um programa mais ambicioso — que garanta maior qualidade de vida para a população e não apenas que as famílias mais pobres permaneçam um centímetro acima da linha da pobreza absoluta — demandasse uma parcela significativa dos recursos, o que não ocorreria, ainda assim deveria ser prioridade para a política social vigente. Afinal, é a única maneira pela qual a sociedade brasileira pode se declarar engajada no desenvolvimento do país. Crescimento sem redistribuição de riqueza não apenas perpetua uma história de extrema desigualdade, como a intensifica.
O nascimento de um "Novo Populismo"
O Bolsa Família criou uma nova base de apoio para o governo Lula, independente de sindicatos e movimentos sociais. A partir dessa política, criou-se uma relação especial entre o governo e os setores mais pobres da população, o que chamamos de "novo populismo".
Nossa utilização do termo "populismo" é política: "um tipo de ação política que toma como base de legitimidade o cidadão comum, cujos interesses aspira representar" ou "uma política fundada no avanço das classes populares". Certamente, esse não é o uso corrente na economia, que associa populismo a governos que gastam mais do que arrecadam. Bresser Pereira, que também define populismo como uma forma de indisciplina fiscal, afirma que seus adeptos acreditam que o desenvolvimento econômico e a redistribuição de riqueza podem ser facilmente alcançados por meio de aumentos salariais, mais investimentos públicos e mais gastos sociais, uma combinação que, via de regra, gera inflação. Aqui, no entanto, nos limitaremos à dimensão política, muito mais defensável, do termo.
O novo populismo não é uma continuação do populismo tradicional de Getúlio Vargas, mas, em muitos aspectos, o seu inverso. O populismo brasileiro, tal como introduzido por Vargas, tinha a característica de, entre outras coisas, ser capaz de conter ou manipular movimentos de massa organizados por meio do aparato estatal. Para tanto, era essencial destruir os sindicatos independentes, absorvendo-os pelo Estado e, ao mesmo tempo, ceder terreno na relação trabalho-capital e na seguridade social. Segundo Weffort, “o sabor peculiar do populismo advém do fato de ele surgir como uma forma de dominação em um momento de vácuo político, quando nenhuma classe social é hegemônica, e justamente porque nenhuma classe se sente capaz de ser hegemônica” (F. Weffort, O Populismo na Política Brasileira, 1981, 159).
Durante os anos Vargas, o populismo baseava-se nas massas, que se organizavam contra sua própria liderança tradicional, transformando assim os sindicatos em agências de apoio ao projeto político de Vargas. O novo populismo de Lula, no entanto, não só não encontra apoio em nenhum movimento organizado, como também está a serviço do capital internacional, em particular do capital financeiro. Também não se pode afirmar que havia um vácuo político na época da eleição de Lula. Ao contrário, as elites brasileiras estavam em um impasse, incapazes de levar adiante a agenda ditada pelo Banco Mundial e pelo FMI. Somente um homem do povo poderia, em nome deles, concluir as reformas.
Weffort define o populismo de Vargas como próximo à ideia de bonapartismo descrita por Marx em O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte — onde a ação do Estado era fundamental para a criação de uma indústria próspera. Seu projeto, por mais perturbador que fosse para alguns interesses, visava o desenvolvimento como industrialização. O novo populismo de Lula, por outro lado, desconsidera qualquer iniciativa econômica que não seja aquela proposta pelo FMI e pelo Banco Mundial, como se o interesse nacional fosse idêntico ao interesse dessas instituições e daqueles que elas representam. Em vez de reconstruir a capacidade de investimento do Estado ou definir uma política industrial e tecnológica, entre outras tarefas urgentes, parece ter como única prioridade o serviço da dívida externa, gerando superávits fiscais sem precedentes. Os esforços empreendidos foram maiores do que os da Alemanha para pagar as reparações de guerra após a Primeira Guerra Mundial.
A outra grande diferença entre o populismo de Vargas e o novo populismo encontra-se na relação com as massas. O primeiro buscou apoio dos trabalhadores para avançar com uma legislação que criasse um mercado de trabalho para o setor industrial; o segundo utiliza estruturas e lideranças sindicais para impedir que os protestos sociais impeçam suas contrarreformas (trabalhista, sindical e até a aposentadoria, novamente em pauta). Em relação às massas, suas políticas são estritamente compensatórias.
Mas o uso político de trabalhadores organizados em sindicatos, associações ou movimentos tem limites muito rígidos, dadas as contradições entre a agenda do governo (particularmente o serviço da dívida) e a necessidade de uma liderança que reerga as empresas públicas e articule uma política de renda adequada, entre outras tarefas. Nesse sentido, qualquer mobilização de trabalhadores organizados representa uma ameaça ao governo. Não é por acaso que, desde a posse de Lula, as altas autoridades do PT e da Central Única dos Trabalhadores (CUT) sempre tentaram abafar o debate sobre suas ações.
A nova base de apoio de Lula não ameaça seu governo porque está espalhada por todo o país e tem em comum apenas a baixa renda. Essa população não tem motivos para questionar o governo devido às suas características internas e ao tipo de benefícios que recebe. Enquanto os benefícios continuarem chegando, as pessoas de baixa renda considerarão o governo Lula como aquele que mudou suas vidas para melhor. O fato de as estruturas sociais, econômicas e políticas do país reproduzirem os fatores que criam a pobreza não é um problema para elas, desde que os pagamentos não sejam interrompidos. Além disso, o gasto do programa não é muito alto (R$ 8,3 bilhões em 2005; para fins de comparação, o gasto federal total em serviços de saúde por meio do Ministério da Saúde foi de R$ 37,1 bilhões no mesmo ano).5 Fica claro, então, que a continuação e a ampliação do programa não são um grande problema para o governo, pois não atrapalham sua agenda. Pelo contrário, programas assistenciais desse tipo são parte integrante da agenda neoliberal, a começar pela do Banco Mundial.
Política social e o gabinete econômico
Em suas comunicações ao FMI (como na carta do governo brasileiro a Hörst Köhler, de 21 de novembro de 2003, Ministério da Fazenda), o governo declarou sua intenção de alterar as pré-condições sobre as quais os orçamentos são elaborados, sejam eles federais, estaduais ou municipais. No item “Criando uma situação pró-desenvolvimento”, o governo menciona a flexibilidade na alocação de recursos públicos como uma entre muitas ações necessárias para “conduzir o país a um caminho de crescimento”. “Menos de 15% das despesas primárias são alocadas de forma discricionária pelo governo”, prossegue a carta, “o que gera uma rigidez orçamentária que muitas vezes inibe de forma significativa um uso mais justo e eficiente dos recursos públicos”. O documento termina afirmando que “o governo planeja preparar um estudo sobre as implicações da vinculação setorial...”. Mesmo que esse objetivo nunca seja alcançado, sua própria inclusão no documento demonstra as tendências neoliberais que permeiam o governo Lula na cúpula.
A intenção do governo aqui é abolir a determinação constitucional federal de que uma porcentagem de todos os recursos arrecadados seja destinada aos diversos níveis de governo para saúde e educação. A educação representa 18% das despesas federais e 25% para os estados e municípios. Em relação à saúde, essa mudança significaria que o Ministério da Saúde não teria mais a obrigação de aumentar suas despesas anualmente em um percentual do crescimento nominal do PIB; os estados não precisariam mais gastar 12% de seus orçamentos com saúde, ou os municípios, 15%. O governo, portanto, está adotando uma estratégia dupla em relação ao orçamento: tornar os orçamentos da saúde e da educação não obrigatórios e redirecionar suas alocações para o pagamento da dívida e a realização de investimentos públicos, provavelmente sob a égide do projeto de Parceria Público-Privada, parte da Agenda do Milênio.
Nenhum outro governo teve a coragem de pensar que o serviço da dívida deveria vir antes do pagamento das despesas com a previdência social, muito menos de aumentá-las. Tal objetivo só se torna "consistente" com a política social quando associado à preocupação de direcionar todas as iniciativas sociais apenas para os setores mais pobres. No que diz respeito à saúde, isso implica redirecionar os investimentos para algo semelhante ao programa alimentar básico, conforme recomendado pelo Banco Mundial. No que diz respeito à educação, a iniciativa pressupõe que não serão feitos novos investimentos em universidades públicas e que novas vagas para estudantes serão criadas, com recursos públicos, apenas em universidades e faculdades privadas.
Conclusão
O governo Lula está criando uma nova base de apoio por meio de programas de transferência de renda — uma estratégia bem diferente daquela originalmente defendida por seu PT — e isso caminha lado a lado com a destruição dos avanços da previdência social consagrados na Constituição de 1988, então um testemunho da redemocratização do país. Em nome da estabilidade, do crescimento e do cumprimento dos "contratos" com credores estrangeiros e nacionais, a ideia de política social universal foi abandonada e formas antigas de assistência são oferecidas aos mais pobres, deixando as massas de trabalhadores (mas não os muito ricos, que se beneficiam de subsídios cada vez maiores) à própria sorte no mercado.
Apontar esses aspectos do governo Lula não significa ignorar a realidade dos milhões que se beneficiam de programas de transferência de riqueza. Pelo contrário, em um sistema de previdência social universal, a transferência de renda não seria apenas uma prioridade, seria um direito — um direito que se estenderia muito além do mero auxílio à pobreza.
Notas
1. Os salários dos servidores públicos estão sempre abaixo do valor de mercado, portanto, como remuneração, os pagamentos de aposentadoria eram iguais aos salários.
2. Trabalhadores rurais que nunca contribuíram para o sistema e/ou trabalhadores rurais que ganham muito pouco para contribuir têm direito ao salário mínimo.
3. O salário mínimo atual é equivalente a 1,99 cestas básicas, calculado na cidade de São Paulo. Essa é a maior proporção desde 1979, segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos (Diesse).
4. Isso se refere à importância relativa entre os trabalhadores ativos daqueles que ganham pelo menos um salário mínimo.
5. A responsabilidade pela saúde pública no Brasil é compartilhada pelos três níveis de governo, com o nível federal representando menos de 50%.
Rosa Maria Marques leciona economia política na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Áquilas Mendes leciona economia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e na Fundação Armando Álvares Penteado, em São Paulo. É coordenador do Centro de Estudos de Pesquisas de Administração Municipal e vice-presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde.


