4 de fevereiro de 2007

Lula e a política social: A serviço do capital financeiro

A política social do governo Lula, marcada pela reforma da Previdência e pela focalização do Bolsa Família, foi estruturada para gerar grandes superávits e servir aos interesses do capital financeiro, desmantelando direitos sociais universais em nome da estabilidade econômica.

Áquilas Mendes e Rosa Maria Marques


Monthly Review Vol. 58, No. 09

O conceito de proteção social do governo Lula não consta de nenhum documento oficial, nem de seu Partido dos Trabalhadores (PT), nem de suas plataformas eleitorais. É por isso que é tão difícil para o público em geral, desconhecedor dos princípios da política social, compreender o significado de suas propostas e políticas efetivas. Na tentativa de explicar esse conceito, discutiremos a reforma do sistema previdenciário do governo, destacando seu impacto no aparato estatal. Analisaremos o cerne de sua política social, representado pelo Programa Bolsa Família, e descreveremos a forma como o gabinete econômico concebe a política social. Desde já, destacamos que a política pública de Lula suspende avanços anteriores no campo dos direitos sociais, busca criar um sistema de saúde privado e erige redes de assistência social não fundadas em direitos. Este último fator é crucial para a criação de uma nova base de apoio ao governo, não estruturada em torno de organizações sociais, sindicais e políticas de trabalhadores.

A contrarreforma da previdência

A reforma da Previdência aprovada em dezembro de 2003 retomou a questão exatamente onde ela havia sido deixada durante o governo Fernando Henrique Cardoso: a idade é o único critério para a aposentadoria de servidores públicos; o valor das aposentadorias não é mais definido pela renda média da ativa1; os impostos e as contribuições previdenciárias são recolhidos dos aposentados, embora essa ideia contrarie os próprios princípios do direito previdenciário, uma vez que não gera benefícios futuros; e estão criadas as condições para a futura privatização do sistema em benefício de fundos de pensão administrados por sindicatos e empresas privadas. Para levar adiante sua proposta, Lula utilizou todos os tipos de expedientes — de meias verdades a preconceitos e desinformação.

Nessa disputa por corações e mentes, o governo se valeu da crença geral de que há um grande déficit no sistema previdenciário, crença essa construída por governos anteriores ao longo de muitos anos. No entanto, o argumento acabou sendo abandonado devido à enxurrada de informações contrárias vindas da mídia e de formadores de opinião, e não figurou na minuta final de votação. No Brasil, as aposentadorias, juntamente com a saúde, o seguro-desemprego e a assistência social, são administradas pela Secretaria de Previdência Social. Por determinação constitucional, os recursos fiscais que as financiam, provenientes de diferentes bases tributárias, não podem ser tratados isoladamente. No entanto, o governo descartou essa determinação constitucional e comparou os valores pagos como aposentadorias com os recursos arrecadados de trabalhadores com carteira assinada, ou seja, aqueles que trabalham em condições legais do ponto de vista das relações de trabalho. Mas, se o princípio constitucional da previdência social for seguido, o sistema apresenta um superávit (R$ 47,3 bilhões em 2005) maior do que o gasto federal total com saúde, por exemplo.

Outra estratégia foi apresentar a ideia de que o Estado é ineficiente e que os servidores públicos são privilegiados e preguiçosos. Para reforçar esse argumento, foi feita uma comparação entre a aposentadoria de um funcionário público relativamente sênior e a remuneração média dos trabalhadores do setor privado, diluída pela média de milhões que ganhavam o salário mínimo imposto pela Constituição na época da restauração democrática.² Assim, um público já acostumado à ideia de que o serviço público era de baixa qualidade e ineficiente por anos de bombardeio da mídia e de pensadores antigovernamentais se opôs aos servidores públicos. Assim, isolados, os servidores públicos dispunham apenas de seus próprios recursos para lutar contra as reformas de Lula.

Uma motivação apresentada para a reforma é o entendimento de que os fundos de pensão criariam uma poupança nacional significativa, ajudando a financiar o desenvolvimento doméstico. Além disso, o governo declarou que usaria os fundos de pensão para financiar futuras infraestruturas e programas sociais — como parte de seu plano de introduzir um sistema de benefícios indefinidos, ou seja, sem garantia de valor para as aposentadorias. Há quem defenda isso como uma forma de os trabalhadores ganharem poder em um mundo dominado pela globalização financeira, uma leitura da realidade comum a vários ex-funcionários do governo Lula, atualmente afastados do cargo devido a alegações de corrupção. Mesmo assim, as regras de aposentadoria para funcionários públicos foram alteradas e foram emitidas licenças para sindicatos criarem seus próprios fundos de pensão.

Outro motivo alegado para a reforma, também a serviço do capital financeiro, é a obtenção de grandes superávits primários. Nos últimos anos, o Brasil fez um enorme esforço para gerar superávits e pagar sua dívida externa. O novo governo manteve essa política, como demonstrado em uma carta do ministro da Economia, Antonio Palloci, a Horst Köhler, diretor-geral do FMI, enviada em 28 de maio de 2003, um mês após o envio da lei de reforma ao Congresso.

O governo agiu rapidamente para implementar sua agenda de recuperação econômica e reforma. Após um importante esforço de construção de consenso, um ambicioso pacote de reforma tributária e previdenciária foi enviado ao Congresso antes do esperado. A política fiscal concentrou-se na redução da dívida pública: a Lei de Diretrizes Orçamentárias enviada ao Congresso eleva a meta de superávit primário para 4,25% do PIB. Além disso, foi aprovada a emenda constitucional que flexibiliza a regulamentação financeira — medida necessária para consolidar a autonomia do Banco Central.

Contrarreforma da previdência e o Estado

A reforma do sistema previdenciário foi antidemocrática e promoveu uma redistribuição inversa da renda dos servidores públicos para o capital financeiro. Foi antidemocrática principalmente porque ignorou a necessidade de regras transitórias adequadas. No caso dos servidores públicos, a lei costumava garantir pagamentos de aposentadoria iguais aos salários da ativa, o que significa que os trabalhadores não tinham perda de renda no momento da aposentadoria. Tudo isso sob o entendimento de que o sistema compensava os servidores por salários inferiores aos pagos pelo setor privado, especialmente os dos servidores públicos menos qualificados. Ao longo da vida, a renda total auferida pelos servidores públicos e privados tendia a convergir, uma vez que os servidores do setor privado sofrem uma perda abrupta de renda no momento da aposentadoria (quanto maior o salário, maior a perda) e os servidores públicos, que ganham menos na ativa, não têm perda na aposentadoria. Em outras palavras, o acordo entre o setor público e seus trabalhadores era uma garantia de renda vitalícia, embora inferior à oferecida pelo setor privado para o mesmo nível de qualificação. Por meio desse sistema, os servidores públicos se protegeram da incerteza do futuro e conseguiram criar uma relação renda/poupança diferente daquela dos trabalhadores do setor privado. Embora sua renda líquida fosse menor, os servidores públicos precisavam poupar menos para o futuro, pois sua renda futura estava garantida.

As reformas de Lula significaram a quebra desse pacto entre o Estado e seus servidores públicos. Essa ruptura foi extremamente violenta, pois não considerou o fato de que os servidores públicos não têm como corrigir sua relação renda/poupança passada. Vale lembrar que são poucos os que se qualificariam para uma aposentadoria integral sob as novas condições (idade, tempo de serviço e anos de contribuição ao sistema). Em qualquer sociedade democrática, quando as leis de aposentadoria são alteradas, um sistema transitório deve ser aplicado para minimizar as perdas daqueles que já estão no mercado de trabalho. Parece que a promessa do governo de não quebrar contratos, declarada publicamente em diversas ocasiões, não se aplica a quem trabalha para ele.

Como não há expectativa de que os servidores públicos deixem de receber salários inferiores aos dos servidores do setor privado, a mudança no sistema previdenciário desestimulará profissionais qualificados a se candidatarem a empregos públicos. O único cenário em que isso não ocorreria seria um cenário de alto desemprego, quando os empregos públicos seriam mais valorizados. A reforma previdenciária implementada pelo governo Lula é um passo decisivo para a destruição do Estado de bem-estar social brasileiro, processo iniciado pelo governo Collor.

Bolsa Família: O carro-chefe da política social do Governo Lula

O Projeto Fome Zero: Seguro Alimentação para o Brasil, do governo Lula, utiliza como referência a linha de pobreza mundial do Banco Mundial (US$ 1,08 por dia), ajustada pelo custo de vida regional e pela existência ou ausência de agricultura autossustentável. O principal alvo do projeto era a população vivendo abaixo dessa linha de pobreza — 44,043 milhões de pessoas, abrangendo 9,32 milhões de famílias — um número que abrange 21,9% de todas as famílias, 27,8% da população total, 19,1% da população urbana, 25,5% da população urbana não metropolitana e 46,1% da população rural. O tamanho da população empobrecida dificulta a visão de que as políticas direcionadas a ela sejam de alguma forma focadas. De fato, é lógico que a política não seja universal, visto que o tamanho da população-alvo é enorme.

Após os primeiros meses de governo Lula, os esforços se concentraram no Programa Bolsa Família, que substituiu programas pré-existentes. O Bolsa Família não criou um direito social, mas, como o nome sugere, foi um benefício criado pelo governo federal (ver tabela 1). Pesquisa realizada por Marques e outros em 2004 estimou que, em dezembro de 2003, quando 4,1 milhões de famílias recebiam o Bolsa Família, a população atendida, considerando a média de pessoas por família, era de 16,5 milhões. No segundo ano de governo Lula, em 2004, o programa atingiu 5,7 milhões de famílias. Em dezembro de 2005, atingiu 8,7 milhões de famílias em todas as secretarias municipais do Brasil. Em maio de 2006, o programa beneficiava 9,1 milhões de famílias, número abaixo da população-alvo total de 11,1 milhões.


Bolsa Família, benefícios mensais à população-alvo, 2006

A maior parte da população beneficiada pelo programa (69,1%) reside na região Nordeste, a região mais pobre do Brasil. O percentual da população beneficiada foi bastante elevado, com alguns municípios apresentando proporções de 13% a 45%. Este último percentual foi alcançado em cidades com menos de 20.000 habitantes, bem como em municípios rurais com populações de 20.000 a 100.000 habitantes, com Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M) abaixo da média nacional e economias dominadas por atividades do terceiro setor, ou seja, sem fins lucrativos.

Os resultados alcançados na região Nordeste refletem a pobreza generalizada de sua população, mas a concentração do Bolsa Família nessa região não significa que outras áreas não tenham populações consideráveis ​​que poderiam se beneficiar do programa. Um exemplo seria Itaguatins (cidade com menos de 20.000 habitantes, com IDH-M abaixo da média e economia dominada por atividades do terceiro setor) ou Tocantins, na região Norte, onde 38% da população total utiliza o programa. Com exceções, a população atendida na região Sul é relativamente pequena, reflexo da situação econômica e social local. Mesmo assim, o programa ainda cumpre o papel de sustentar um nível mínimo de renda. Por exemplo, em Porto Alegre, sede de vários encontros do Fórum Social Mundial e cidade com IDH-M acima da média nacional, 5% da população se beneficia do programa, uma proporção nada desprezível.

Limitações do Programa
O padrão de vida de milhões de brasileiros foi melhorado pelo Bolsa Família do governo Lula. Mas a pré-condição para aderir ao programa é uma renda real muito baixa, bem abaixo do salário mínimo, o que por si só é inadequado. Embora o programa beneficie uma parcela considerável da população brasileira, um grande setor da população, aqueles que ganham o salário mínimo, não tem direito a esses benefícios — sob a alegação de que sua renda é muito alta. No entanto, é fato que o salário mínimo é o limite inferior da escala salarial legítima, e qualquer salário abaixo dele seria ilegal e imoral para os padrões sociais. De acordo com a legislação que o tornou possível, o salário mínimo deve constituir um salário real para os trabalhadores e suas famílias. No entanto, apesar de, durante o governo Lula, ter recuperado parte de seu poder de compra real, o salário mínimo permanece muito abaixo da renda mínima real necessária para a sobrevivência de uma família de dois adultos e duas crianças, conforme estipulado em lei.3

O fato de o Bolsa Família não levar em consideração o significado legal do salário mínimo, o de ser a renda mínima nacional legal, aponta para a realidade de que o governo não vê a necessidade de a população ter uma renda mínima comum ao nível do salário mínimo.4 A noção de que o salário mínimo deve corresponder à renda mínima necessária à sobrevivência expressa o fato óbvio de que não há diferença entre as necessidades básicas absolutas de um trabalhador no mercado formal e as de, por exemplo, um barqueiro na Bacia Amazônica.

É necessário que medidas sejam tomadas para romper com a lógica maligna da acumulação de riqueza no Brasil e, ao mesmo tempo, é urgente instituir como direito a garantia de um nível básico de renda para todos. Essa renda deve ser entendida como um direito derivado do conceito de cidadania, portanto consagrado na Constituição. Somente assim a renda mínima seria assegurada como um direito básico de qualquer cidadão brasileiro, assim como a saúde e o ensino fundamental — e não uma mera política de assistência social.

Mesmo que um programa mais ambicioso — que garanta maior qualidade de vida para a população e não apenas que as famílias mais pobres permaneçam um centímetro acima da linha da pobreza absoluta — demandasse uma parcela significativa dos recursos, o que não ocorreria, ainda assim deveria ser prioridade para a política social vigente. Afinal, é a única maneira pela qual a sociedade brasileira pode se declarar engajada no desenvolvimento do país. Crescimento sem redistribuição de riqueza não apenas perpetua uma história de extrema desigualdade, como a intensifica.

O nascimento de um "Novo Populismo"

O Bolsa Família criou uma nova base de apoio para o governo Lula, independente de sindicatos e movimentos sociais. A partir dessa política, criou-se uma relação especial entre o governo e os setores mais pobres da população, o que chamamos de "novo populismo".

Nossa utilização do termo "populismo" é política: "um tipo de ação política que toma como base de legitimidade o cidadão comum, cujos interesses aspira representar" ou "uma política fundada no avanço das classes populares". Certamente, esse não é o uso corrente na economia, que associa populismo a governos que gastam mais do que arrecadam. Bresser Pereira, que também define populismo como uma forma de indisciplina fiscal, afirma que seus adeptos acreditam que o desenvolvimento econômico e a redistribuição de riqueza podem ser facilmente alcançados por meio de aumentos salariais, mais investimentos públicos e mais gastos sociais, uma combinação que, via de regra, gera inflação. Aqui, no entanto, nos limitaremos à dimensão política, muito mais defensável, do termo.

O novo populismo não é uma continuação do populismo tradicional de Getúlio Vargas, mas, em muitos aspectos, o seu inverso. O populismo brasileiro, tal como introduzido por Vargas, tinha a característica de, entre outras coisas, ser capaz de conter ou manipular movimentos de massa organizados por meio do aparato estatal. Para tanto, era essencial destruir os sindicatos independentes, absorvendo-os pelo Estado e, ao mesmo tempo, ceder terreno na relação trabalho-capital e na seguridade social. Segundo Weffort, “o sabor peculiar do populismo advém do fato de ele surgir como uma forma de dominação em um momento de vácuo político, quando nenhuma classe social é hegemônica, e justamente porque nenhuma classe se sente capaz de ser hegemônica” (F. Weffort, O Populismo na Política Brasileira, 1981, 159).

Durante os anos Vargas, o populismo baseava-se nas massas, que se organizavam contra sua própria liderança tradicional, transformando assim os sindicatos em agências de apoio ao projeto político de Vargas. O novo populismo de Lula, no entanto, não só não encontra apoio em nenhum movimento organizado, como também está a serviço do capital internacional, em particular do capital financeiro. Também não se pode afirmar que havia um vácuo político na época da eleição de Lula. Ao contrário, as elites brasileiras estavam em um impasse, incapazes de levar adiante a agenda ditada pelo Banco Mundial e pelo FMI. Somente um homem do povo poderia, em nome deles, concluir as reformas.

Weffort define o populismo de Vargas como próximo à ideia de bonapartismo descrita por Marx em O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte — onde a ação do Estado era fundamental para a criação de uma indústria próspera. Seu projeto, por mais perturbador que fosse para alguns interesses, visava o desenvolvimento como industrialização. O novo populismo de Lula, por outro lado, desconsidera qualquer iniciativa econômica que não seja aquela proposta pelo FMI e pelo Banco Mundial, como se o interesse nacional fosse idêntico ao interesse dessas instituições e daqueles que elas representam. Em vez de reconstruir a capacidade de investimento do Estado ou definir uma política industrial e tecnológica, entre outras tarefas urgentes, parece ter como única prioridade o serviço da dívida externa, gerando superávits fiscais sem precedentes. Os esforços empreendidos foram maiores do que os da Alemanha para pagar as reparações de guerra após a Primeira Guerra Mundial.

A outra grande diferença entre o populismo de Vargas e o novo populismo encontra-se na relação com as massas. O primeiro buscou apoio dos trabalhadores para avançar com uma legislação que criasse um mercado de trabalho para o setor industrial; o segundo utiliza estruturas e lideranças sindicais para impedir que os protestos sociais impeçam suas contrarreformas (trabalhista, sindical e até a aposentadoria, novamente em pauta). Em relação às massas, suas políticas são estritamente compensatórias.

Mas o uso político de trabalhadores organizados em sindicatos, associações ou movimentos tem limites muito rígidos, dadas as contradições entre a agenda do governo (particularmente o serviço da dívida) e a necessidade de uma liderança que reerga as empresas públicas e articule uma política de renda adequada, entre outras tarefas. Nesse sentido, qualquer mobilização de trabalhadores organizados representa uma ameaça ao governo. Não é por acaso que, desde a posse de Lula, as altas autoridades do PT e da Central Única dos Trabalhadores (CUT) sempre tentaram abafar o debate sobre suas ações.

A nova base de apoio de Lula não ameaça seu governo porque está espalhada por todo o país e tem em comum apenas a baixa renda. Essa população não tem motivos para questionar o governo devido às suas características internas e ao tipo de benefícios que recebe. Enquanto os benefícios continuarem chegando, as pessoas de baixa renda considerarão o governo Lula como aquele que mudou suas vidas para melhor. O fato de as estruturas sociais, econômicas e políticas do país reproduzirem os fatores que criam a pobreza não é um problema para elas, desde que os pagamentos não sejam interrompidos. Além disso, o gasto do programa não é muito alto (R$ 8,3 bilhões em 2005; para fins de comparação, o gasto federal total em serviços de saúde por meio do Ministério da Saúde foi de R$ 37,1 bilhões no mesmo ano).5 Fica claro, então, que a continuação e a ampliação do programa não são um grande problema para o governo, pois não atrapalham sua agenda. Pelo contrário, programas assistenciais desse tipo são parte integrante da agenda neoliberal, a começar pela do Banco Mundial.

Política social e o gabinete econômico

Em suas comunicações ao FMI (como na carta do governo brasileiro a Hörst Köhler, de 21 de novembro de 2003, Ministério da Fazenda), o governo declarou sua intenção de alterar as pré-condições sobre as quais os orçamentos são elaborados, sejam eles federais, estaduais ou municipais. No item “Criando uma situação pró-desenvolvimento”, o governo menciona a flexibilidade na alocação de recursos públicos como uma entre muitas ações necessárias para “conduzir o país a um caminho de crescimento”. “Menos de 15% das despesas primárias são alocadas de forma discricionária pelo governo”, prossegue a carta, “o que gera uma rigidez orçamentária que muitas vezes inibe de forma significativa um uso mais justo e eficiente dos recursos públicos”. O documento termina afirmando que “o governo planeja preparar um estudo sobre as implicações da vinculação setorial...”. Mesmo que esse objetivo nunca seja alcançado, sua própria inclusão no documento demonstra as tendências neoliberais que permeiam o governo Lula na cúpula.

A intenção do governo aqui é abolir a determinação constitucional federal de que uma porcentagem de todos os recursos arrecadados seja destinada aos diversos níveis de governo para saúde e educação. A educação representa 18% das despesas federais e 25% para os estados e municípios. Em relação à saúde, essa mudança significaria que o Ministério da Saúde não teria mais a obrigação de aumentar suas despesas anualmente em um percentual do crescimento nominal do PIB; os estados não precisariam mais gastar 12% de seus orçamentos com saúde, ou os municípios, 15%. O governo, portanto, está adotando uma estratégia dupla em relação ao orçamento: tornar os orçamentos da saúde e da educação não obrigatórios e redirecionar suas alocações para o pagamento da dívida e a realização de investimentos públicos, provavelmente sob a égide do projeto de Parceria Público-Privada, parte da Agenda do Milênio.

Nenhum outro governo teve a coragem de pensar que o serviço da dívida deveria vir antes do pagamento das despesas com a previdência social, muito menos de aumentá-las. Tal objetivo só se torna "consistente" com a política social quando associado à preocupação de direcionar todas as iniciativas sociais apenas para os setores mais pobres. No que diz respeito à saúde, isso implica redirecionar os investimentos para algo semelhante ao programa alimentar básico, conforme recomendado pelo Banco Mundial. No que diz respeito à educação, a iniciativa pressupõe que não serão feitos novos investimentos em universidades públicas e que novas vagas para estudantes serão criadas, com recursos públicos, apenas em universidades e faculdades privadas.

Conclusão

O governo Lula está criando uma nova base de apoio por meio de programas de transferência de renda — uma estratégia bem diferente daquela originalmente defendida por seu PT — e isso caminha lado a lado com a destruição dos avanços da previdência social consagrados na Constituição de 1988, então um testemunho da redemocratização do país. Em nome da estabilidade, do crescimento e do cumprimento dos "contratos" com credores estrangeiros e nacionais, a ideia de política social universal foi abandonada e formas antigas de assistência são oferecidas aos mais pobres, deixando as massas de trabalhadores (mas não os muito ricos, que se beneficiam de subsídios cada vez maiores) à própria sorte no mercado.

Apontar esses aspectos do governo Lula não significa ignorar a realidade dos milhões que se beneficiam de programas de transferência de riqueza. Pelo contrário, em um sistema de previdência social universal, a transferência de renda não seria apenas uma prioridade, seria um direito — um direito que se estenderia muito além do mero auxílio à pobreza.

Notas

1. Os salários dos servidores públicos estão sempre abaixo do valor de mercado, portanto, como remuneração, os pagamentos de aposentadoria eram iguais aos salários.
2. Trabalhadores rurais que nunca contribuíram para o sistema e/ou trabalhadores rurais que ganham muito pouco para contribuir têm direito ao salário mínimo.
3. O salário mínimo atual é equivalente a 1,99 cestas básicas, calculado na cidade de São Paulo. Essa é a maior proporção desde 1979, segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos (Diesse).
4. Isso se refere à importância relativa entre os trabalhadores ativos daqueles que ganham pelo menos um salário mínimo.
5. A responsabilidade pela saúde pública no Brasil é compartilhada pelos três níveis de governo, com o nível federal representando menos de 50%.

Rosa Maria Marques leciona economia política na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Áquilas Mendes leciona economia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e na Fundação Armando Álvares Penteado, em São Paulo. É coordenador do Centro de Estudos de Pesquisas de Administração Municipal e vice-presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde.

2 de fevereiro de 2007

A globalização financeira do Brasil sob Lula

Apesar da retórica crítica, o governo Lula aprofundou a globalização financeira do Brasil, mantendo uma política ultraconservadora que prioriza lucros do capital especulativo e aumenta a vulnerabilidade do país, em detrimento do desenvolvimento industrial e do controle sobre a economia.

Daniela Magalhães Prates e Leda Maria Paulani

Monthly Review Vol. 58, No. 09 (February 2007)

François Chesnais definiu três etapas no processo de globalização financeira. A primeira ocorreu na década de 1970 e ele chama de "internacionalização financeira indireta de sistemas nacionais fechados". Países latino-americanos, incluindo o Brasil, participaram desse processo de atrair um volume substancial de empréstimos. A segunda etapa, 1980-85, começou com a "ditadura dos credores" de Paul Volcker e a descoberta do neoliberalismo pela Margaret Thatcher como a doutrina para a nova era. Os países centrais, começando pelos Estados Unidos e Grã-Bretanha, desbloquearam seus mercados financeiros liberalizando o fluxo internacional de capital. A interligação dos sistemas nacionais tornou-se mais direta e imediata através das finanças do mercado. Na América Latina, a crise da dívida explodiu com o aumento das taxas de juros (após o choque Volcker negativo) envolvendo uma dívida maciça contratada no período anterior negociado pelo sistema bancário.[1]

Segundo Chesnais, a última etapa começou em 1986 com a acelerada interligação dos sistemas nacionais pelos mercados financeiros através da incorporação de países periféricos. A abertura e a desregulamentação dos mercados de ações e obrigações dos chamados Países Recentemente Industrializados e do Terceiro Mundo em geral começaram nos anos 90. Medidas tomadas pelos governos Collor / Itamar e Cardoso foram fundamentais na preparação da economia brasileira para participar plenamente da reviravolta financeira da economia capitalista. A administração Luiz Inácio Lula de Silva (Lula) perpetuou esse processo.

A natureza da presença internacional de nossa economia como articulada pela atual administração provou que, se houve uma "especialização" do Brasil nos últimos quinze anos, foi a capacidade de oferecer lucros fantásticos ao capital financeiro internacional, uma habilidade adquirida gradualmente. Em suma, não foi o comércio que tem cada vez mais inserido o Brasil na economia mundial, mas as finanças. Os esforços do governo Lula concentraram-se na consolidação da posição do país como provedor de ativos baratos e como uma plataforma internacional para a valorização financeira. Esta tendência torna-se clara se acompanharmos a evolução dos pagamentos de juros no balanço de pagamentos estrangeiros: de menos de US $ 12 bilhões em 1990 para US $ 21 bilhões em 2002 (último ano de Cardoso no cargo) e US $ 29 bilhões em 2005, talvez chegando a US $ 35 bilhões 2006. A evolução dos investimentos em carteira (o investimento paradigmático nesta última fase da globalização financeira) foi ainda mais clara: de quase 400 milhões de dólares em 1990 para 9,8 bilhões de dólares em 2002 e 12,5 bilhões em 2005. À luz das medidas adotadas no início de 2006 para fornecer incentivos para as vendas de títulos brasileiros entre os não-residentes, a despesa vai passar facilmente a marca de US $ 15 bilhões este ano.

Ao contrário da propaganda governamental, o resultado líquido desse tipo de crescente "presença" econômica internacional tem sido o de tornar o país mais, não menos vulnerável. A atual evolução positiva dos movimentos voluntários de capitais não foi apenas o resultado do "choque externo positivo". Houve também um fator interno em jogo, o tipo de política monetária e cambial articulada durante o último período de Cardoso e continuada até agora por Lula. O problema com esse tipo de política foi que ele criou um novo círculo no qual as conseqüências das decisões dos investidores geram sua própria continuidade. O dilúvio de dólares que penetrou a economia brasileira por meio de investimentos em carteira não veio depois de altas taxas de juros apenas, mas também depois da valorização da moeda nacional, o que aumenta ainda mais os lucros potenciais em moedas internacionais fortes. A crescente entrada de moeda estrangeira tem garantido que o real brasileiro continuará a apreciar, e que isso trará cada vez maiores quantidades de moeda forte, representando uma espécie de bolha especulativa centrada no real. Em suma, as expectativas geram decisões que criam os resultados esperados - por enquanto. Os mercados de derivados reforçaram ainda mais este movimento circular, aparentemente auto-perpetuado. Considerando a instabilidade dos fatores que alimentam esse processo (a abundante liquidez dos mercados internacionais), é óbvio que quando o processo reverter, o mesmo mecanismo que agora magnifica "os bons resultados" ampliará o eventual desastre - não importa quão bons os indicadores de vulnerabilidade externa possam.

Lula e seu Partido dos Trabalhadores (PT) têm sido os críticos mais severos da política de concessões de Cardoso aos interesses financeiros. No entanto, uma vez no poder, Lula não tomou as medidas necessárias para tirar o país da armadilha. Pelo contrário, seguiu com entusiasmo a estrada já tomada, não apenas seguindo uma política macroeconômica ultraconservadora, mas intensificando a abertura financeira da economia. Ele se beneficiou de uma espécie de "choque externo positivo". Mas quando o vento se transforma (começou a virar em 2006) sua irresponsabilidade será clara e a casa de cartas em que o crescimento falso e morno do país sob sua administração foi erigida será evidente para todos.

A evolução da balança de pagamentos do Brasil

A conjuntura internacional desfavorável, resultante da crise financeira global de 1997-99 (geralmente chamada de "Crise Financeira Asiática", mas que também se estendeu à América Latina, em particular ao México, Brasil e Argentina), complicou enormemente o segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso (1999-2002). Os ventos mudaram para melhor tanto no comércio internacional quanto nas finanças em 2003-2005, os três primeiros anos do governo Lula. Tendo em vista a continuidade da política econômica em relação ao governo anterior, nossa hipótese é que a conjuntura internacional favorável, e não a política econômica interna, foi o fator fundamental para a aparentemente melhor situação externa brasileira no período Lula. É sob essa perspectiva que as premissas comuns sobre a redução da vulnerabilidade externa do Brasil devem ser questionadas.

A posição da economia brasileira nos mercados internacionais, sem dúvida, passou por mudanças importantes nos três primeiros anos do governo Lula. Isso pode ser avaliado acompanhando a evolução dos dois principais itens do balanço de pagamentos do período: o saldo em conta corrente e o saldo da conta capital e financeira. O resultado líquido das transações em conta corrente apresentou um superávit crescente (o primeiro desde 1992) durante esses três anos, de US$ 4,2 bilhões em 2003, US$ 11,7 bilhões em 2004 e US$ 14,2 bilhões em 2005, com base nos crescentes superávits comerciais obtidos desde 2001 (aumentando de US$ 13,1 bilhões em 2001 para US$ 44,8 bilhões em 2005).

Ao mesmo tempo em que crescia o superávit na conta corrente, a conta capital e financeira entrou em déficit em 2004 e 2005, refletindo o fato de o Brasil estar reduzindo seu passivo financeiro externo. No entanto, esse déficit na balança de capital e financeira, que à primeira vista poderia sugerir que o Brasil está passando de devedor para credor na economia mundial, deve ser encarado com extrema cautela, pois mascara o comportamento do capital dominado por duas dinâmicas distintas: o capital voluntário (movimentos de capital não regulamentados pelo FMI) e as operações regulamentadas pelo FMI. As condições internacionais favoráveis ​​aliviaram as restrições externas e possibilitaram o pagamento de todas as dívidas ao FMI em 2004-2005. Em 2005, a balança de capital e financeira foi negativa em mais de US$ 9 bilhões. No entanto, o saldo da balança de capital voluntário apresentou um superávit de US$ 13,8 bilhões, com base em investimento estrangeiro direto e investimentos em carteira — uma realidade que foi disfarçada no saldo geral da balança de capital e financeira pelos pagamentos antecipados ao FMI (registrados em “operações regulamentadas”).

Esse desempenho das duas contas primárias (a conta corrente e a conta capital e financeira) no balanço de pagamentos — refletindo a evolução da presença internacional durante esse período — está associado a “legados” do governo Cardoso, como a taxa de câmbio flutuante adotada após a crise cambial de 1998-99, as desvalorizações em 2001 e 2002 e a intensificação da abertura financeira. Essas mudanças estão intimamente relacionadas a uma situação internacional benigna daqueles anos nas frentes comercial e financeira. [2] Mas elas também refletem a globalização financeira da economia brasileira de maneiras que apontam para estruturas contínuas de vulnerabilidade externa. A economia brasileira permanece altamente vulnerável a movimentos voláteis no capital financeiro.

Liberalização financeira

A presença financeira durante o governo Lula tem sido condicionada por três fatores principais: abertura financeira crescente, novo ciclo de liquidez nos mercados internacionais para os países periféricos e taxa de câmbio flutuante. A abertura financeira do Brasil teve início cauteloso no final da década de 1980, durante o governo Sarney, mas foi decisivamente intensificada nos governos Collor/Itamar e Cardoso. O governo Lula deu continuidade a esse processo usando a mesma abordagem ad hoc que seus antecessores, por meio de resoluções e decisões do Banco Central, e pela emissão de decretos sobre a liberalização financeira. As pessoas físicas e jurídicas (corporações) foram autorizadas, pela primeira vez, a comprar moeda estrangeira ilimitada diretamente dos bancos (esse tipo de operação era regulada anteriormente pelo Banco Central) para ser investido no exterior. No caso de venda ou cessação de investimentos estrangeiros, deixou de ser obrigatório devolver o dinheiro feito ao país, podendo ser reinvestido livremente no exterior. Daí em diante, qualquer indivíduo poderia enviar dinheiro para o exterior sem ter que operar através de um velho expediente - as chamadas contas CC5 - que tornava essas remessas mais caras. As saídas de capital se tornaram não apenas mais simples, mas mais baratas. O resultado líquido dessas mudanças foi que se tonou muito mais simples converter reais em dólares e enviá-los para o exterior. Ao mesmo tempo, o governo Lula estendeu o tempo para que os exportadores pudessem manter suas divisas no exterior e, mais recentemente (maio de 2006), anunciou que está estudando a possibilidade de permitir que os exportadores mantivessem no estrangeiro a moeda obtida pelas exportações e precisassem comprar importações.3 Finalmente, a partir de fevereiro de 2006, incentivos fiscais foram fornecidos a investidores estrangeiros para comprar títulos de dívida interna, reduzindo impostos. A medida também permite ofertas públicas iniciais e aberturas de capital por parte de empresas privadas. A abundante liquidez internacional e a intensificação da abertura financeira no Brasil combinaram-se para produzir um influxo substancial de US $ 13,8 bilhões em capital voluntário em 2005.

Apesar do aumento do valor do dólar, a bolsa brasileira permaneceu a mais barata entre os países emergentes. Isso e a expectativa de uma reavaliação contínua do real atraíram investimentos estrangeiros com a promessa de grandes lucros em moeda forte. Nestas circunstâncias, é racional alertar sobre a natureza deste tipo de fluxo circular, repetido com outros tipos de ativos financeiros. O frenesi de auto-alimentação que isso implica é uma característica normal de qualquer aumento na especulação financeira. Mas esse círculo virtuoso é quase certo se tornar um círculo vicioso na desaceleração.

Essas e outras mudanças alteraram a composição e aumentaram os passivos externos da economia brasileira. Com o crescimento do investimento estrangeiro direto, e principalmente com o crescimento do investimento em carteira, as ações de ativos produtivos e financeiros pertencentes a não residentes foram ampliadas, enquanto a dívida soberana estrangeira perdeu peso relativo. A reavaliação contínua do real e a taxa de juros muito alta foram críticas para esse resultado, particularmente após a desvalorização aguda do final de 2002.

A presença do comércio

O período 2003-2005 foi, como vimos, um de crescentes superávits comerciais, produzindo resultados positivos em transações correntes. Uma vez que o período também se caracterizou por um processo contínuo de reavaliação do real, pode-se perguntar como e por que os superávits comerciais passaram de US $ 13,1 bilhões em 2002 para US $ 24,8 bilhões em 2003, US $ 33,7 bilhões em 2004 e US $ 44,8 bilhões em 2005. O Estudo da UNCTAD mostra que os termos de troca não explicam a evolução, uma vez que cresceram apenas 3% entre 2002 e 2004.[4] A explicação é a expansão do comércio internacional liderada pelos Estados Unidos e pela China, os dois gigantes, e o preço dos recursos naturais, crucial para a posição de exportação do Brasil, que constituiu um "choque externo positivo" na esfera comercial (choque que também afeta, como vimos, a esfera financeira). De fato, a recuperação do setor de comércio exterior brasileiro começou em 1999, após os anos de déficit de Cardoso. As mudanças na política monetária após a crise que abruptamente desmoronou o real no início de 1999 levou a um aumento das exportações, particularmente de produtos básicos e semi-manufaturados em 1999-2002.

No entanto, apesar dos bons resultados globais, as exportações brasileiras permaneceram tecnologicamente atrasadas e, portanto, não dinâmicas em termos de comércio mundial. As exportações brasileiras são alimentadas pelo setor agrário, minerais, siderúrgicos e pelos setores em que o Brasil é competitivo por causa dos baixos salários e dos abundantes recursos naturais.[5] A contínua importância das commodities na carteira de exportações é um indicador de sua fragilidade, tanto que commodities - principal motor da performance exportadora brasileira - foram o fator menos importante no desempenho exportador de países em desenvolvimento como Índia, México e China.

As importações brasileiras permaneceram concentradas nos produtos de média e alta tecnologia. A participação desses setores nas compras externas permaneceu estável em 60% entre 2002 e 2005. Esses setores (eletrônicos, elétricos, químicos e farmacêuticos) foram dominados por empresas transnacionais e não houve substituição das importações após as desvalorizações. Tais substituições teriam requerido a coordenação estatal da indústria, ciência, tecnologia e política de comércio exterior.

A conclusão geral deve ser que o padrão que governa a posição do comércio exterior na economia brasileira não mudou durante o governo de Lula. Esse padrão foi consolidado na década de 1990, através da abertura do comércio, da reavaliação da moeda nacional em termos reais e de novas estratégias por parte das transnacionais (no caso do Brasil, as agências locais atuam mais como compradoras para o mercado interno do que produtoras para o mercado global). Esse processo resultou em uma especialização regressiva da indústria brasileira, uma perda de importantes setores intensivos em capital e tecnologia, e simultaneamente uma diversificação e crescimento de setores tradicionais, baseados em recursos naturais e mão-de-obra.

O relatório da UNCTAD de 2003 classificou os países em desenvolvimento em quatro grupos: países industriais maduros, como a Coréia e Taiwan, onde o crescimento industrial se desacelerou porque atingiram um alto nível de industrialização; países em rápida industrialização, como a China e a Índia, que apresentam altas taxas de investimento interno devido à sua política industrial e incentivos à exportação; países com postos industriais avançados, como o México, que mostra crescimento nas exportações industriais, mas fica aquém de investimentos, adição de valor e produtividade total; e os países em desindustrialização, economias com uma decrescente participação da produção industrial no seu PIB. O Brasil está diretamente no último grupo e a complacência do governo Lula com a situação e seus resultados no comércio exterior indicam que o país terá em breve de deixar para trás mesmo um rótulo tão pouco favorável. De fato, uma dialética da desindustrialização e da globalização financeira constitui a experiência econômica recente do Brasil sob Lula, que, infelizmente, continuou com as mesmas políticas básicas de seus antecessores. Quando o vento finalmente virar, como deve acontecer, as terríveis consequências desta política irresponsável tornar-se-ão demasiado evidentes.

Notas

[1] Introdução a F. Chesnais, ed., A Mundialização Financeira (São Paulo: Xamã, 1998).

[2] Analysis of the financial presence precedes that of the trade presence because the level of financial opening and decisions of investment by foreign portfolio managers exercise a decisive influence on the behavior of real and nominal exchange rates, crucial factors for the country’s trade presence.

[3] O álibi do governo para essa medida é que há um excesso de dólares no mercado interno, o que poderia levar a uma reavaliação do real. No entanto, esse tipo de medida torna o país muito mais externamente vulnerável no caso de uma mudança de direção dos ventos suaves que ainda sopram nos mercados financeiros internacionais (ninguém sabe ao certo por quanto tempo). Enquanto isso, o Senado vai debater uma lei que elimina qualquer obrigação, abrindo assim o caminho para a abertura financeira final, ou seja, a possibilidade de manter os lucros das exportações em contas denominadas em dólares no sistema bancário nacional. Isso significaria que o influxo de moeda forte criado pelas exportações estaria subordinado às mesmas variáveis ​​que governam os fluxos financeiros: diferenciais entre taxas de juros internas e internacionais, expectativas de mudança nas taxas de câmbio e risco de inadimplência. Assim, o espaço de manobra seria reduzido e o Banco Central teria dificuldade de estocar reservas estrangeiras.

[4] UNCTAD, Trade & Development Report (Geneva, United Nations Conference on Trade & Development, September 2005), chap. 3.

[5] A metodologia agrega produtos da Standard Internacional Trade Classification (SITC).

Daniela Magalhães Prates leciona economia na Universidade Estadual de Campinas, em São Paulo. Leda Maria Paulani leciona economia na Universidade de São Paulo e é presidente da Sociedade Brasileira de Economia Política.

A economia brasileira sob o Governo Lula: Balanço de suas contradições

Com a manutenção da política econômica ultraconservadora e de superávits fiscais, o governo Lula melhorou os indicadores financeiros do país, mas não conseguiu reverter a trajetória de crescimento medíocre e baixo, mantendo a prioridade na rolagem da dívida em detrimento do desenvolvimento e do combate à desigualdade social.

Fabrício Augusto de Olivera e Paulo Nakatani

Monthly Review

Monthly Review Vol. 58, No. 09 (February 2007)

Plano de fundo

A economia brasileira passou por um longo processo de estagnação e inflação durante os anos 80 decorrente da crise da dívida externa que se abateu sobre todos os países endividados, em especial os da América Latina. Essa crise se manifestou através de um agudo processo inflacionário que chegou a 2.012,6% em 1989 e 2.851,3% em 1993, estimados pelo índice geral de preços (IGP-DI) da Fundação Getúlio Vargas. Assim, a segunda metade da década de 80 e a primeira da de 90 foi marcada por sucessivos planos de combate à inflação, que se iniciou com o Plano Cruzado em 1986 e foi concluído, finalmente, em 1994, com o Plano Real.[1] Esse período foi marcado, também, pelo esgotamento final do processo de industrialização conhecido como “de substituição de importações”, e pelo início da adoção das políticas neoliberais no Brasil.

A última tentativa importante de continuidade da construção de uma economia industrial integrada e relativamente independente das grandes potências econômicas foi o ambicioso II Plano Nacional de Desenvolvimento, ainda no governo do General Ernesto Geisel que terminou em 1979, ano que marca o início da crise da dívida. Após o II PND, os sucessivos governos enfrentam-se, por um lado, com a pressão externa decorrente dos vultosos pagamentos de juros e amortização da dívida e, por outro, no front interno, com a aceleração da pressão inflacionária. A economia passa, então, a ser redirecionada no sentido de ampliar o esforço exportador visando obter as divisas necessárias ao pagamento dos serviços da dívida. Em 1981 o saldo da balança comercial, que até então era negativo, torna-se positivo e cresce continuamente até 1994, quando volta a ser negativo. A média desse saldo nesses 14 anos supera os US$ 10,0 bilhões ao ano e todo ele é destinado ao pagamento dos juros da dívida externa.

Esse esforço transformou-se em um círculo vicioso infernal em que o governo, por um lado, estimulava as exportações e, por outro lado, comprava os dólares. A produção para exportação gerava produto e renda, em que o primeiro era exportado e a renda permanecia internamente. O resultado das exportações, as divisas, era adquirido pelo governo através da emissão de moeda e devolvido ao exterior pelo pagamento do serviço da dívida, e parte dessa emissão não era compensada pelo endividamento interno devido ao ambiente extremamente instável decorrente das pressões inflacionárias, que foram tornando-se incontroláveis. O resultado acumulado desse processo, durante quase uma década, culminou com os surtos hiperinflacionários de 1989 e 1993, que felizmente não produziram integralmente os desastres típicos desse fenômeno.

A crise aguda que se desenrolou no início dos anos 80 foi acompanhada pelas grandes manifestações contra a ditadura militar e pelas eleições diretas para a presidência da república. Com a queda da ditadura e o novo governo civil, a economia recupera por pouco tempo as taxas de crescimento, mas não escapa do sufoco da dívida e nem das pressões inflacionárias, que aguçam ainda mais as contradições internas. É também neste contexto, de luta contra a ditadura militar, entre o final dos anos 70 e o início dos anos 80, que surge e se expande o movimento sindical dos operários da indústria paulista e o Partido dos Trabalhadores, cujo líder principal é Luís Inácio Lula da Silva. Durante os anos 80 e 90, o PT ganha corpo, estrutura e significativo peso político nacional, com centenas de milhares de filiados e militantes, tornando-se a principal força política de oposição aos governos de José Sarney, Fernando Collor de Mello, Itamar Franco e de Fernando Henrique Cardoso (FHC).

Assim, logo na primeira eleição direta à presidência da república, após a ditadura militar, Lula venceu o primeiro turno e caminhava para uma vitória no segundo. Entretanto, as classes dominantes retomaram rapidamente a iniciativa e iniciaram uma ampla ofensiva contra ele, na qual utilizou sem limites as redes de televisão, principalmente a rede globo de televisão. Dessa forma, elegeu Fernando Collor de Mello, candidato de um partido minúsculo e politicamente inexpressivo, que acabou renunciando em dezembro de 1992, para não ser cassado, sob acusações de corrupção e desvio de recursos públicos. Lula ainda foi candidato em 1993 e em 1998 e perdeu para Fernando Henrique Cardoso nas duas eleições. Nesse processo, a fração majoritária, dirigente do PT, foi mudando gradativamente de posição e de estratégia eleitoral, até a vitória de Lula em 2002.

Durante esse período são gestadas as condições e adotadas as medidas de política econômica neoliberal, assim, o governo implementa progressivamente a liberalização do comércio internacional, dos fluxos de capitais especulativos, a privatização das empresas estatais, a reforma do estado, a reforma tributária e a reforma da previdência do setor privado[5]. Em junho de 1994, ainda durante o governo de Itamar Franco, o Ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso comanda a execução do Plano Real que consegue controlar o processo inflacionário e reduzir a inflação a níveis muito baixos, com isso consegue eleger-se presidente da república por dois mandatos consecutivos.

Fundamentos econômicos e o governo Lula

O Plano Real foi implantado em junho de 1994. Seu principal resultado foi a drástica redução da inflação, entretanto, sua concepção baseada em uma taxa de câmbio semi-fixa e supervalorizada, taxas de juros elevadas e forte ingresso de capitais estrangeiros, principalmente especulativo, estabeleceram seus próprios limites. As contradições internas desse plano aceleraram rapidamente o endividamento interno e externo, transformou o saldo positivo na balança comercial em déficit e aumentou o saldo negativo em transações corrente. Em conseqüência, o aumento da vulnerabilidade externa e as crises financeiras internacionais levaram-no ao colapso em fins de 1998.[2]

A reformulação da política macroeconômica foi baseada em três pontos: a implementação da política de metas de inflação, a mudança no regime cambial com taxa flutuante e as metas de superávit primário. São esses os novos elementos introduzidos na política econômica pelo governo de FHC e que são mantidos e aprofundados pelo governo Lula.

Em março de 1999, foi implementado o sistema de metas de inflação no Brasil com a utilização do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) como meta e a substituição das Taxa Básica do Banco Central (TBAN) e Taxa de Assistência do Banco Central (TBC) por uma única taxa chamada de SELIC. Naquele momento, a taxa básica foi fixada em 45,0% ao ano, mas foi caindo rapidamente terminando o ano a 19,0%, para uma inflação, estimada pelo IPCA, de apenas 8,94%, em 1999.

A mudança na política cambial e o aprofundamento dos benefícios concedidos ao capital externo, associado ao crescimento acelerado das exportações devido à conjuntura internacional favorável dos últimos anos, permitiram que o Governo Lula conseguisse uma significativa redução na vulnerabilidade externa.[3] À primeira vista, todos os indicadores apresentados na tabela 1 são extremamente positivos, entretanto, nem tudo pode ser interpretado como resultado direto da política econômica.[4]


Tabela 1

Indicadores de vulnerabilidade externa

Indicadores
2000
2001
2002
2003
2004
2005
Dívida externa total/PIB (%)
36,02
41,18
45,87
42,41
33,29
21,28
Dívida externa total líquida/PIB (%)
28,41
31,92 
35,88 
 29,79
22,43 
12,69 
Serviço da dívida/PIB (%)
8,15
10,35
10,09
8,37
8,03
6,11
Serviço da dívida/Exportações (%)
89,08
90,64
76,80
58,07
50,32
41,14
Juros pagos ao exterior/PIB (%)
2,84
3,46
3,33
3,02
2,53
1,97
Transações correntes/PIB
-4,02
-4,55
-1,66
-0,82
1,94
1,78
Reservas internacionais/Dívida externa total (%)
15,22
17,08
17,95
22,94
26,29
31,75

Fonte: Bacen. Boletim do Banco Central do Brasil. Vários números. 

Desde o final do governo FHC, a dívida externa em percentagem do PIB caiu de 45,87 por cento para 21,28 por cento em dezembro de 2005. No mesmo período, o serviço da dívida externa caiu de 10,09 por cento do PIB para 6,11 por cento, e o pagamento de juros encolheu de 3,33 por cento para 1,97 por cento.

Os indicadores mais impressionantes do sucesso do governo na construção de seus fundamentos são as relações entre o saldo em transações correntes e o PIB, e o mesmo saldo e as exportações. Nos últimos três anos do governo Cardoso as transações correntes em percentagem do PIB foi negativa, mas mostrou uma tendência a melhorar e tornaram-se positivas nos primeiros três anos do governo Lula, confirmando assim a evidente redução na vulnerabilidade externa do Brasil.

No front fiscal, o governo Lula continuou e intensificou a política de criação de grandes excedentes aprovadas em 1999. O presidente começou trazendo a meta de 3,75 por cento acordado com o FMI, para 4,25 por cento do PIB. Nos anos seguintes, ele ultrapassou facilmente o maior superávit alcançado por Cardoso (3,89 por cento em 2002). Em 2004 o excedente atingiu 4,6 por cento do PIB e em 2005 subiu para 4,8 por cento. Mas desde que os pagamentos de juros ascenderam a 7,26 por cento e 8,13 por cento do PIB nos últimos dois anos, a dívida continua a crescer porque os excedentes, altos como têm sido, não foram suficientes para cumprir as obrigações. Assim, o Brasil incorreu nominalmente em um déficit de 3 por cento do PIB.

Quando fundamentos não ajudam o crescimento

Apesar de estar exibindo indicadores financeiros e variáveis econômicas bem mais favoráveis, de ter reduzido consideravelmente o grau de vulnerabilidade externa da economia e caminhar bem, na visão do mercado, no ajuste fiscal, o Brasil não tem se beneficiado dessas condições para os objetivos do crescimento econômico. Em 2005, o PIB cresceu apenas 2,3%, contra uma expansão de 4,3% registrada para a economia mundial. Na América Latina, que apresentou média de crescimento em torno da observada para o mundo, o Brasil só conseguiu melhor resultado do que o Haiti, um país mergulhado numa guerra civil que paralisou sua economia, para a qual se projetava expansão inferior a 1,5%. A Argentina, com um índice de crescimento de 9,1% no ano, a Venezuela, com 9%, e mesmo o México, com 3%, apesar de prejudicado pelos efeitos dos furacões na sua agricultura no último trimestre, confirmam que o Brasil não está conseguindo aproveitar a melhoria de seus fundamentos econômicos e nem o cenário externo favorável para reverter a trajetória de perda de importância relativa de sua economia em relação tanto ao mundo como à região.

Desde o seu lançamento, em 1994, o programa de estabilização, conhecido como Plano Real, tem se mostrado inimigo do crescimento econômico. Apenas nos seus dois primeiros anos de vida – 1994-1995 – o Brasil conseguiu superar a média de crescimento da economia mundial, como mostra a tabela 3.1. De lá para cá, situou-se sempre abaixo dessa média, aproximando-se desta apenas nos anos de 2000 e 2004, que foram marcados por um cenário externo excepcionalmente favorável. Em todos os demais, apresentou crescimento medíocre ou ficou estagnado como nos anos de 1998, 1999 e 2003.

Tabela 2

Taxas de Crescimento do PIB no Brasil e na economia mundial - 1994-2005 

Ano
Taxa de crescimento do PIB (%)
Brasil
Economia Mundial
1994
5,9
3,8
1995
4,2
3,6 
1996
2,7
4,1 
1997
3,3
4,2
1998
0,1
2,8
1999
0,8
3,7
2000
4,4
4,7
2001
1,3
2,4
2002
1,9
3,0
2003
0,5
4,0
2004
4,9
5,1
2005
2,3
 4,3

Fonte: CNI. Sem crescer, não há saída. Revista da CNI. São Paulo, CNI, no. 62, abril de 2006, p.16-21 

Não há diferenças significativas, neste período, do ponto de vista do crescimento, entre os governos que comandam o país. Como mostra a tabela 3.2, no primeiro mandato do governo Fernando Henrique Cardoso (1995-1998), a média de crescimento anual foi de 2,6%, enquanto no segundo (1999-2002) essa média caiu para 2,1%. Nos três anos do governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva o crescimento médio alcançou 2,6%, não devendo ser alterado de forma significativa com a expansão projetada em 3% para 2006. Na média dos últimos dez anos (1996-2005), o crescimento de apenas 2,2%, que pode ser considerado um nível medíocre para o país superar seus desequilíbrios, atender as necessidade de emprego da população e melhorar suas condições de vida.

Tabela 3

Brasil: Taxas de crescimento por governo

Anos/períodos
Governo
Taxas de crescimento do PIB (%)
1995-1998
Fernando Henrique Cardoso
2,6
1999-2002
Fernando Henrique Cardoso
2,1
1995-2002
Fernando Henrique Cardoso
2,3
2002-2005
Luiz Inácio Lula da Silva
2,6
2006 – projeção
Luiz Inácio Lula da Silva
3,0
1996-2005
FHC e Lula
2,2

Fonte: IBGE 

Em favor do governo Fernando Henrique Cardoso pode-se argumentar que este enfrentou uma série de intempéries econômicas internacionais e internas nos seus dois mandatos, que prejudicaram os objetivos do crescimento, embora não se possa atribuir exclusivamente a esses acontecimentos o insucesso de sua política econômica neste campo. No primeiro, as crises financeiras que se abateram sobre as economias mexicana (1995), do sudeste asiático (1997) e da Rússia (1998), que conduziram à falência e desvalorização do Real, em 1999. No segundo, a desaceleração da economia norte-americana, os ataques terroristas nos EUA (2001), a crise argentina e a crise na oferta de energia no país, ambas também em 2001. No governo Luiz Inácio Lula da Silva, contudo, tirante o primeiro ano (2003) em que a desconfiança em sua política econômica não havia sido desfeita, o Brasil navegou em águas tranquilas e favoráveis do cenário internacional e, contando também com o apoio do mercado e das instituições financeiras internacionais, conseguiu melhorar consideravelmente, como visto na seção anterior, os indicadores financeiros, fiscais e de risco do país, o que o tem levado a acenar, desde que assumiu o governo, com a promessa de que ingressaremos num longo e permanente ciclo de crescimento. Até o momento, contudo, o fato é que, apesar de todas essas melhorias a economia se encontra com o crescimento travado, sem perspectivas de vislumbrar, no curto prazo, uma retomada mais forte e firme de seu ritmo.

Tabela 4

PIB per capita: Taxa média anual de crescimento entre 1996/2005 e Valor em 2004 (US$)

Países
Crescimento médio anual (1996/2005) (%)
Valor em 2004 (US$)
Grupos
País
G7
Estados Unidos
2,2
39.710
Japão
1,0
30.040
Alemanha
1,2
27.950
Reino Unido
2,4
31.460
França
1,7
39.320
Itália
1,2
27.860
Canadá
2,4
30.660
Outras economias avançadas
Austrália
2,4
29.200
Coréia do Sul
3,7
20.400
Espanha
3,1
25.070
Portugal
1,6
19.250
Emergentes:
Ásia
China
7,7
5.530
Índia
4,4
3.100
Europa
Polônia
4,1
12.640
Rússia
4,3
9.620
África
África do Sul
1,7
10.960
América Latina
Argentina
09
12.460
Brasil
0,7
8.020
Chile
2,8
10.500
México
2,1
9.590
Venezuela
-0,5
5.760

Fonte. FMI e Banco Mundial. In: CNI Informa - Notas Econômicas. São Paulo, CNI, ano 7, n. 89, 15 de março de 2006.

Os dados contidos na tabela 4 revelam, com maior clareza como, em virtude dessa performance, o Brasil tem ficado para trás em relação às economias desenvolvidas, às emergentes e, em boa medida, às da América Latina. Nos últimos dez anos (1996-2005), a média de crescimento de seu PIB per capita foi de apenas 0,7% ao ano, apenas superior à observada para a Venezuela, que registrou taxa negativa de – 0,5%. Todos os demais países arrolados na tabela apresentaram crescimento superior, destacando-se a China (7,7%), a Índia (4,4%) e as economias emergentes da Europa, como a Polônia e a Rússia. Mesmo em relação às economias desenvolvidas, que convivem com taxas mais modestas de crescimento, o desempenho do Brasil tem sido pífio, situando-se, em alguns casos, em torno de um terço ou um quarto das que foram por elas alcançadas. Com isso, não somente tem se ampliado a distância que separa o país das nações desenvolvidas, em termos de renda per capita, como dele se aproximam, rapidamente, países como a China e a Índia, que contam com populações superiores em mais de cinco vezes.

Ora, se os fundamentos econômicos são, de fato, sólidos como vem sendo defendido pelo mercado e pelos gestores da política econômica, não se justifica o país abdicar do crescimento e não aproveitar, também como as demais economias emergentes, os ventos favoráveis da economia mundial. Afinal, a construção de fundamentos econômicos sólidos visa exatamente criar as condições para o crescimento sustentado. A menos que a estabilidade monetária alcançada no país tenha se transformado em um objetivo em si mesmo ou que estes fundamentos não sejam assim tão sólidos como se apregoa, o país estaria novamente perdendo a oportunidade de aproveitar essas condições para avançar na correção de seus desequilíbrios e de muitos de seus problemas.

As travas do crescimento: O modelo de estabilização

Para se entender as razões que têm inibido o crescimento e impedido vôos mais altos dos governantes brasileiros nessa direção, é necessário lançar um olhar para as peças que compõem a arquitetura do modelo de estabilização, o Plano Real, desde a sua implementação em 1994: nele é possível identificar a armadilha em que o país se viu enredado para garantir a estabilidade monetária, em detrimento do crescimento econômico.

Em sua primeira fase (1994-1998), o plano, para ser vitorioso no combate à inflação, valeu-se, na ausência de uma âncora fiscal confiável, da combinação de um câmbio sobrevalorizado, que cumpriu o papel de âncora nominal dos preços, com a manutenção de elevadas taxas de juros voltadas para manter desaquecida a demanda interna e garantir a atração de capitais externos para o país, ao mesmo tempo em que promoveu uma rápida abertura comercial, visando também obter ganhos no front inflacionário, embora com prejuízos para a produção nacional.

Com esse mix de medidas, a inflação desfaleceu e caiu para níveis moderados (entre 5% e 10% ao ano), mas seus resultados foram desastrosos para as contas externas e para o aumento dos desequilíbrios fiscais do setor público: de um equilíbrio na balança de conta-corrente obtido em 1994, o país amargou um déficit de US$ 33 bilhões em 1998 e viu a relação Dívida Líquida do Setor Público/PIB evoluir de 30% para 43% (treze pontos percentuais do PIB em apenas 4 anos!).

Diante desses números, alguns analistas não têm dúvidas em afirmar que a estabilidade só foi alcançada à custa de um brutal endividamento, o qual limitaria suas possibilidades de crescimento nos períodos seguintes. Com o aumento de sua vulnerabilidade externa, o país tornou-se altamente sensível ao efeito-contágio das crises externas, que se abateram sobre a economia mundial a partir da metade da década de 1990, obrigando-o a promover fortes ajustamentos em sua economia. Com a crise da economia russa, em 1998, e a rápida fuga de capitais externos do país, não lhe restou outra alternativa senão a de recorrer ao FMI e sujeitar-se a adotar um novo modelo de estabilização, que, pela sua arquitetura, se revelaria ainda mais desfavorável para os objetivos do crescimento.

Na sua segunda fase, que se inicia em 1999 e prossegue até os dias atuais, as peças do modelo foram ajustadas para estancar e reverter a trajetória de crescimento da dívida, e assegurar, ao mesmo tempo, a estabilidade de preços. No novo modelo, o câmbio tornou-se flutuante, a âncora de preços deslocou-se para o regime de metas inflacionárias estabelecidas pelo Banco Central (inflation targenting) e o compromisso com a geração de crescentes e elevados superávits fiscais primários foi nele incluído para garantir uma trajetória mais confiável para a relação dívida/PIB, com o pagamento de parcela de seus encargos para os credores do Estado.

Eleitas como prioridades absolutas neste modelo, a estabilidade monetária e o controle da dívida não deixam muito espaço para o crescimento econômico, dada a interação de suas peças, a não ser em períodos em que a conjuntura internacional se mostre extremamente favorável, como nos últimos anos. Mesmo neste caso, se a política econômica não for suficientemente capaz de aproveitar essa oportunidade — como tem ocorrido no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva —, primando-se pelo conservadorismo — ou pelo medo de crescer! —, o país continuará fadado a conviver com baixas e medíocres taxas de crescimento.

O fato de o modelo possuir um forte viés anti-crescimento explica-se por que os instrumentos que são manejados para viabilizar o atingimento das metas de inflação e da relação dívida/PIB asfixiam a atividade produtiva e operam contra os investimentos – públicos e privados –, aumentando o “custo-Brasil” e impedindo a remoção de gargalos estruturais da economia brasileira, o que é indispensável para a criação das condições necessárias para o crescimento sustentado.

São três, basicamente, os instrumentos que têm sido utilizados para garantir o atingimento dessas metas: a taxa de juros, a carga tributária e os gastos públicos.

A manutenção de elevadas taxas de juros reais (atualmente em torno de 11% ao ano, a mais alta do mundo) inibe o consumo, desestimula o investimentos e, também importante, garante um acentuado e permanente ingresso de capitais externos na economia brasileira, em busca de lucros rápidos e fáceis, valorizando a moeda nacional (o Real) e prejudicando o setor exportador. Embora este ainda venha apresentando um excelente desempenho, beneficiado pela continuidade do crescimento da economia mundial, vários setores já enfrentam dificuldades para sustentar suas atividades com a situação atual do câmbio, como os de calçados, vestuário e até mesmo o automobilístico, entre outros. Os sinais de que o crescimento da economia mundial pode se desacelerar nos próximos anos indicam que o Brasil pode enfrentar dificuldades com um dos poucos setores que ainda tem conseguido garantir algum dinamismo para sua economia. De quebra, e nem por isso menos importante, as elevadas taxas de juros contaminam e expandem a dívida pública, exigindo esforços ainda maiores na geração de superávites primários para evitar seu descontrole.

A elevação da carga tributária, instrumento preferencial que tem sido utilizado pelo governo, desde 1999, para garantir a geração de superávites primários, aumenta o “custo-Brasil”, reduz a lucratividade dos investimentos privados e inibe o mercado interno, ao reduzir a renda disponível da população. Não bastasse a forte elevação que conheceu nos últimos seis anos – entre 1998 e 2004 a carga tributária brasileira deu um salto de 29,7% para 35,9% do PIB – sua composição é ainda mais perversa para o crescimento econômico: contando com cerca de 80% de impostos indiretos em sua estrutura, o que torna o sistema tributário um forte instrumento de concentração de renda, cerca de 35% de toda arrecadação provêm de impostos cumulativos, também conhecidos como impostos “em cascata”, prejudiciais para a tão cara questão da competitividade no mundo globalizado e para a integração econômica regional.

O terceiro instrumento de que tem lançado mão o governo para garantir a geração de superávites primários – os cortes de gastos públicos – não alimenta apenas as forças da recessão, mas impede que o governo realize os investimentos em infraestrutura econômica para remover os gargalos estruturais da economia que poderiam melhorar as expectativas do setor privado e dar um novo impulso aos seus investimentos, se convencido de que não encontraria rapidamente limites à expansão de sua capacidade produtiva. Isso porque, com o orçamento público, comprometido com despesas de caráter obrigatório e com o compromisso de pagamento de parcela expressiva dos juros da dívida pública, os cortes de gastos têm se centrado, predominantemente, nos investimentos públicos e em despesas sociais que não contam com receitas protegidas por alguma norma constitucional ou legal, como se verifica para os casos dos setores da saúde e da educação, por exemplo. Sem investimentos públicos, que atualmente estão reduzidos a algo em torno 0,5% do PIB não há como gerar um estado de confiança indispensável para a retomada dos investimentos privados e para o crescimento sustentado.

Não sem razão, o Brasil vem apresentando as mais baixas taxas de investimento no mundo de acordo com levantamento realizado pela Confederação Nacional das Indústrias (CNI) apresentados na tabela 5. Como se percebe na tabela, enquanto se registrou para a economia mundial uma taxa média de investimento de 22,1% do PIB, no período 1995/2004, a observada para o Brasil não foi além de 19,3%. Essas diferenças se tornam ainda mais acentuadas quando se considera esses países por 13 blocos: as economias emergentes da Ásia investiram, em média, 32,6% ao ano neste período, seguidos pelos países do Leste e do Centro da Europa, com 23,9%. Apenas em relação aos resultados atingidos pela América Latina e África, o Brasil apresenta-se mais próximo, mas, ainda assim, em posição inferior.

Ora, com baixo nível de investimentos não há como crescer de forma mais expressiva a longo prazo. E mais grave: sem aumento na capacidade de oferta, qualquer pressão de demanda dele resultante termina gerando pressões adicionais sobre os preços, exigindo que a recuperação seja abortada para impedir o comprometimento das metas de inflação, como ocorreu no Brasil, por exemplo, em 2000 e 2004. Os instrumentos do modelo, neste caso, terminam sendo acionados e retorna-se ao circulo vicioso da armadilha da estabilização: elevação dos juros, desaquecimento do consumo, paralisia dos investimentos, contaminação da dívida pública, aumento do superávit primário, com mais cortes de gastos e ampliação da carga tributária, produzindo novo período de baixo crescimento ou de estagnação.

Para o mercado e os responsáveis pela política econômica, a manutenção dessa estratégia, por tempo prolongado, poderá permitir, ao país, colher os frutos do crescimento sustentado e compensar os elevados custos impostos à sociedade. É uma questão de fé, da qual continua se beneficiando – e muito! – o capital financeiro. Para os críticos deste modelo, sem alterações e mudanças importantes em sua arquitetura, é mais fácil que produza a “paz dos cemitérios”, com o progressivo enfraquecimento do tecido econômico, o aumento do desemprego, da pobreza e da exclusão social. Por enquanto, os resultados dão razão aos últimos: depois de dez anos de baixo crescimento, não se vislumbra possibilidades de reversão dessa trajetória num futuro próximo, enquanto o controle da dívida pública, o principal objetivo perseguido com o modelo, tem se mantido insistentemente em níveis superiores a 50% — e isso sem enfrentar nenhuma crise externa nos últimos anos.

Conclusão


Nós tentamos mostrar que a política macroeconômica seguida pela administração Lula tem sido bem sucedida e melhorou os fundamentos da economia brasileira nos anos desde o fim do governo FHC. No entanto, a estrutura interna do modelo econômico tem provocado um fraco crescimento e lucros fantásticos para os financiadores e tornou impossível esperar crescimento sustentado - supondo que isso é possível dentro da atual ordem capitalista mundial.

Nos primeiros três anos do governo Lula, foram pagos R$ 263.3 bilhões para rolar a dívida externa. No mesmo período, apenas um décimo desse montante foi gasto com o Programa Fome Zero, criado para alimentar os mais pobres dos pobres. O departamento nacional de estatísticas mostrou que houve um ligeiro declínio na pobreza no país por causa do programa. Mas isso não pode ser visto como uma mudança nas seculares taxas catastróficas de desigualdade social no Brasil. Nós tentamos mostrar aqui que a mudança fundamental na política macroeconômica parece descartar uma política de crescimento para o bem. E crescimento, crescimento estável ao longo do tempo, é a única forma de criar emprego e renda, e reduzir a pobreza e a desigualdade social no Brasil.

Notas

1. Ipeadata, http://www.ipeadata.gov.br.

2. Para assegurar a vitória de Fernando Henrique Cardoso contra Lula, o FMI e a comunidade financeira internacional organizaram um gigantesco empréstimo de US$ 41,6 bilhões ao Brasil. Desse total, US$ 18,1 bilhões do próprio Fundo, mais de 600% da cota do Brasil, US$ 9,0 bilhões do Banco Mundial e do BID e US$ 14,5 bilhões dos Estados Unidos, Japão e Canadá.

3. Em 15 de fevereiro de 2006, o Presidente Lula assinou a Medida Provisória 281, que isentou do Imposto de Renda e da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira o capital estrangeiro aplicados em títulos públicos. Ver também, ASSIS, J. Carlos de. Isenção de imposto para especulador estrangeiro, http://www.desempregozero.org.br/editoriais/insencao_de_imposto.php.

4. Grande parte da melhoria deve ser creditada à evolução das taxas de câmbio. Entre 1999 e 2002, a forte desvalorização da moeda brasileira diminuiu o valor do PIB do país em dólares, fazendo com que os indicadores piorassem muito. Desde 2003, o real ganhou 40 por cento em valor frente ao dólar e os indicadores melhoraram substancialmente. Isso explica por que o Brasil saltou de décimo quarto a décimo primeiro no ranking internacional das economias, mesmo sem mostrar muito crescimento real.

John Bellamy Foster (jfoster@monthlyreview.org) é editor da Monthly Review, professor de sociologia na Universidade do Oregon e autor (com Fred Magdoff) de "The Great Financial Crisis" (Monthly Review Press, 2009). Hannah Holleman (holleman@uoregon.edu) é pós-graduanda em sociologia na Universidade do Oregon. É coautora de "The U.S. Imperial Triangle and Military Spending" (Monthly Review, outubro de 2008) e "The Penal State in an Age of Crisis" (Monthly Review, junho de 2009).

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