23 de abril de 2008

O fenomenal Slavoj Žižek

Existe algum assunto no mundo imune ao moinho intelectual de Žižek?

Terry Eagleton

Times Literary Supplement


Slavoj Žižek é menos um filósofo que um fenômeno. Filho de comunistas eslovacos, é o representante na Terra (por assim dizer) do falecido psicanalista francês Jacques Lacan, nos últimos 20 anos Žižek tem viajado o planeta como um rockstar intelectual, reunindo imensos fãs clubes por onde passa. Ele é provocante, extravagante e divertido. Ele foi tentado, nos disse, a sugerir para a “orelha” de um dos seus livros: “No seu tempo livre, Žižek gosta de navegar na internet buscando pornografia infantil e de ensinar ao seu filho pequeno como arrancar as pernas de uma aranha”. Ele foi o objeto de uma instalação chamada “Slavoj Žižek não existe”, atuou em dois filmes (Žižek! e The Pervert’s Guide to Cinema), e apareceu numa “orelha” deitado no divã de Sigmund Freud embaixo de uma imagem de uma genitália feminina. Seus cerca de quarenta livros, com títulos como O Sublime Objeto da Ideologia, O Assunto delicado, Aproveite o sintoma! e Tudo o Que Você Sempre Quis Saber Sobre Lacan (Mas tinha medo de perguntar a Hitchcock), são colagens dessaranjadas de idéias, que vão de Kant à ciência da computação, de Santo Agostinho à Agatha Christie. Parece não haver nada neste mundo que não seja triturado pelo seu moinho intelectual. Uma digressão gera outra, até que o autor parece tão obscuro quanto o leitor sobre o que ele deveria estar discutindo. Além disso, e para o horror de todo resenhista, os livros de Žižek vêm engordando a cada ano. A Visão em Paralaxe (Boitempo, 2008), com quase 400 páginas densamente impressas, que vão da biopolítica à Robert Schumann, à neurociência e Henry James, surgiu há apenas dois anos, Em Defesa das Causas Perdidas é um livro que traz à tona Lênin e Heidegger, Cristo e Robespierre, Mao e ecologia, e é um calço de porta ainda mais pesado.

Slavoj Žižek é, assim, o grande exemplo europeu de um filósofo pós-moderno. Ele é um cruzamento entre guru e provocador, sábio e showman. Em estilo tipicamente pós-moderno, seus trabalhos saltam, insolentemente, sobre as fronteiras entre a alta cultura e a popular, desviando no meio de um Parágrafo de Kierkgaard para Mel Gibson. Formado filósofo em Liubliana e em Paris, ele é cinéfilo, teórico da psicanálise, teólogo amador e analista político. É membro do Círculo Lacaniano de Liubliana, uma associação tão improvável como uma de Hegelianos de Huddersfield. Quando trata de política, ele revela os meandros de Rousseau ou Carl Schmitt assim como quando fala jornalisticamente dos distúrbios de Paris, da Guerra ao Terror, ou da relação da Turquia com a União Européia. Ele próprio foi um político em sua Eslovênia natal e a sombra do conflito iugoslavo se abateu sobre seus comentários mordazes a respeito da guerra, o racismo, o nacionalismo e os conflitos étnicos.

Mas se seus livros são pós-modernos no método, são, entretanto, lúcidos no estilo. A este respeito, ele é uma espécie de constrangimento àqueles que acreditam que os filósofos continentais sofrem de dislexia [Word-disorder]. A escrita de Žižek é nítida e facilmente consumida. Ludwig Wittgenstein uma vez disse que gostaria de escrever um livro de filosofia só de piadas; e embora haja muito mais em Žižek que histórias engraçadas, a anedota cômica é uma das suas mais finas escritas. Ele vêm de uma boa linhagem de humor cínico do leste europeu, como quando afirmou que a diferença entre a União Soviética e a um-pouco-mais-reformista Iugoslávia é que, enquanto na União Soviética as pessoas caminhavam a pé enquanto seus representantes dirigiam carros, na Iugoslávia as próprias pessoas dirigiam seus carros por meio de seus representantes políticos. Ele nos conta, com um prazer macabro, que muito da legislação que especifica o que é um segredo de estado na China é, ela mesma, classificada como segredo de estado. Para ilustrar a interação entre presença e ausência, ele conta, em outro de seus livros, a história de uma guia que conduzia um grupo de visitantes por uma galeria de arte do leste europeu durante a era soviética e parou diante de um quadro chamado “Lênin em Varsóvia”. Não havia nenhum sinal de Lênin no quadro; ao invés disso ele retrata a esposa de Lênin na cama com um belo e jovem membro do Comitê Central. "Mas onde está Lênin?", perguntou uma perplexa e absorta pessoa, ao que o guia responde grosseiramente: “Lênin está em Varsóvia”.

Há duas piadas em particular, que são, por assim dizer, sobre o leitor Žižekiano. A primeira me referirei brevemente: Žižek parece uma leitura divertida e, em muitos aspectos, é mesmo; mas ele também é um pensador extremamente extenuante criado nas altas tradições da filosofia européia. A segunda é que Zizek não é um pós-modernista em hipótese nenhuma. Na verdade, ele é visceralmente hostil a toda essa corrente de pensamento, como este último livro ilustra. Se ele rouba um pouco da roupagem pós-modernista, ele tem pouco menos que um desprezo pelo multiculturalismo deles, pelo anti-universalismo, pelo dandismo teórico e pela modernosa obsessão com a cultura.Defesa das Causas Perdidas está aí pra desafiar a sabedoria convencional do fim das ideologias; que as grandes narrativas estão se arrastando, quase parando; que a época da grandes explicações acabou, e que a ideia de emancipação global está tão morta na água, como o antigo proprietário do Daily Mirror.

Žižek é extremamente sério com estas questões embora haja um elemento típico de contrariedade sobre isso também. Ele começou sua carreira editorial como uma espécie de pós-marxista, e agora voltou seu caminho para o marxismo. Esta é uma maldição que marca sua sensibilidade como um todo, erigida maliciosamente. Paradoxo para Žižek é o equivalente estilístico do pensamento dialético. E nada pode ser mais paradoxal que subir no navio revolucionário no exato momento em que ele foi furado no casco. Enquanto ele próprio se torna mais e mais em voga, sua política se torna menos. Ele tem apenas que farejar uma ortodoxia que sente um comichão em se me intrometer; então se é o marxismo que agora está fora de moda, há uma lógica perversa no fato de ele ter que voltar a este tão assertivamente. Neste livro, como em muitos anteriores, ele abraça o se pode chamar de técnicas pós-modernas (ironia, paradoxo, pensamento lateral, multiplicidade, e até mesmo, às vezes, uma certa dissimulação descarada) a serviço de posições completamente tradicionais.

O caso conscientemente ultrajante que este livro tem que discutir é se existe um momento “redentor” a ser arrancado de empreendimentos revolucionários fracassados como o Jacobinismo, Leninismo, Stalinismo e Maoismo. Žižek não é , de maneira nenhuma, um defensor do terror político. O Mao que ele nos apresenta aqui é, por exemplo, o assassino em massa que ponderou que “metade da China deve morrer” no Grande Salto para Frente, e que comentou que, apesar de uma guerra nuclear poder abrir um buraco no planeta, ela deixaria o cosmos praticamente intocado. Seu objetivo não é justificar tais demências, mas tornar as coisas mais difíceis para a recusa delas pelo típico liberal classe-média. Na busca de tais objetivos, o livro no traz uma riqueza em insights filosóficos e políticos; entretanto não fica claro se estes validam a tese central do livro.

Vejamos, por exemplo, sua “defesa” da adesão de Heidegger ao nazismo na década de 1930, e da defesa, cerca de quarenta anos depois, do apoio de Foucault à Revolução Iraniana. Ambas adesões Žižek vê como profundamente condenáveis; mas na sua opinião eram, ao menos, compromissos com a necessidade de mudança revolucionária, mesmo que Heidegger e Foucault tenham apostado nos cavalos errados. Por trás deste caso está a dívida que tem Žižek a Alain Badiou, um dos principais filósofos franceses, a quem o livro presta algumas simpáticas críticas. Para Badiou, a vida boa, ética e politicamente, consiste num apego obstinado a algum “Evento” que explode inesperadamente na cena histórica, transforma as coordenadas da realidade humana remodelando, dos pés à cabeça, os homens e mulheres que se mantêm fiéis a ele. Um dos exemplos deste “evento” do ateu Badiou é a vida e a morte de Cristo.

Há um certo grau de formalismo gaulês nesta noção. Como no existencialismo, o conteúdo exato do evento redentor, ao contrário do fato miraculoso da sua ocorrência,nem sempre é o principal ponto em jogo. Žižek concorda com Badiou que é melhor se apegar desastrosamente a tal revelação da verdade que ficar indiferente a ela, o que certamente não é o caso. Não há nada admirável na fidelidade para o seu próprio bem. A indiferença não é o mais hediondo dos crimes. O pensamento radical francês frequentemente contrasta algum momento privilegiado da verdade e a inautenticidade bovina do cotidiano, e Badiou não é uma exceção. Existe um elitismo espiritual nesta ética que é difícil conciliar com as sugestivas reflexões deste livro sobre a ideia de democracia.

A essência da vida ética para Žižek, Badiou e Lacan é a recusa em recuar, mantendo-se obstinadamente fiel ao seu desejo. Apenas forçando seu desejo até o fim, como nos protagonistas das tragédias, alguém pode florescer. O grande ícone de Lacan é, assim, Antígona, que se recusa a aceitar meios-termo [settle for half]. Há algo de perigoso e de atrativo em tal ética; mas neste livro, é uma visão que permite Žižek defender a idéia de revolução e rejeitar o terror revolucionário. Sobre Robespierre e Stalin, diz Žižek, não é que eles não foram extremados demais, mas que não foram revolucionários o suficiente – se tivessem sido, o terror político não teria sido necessário. O terror jacobino, por exemplo, é visto como um tanto implausível como o testemunho da inabilidade do grupo em realizar uma transformação tanto econômica como também política. Algo similar e dito sobre a Revolução Cultural de Mao.

Não é o núcleo de sua tese central que faz deste livro tão interessante, mas as torres laterais. Slavoj Žižek, como de costume, parece satisfatoriamente incapaz de lembrar o caso que vinha debatendo, e faz umas esplêndidas digressões, incluindo uma narrativa da mudança do papel do scherzo em Shostakovich, discorrer sobre o poema “Ode a Alegria” de Schiller, e reflexões sobre as obras perdidas de Einsenstein. Em Defesa das Causa Perdidas é um livro frenético, uma eclética parodia da erudição intelectual, por alguém tão seguro de sua capacidade em perceber as sutilezas de Kafka ou John Le Carré que pode exagerar um pouco.

Terry Eagleton é Distinguished Visiting Professor em inglês na Lancaster University. Seu último livro é Humour, publicado este ano.

5 de abril de 2008

A financeirização do capital e a crise

John Bellamy Foster

Monthly Review

Volume 59, Number 11 (April 2008)

Tradução / Com a vantagem da retrospecção, hoje poucos duvidam que a bolha imobiliária que induziu a maior parte do crescimento recente da economia estadunidense estava condenada ao estouro ou que uma crise financeira generalizada e o declínio econômico global seriam seus resultados inevitáveis. Sinais de alarme eram evidentes havia anos para todos aqueles não dominados pela nova alquimia financeira do gerenciamento de endividamento de alto risco e não cegados, como muitos no mundo corporativo, pelos enormes lucros especulativos. Isso pode ser visto numa série de artigos que apareceram neste espaço: “The Household Debt Bubble” (maio 2006), “The Explosion of Debt and Speculation” (novembro 2006), “Monopoly-Finance Capital” (dezembro 2006), e “The Financialization of Capitalism” (abril 2007). No último deles havíamos escrito:

Tão crucial tem sido a bolha imobiliária como contraponto à estagnação e como base para a financeirização, e tão estreitamente relacionada está ela ao bem-estar das famílias estadunidenses, que a debilidade atual do mercado imobiliário pode precipitar um agudo declínio econômico e a desordem financeira generalizada. Elevações adicionais na taxa de juros possuem o potencial de gerar um círculo vicioso de valores estagnados ou mesmo cadentes das residências com o crescimento da parcela relativa ao serviço da dívida na renda dos consumidores conduzindo a uma explosão das situações de inadimplência. O fato de que o consumo estadunidense é a fonte central de demanda para a economia mundial levanta a possibilidade de que essa situação possa contribuir para uma crise mais globalizada...
No Global Financial Stability Report de setembro de 2006 o comitê de diretores do FMI expressava preocupações de que o rápido crescimento dos fundos hedge e de derivativos de crédito poderia ter um impacto sistemático sobre a estabilidade financeira, e que uma redução no ritmo de crescimento da economia estadunidense e o esfriamento de seu mercado imobiliário poderiam conduzir a uma maior “turbulência financeira” que poderia “ser ampliada em caso de choques inesperados.” O contexto geral é o de um processo de financeirização de tal forma fora de controle que choques severos e inesperados no sistema e o contágio financeiro resultante são considerados inevitáveis.[1]

Esse cenário, que começava a amadurecer quando a passagem acima foi escrita, com os preços das residências estagnados ou caindo, avalanche de inadimplências, e crise econômica global devida ao contágio financeiro e à queda no consumo estadunidense, tornou-se hoje uma realidade concreta. Desde o colapso do mercado de hipotecas subprime em julho de 2007, as dificuldades financeiras e o pânico haviam se difundido de maneira incontrolável não somente entre os países, mas também entre os diferentes mercados financeiros, infectando um setor após o outro: hipotecas com taxas ajustáveis, commercial papers (títulos de curto prazo sem garantia real emitidos por empresas), seguradoras de títulos, empréstimos sobre hipotecas, debêntures, empréstimos para aquisição de veículos, cartões de créditos, e empréstimos para estudantes.

Bancos, fundos hedge e mercados monetários estão todos sob assalto. Dada a já frágil situação da produção nos Estados Unidos, não tardou para que esse desarranjo financeiro se refletisse em números negativos na economia “real”: queda no nível de emprego, enfraquecimento do consumo e investimento, e redução na produção e nos lucros. A maioria dos analistas econômicos hoje acredita que uma ampla recessão se aproxima tanto para os Estados Unidos quanto para a economia mundial, podendo inclusive já ter se iniciado. “Hoje,” afirmou o ex-presidente do Federal Reserve em 25 de fevereiro de 2008, “o crescimento econômico nos Estados Unidos é zero. Estamos em marcha lenta.”[2]

O que defenderemos aqui é que isto não se trata apenas de outro episódio de brusca contração creditícia do tipo tão recorrente na história do capitalismo, mas assinala uma nova fase no desenvolvimento das contradições do sistema que denominamos de “capital monopolista-financeiro.” O estouro de duas importantes bolhas financeiras em apenas sete anos na praça-forte do capitalismo aponta para uma crise da financeirização, ou do progressivo deslocamento da centralidade da produção para as finanças que tem caracterizado a economia ao longo das últimas quatro décadas.

O que Paul Sweezy havia denominado uma década atrás de “financeirização do processo de acumulação” tem sido a principal força propulsora do crescimento econômico desde os anos 1970.[3] A transformação trazida por ela ao sistema se reflete no rápido crescimento dos lucros financeiros como percentagem dos lucros totais verificada desde então (ver gráfico 1). O fato de que tal financeirização do capital pareça tomar a forma de bolhas cada vez maiores, que estouram cada vez mais frequentemente e com efeitos mais devastadores, ameaçando a cada ocasião aprofundar a estagnação – i.e., a situação, endêmica nos capitalismos maduros, de crescimento lento e capacidade ociosa e desemprego/ subemprego crescentes – constitui assim um desenvolvimento da maior importância.

Para tratar deste assunto examinaremos inicialmente a evolução da crise mais imediata identificada com o estouro da bolha imobiliária. Somente então nos voltaremos para a questão da tendência de acumulação de longo prazo, a saber, a dinâmica estagnação-financeirização, onde as condições históricas mais amplas da crise atual devem ser procuradas.

Gráfico 1: Lucros financeiros como percentagem dos lucros totais (média móvel cinco anos)


Fonte: Economic Report of the President, 2008. Table B-91. Corporate Profits by Industry, 1959-2007

As cinco fases de uma bolha

Apesar de que a forte queda no mercado acionário em 2000 parecia pressagiar uma séria desaceleração econômica, as perdas foram amortecidas e problemas mais amplos foram interrompidos pelo aparecimento de uma bolha imobiliária – levando apenas a uma recessão relativamente menor em 2001. A analista financeira da MacroMavens, Stephanie Pomboy, batizou de forma feliz esse processo como “The Great Bubble Transfer,” na qual a formação de uma bolha especulativa no mercado de hipotecas residenciais milagrosamente compensou o estouro da bolha no mercado de ações.[4] Alimentado pelas baixas taxas de juros e por mudanças nos níveis de reservas requeridos aos bancos (que tornaram uma quantidade maior de fundos disponíveis), o capital fluiu massivamente para o mercado residencial, os empréstimos hipotecários dispararam, assim como os preços das residências, e a hiperespeculação logo se iniciou.

O que ocorreu então seguiu o padrão básico das bolhas especulativas ao longo da história do capitalismo, tal como descrito por Charles Kindleberger em Manias, Panics, and Crashes (2005): novidades na oferta, expansão do crédito, mania especulativa, tensão, crash e pânico.[5]

Novidades na oferta

Uma novidade na oferta pode referir-se a um novo mercado, uma nova tecnologia revolucionária, um produto inovador, etc.[6] A novidade na oferta neste caso foi a “securitização” de empréstimos hipotecários através de um novo instrumento financeiro conhecido como collateralized debt obligation (CDO). Desde os anos 1970 os bancos vinham concentrando empréstimos imobiliários individuais, utilizando os recursos proporcionados por esses empréstimos para gerar obrigações lastreadas em hipotecas residenciais. Em um desenvolvimento posterior, esses empréstimos securitizados foram eles próprios agrupados na forma de CMOS (“collateralized mortgage obligations”). As CMOS eram formadas pelo que é conhecido como “tranches,” ou grupos de fluxos de renda relativos a hipotecas divididos de forma a que o principal de cada tranche fosse pago em sequência – a tranche mais alta primeiro, e assim por diante. Nos anos 1990, e especialmente no fim da década, os bancos começaram a construir CDOS que mesclavam hipotecas de baixo, médio e alto risco (subprime) a outros tipos de dívidas.

Cada tranche representava agora um risco de default, com a tranche mais baixa absorvendo todos os defaults antes da tranche mais alta que vinha logo a seguir, e assim por diante. As três maiores agências de avaliação de risco classificaram as tranches mais altas desses novos CDOS como grau de investimento. (Considera-se suficientemente provável que os pagamentos relativos a uma obrigação com grau de investimento sejam honrados, de forma a que os bancos tenham permissão de neles investir – uma obrigação com classificação abaixo do grau de investimento é insegura.) A hipótese era a de que a dispersão geográfica e setorial da carteira de empréstimos e o “retalhamento” do risco transformariam todas exceto as tranches mais baixas desses veículos financeiros em apostas seguras. Em muitos casos as tranches mais altas (e maiores) das CDOS obtiveram a melhor classificação possível (“AAA” – equivalente à classificação dos títulos do governo estadunidense) em função do dispositivo que as tornava “seguradas” contra default por uma companhia seguradora de obrigações, ela própria contemplada com a classificação AAA. Tudo isto criava um vasto mercado para empréstimos hipotecários que rapidamente abrangeu os assim chamados mutuários “subprime”, aqueles com pobres históricos de crédito e/ou de baixa renda, os quais anteriormente se encontravam fora do mercado de hipotecas. E em virtude da obtenção de altas classificações de crédito para os instrumentos resultantes, os bancos que criavam esses títulos rapidamente se tornavam capazes de deles se desfazer nos novos mercados financeiros globais.

Foi crucial para a constituição da bolha imobiliária a criação pelos bancos de canais fora de balanço, conhecidos como structured investment vehicles (SIVS) – eles próprios bancos virtuais – desenhados para deter cdos. Essas entidades especiais financiavam suas compras de CDOS com fundos de curto prazo obtidos no mercado de commercial papers. Isso significa que elas estavam tomando empréstimos de curto prazo (por meio do lançamento de “commercial papers lastreados em ativos”) para investir em títulos de longo prazo. De maneira a assegurar os investidores, arranjos de “credit default swap” foram feitos com bancos, envolvendo grandes bancos como o Bank of America, segundo os quais os SIVS (neste caso, os compradores dos swaps) faziam reembolsos trimestrais aos bancos (os vendedores dos swaps) em troca da promessa por parte destes em fazer um grande pagamento em caso de que os SIVS se vissem confrontados com a redução em seus ativos e a drenagem do crédito e fossem forçados a declarar default. Isso ao lado de outros fatores teve o efeito de tornar os bancos potencialmente expostos a riscos que eles supostamente haviam transferido a terceiros.[7]

Expansão do crédito

Uma expansão do crédito – o que significa que as pessoas ou empresas estão tomando mais empréstimos – faz-se necessária para alimentar qualquer bolha de preços de ativos. Na bolha residencial taxas de juro extremamente baixas seguiram-se ao estouro da bolha do mercado acionário e mudanças nos requisitos de reservas dos bancos expandiram o crédito disponível para todos os tomadores, independentemente de seu histórico de crédito. Iniciando em janeiro de 2001, o Federal Reserve promoveu a redução das taxas de juro ao longo de doze cortes sucessivos, diminuindo a taxa federal básica que estava em 6% até o valor mínimo pós-Segunda Guerra Mundial de 1% em junho de 2003. [8]

Na bolha imobiliária resultante, o financiamento barato expandiu o número de hipotecas a despeito do aumento do preço das residências. A combinação de taxas de juro extraordinariamente baixas e hipotecas de prazos mais longos resultou em pagamentos mensais acessíveis apesar do rápido aumento dos preços. Se tais pagamentos mensais continuassem ainda inacessíveis – como era frequentemente o caso dado que os salários reais estavam estagnados havia trinta anos e os empregos de entrada no mercado de trabalho raramente pagavam mais do que valores próximos aos do salário mínimo – mecanismos eram concebidos para poder reduzir os pagamentos iniciais ainda mais. Tais mecanismos tomavam frequentemente a forma de hipotecas a taxas ajustáveis com juros iniciais baixos funcionando como “isca”, mas que seriam redefinidas após um período determinado, normalmente de três a cinco anos ou menos. Quase não pagando juros e sem fazer pagamentos do principal, novos compradores podiam agora “adquirir” residências mesmo que fosse a preços ainda maiores.

Ingênuos compradores de residências foram prontamente seduzidos pela euforia dominante no mercado imobiliário, e facilmente levados a acreditar que o contínuo aumento no preço de suas casas lhes permitiria refinanciar suas hipotecas quando as “taxas isca” destas expirassem. Muitos empréstimos hipotecários subprime alcançavam 100% do valor estimado da residência. Os criadores desses empréstimos tiveram todos os incentivos para gerar e agrupar tantos deles quanto fosse possível uma vez que os empréstimos agrupados eram rapidamente vendidos a terceiros. E, naturalmente, os custos de aquisição rapidamente inflacionados cobertos por essas hipotecas subprime incluíam grandes comissões e honorários pagos a uma vasta e predatória gama de intermediários na corretagem e na “indústria” de geração de hipotecas. “A quantidade de hipotecas subprime emitidas e embutidas em obrigações lastreadas em hipotecas saltou de US$ 56 bilhões em 2000 para US$ 508 bilhões no seu pico em 2005.” [9]

Mania especulativa

A mania especulativa caracteriza-se pelo rápido aumento no volume de endividamento e um declínio igualmente rápido em sua qualidade. O pesado endividamento é usado para adquirir ativos financeiros, não com base no fluxo de renda que se espera que eles sejam capazes de gerar, mas meramente no aumento esperado no preço desses ativos. Isso é o que o economista Hyman Minsky chamou de “Ponzi finance” ou hiperespeculação.[10] As CDOS, com sua exposição a hipotecas subprime – ou “lixo tóxico” financeiro –, crescentemente tomaram essa forma clássica.

Mas não apenas emprestadores de hipotecas e tomadores subprime foram surpreendidos nesse frenesi. Uma multidão crescente de especuladores imobiliários envolveu-se no negócio de adquirir casas para revendê-las a preços mais elevados. Muitos proprietários também começaram a considerar o rápido aumento no valor de suas residências como natural e permanente, e aproveitaram as baixas taxas de juro para refinanciar e obter recursos a partir de suas casas. Essa foi uma maneira de manter ou aumentar os níveis de consumo apesar da estagnação dos salários para a maioria dos trabalhadores. No pico da bolha os novos empréstimos lastreados em hipotecas aumentaram em US$ 1,11 trilhão apenas entre outubro e dezembro de 2005, levando o endividamento hipotecário a um total de US$ 8,66 trilhões, o que equivalia a 69,4% do PIB estadunidense.[11]

Tensão

A tensão marca uma mudança abrupta na direção do mercado financeiro, que resulta frequentemente de algum evento externo. A bolha imobiliária foi inicialmente arranhada em 2006 devido à elevação das taxas de juro, que provocou a reversão na direção dos preços das residências em regiões com importantes parcelas subprime, principalmente na Califórnia, Arizona e Flórida. Tomadores de empréstimos que dependiam de aumentos de dois dígitos no preço das residências e taxas de juro muito baixas para poder refinanciar ou vender as casas antes que as taxas hipotecárias ajustáveis fossem definidas se viram repentinamente confrontados com os preços cadentes das residências e pagamentos referentes às hipotecas gradualmente se elevando. Os investidores começaram a se preocupar de que o resfriamento no mercado residencial em algumas regiões pudesse se alastrar pelo mercado hipotecário como um todo e afetasse toda a economia. Como indicador de tal tensão, os swaps de recebíveis desenhados para proteger os investidores e usados para especular com a qualidade do crédito aumentaram globalmente em 49% para cobrir US$ 42,5 trilhões imaginários em dívidas na primeira metade de 2007.[12]

Crash e pânico

O estágio final numa bolha financeira é conhecido como crash e pânico, e é marcado pela liquidação de ativos no quadro de uma “fuga para a qualidade”. Mais uma vez a liquidez se torna soberana. O crash inicial que abalou o mercado ocorreu em julho de 2007 quando dois fundos hedge do Bear Stearns que detinham cerca de US$ 10 bilhões em obrigações lastreadas em hipotecas implodiram. Um deles perdeu 90% de seu valor, enquanto o outro se evaporou completamente. Quando se tornou evidente que esses fundos hedge não eram capazes de calcular o valor real de suas participações muitos bancos, tanto na Europa e na Ásia quanto nos Estados Unidos, foram forçados a reconhecer sua exposição às “tóxicas” hipotecas subprime. Uma severa crise creditícia se seguiu conforme o temor se espalhava entre as instituições financeiras, cada uma das quais estava incerta acerca do nível de lixo tóxico financeiro que a outra detinha. A infiltração da crise do crédito no mercado de commercial papers cortou a principal fonte de financiamento para os SIVS, patrocinados pelos bancos. Isso escancarou a elevadíssima exposição ao risco de alguns dos grandes bancos que surgia a partir dos credit default swaps. Um evento chave foi a falência e subsequente salvamento e nacionalização do emprestador hipotecário britânico Northern Rock, que em setembro de 2007 foi o primeiro banco britânico em mais de um século a enfrentar uma corrida bancária, com clientes fazendo fila para sacar suas contas de poupança. Seguradoras de títulos estadunidenses também começaram a desmoronar – um desenvolvimento particularmente ameaçador ao capital – em função da subscrição de credit default swaps sobre obrigações lastreadas em hipotecas.[13]

O pânico financeiro rapidamente se alastrou ao redor do globo, refletindo o fato de que os investidores internacionais também estavam pesadamente atados à especulação com obrigações estadunidenses lastreadas em hipotecas. Temores generalizados emergiram de que o crescimento econômico mundial pudesse cair a níveis iguais ou inferiores a 2,5%, o que para economistas define uma recessão mundial.[14] Grande parte do medo que se propagou nos mercados financeiros globais se devia a que o sistema era tão complexo e opaco que ninguém sabia onde o lixo tóxico financeiro estava enterrado. Isso conduziu a uma fuga em direção aos títulos do Tesouro dos Estados Unidos e à drástica diminuição nos empréstimos.

Em 19 de janeiro de 2008, o Wall Street Journal declarava abertamente que o sistema financeiro havia entrado no “Estágio de Pânico”, referindo-se ao modelo de Kindelberger em Manias, Panics, and Crashes. O Federal Reserve respondeu atuando como emprestador de última instância e inundando o sistema de liquidez, ao reduzir drasticamente a taxa dos títulos federais de 4,75% em setembro a 3% em janeiro, com novos cortes esperados. O governo federal contribuiu com um pacote de estímulos de US$ 150 bilhões. Nada, entretanto, foi suficiente até o momento em que este artigo estava sendo escrito (início de março de 2008) para deter a crise, que é baseada na insolvência de boa parte do multitrilionário mercado de hipotecas, com novos choques sendo esperados à medida que milhões de hipotecas a taxas ajustáveis sofram saltos em suas taxas de juros. Acima de tudo, o fim da bolha imobiliária minou a situação financeira dos já altamente pressionados e endividados consumidores estadunidenses, cujas compras equivalem a 72% do PIB.

O quão séria no fim das contas será a desaceleração da economia é um ponto ainda desconhecido. Analistas financeiros sugerem que os preços das residências devem cair em média algo entre 20% e 30%, e muito mais em algumas regiões, de modo a voltar a alinhar-se com as tendências históricas.[15] O declínio nos preços das casas estadunidenses experimentou uma aceleração no quarto trimestre de 2007.[16] Isso além do fato de que os consumidores estão sendo pesadamente atingidos por outros problemas tais como o aumento do preço dos combustíveis e dos alimentos garante um sério desaquecimento na economia. Alguns observadores agora se referem a um “ciclo de bolhas” e aguardam outra bolha como a única maneira de evitar a catástrofe e rapidamente devolver o crescimento à economia.[17] Outros esperam um período de crescimento persistentemente fraco.

Uma coisa é certa. Os interesses dos grandes capitalistas estão relativamente bem situados para proteger seus investimentos durante a baixa graças a todo tipo de arranjos de hedge, além de serem frequentemente capazes de apelar aos governos em busca de ajuda. Eles também possuem uma miríade de formas de transferir os custos àqueles que se situam mais abaixo na hierarquia econômica. Assim, as perdas cairão desproporcionalmente sobre os pequenos investidores, trabalhadores, e consumidores, e sobre as economias do terceiro mundo. O resultado final, como ocorreu em todos os episódios similares na história do sistema, será o aumento na concentração econômica e do setor financeiro às escalas nacional e global.

Uma crise de financeirização

Pouco mais pode ser dito no momento sobre a evolução da retração econômica que ainda deverá construir seu caminho pelo sistema. Numa perspectiva histórica de longo prazo, entretanto, esses eventos podem ser vistos como sintomáticos de uma crise mais geral de financeirização, por trás da qual se oculta o espectro da estagnação. É explorando essas questões mais amplas e profundas enraizadas na produção baseada em classes que podemos iluminar o significado dos desenvolvimentos acima para a acumulação de capital e para o futuro da sociedade de classes capitalista.

Muitos comentaristas têm repreendido a economia estadunidense por sua “imensa bolha de crédito barato (...) com uma bolha gerando a outra” – nas palavras de Stephen Roach, diretor-executivo do Morgan Stanley na Ásia. Em outra ocasião Roach observou que “as bolhas estadunidenses têm se tornado maiores, assim como os segmentos da economia real que elas têm contagiado.” A dívida das famílias alcançou 133% da renda pessoal disponível enquanto o endividamento das empresas financeiras bateu níveis estratosféricos; já a dívida de governos e empresas não-financeiras tem crescido de forma constante.[18] Essa enorme explosão no endividamento – consumidores, empresas e governo – em relação à economia que lhe dá suporte (equivalente a bem mais do que 300% do PIB no pico da bolha imobiliária em 2005), se por um lado impulsionou a economia, pelo outro conduziu a uma crescente instabilidade.[19]

Comentaristas do mainstream frequentemente tratam essa situação como uma neurose nacional, ligada à dependência estadunidense do consumismo, o elevado endividamento, e o desaparecimento das poupanças pessoais, tornados possíveis pelo influxo de capital externo, ele próprio encorajado pela hegemonia do dólar. Economistas radicais, entretanto, tomaram a dianteira ao apontar para uma transformação estrutural no processo de acumulação de capital, ela mesma associada a um processo histórico se desenrolando nas últimas décadas – hoje comumente chamado de financeirização – no qual o papel tradicional das finanças como servidor útil da produção se inverteu, com as finanças hoje dominando a produção.

A questão da financeirização do processo de acumulação de capital foi enfatizada um quarto de século atrás na Monthly Review por Harry Magdoff e Paul Sweezy em um artigo sobre “Produção e Finanças”. Iniciando com uma teoria (denominada de “tese da estagnação”)[20] que via a explosão financeira como uma resposta à estagnação da economia, eles argumentavam que ela ajudava a “compensar o excesso de capacidade produtiva da indústria moderna” através de seu efeito direto sobre o emprego e indiretamente pelo estímulo à demanda criado pela apreciação dos ativos (conhecido hoje como “efeito riqueza”).[21] Mas a questão naturalmente surgia: poderia tal processo continuar? Eles responderam:

De um ponto de vista estrutural, i.e., dada a grande independência do setor financeiro discutida acima, a inflação financeira desse tipo pode persistir indefinidamente. Mas não está ela condenada a colapsar diante da persistente estagnação do setor produtivo? São esses dois setores realmente independentes? Ou estamos falando meramente de uma bolha inflacionária que está condenada a estourar como tantas outras provocadas por uma mania especulativa na história do capitalismo? 
Não há respostas evidentes a serem dadas a estas questões. Mas nos inclinamos pela visão de que na fase atual da história do capitalismo – com exceção feita à ocorrência de algum choque, de forma alguma improvável, tal como a quebra nos sistemas monetário e bancário internacionais – a coexistência da estagnação no setor produtivo e da inflação no setor financeiro pode continuar por um longo tempo.[22]

Na raiz da tendência à financeirização, Magdoff e Sweezy argumentavam, encontrava-se a estagnação da economia real, que é o estado normal do capitalismo moderno. Nessa visão, não seria a estagnação que necessitaria de uma explicação, mas sim os períodos de rápido crescimento, tal como os anos 1960.

Economistas do mainstream têm colocado pouca ênfase na tendência à estagnação das economias maduras. Na ideologia econômica dominante o rápido crescimento é considerado como sendo uma propriedade intrínseca do capitalismo como sistema. Confrontados com o que parece ser o princípio de uma grave desaceleração da economia somos assim encorajados a considerá-la como um mero fenômeno cíclico – doloroso, mas que se corrigirá  automaticamente. Mais cedo do que tarde uma recuperação total se dará e o crescimento retomará seu acelerado passo normal.

Existe, no entanto, uma visão econômica radicalmente diferente, da qual Magdoff e Sweezy se colocavam entre os principais representantes, a qual sugere que o caminho normal das economias capitalistas maduras, tais como a dos Estados Unidos, dos maiores países da Europa Ocidental, além do Japão, é o da estagnação e não o do rápido crescimento. Nessa perspectiva, as crises periódicas rituais, ao invés de constituírem meramente interrupções temporárias no processo de avanço acelerado, apontam para restrições sérias e crescentes no longo prazo sobre a acumulação de capital.

Para que uma economia capitalista continue a crescer ela deve constantemente encontrar novas fontes de demanda para o crescente excedente que produz. Entretanto, chega um momento na evolução histórica da economia em que grande parte do excedente gerado graças à enorme e crescente produtividade do sistema é incapaz de encontrar suficientes aplicações novas e rentáveis. As razões para isso são complexas e têm que ver com (1) o amadurecimento das economias, quando não é mais necessário que a estrutura industrial básica seja construída a partir do nada, mas simplesmente reproduzida (o que pode ser normalmente financiado a partir das provisões para depreciação); (2) a ausência durante longos períodos de qualquer nova tecnologia que estimule e transforme a economia de maneira a caracterizar uma época, tal como ocorreu com a introdução do automóvel (mesmo o uso generalizado de computadores e da Internet não teve o efeito estimulante sobre a economia que tiveram tecnologias transformadoras anteriores); (3) a crescente desigualdade de renda e riqueza, que limita a demanda por consumo na base da economia e tende a reduzir o investimento conforme a capacidade produtiva não utilizada se acumule e os ricos especulem mais com seus recursos em vez de investi-los na economia “real” – os setores produtores de bens e serviços; e (4) um processo de monopolização (oligopolização) que conduz ao enfraquecimento da concorrência em preços – normalmente considerada como sendo a principal fonte responsável pela flexibilidade e dinamismo do sistema.[23]

Gráfico 2. Investimento fixo privado não-residencial líquido como percentagem do PIB (média móvel cinco anos)


Fonte: Bureau of Economic Analysis, National Income and Product Accounts. Table 5.2.5. Gross and Net Domestic Investment by Major Type, Annual Data 1929-2006; Economic Report of the President, 2008. Table B-1. Gross Domestic Product, 1959-2007.

Historicamente, a estagnação fez com que sua presença fosse mais dramaticamente sentida na Grande Depressão dos anos 1930. Ela foi interrompida pelo estímulo econômico proporcionado pela Segunda Guerra Mundial e pelas condições excepcionalmente favoráveis existentes imediatamente após a guerra durante a então chamada “Golden Age”. Mas, quando as condições favoráveis se desvaneceram, a estagnação ressurgiu. A utilização da capacidade na manufatura iniciou o declínio secular que continua até hoje, com sua média se situando somente em 79,8% no período entre 1972 e 2007 (comparado com uma média de 85% no período 1960-1969). Como resultado parcial disso o investimento líquido fraquejou (ver gráfico 2).[24]

O papel clássico do investimento líquido (após considerar a reposição do equipamento depreciado) na teoria do desenvolvimento capitalista é claro. No nível da firma, é somente o investimento líquido que absorve o excedente correspondente aos lucros não distribuídos (e não taxados) da firma – uma vez que o restante do investimento bruto é coberto pelas provisões relativas ao consumo de capital. Como o economista Harold Vatter observou em um artigo intitulado “The Atrophy of Net Investment” em 1983:

No nível da empresa representativa individual, o esmaecimento do investimento líquido mostra a aproximação do fim da histórica e profundamente enraizada raison d’être da firma não-financeira: a acumulação de capital. Em consequência, os lucros contábeis não distribuídos, se não taxados, carecerão das compensações tradicionais (demanda efetiva na forma de investimento líquido), pelo menos numa economia fechada. [25]

Era o investimento líquido no setor privado que costumava ser o motor principal da economia capitalista, absorvendo um excedente econômico crescente. Foi o relativamente elevado investimento fixo não-residencial líquido (juntamente com o gasto governamental militarmente orientado) que havia ajudado a criar e sustentar os “Anos Dourados” da década de 1960. A diminuição desse investimento (como percentagem do PIB) no início dos 1970 (com breves exceções no final dos 1970, início dos 1980, e final dos anos 1990), sinalizou que a economia era incapaz de absorver todo o excedente que ela estava gerando e assim marcou o início do aprofundamento da estagnação na economia real de bens e serviços.

O problema como um todo tem se tornado mais grave ao longo do tempo. Nove dos dez anos com os menores níveis de investimento fixo líquido não-residencial como percentagem do PIB ao longo dos últimos cinquenta anos (até 2006) encontram-se nas décadas de 1990 e 2000. Entre 1986 e 2006, apenas um ano – 2000, justo antes do crash no mercado acionário – o percentual do PIB representado pelo investimento fixo líquido não-residencial alcançou a média vigente entre 1960 e 1979 (4,2%). Esta falência do investimento claramente não é devida à falta de excedente. Um indicador disso é que as empresas hoje estão sentadas numa montanha de recursos – um excedente de US$ 600 bilhões em poupança empresarial construído ao mesmo tempo em que o investimento declinava em função da ausência de aplicações rentáveis.[26]

O que tem evitado que as coisas se tornassem piores nas últimas décadas em função do declínio do investimento líquido e dos limites ao gasto civil dos governos têm sido a ascensão das finanças.

Elas proporcionaram uma aplicação importante para o excedente econômico no que é denominado de FIRE (finance, insurance, e real estate), empregando muitas pessoas nesses setores não-produtivos da economia, e também indiretamente estimulando a demanda através do impacto da apreciação de ativos (o efeito-riqueza).

Ao lado das finanças, o principal estímulo para a economia, em anos recentes, tem sido o gasto militar. Como o crítico do império Chalmers Johnson notava na edição de fevereiro de 2008 do Le Monde Diplomatique:

Os gastos planejados pelo Departamento de Defesa para o ano fiscal de 2008 são maiores que os orçamentos militares de todas as outras nações juntas. O orçamento suplementar para financiar as guerras atuais no Iraque e no Afeganistão, que não fazem parte do orçamento oficial da defesa, é ele próprio maior que os orçamentos militares combinados da Rússia e da China. Os gastos relacionados à defesa para o ano fiscal de 2008 excederão US$ 1 trilhão pela primeira vez na história... Deixando de fora as duas guerras em andamento do presidente Bush, os gastos com defesa duplicaram desde meados dos anos 1990. O orçamento com defesa para 2008 é o maior desde a Segunda Guerra Mundial.[27]

Mas, mesmo o estímulo oferecido pelo gigantesco gasto militar não é hoje suficiente para tirar o capitalismo estadunidense da estagnação. Por conseguinte, a economia tem se tornado mais e mais dependente da financeirização como veículo chave para o crescimento.

Apontando em 1994 para essa situação econômica dramaticamente modificada numa palestra a estudantes de pós-graduação em Harvard, Sweezy declarou:

Antigamente as finanças eram tratadas como um modesto assistente da produção. Elas tenderam a assumir vida própria e gerar excessos especulativos nos últimos estágios das expansões do ciclo econômico. Em regra esses episódios tiveram curta duração e efeitos não-duráveis sobre a estrutura e funcionamento da economia. Em contraposição, o que tem se verificado nos últimos anos é o crescimento de um setor financeiro relativamente independente, não em um período de superaquecimento mas, pelo contrário, em um período de estagnação em alto nível (alto nível em função do suporte proporcionado à economia pelo setor público militarmente orientado) no qual a indústria privada é lucrativa mas carece de incentivos para se expandir, e em consequência o investimento real privado fica estagnado. Mas desde que as empresas e seus acionistas vão bem e, como sempre, estão ansiosos por expandir seu capital, despejam dinheiro nos mercados financeiros, os quais respondem expandindo sua capacidade de manipular essas crescentes somas e oferecendo novos tipos de atrativos instrumentos financeiros. Tal processo iniciou-se nos anos 1970 e decolou realmente nos anos 1980. No fim da década, a velha estrutura da economia, que consistia de um sistema produtivo servido por um modesto auxiliar financeiro, havia dado lugar a uma nova estrutura na qual um setor financeiro largamente expandido havia alcançado um alto grau de independência e se colocado na cabeça do sistema produtivo subjacente. Isto, em essência, é o que temos hoje.[28]

Nessa perspectiva, o capitalismo em sua fase de capital monopolista-financeiro tem se tornado crescentemente dependente do inchaço do sistema de crédito/endividamento para escapar dos piores aspectos da estagnação. Além disso, nada no processo de financeirização em si oferece uma saída para esse círculo vicioso. Hoje o estouro de duas bolhas em sete anos no centro do sistema capitalista aponta para uma crise de financeirização, por trás da qual se esconde uma profunda estagnação, sem ter no presente outro caminho visível para sair da armadilha que o enchimento de novas bolhas.

É a financeirização o real problema ou meramente um sintoma?

O argumento anterior leva à conclusão de que a estagnação gera financeirização, que constitui o principal meio através do qual o sistema tem continuado a avançar, embora com dificuldade, até o momento. Mas é necessário notar que o trabalho recente de alguns economistas radicais nos Estados Unidos tem apontado para uma conclusão diametralmente oposta: a de que a financeirização é quem gera estagnação. Nessa visão é a financeirização em vez da estagnação que parece ser o real problema.

Isso pode ser visto em um working paper de novembro de 2007 do Political Economy Research Institute escrito por Thomas Palley, com o título de “Financialization: What It Is and Why It Matters.” Palley nota que a era da financeirização tem estado associada com um crescimento econômico geralmente morno... Em todos os países exceto o Reino Unido, o crescimento médio anual caiu durante a era da financeirização iniciada em 1979. Além disso, o crescimento também parece mostrar uma tendência declinante de forma que nos anos 1980 era mais elevado que nos anos 1990, que por sua vez era mais alto que nos anos 2000. Ele continua e observa que “o ciclo econômico gerado pela financeirização pode ser instável e acabar numa estagnação prolongada.” Entretanto, a força principal do argumento de Palley é que essa “estagnação prolongada” é uma consequência natural da financeirização ao invés do contrário. Assim, ele afirma que fatores tais como a “estagnação dos salários e a crescente desigualdade de renda” se “devem de forma importante a mudanças introduzidas pelos interesses do setor financeiro.” Considera-se que o “novo ciclo econômico” dominado pelo “culto às finanças” conduz à maior volatilidade que surge com as bolhas financeiras. Assim, a “financeirização pode tornar a economia mais propensa à deflação e recessão prolongada.” Palley chama esse argumento de “tese da financeirização.”[29]

Não há dúvida de que uma prolongada e profunda estagnação pode emergir no final de uma bolha financeira, i.e., com o esvaecimento de um período de rápida financeirização. Afinal, isso é o que ocorreu no Japão depois do estouro de sua bolha imobiliária/ acionária em 1990.[30] A análise que apresentamos aqui, entretanto, sugeriria que um mal-estar econômico desse tipo é mais utilmente visto como uma crise de financeirização ao invés de ser atribuível aos efeitos negativos da financeirização sobre a economia, como sugerido por Palley. O problema é que o processo de financeirização enguiçou e com ele o crescimento por ele gerado.

O ponto que queremos aqui enfatizar pode ser esclarecido ao analisar outro (de outubro de 2007) working paper (também do Political Economy Research Institute) sobre o assunto, “Financialization and Capital Accumulation in the Non-Financial Corporate Sector”, do economista Özgür Orhangazi. Esse autor argumenta que “a expansão do investimento financeiro e das oportunidades de lucro financeiro desloca o investimento real ao alterar os incentivos dos administradores das empresas e direcionar os recursos para longe do investimento real.” Notando que “a taxa de acumulação de capital (referindo-se ao investimento fixo líquido não-residencial de empresas não-financeiras) tem sido relativamente baixa na era da financeirização,” Orhangazi vê isso como sendo resultado do “aumento do investimento em ativos financeiros,” que “pode ter um efeito ‘deslocamento’ sobre o investimento real”: a estagnação transforma-se de causa (como na tese da estagnação) em efeito (a tese da financeirização).[31]

Todavia, a ideia do “deslocamento” do investimento pela especulação financeira faz pouco sentido, na nossa visão, quando colocada no contexto atual de uma economia caracterizada pelo aumento da capacidade ociosa e desaparecimento das oportunidades de investimento líquido. Existe apenas um número muito limitado de oportunidades de geração de lucro associadas com a criação ou expansão de indústrias automotivas ou de equipamentos, salões de beleza, cadeias de fast food, e assim por diante. Nas circunstâncias em que o processo de acumulação de capital carece de aplicações lucrativas e constantemente estanca, o acúmulo de mais e mais dívidas (e a inflação do preço dos ativos que isso produz) constitui uma poderosa alavanca, como vimos, para estimular o crescimento. De modo oposto, qualquer desaceleração no aumento do endividamento ameaça o crescimento. Isso não quer dizer que o endividamento deva ser visto como uma solução para tudo. Pelo contrário, para a debilitada economia dos dias de hoje nenhuma quantidade de endividamento é suficiente. É da natureza do capital monopolista-financeiro atual que ele “tenda a se tornar viciada no endividamento: é preciso mais e mais apenas para manter o motor funcionando.”[32]

Contudo, por mais importante que a financeirização tenha se tornado na economia contemporânea, isso não deve nos deixar cegos ao fato de que o real problema repousa em outro lugar: no sistema geral de exploração de classe que está enraizado na produção. Nesse sentido a financeirização é meramente uma forma de compensação pela doença que afeta a própria acumulação de capital. Como Marx escreveu em O Capital: “A superficialidade da economia política mostra-se no fato de que ela vê a expansão e contração do crédito como a causa das alterações periódicas no ciclo industrial, quando na verdade constituem apenas um mero sintoma delas.” Apesar da vasta expansão do crédito/endividamento no capitalismo de hoje, permanece verdadeiro que a real barreira ao capital é o próprio capital, manifestada em sua tendência à sobreacumulação.

A bem-intencionada crítica da financeirização avançada por Palley, Orhangazi, e outros na esquerda, aponta para a re-regulação do sistema financeiro e a eliminação de alguns dos piores aspectos do neoliberalismo que emergiu na era do capital monopolista-financeiro. A clara intenção é a de criar uma nova arquitetura financeira que estabilize a economia e proteja os salários. Mas se o argumento precedente for correto, tais esforços de re-regular as finanças provavelmente fracassarão em seus objetivos principais, uma vez que qualquer tentativa séria de controlar o sistema financeiro arrisca desestabilizar o regime de acumulação como um todo, que necessita constantemente da financeirização para alcançar níveis mais elevados.

As únicas ações que poderiam concebivelmente ser tomadas dentro do sistema para estabilizar a economia, afirmou Sweezy em Harvard em 1994, seriam expandir amplamente o gasto civil estatal de forma que beneficiasse genuinamente a população, e empreender uma redistribuição de renda e riqueza verdadeiramente radical do tipo “que Joseph Kennedy, o fundador da dinastia Kennedy”, se referia “em meio à Grande Depressão, quando a situação parecia ser a mais sombria” – indicando “que ele desistiria tranquilamente de metade de sua fortuna se pudesse ter certeza de que a outra metade permaneceria segura.” É claro que nenhuma dessas propostas radicais se encontra na agenda atualmente, e a natureza do capitalismo é tal que se a crise eventualmente levar à sua adoção, tudo será feito pelos interesses estabelecidos para repelir tais medidas no momento em que a crise tiver passado.[33]

A dura verdade do assunto é que o regime do capital monopolista- financeiro é desenhado para beneficiar um estreito grupo de oligopolistas que domina tanto a produção quanto as finanças. Um número relativamente reduzido de indivíduos e empresas controla enormes pools de capital e não encontra outro modo de continuar a ganhar dinheiro na escala requerida que através de uma pesada dependência em relação às finanças e à especulação. Isso constitui uma contradição intrinsecamente arraigada no próprio desenvolvimento do capitalismo. Se o objetivo é avançar nas necessidades da humanidade como um todo, o mundo cedo ou tarde terá que abraçar um sistema alternativo. Não há outro caminho.

Notas

[1] John Bellamy Foster, “Financialization of Capitalism,” Monthly Review 58, nº. 11 (April 2007): 8-10. Ver também John Bellamy Foster, “The Household Debt Bubble,” Monthly Review 58, nº. 1 (May 2006): 1-11, e “Monopoly-Finance Capital,” Monthly Review 58, nº. 7 (December 2006); e Fred Magdoff, “The Explosion of Debt and Speculation,” Monthly Review 58, nº. 6 (November 2006), 1-23.

[2] “U.S. Recovery May Take Longer than Usual: Greenspan,” Reuters, February 25, 2008.

[3] Paul M. Sweezy, “More (or Less) on Globalization,” Monthly Review 49, nº. 4 (September 1997): 3.

[4] Stephanie Pomboy, “The Great Bubble Transfer,” MacroMavens, April 3, 2002; Foster, “The House-hold Debt Bubble,” 8-10.

[5] A discussão a seguir das cinco fases da bolha imobiliária se apoia principalmente nas seguintes fontes: Juan Landa, “Deconstructing the Credit Bubble,” Matterhorn Capital Management Investor Update, 3rd Quarter 2007; e “Subprime Collapse Part of Economic Cycle,” San Antonio Business Journal, October 26, 2007, e Charles P. Kindelberger and Robert Aliber, Manias, Panics, and Crashes (Hokoben, New Jersey: John Wiley and Sons, 2005).

[6] Na análise das bolhas financeiras que Charles Kindelberger apresenta baseado na teoria da instabilidade financeira introduzida por Hyman Minsky, a fase na bolha associada aqui com “novidade na oferta” é mais frequentemente citada como “deslocamento”, um conceito que supostamente combina as idéias de choque econômico e inovação. Uma vez que a “novidade na oferta”, no entanto, descreve mais o que de fato ocorre durante a formação de uma bolha, ela frequentemente substitui “deslocamento” em tratamentos concretos. Ver Kindelberger and Aliber, Manias, Panics, and Crashes, 47-50.

[7] Floyd Norris, “Who’s Going to Take the Financial Weight?,” New York Times, October 26, 2007; “Default Fears Unnerve Markets,” Wall Street Journal, January 18, 2008.

[8] Federal Reserve Bank of New York, “Historical Changes of the Target Federal Funds and Discount Rates”.

[9] Landa, “Deconstructing the Credit Bubble.”

[10] Hyman Minsky, Can “It” Happen Again? (New York: M.E. Sharpe, 1982), 28–29.

[11] “Household Financial Condition: Q4 2005,” Financial Markets Center, March 19, 2006; Foster, “The Household Debt Bubble,” 8.

[12] “Global Derivatives Market Expands to $516 Trillion (Update),” Bloomberg.com, November 22, 2007.

[13] “Bond Insurer Woes May Mean End of Loophole,” Reuters, February 13, 2008.

[14] “Global Recession Risk Grows as U.S. ‘Damage’ Spreads,” Bloomberg.com, January 28, 2008. Este relatório se refere a um nível de recessão mundial quando o crescimento é de 3% ou menos. Mas uma taxa de 2,5% é provavelmente mais precisa, i.e., mais alinhada com as recentes recessões mundiais e a visão do FMI.

[15] Stephen Roach, “America’s Inflated Asset Prices Must Fall,” Financial Times, January 8, 2008.

[16] “Decline in Home Prices Accelerates,” Wall Street Journal, February 27, 2008.

[17] Eric Janszen, “The Next Bubble,” Harper’s (February 2008), 39–45.

[18] Roach, “America’s Inflated Asset Prices Must Fall,” and “You Can Almost Hear it Pop,” New York Times, December 16, 2007.

[19] Fred Magdoff, “The Explosion of Debt and Speculation,” 9.

[20] O termo “tese da estagnação” está em sua origem associado principalmente com o argumento de Alvin Hansen em relação à Grande Depressão. Ver Hansen, “The Stagnation Thesis” in American Economic Association, Readings in Fiscal Policy (Homewood, Illinois: Richard D. Irwin, Inc., 1955), 540–57. osteriormente foi aplicado ao Baran and Sweezy’s Monopoly Capital. Ver Harry Magdoff, “Monopoly Capital” (review), Economic Development and Cultural Change 16, no. 1 (October 1967): 148.

[21] O conceito de “efeito riqueza” refere-se à tendência do consumo em crescer independentemente da renda devido à elevação do preço dos ativos sob a financeirização. A utilização mais antiga conhecida para o termo encontra-se em um artigo do Business Week de 27 de janeiro de 1975, com o título de “How Sagging Stocks Depress the Economy.” Alan Greenspan empregou o conceito de “efeito riqueza” em 1980 referindo se ao efeito que o aumento do preço das residências possuía no estímulo ao consumo dos proprietários destas — Greenspan, “The Great Malaise,” Challenge 23, no. 1 (March–April 1980): 3. Posteriormente ele o utilizou para racionalizar a bolha do mercado acionário da Nova Economia nos anos 1990.

[22] Harry Magdoff and Paul M. Sweezy, “Production and Finance,” Monthly Review 35, no. 1 (May 1983): 11–12.

[23] O argumento básico foi articulado em numerosas publicações por Paul Baran, Paul Sweezy, e Harry Magdoff nos anos 1950 até os anos 1990.

[24] Federal Reserve Statistical Release, G.17, “Industrial Production and Capacity Utilization,” February 15, 2008; John Bellamy Foster, “The Limits of U.S. Capitalism: Surplus Capacity and Capacity Surplus,” in Foster and Henryk Szlajfer, ed., The Faltering Economy (New York: Monthly Review Press, 1984), 207.

[25] Harold G. Vatter, “The Atrophy of Net Investment,” in Vatter and John F. Walker, The Inevitability of Government Spending (New York: Columbia University Press, 1990), 7. Vatter nota que o investimento líquido como proporção do Produto Nacional Líquido (PNL) caiu pela metade entre o último quarto do século dezenove e a metade do século vinte, Vatter and Walker, Inevitability of Government Spending, 8.

[26] “Companies are Piling Up Cash,” New York Times, March 4, 2008. Esta acumulação de recursos foi o produto da última década, em que o nível médio de cash como percentagem do total de ativos das empresas no Standard & Poor’s 500-stock index duplicou entre 1998 e 2004 (enquanto que a mediana triplicou).

[27] Chalmers Johnson, “Why the US has Really Gone Broke,” Le Monde Diplomatique (English edition), February 2008. O valor de US$ 1 trilhão dado por Johnson para o gasto militar dos Estados Unidos é calculado adicionando-se os pedidos suplementares para as guerras no Iraque e Afeganistão ao orçamento do Departamento de Defesa para o ano fiscal de 2008 (criando um subtotal de US$ 766 bilhões), e então adicionando a isso as despesas militares ocultas nos orçamentos dos Department of Energy, Department of Homeland Security, Veterans Affairs, etc.

[28] Paul M. Sweezy, “Economic Reminiscences,” Monthly Review 47, no. 1 (May 1995), 8-9.

[29] Thomas I. Palley, “Financialization: What It Is and Why It Matters,” Working Paper Series, no. 153, Political Economy Research Institute, November 2007, 1, 3, 8, 11, 21.

[30] See Kindelberger and Aliber, Manias, Panics, and Crashes, 126-35.

[31] Özgür Orhangazi, “Financialization and Capital Accumulation in the Non-Financial Corporate Sector,” Working Paper Series, no. 149, Political Economy Research Institute, October 2007, 3-7, 45.

[32] Harry Magdoff and Paul M. Sweezy, The Irreversible Crisis (New York: Monthly Review Press, 1988), 49.

[33] Sweezy, "Economic Reminiscences," 9-10.

1 de abril de 2008

Uma era de transição: Os EUA, a China, o Pico Petrolífero e a morte do neoliberalismo

Até recentemente, a economia capitalista global desfrutou de um período de tranquilidade comparativa e cresceu em um ritmo relativamente rápido desde a crise econômica global de 2001-02. Durante esse período de expansão econômica global, houve vários desenvolvimentos econômicos e políticos importantes. ...

Minqi Li

Monthly Review

Monthly Review Volume 59, Number 11 (April 2008)

Até recentemente a economia capitalista global desfrutou um período de relativa tranquilidade e crescimento a um ritmo relativamente rápido após a crise económica global de 2001-02. Durante este período de expansão económica tem havido vários importantes desenvolvimentos económicos e políticos. Primeiro, os Estados Unidos – a potência económica declinante mas ainda a principal força condutora da economia capitalista global – foram caracterizados por crescentes desequilíbrios internos e externos. A economia estado-unidense experimentou um período de dívida financiada, "expansão" conduzida pelo consumo com salários e emprego estagnados, e tem estado a incorrer grandes e crescentes défices em conta corrente (o défice em conta corrente é uma medida ampla do défice comercial). Segundo, a China tornou-se um actor principal na economia capitalista global e tem estado a desempenhar um papel cada vez mais importante na sustentação do crescimento económico global. Terceiro, a acumulação capitalista global está a impor uma pressão crescente sobre os recursos naturais e o ambiente do mundo. Há uma evidência cada vez mais convincente de que a produção petrolífera global atingirá o seu pico e começará a declinar dentro de poucos anos. Quarto, a aventura imperialista estado-unidense no Médio Oriente sofreu derrotas devastadoras e tem havido resistência crescente ao neoliberalismo e ao imperialismo americano por todo o mundo.

Quando a bolha habitacional dos EUA explode e o domínio do dólar sobre o sistema financeiro global torna-se cada vez mais precário, a economia estado-unidense está agora a ir para a recessão e a economia capitalista global está a entrar num novo período de instabilidade e estagnação. Nos próximos anos veremos provavelmente um grande realinhamento das várias forças politicas e económicas globais e isto estabelecerá o palco para uma nova ascensão da luta de classe global.

Neoliberalismo e desequilíbrios globais

A partir da década de 1980, o neoliberalismo tornou-se a ideologia económica dominante do capitalismo global. Sob as políticas e instituições neoliberais (tais como monetarismo, privatização, desregulamentação, "reforma" do mercado de trabalho e liberalização comercial e financeira), as desigualdades no rendimento e na distribuição de riqueza altearam-se e, em muitas partes do mundo, o povo sofreu declínios devastadores nos padrões de vida. Quando o capital financeiro fluía entre países em busca de ganhos especulativos, uma economia nacional após outra eram destruídas. Sob a pressão de capitalistas financeiros e dos seus representantes institucionais (tais como o FMI, o Banco Mundial e o Departamento do Tesouro dos EUA), muitos governos ficaram comprometidos com as chamadas políticas fiscal e monetária "responsáveis", o que muitas vezes conduziu a consequências económicas e sociais desastrosas.

Na década de 1990, as contradições do neoliberalismo levaram a crises financeiras cada vez mais violentas. De 1995 a 2002, a economia global foi abalada sucessivamente pelas crises que se desenvolveram no México, países do Sudeste Asiático, Rússia, Argentina e Turquia. A economia japonesa lutou com deflação e estagnação a seguir à explosão da bolha de activos em 1990. Havia um sério perigo de que toda a economia capitalista global pudesse cair num círculo vicioso de rupturas financeiras e afundamento na depressão. Neste contexto, os défices em conta corrente dos EUA desempenharam um indispensável papel estabilizador.

Nos anos 1990, os Estados Unidos experimentaram a maior bolha no mercado de acções da história. Apesar da estagnação dos salários reais e dos rendimentos familiares, o consumo doméstico expandiu-se rapidamente quando a dívida habitacional escalou. Na recessão de 2001, temendo que os Estados Unidos pudessem cair numa estagnação persistente, estilo japonês, o Federal Reserve cortou drasticamente a política de taxas de juro e manteve a taxa de juro real abaixo de zero durante vários anos. Em consequência, o mercado de acções permaneceu altamente super-valorizado de acordos com os padrões históricos e a oferta excessiva de moeda e capital a crédito por sua vez alimentaram uma grande bolha habitacional.

Alimentada por uma bolha de activos após outra, a economia dos EUA foi capaz de manter uma expansão relativamente rápida da procura interna. Quando o resto do mundo sofre de insuficiente procura interna, as importações americanas de bens e serviços tenderam a crescer mais rapidamente do que as exportações. Em consequência, os Estados Unidos tem estado a incorrer em grandes e crescentes défices em conta corrente, os quais em 2006 atingiram mais de 800 mil milhões dólares, ou 6 por cento do PIB.

Os défices estado-unidenses em conta corrente geram directamente procura efectiva para o resto da economia mundial, permitindo a muitas economias, incluindo as economias asiáticas e exportadores de petróleo e commodities, perseguirem o crescimento económico conduzido pelas exportações. Mas talvez, mais importante, os défices americanos em conta corrente representam gastos em excesso do rendimento que deve ser financiado pela tomada de empréstimos do resto do mundo. Os défices americanos portanto criam activos para o resto do mundo.

Os bancos centrais das economias asiáticas e os exportadores de petróleo tornaram-se os maiores financiadores dos défice em conta corrente dos EUA. De 1996 a 2006, o total de reservas em divisas estrangeiras de países de baixo e médio rendimento escalou de 527 mil milhões de dólares para 2,7 milhões de milhões de dólares e sua participação no PIB mundial mais do que triplicou: de 1,7 por cento para 5,6 por cento. A ascensão de reservas de divisas estrangeiras reduziu o risco de fugas de capital maciças e crises financeiras, permitindo a estes países terem algum espaço para prosseguirem políticas macroeconómicas expansionistas. A China, em particular, desempenhou um papel crucial no financiamento dos défices em conta corrente americanos e acumulou as maiores reservas de divisas estrangeiros actualmente montando a cerca de 1,6 milhão de milhões de dólares.

Gráfico 1. Taxa anual de crescimento econômico mundial, 1961-2006, dólar americano constante (2000)

Fonte: World Bank, World Development Indicators Online, http://devdata.worldbank.org/dataonline.

O gráfico 1 apresenta as taxas de crescimento económico mundial de 1961 a 2006, com o PIB mundial medido em US dólares constantes de 2000. Na "era dourada" da década de 1960, a economia global expandiu-se rapidamente com taxas de crescimento anual a flutuarem entre 4 e 7 por cento. A partir da década de 1970, a economia global tem estado a lutar com crescimento vagaroso com taxas a flutuarem sobretudo entre 2 e 4 por cento. Durante quatro períodos, 1974-75, 1980-82, 1991-93 e 2001-02, a economia global esteve em crises profundas (embora não haja definição oficial, considera-se geralmente que a economia global está em recessão quando a taxa de crescimento económico do mundo cai abaixo dos 2,5 por cento ao ano). A partir de 2003, a economia global tem desfrutado de uma certa estabilidade relativa e cresceu a cerca de 4 por cento ao ano. Contudo, com a economia do EUA a entrar agora em recessão, esta estabilidade relativa de vida curta está prestes a chegar ao fim.

A expansão económica dos EUA desde 2001

A Tabela 1 apresenta indicadores económicos seleccionados da economia dos EUA. A sua recuperação económica após a recessão de 2001 foi muito fraca. Desde então, a taxa de crescimento médio anual tem sido de apenas 2,4 por cento, a ser comparada com os 4 por cento na década de 1960 e os 3,3 por cento nas de 1980 e 1990. Tanto o emprego como os salários reais dos trabalhadores tem estado estagnados. Medido em dólares de 1982, o salário real horário médio dos trabalhadores do sector privado dos EUA em 2006 era de 8,2 dólares, cerca de 80 por cento mais baixo do que em 1972. A partir de 2000, o rendimento familiar mediano tem estado em queda.

Contudo, os lucros corporativos tem escalado. Os lucros corporativos em proporção do PIB aumentaram de 5,8 por cento em 2001 para 9,8 por cento em 2006. O preço das acções em relação aos rácios de rendimentos permanece excessivamente elevado, sugerindo que a bolha do mercado de acções ainda não foi plenamente desinchada. O boom do mercado de acções no fim da década de 1990 conduziu ao sobre-investimente generalizado. No principio dos anos 2000, as taxas de utilização da capacidade industrial estavam nos mais baixos em todas as décadas do período pós Segunda Guerra Mundial. Com excesso de capacidade de produção substancial, o investimento privado tem sido lento apesar da melhoria dramática na lucratividade corporativa.

O crescimento económico estado-unidense desde 2001 tem sido conduzido pela expansão do consumo familiar, o qual agora representa mais de 70 por cento do PIB. Como a maioria das famílias sofre de rendimento em queda ou estagnados, a expansão do consumo foi financiada pelo crescimento explosivo da dívida habitacional. A dívida habitacional dos EUA ascendeu de cerca de 90 por cento do rendimento pessoal disponível para 103 por cento em 2000, e para 140 por cento em 2006. Em 2007, os serviços de dívida habitacional (juros e pagamentos do principal em dívida) ascenderam para 14 por cento do rendimento disponível, o mais alto já registado. Nesse meio tempo, a taxa de poupança familiar (o rácio da poupança familiar em relação ao rendimento disponível) caiu da média histórica de aproximadamente 10 por cento para, agora, virtualmente zero.

Tabela 1. Indicadores selecionados da economia dos EUA, 1961–2007

Fonte: U.S. Bureau of Economic Analysis, http://www.bea.gov; U.S. Economic Report of the President, http://www.gpoaccess.gov/eop/tables07.html; U.S. Federal Reserve Board, http://www.federalreserve.gov/releases.

O consumo financiado pela dívida era claramente insustentável. Nem a dívida das famílias nem o fardo do serviço da dívida podiam subir indefinidamente em relação ao rendimento familiar. Com a explosão da bolha habitacional, as famílias terão de aumentar as suas taxas de poupança e reduzir seu fardo de dívida. Se a taxa de poupança familiar retornassem ao seu nível médio histórico, isto conduziria a uma enorme redução dos gastos familiares. Com a maioria dos lares estado-unidenses a sofrerem de rendimentos reais em queda ou em estagnação, é difícil ver como o consumo possa crescer rapidamente nos próximos anos. Se o consumo estagna, então, dado o peso esmagador do consumo na economia estado-unidense, é altamente provável que caiu numa recessão profunda seguida por uma estagnação persistente.

Será que o Federal Reserve será capaz de vir em resgate e criar mais uma bolha maciça de activos? Aterrorizado pela perturbação dos mercados globais de acções, o Federal Reserve já cortou drasticamente nas taxas de juro. Contudo, com o mercado de acções e o mercado habitacional bastante super-valorizados, é difícil que alguém possa identificar uma outra grande bolha de activos a criar. Além disso, com o nível de endividamento familiar tão elevado e a taxa de poupança familiar já tão baixa, taxas de juro baixas pouco podem fazer para estimular o consumo familiar.

Mais realisticamente, com o consumo familiar a estagnar ou contrair-se, o governo dos EUA podia tentar compensar a desvantagem com mais gastos públicos e um aumento no défice fiscal. Se as taxas de poupança familiares ascendessem em direcção à sua média histórica, então Washington terá de incorrer num défice fiscal muito grande, da ordem dos 6 por cento do PIB ou mais. Dado o actual ambiente político nos Estados Unidos, é duvidoso que uma política fiscal efectiva de uma magnitude suficientemente grande possa ser desenvolvida e executada.

Se a actual ou, mais provavelmente, a próxima administração atrever-se a utilizar políticas expansionistas muito agressivas para revitalizar a economia, então os Estados Unidos provavelmente continuarão a incorrer em défices em conta corrente muito grandes. Com um défice em conta corrente de 6 por cento do PIB, teoricamente, a dívida externa líquida dos EUA podia continuar a ascender para 120 por cento do PIB. [1] Isto seria claramente impossível. Muito antes de este limite teórico ser atingido, tornar-se-ia cada vez mais difícil para os Estados Unidos financiarem seus défices em conta corrente. O actual declínio relativamente ordenado do dólar transformar-se-ia num crash. O dólar perderia seu status como divisa de reserva principal do mundo e os Estados Unidos experimentariam a sua própria terapia de choque.

De um modo ou de outro, os Estados Unidos não serão capazes de incorrer em grandes e crescentes défices em conta corrente durante muito mais tempo. Dado o papel crucial dos défices em conta correntes estado-unidenses na estabilização da economia capitalista global, se a economia dos EUA cair em estagnação persistente e o seu défice em conta corrente tiver de ser corrigido, levanta-se a questão: Qual das outras grandes economias pode substituir os Estados Unidos para conduzir a expansão da economia capitalista global?

A China e o capitalismo global

O gráfico 2 compara a contribuição para o crescimento económico mundial da grandes economias do mundo (medidas pelo rácio entre o crescimento económico nacional e o crescimento económico global). A contribuição dos EUA caiu de cerca de 40 por cento no fim da década de 1990 para aproximadamente 30 por cento hoje, e a contribuição da Eurozona caiu de cerca de 20 por cento para cerca de 10 por cento. Em comparação, a contribuição da China ascendeu para cerca de 15 por cento e o grupo "BRIC" (Brasil, Rússia, Índia e China em conjunto) agora gera mais de 20 opor cento do crescimento económico do mundo.

Como à Eurozona falta impulso de crescimento e o Brasil, Rússia e Índia permanecem relativamente pequenos para desempenhar papeis decisivos na economia global, a China parece ser o único candidato plausível para substituir os Estados Unidos e tornar-se a principal força condutora da economia capitalista global. Poderá a China conduzir o capitalismo global a um outro período de estabilidade e crescimento rápido?

Após o famoso "Passeio ao Sul" de Deng Xiaoping, em 1992, a liderança do Partido Comunista Chinês ficou oficialmente comprometida com o objectivo de uma "economia socialista de mercado", a qual, no contexto chinês, não é senão um eufemismo para capitalismo. Na década de 1990, a maior parte do Estado e das empresas possuídas colectivamente na China foram privatizadas. Dezenas de milhões de trabalhadores do Estado e do sector colectivo foram despedidos. Os trabalhadores remanescentes do sector estatal perderam os seus direitos socialistas tradicionais simbolizado pelo “iron rice bowl” (um pacote de direitos económicos e sociais que incluía segurança de emprego, cuidados médicos, infantários, pensões e habitação subsidiada) e foram reduzidos a trabalhadores assalariados explorados por capitalistas internos e estrangeiros. Nas áreas rurais, com o desmantelamento das comunas populares, os sistemas públicos de cuidados médicos e de educação entraram em colapso. Mais de uma centena de milhão tornaram-se trabalhadores migrantes, formando o maior exército de reserva do mundo de trabalho barato.

A Tabela 2 compara a taxa salarial dos trabalhadores chineses com taxas salariais em países seleccionados. Uma taxa salarial de trabalhador médio na China é cerca de um vigésimo daquela nos Estados Unidos, um sexto daquela na Coreia do Sul, um quarto daquela na Europa do Leste e a metade daquela no México ou no Brasil. A taxa salarial média chinesa agora parece ser mais alta do que aquela em países vizinhos do Sudeste Asiático. Mas a taxa salarial média chinesa pode estar superestimada pois as estatísticas oficiais de salários cobrem apenas os trabalhadores no sector urbano formal e não incluem os trabalhadores migrantes.

Uma força de trabalho grande, produtiva e barata permite aos capitalistas chineses e aos capitalistas estrangeiros na China lucrarem com a exploração intensa e maciça. Contudo, isto levanta a questão de como o montante maciço de valor excedente (surplus value) produzido pelos trabalhadores chineses pode ser realizada através da "procura efectiva". Com a maioria dos trabalhadores e camponeses chineses pesadamente explorados, o consumo de massa tem estado a crescer, na melhor das hipóteses, a um ritmo mais vagaroso do que a economia em geral. Como o consumo de massa fica para trás, a economia chinesa tem dependido cada vez mais do investimento e de exportações para guiar a expansão da procura.

A Tabela 3 apresenta indicadores seleccionados da economia chinesa. O rendimento do trabalho (a soma dos rendimentos salariais dos residentes urbanos e dos rendimentos líquidos dos camponeses) em proporção do PIB da China caiu de 51-52 por cento na década de 1980 para 38 por cento no princípio dos anos 2000. Analogamente, o consumo familiar em proporção do PIB caiu de 50-52 por cento na década de 1980 para 41 por cento no princípio dos anos 2000. Em contraste, a proporção de investimento no PIB ascendeu mais de 40 por cento e a proporção das exportações cresceu mais de 30 por cento.

As exportações líquidas já davam uma contribuição significativa para o crescimento económico da China no fim da década de 1990 e princípio da de 2000. Desde então, o excedente comercial da China experimentou um crescimento explosivo. Em 2007, a China tinha um enorme excedente em conta corrente de US$378 mil milhões, ou 12 por cento do PIB da China. Dentro de poucos anos, espera-se que a China ultrapasse a Alemanha e se torne o maior exportador do mundo.

Por quanto tempo poderá o actual modelo de crescimento da China ser sustentado? Os Estados Unidos representam cerca de 20 por cento do mercado exportação geral da China. Em 2007, a União Europeia como um todo (incluindo a Eurozona, o Reino Unido e os novos Estados membros da Europa do Leste) realmente substituíram os Estados Unidos e tornaram-se o maior mercado único de exportações da China. Contudo, para a China incorrer em grandes excedentes em conta corrente, algumas outras economias tem de incorrer em grandes défices em conta corrente. A balança de transacções correntes geral da Europa tem estado num equilíbrio grosseiro. De uma perspectiva global, os excedentes em conta corrente da China tem sido inteiramente absorvidos pelos défices estado-unidenses em conta corrente. Se os Estados Unidos não incorrerem mais em grandes defíces corrente, então, a menos que a Europa comece a incorrer em grandes défices, será muito difícil para China sustentar seus grandes excedentes comerciais.

O nível de investimento excessivamente elevado da China resulta numa procura maciça de energia e matérias-primas. Em 2006 a China consumiu um terço do aço mundial e um quarto do alumínio e do cobre mundial. O consumo de petróleo da China foi de 7 por cento do total mundial, mas a partir 2000 a China tem representado um terço da procura de petróleo incremental total do mundo. A procura maciça da China foi um factor importante por trás da escalada dos custos globais de energia e matérias-primas. Entre Janeiro de 2003 e Janeiro de 2008, o índice mundial dos preços da energia no mundo ascendeu 170 por cento e o índice mundial dos preços de metais ascendeu 180 por cento. [2]

Se o nível actual de investimento for sustentado por mais alguns anos, isto deixaria a China com um maciço excesso de capacidade de produção que é muito maior do que o necessário para atender a procura final no mercado mundial e muito maior do que pode ser suportado pela oferta mundial de energia e matérias-primas. A China seria então ameaçada com uma grande crise económica. Para a economia chinesa ser reestruturada numa base mais "sustentável" (do ponto de vista da sustentabilidade da acumulação capitalista), a economia chinesa tem de ser reorientada em direcção à procura interna e ao consumo.

Como o investimento e as exportações líquidas da China têm estado a crescer mais rapidamente do que a economia global, a fatia combinada do consumo familiar e do governo agora representa pelo menos 50 por cento do PIB. Se o investimento retornasse para níveis mais sustentáveis (cerca de 30-35 por cento do PIB) e o excedente comercial se tornasse mais pequeno (0-5 por cento do PIB), então a fatia conjunta do consumo familiar e do governo precisaria ascender mais do que 15 pontos percentuais, para 65 por cento do PIB. Mas para o consumo crescer, o rendimentos dos trabalhadores e camponeses e o gasto social do governo têm de crescer em conformidade. A Tabela 3 mostra a estreita correlação entre rendimento do trabalho e consumo familiar. Daí decorre que deve haver uma maciça redistribuição do rendimento dos capitalistas para o trabalho e os gastos sociais numa quantia equivalente a cerca de 15 por cento do PIB.

Será que a classe capitalista chinesa será suficientemente esclarecida para empreender uma tal reestruturação económica e social? Suponha-se que a liderança do Partido Comunista Chinês tenha vistas suficientemente largas para entender que, para a segurança dos interesses a longo prazo do capitalismo chinês, seja necessário efectuar algumas concessões aos trabalhadores e camponeses chineses. Será que o partido terá a vontade necessária e o meios para impor uma tal redistribuição às corporações transnacionais, aos ricos capitalistas chineses (muitos dos quais têm íntimas ligações dentro do partido e do governo), e aos governos provinciais e locais que nos últimos anos desenvolveram várias alianças com os capitalistas internos e estrangeiros? Estas são algumas perguntas difíceis para as elites capitalistas chinesas.

O Pico Petrolífero e os limites da acumulação

Suponha-se que a classe capitalista chinesa tenha a necessária clarividência e vontade para efectuar uma reestruturação keynesiana, estilo social-democrata. Será que uma tal reestruturação conduzirá o capitalismo chinês a um caminho de crescimento sustentável e rápido, e será que a expansão da economia chinesa conduzirá por sua vez a economia capitalista global a uma outra "era dourada"?

A Tabela 3 mostra o crescimento do consumo de energia na China. A partir de 2000 ele acelerou-se muito. Representa agora 15 por cento do total mundial e equivale a 70 por cento do consumo de energia dos EUA. À taxa de crescimento actual, o consumo de energia da China duplicará em sete anos e a China dentro em breve ultrapassará os Estados Unidos e tornar-se-á o maior consumidor de energia do mundo. A China depende do carvão para cerca de70 por cento do seu consumo energético total e o consumo de carvão do país também está a crescer a uma taxa que indica uma duplicação em sete anos. O consumo de petróleo da China (já representando um terço da procura incremental do petróleo mundial) está a crescer a uma taxa que implica uma duplicação em nove anos. Por outras palavras, em cerca de uma década, se a tendência actual se mantiver, a China consumirá uma vez e meia tanta energia quanto os Estados Unidos consomem hoje. Será que a oferta mundial de energia se manterá ao ritmo da procura em crescimento rápido da China enquanto atende à procura do resto do mundo?

A economia capitalista global depende de combustíveis fósseis (petróleo, gás natural e carvão) em 80 por cento da oferta mundial de energia. O petróleo representa um terço da oferta total de energia e 90 por cento da energia utilizada no sector dos transportes. O petróleo é também um input essencial para a produção de fertilizantes, plásticos, remédios modernos e outros produtos químicos.

O petróleo é um recurso renovável. Num estudo recente, o Energy Watch Group alemão destaca que as descobertas mundiais de petróleo atingiram o pico na década de 1960, a produção de petróleo já atingiu o pico em 25 grandes países ou regiões produtoras, e apenas nove países ou regiões ainda têm potencial de crescimento. Todas as grandes companhias de petróleo internacionais estão a lutar para impedir o declínio da sua produção de petróleo. [3]

Colin Campbell, da Association for the Study of Peak Oil and Gas estima que a produção mundial de todos os líquidos (inclui petróleo bruto, areias asfálticas, xistos betuminosos, líquidos de gás natural, processos gas-to-liquids e coal-to-liquids, e biocombustíveis) provavelmente atingirá o pico cerca de 2010. Após o pico, a produção mundial de petróleo cairá cerca de 25 por cento no ano 2020 e cerca de dois terços em 2050. Campbell também estima que a produção mundial de gás natural atingirá o pico em 2045. Num estudo anterior, o Energy Watch Group alemão espera que a produção mundial de carvão atinja o pico em 2025. [4]

A energia nuclear e muitas fontes de energia renovável (tais como solar e vento), além das suas muitas outras limitações, não pode ser utilizada para fabricar combustíveis líquidos e gasosos ou servir como matéria-prima em indústrias químicas. A biomassa é a única fonte de energia renovável que pode ser utilizada como substituto para combustíveis fósseis na fabricação de combustíveis líquidos ou gasosos. Mas a produção em grande escala de biomassa poderia conduzir a problemas ambientais muito sérios, e o potencial de biomassa está limitada pela quantidade disponível de terra produtiva e água. Ted Trainer, um eco-socialista australiano, estima que atender a actual procura estado-unidense de petróleo e gás exigiria o equivalente a nove vezes de todas as terras agriculturáveis dos EUA ou que oito vezes toda a terra actualmente florestada dos EUA fosse plenamente dedicada à produção de biomassa. Trainer conclui que "não há possibilidade de que mais do que um fracção muito pequena da procura de combustíveis líquidos e gasosos possa ser atendida por fontes de biomassa". [5]

Se a produção mundial de petróleo e a produção de outros combustíveis fósseis alcançar seu pico e começar a declinar nos próximos anos, então a economia capitalista global enfrentará uma crise sem precedentes que será difícil ultrapassar.

O esgotamento rápido de combustíveis fósseis é apenas um entre muitos problemas ambientais sérios com que o mundo hoje se confronta. O sistema económico capitalista está baseado na produção para o lucro e a acumulação de capital. Numa economia capitalista global, a competição entre capitalistas individuais, corporações e Estados capitalistas força cada um deles, constantemente, a perseguir a acumulação de capital em escalas cada vez maiores.

Portanto, sob o capitalismo, há uma tendência para a produção material e o consumo expandirem-se incessantemente. Após séculos de acumulação implacável, os recursos não renováveis do mundo estão a ser esgotados rapidamente e o sistema ecológico da terra está agora à beira do colapso. A sobrevivência da civilização humana está em risco. [6]

Alguns argumentam que, devido ao progresso tecnológico, os países capitalistas avançados tornaram-se "desmaterializados" (diminuindo a quantidade de materiais e energia por unidade de produção) pois o crescimento económico repousa mais sobre serviços do que sobre o sector industrial tradicional, o que tornaria o crescimento económico menos prejudicial ao ambiente. De facto, muitos dos modernos sectores de serviços (tais como transportes e telecomunicações) são altamente intensivos em energia e recursos.

Apesar de tais afirmações respeitantes à desmaterialização, os países capitalistas avançados são ecologicamente muito mais desperdiçadores do que a periferia, com consumo per capita de energia e recursos e uma pegada ecológica (ecological fooprint) de longe mais alta do que a média mundial. Segundo o Living Planet Report, a América do Norte tem uma pegada ecológica per capita de 9,4 hectares globais, mais do que quatro vezes a média mundial (2,2 hectares globais). A União Europeia, supostamente amiga do ambiente, tem uma pegada ecológica de 4,8 hectares globais, ou seja, mais do que o dobro da média mundial. Cuba, o único país que permanece comprometido com objectivos socialistas entre os Estados socialistas históricos, é o único país que alcançou um alto nível de desenvolvimento humano (com um índice de desenvolvimento humano superior a 0,8) ao mesmo tempo que tem uma pegada ecológica per capita menor do que a média mundial. [7]

A apregoada desmaterialização das economias capitalistas avançadas, no sentido mais vasto e mais significativo do declínio do impacto ambiental global, são de facto refutadas pelo Paradoxo de Jevons, o qual diz que a eficiência acrescida na aportação de energia e materiais normalmente conduz a um aumento na escala de operações, e através disso a uma ampliação da pegada ecológica geral. Isto tem sido um padrão normal através da história do capitalismo. [8]

Além disso, parte do que é mencionado como desmaterialização decorre da relocalização do capital industrial dos países capitalistas avançados para a periferia em busca de trabalho barato e baixos padrões ambientais. A ascensão dramática do capitalismo chinês resultou parcialmente desta relocalização capitalista global. Embora os países capitalistas avançados possam ter-se tornado ligeiramente "desmaterializados" neste sentido, os capitalistas e as chamadas classes média na China, Índia e Rússia, e grande parte da periferia, estão a emular e reproduzir o estilo de vida "consumista" capitalista que é muito desperdiçador numa escala maciçamente ampliada. O capitalismo global como um todo continua a mover-se implacavelmente rumo à catástrofe ambiental global.

A morte do neoliberalismo e a era de transição

Em 1 de Fevereiro, Immanuel Wallertein, o principal teórico do sistema mundial, nos seus comentários bisemanais declarou o ano 2008 como o ano da "Morte da globalização neoliberal". Wallerstein começa por destacar que, ao longo da história do sistema-mundo capitalista, as ideias de capitalismo de mercado livre com intervenção governamental mínima e as ideias de capitalismo regulado pelo estado com alguma protecção social estiveram na moeda em ciclos alternados.

Em resposta à estagnação do lucros à escala mundial na década de 1970, o neoliberalismo tornou-se politicamente dominante nos países capitalistas avançados, na periferia e, finalmente, no antigo bloco socialista. Contudo, o neoliberalismo fracassou no cumprimento da sua promessa de crescimento económico, e quando as desigualdades globais aumentaram, grande parte da população mundial sofreu declínios nos rendimentos reais. Após meados dos anos 1990, o neoliberalismo deparou-se com resistência crescente por todo o mundo e muito governos tem estado sob pressão para restaurar alguma regulação estatal e protecção social.

Confrontada com a crise económica, a administração Bush perseguiu em simultâneo uma nova ampliação das desigualdades internamente e o imperialismo unilateral no exterior. Estas políticas por agora fracassaram decisamente. Quando os Estados Unidos já não podem financiar sua economia e suas aventuras imperialistas com dívida externa cada vez maior, o US dólar, acredita Wallerstein, enfrenta a perspectiva de uma queda livre e deixará de ser a divisa de reserva do mundo.

Wallerstein conclui: "O desequilíbrio político está a balouçar para trás... A questão real não é se esta fase está ultrapassada mas se o balouço de volta será capaz, como no passado, de restaurar um estado de equilíbrio relativo no sistema-mundo. Ou foi efectuado demasiado dano? E estaremos nós agora incapazes de evitar o caos mais violento na economia-mundo e portanto no sistema-mundo como um todo?" [9]

Seguindo os argumentos de Wallerstein, nos próximos anos iremos provavelmente testemunhar um grande realinhamento da política global e das forças económicas. Haverá uma intensificação na luta de classe global acerca da direcção da transformação social global. Se estivermos num dos ciclos do sistema-mundo capitalista, portanto rumo ao fim do actual período de instabilidade e crise, provavelmente observaremos um retorno ao domínio keynesiano ou politicas capitalistas de Estado capitalistas por todo o mundo.

Contudo, foi feito demasiado dano. Após séculos de acumulação capitalista global, o ambiente global está à beira do colapso e não há mais espaço ecológico para uma outra grande expansão do capitalismo global. A escolha é nítida — ou a humanidade permitirá que o capitalismo destrua o ambiente e portanto a base material da civilização humana, ou destruirá o capitalismo primeiro. A luta pela sustentabilidade ecológica devem somar forças com as lutas dos oprimidos e explorados para reconstruir a economia global na base da produção para as necessidades humanos de acordo com princípios democráticos e socialistas.

Neste sentido, entrámos numa nova era de transição. No fim desta transição, de um modo ou de outro, estaremos num mundo fundamentalmente diferente e cabe a nós decidir que espécie de mundo virá a ser.

Notas

1. A dívida externa líquida equivale à soma acumulada dos défices de transacções correntes. Se assumirmos que o défice de transacções correntes dos EUA permanece em 6 por cento do PIB, a taxa de crescimento do PIB nominal americano continuar em 5 por cento ao ano, e que não há mudança na taxa de câmbio, então teoricamente o rácio da dívida externa líquida americana em relação ao PIB manter-se-á ascendendo até 120 por cento.

2. Martin Wolf, “China Changes the Whole World,” Financial Times , January 23, 2008.

3. The Germany Energy Watch Group, “Crude Oil—The Supply Outlook,” EWG-Series no. 3 (October 2007), http://www.energywatchgroup.org .

4. The Association for the Study of Peak Oil and Gas, Newsletter No. 86 (February 2008); The Germany Energy Watch Group, “Coal: Resources and Future Production,” EWG-Series No. 1 (March 2007), http://www.energywatchgroup.org .

5. Ted Trainer, Renewable Energy Cannot Sustain A Consumer Society (Dordrecht, Netherlands: Springer, 2007), 73–92.

6. Sobre o potencial de destruição da acumulação capitalista sobre o ambiente global, ver John Bellamy Foster, “The Ecology of Destruction,” Monthly Review 58, no. 8 (February 2008): 1–14.

7. World Wildlife Fund, Zoological Society of London, and Global Footprint Network, Living Planet Report (2006), http://www.panda.org/downloads/living_planet_report.pdf .

8. John Bellamy Foster, Ecology Against Capitalism (New York: Monthly Review Press, 2002), 94–95.

9. Immanuel Wallerstein, “2008: The Demise of Neoliberal Globalization,” Commentary no. 226 (February 1, 2008), http://www.binghamton.edu/fbc/226en.htm .

Minqi Li ensina economia na Universidade de Utah em Salt Lake City.

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