18 de fevereiro de 2011

Depois do Egito

Adam Shatz


Vol. 33 No. 4 · 17 February 2011

Tradução / Após a batalha pela Praça Tahrir, a classificação conceitual usada no Ocidente para dividir o mundo islâmico entre amigos e inimigos, moderados e radicais, bons e maus muçulmanos nunca pareceu tão inadequada ou irrelevante. Um governo árabe “moderado” e “estável”, pilar da estratégia americana no Oriente Médio, foi deposto no Egito por protestos em escala nacional que reivindicavam uma reforma democrática, um governo transparente, liberdade de reunião, uma distribuição mais justa dos recursos do país e uma política externa alinhada com a opinião popular. Esse movimento deixou outros governos árabes em pânico, ao mesmo tempo em que despertou a esperança de seus povos jovens e frustrados. Se a revolução no Egito for bem-sucedida, terá derrubado não só um regime corrupto e autocrático. Terá destronado também o vocabulário e os padrões de pensamento que sustentaram a política ocidental no Oriente Médio por mais de meio século.

O destino da revolução permanece incerto. Mubarak se foi, os manifestantes em sua maioria foram varridos das ruas e o Exército preencheu o vácuo. Disciplinado, continua no poder e dispõe de recursos consideráveis à sua disposição. A retórica cortante de seus comunicados pode soar refrescante após os discursos de Mubarak, de seu filho Gamal e dos empresários que dominavam o Partido Nacional Democrático. Até agora, a maior parte dos egípcios tem se mostrado disposta a dar ao Conselho Supremo das Forças Armadas o benefício da dúvida. Como em qualquer revolução, o desejo de ordem e segurança é quase tão forte quanto o anseio por mudança. Milhares de trabalhadores em indústrias críticas entraram em greve, desafiando o Conselho Supremo, e os egípcios mais pobres podem desejar transformações mais abrangentes do que as pleiteadas pela classe média.

Os temores de uma tomada do poder pelo Exército são descabidos: as Forças Armadas egípcias sempre preferiram permanecer distantes da política, para que um governo civil lidasse com as questões do dia a dia. Ainda que a Lei de Emergência venha a ser suspensa e se estabeleça um governo democrático, qualquer tentativa de reduzir os privilégios do Exército, ou de reconfigurar a política externa, será recebida com resistência pelos generais. Nesse caso, é improvável que os Estados Unidos imponham alguma pressão significativa, ou que suspendam sua ajuda. Com suas cidades militares autossuficientes, nas quais apartamentos confortáveis e produtos estrangeiros podem ser obtidos com desconto, e uma ampla participação numa economia baseada em um misto de clientelismo e neoliberalismo, os oficiais graduados do Exército vivem em um mundo à parte, e não querem vê-lo perturbado. Eles tampouco querem ver ameaçada a ajuda que recebem dos Estados Unidos, o que significa que não vão aderir a qualquer mudança dramática na orientação da política externa – para alívio de Israel.

O Exército recebe 1,3 bilhão de dólares por ano dos Estados Unidos para manter a paz com Israel e prover diversos serviços, como ajudar no bloqueio a Gaza e enfraquecer a unidade palestina, interrogar prisioneiros na “guerra contra o terror” e agilizar a passagem de navios americanos pelo Canal de Suez. O próprio Exército egípcio também tem vínculos estreitos com Israel. De acordo com um telegrama divulgado pelo WikiLeaks, Omar Suleiman, o chefe de inteligência de Mubarak e vice-presidente por um breve período, disse aos israelenses que eles podiam se sentir “à vontade” para invadir a Rota Filadélfia, uma estreita faixa de terra entre o Egito e Gaza, para combater o tráfico de armas pelo Hamas. Empresas egípcias próximas à família Mubarak também vendem gás natural para Israel com desconto – elas respondem por 40% do abastecimento do Estado judeu. Como era de se esperar, o Conselho Supremo das Forças Armadas se apressou em garantir a Israel que o tratado de paz seria honrado. Resta saber se, sob um governo mais democrático, o Egito vai interpretar o tratado em termos tão suscetíveis aos interesses dos Estados Unidos e de Israel.

Ainda é cedo para dizer se o Egito fará a transição para um governo civil, se recuperará a sua soberania depois de trinta anos como Estado-cliente dos Estados Unidos, e muito menos se vai um dia recuperar a liderança regional que exerceu sob Nasser. Mas não é cedo para especular sobre o impacto da derrubada de Mubarak no equilíbrio de forças da região. “Os regimes estão se sentindo vulneráveis”, disse o filósofo sírio Sadiq al-Azm. Com os protestos se espalhando pelo mundo árabe e muçulmano, não surpreende que os governantes recorram à força bruta. Mas ela pode não ser tão eficaz quanto foi no passado – justamente devido aos exemplos dados pela Tunísia e pelo Egito.

A resistência sem violência ganhou o charme – e reputação de eficácia – que nunca teve no mundo islâmico. Acreditava-se que naquela parte do mundo os governos não poderiam ser derrubados por meios pacíficos; que ali a luta armada perpetuaria um estilo mais viril de rebelião, calcado nos anos heroicos da revolução palestina. Outro efeito bem-vindo dos protestos de agora foi o de resgatar a linguagem da democracia no mundo islâmico, de onde ela havia sido expelida pelas guerras norte-americanas.

O nascimento de um movimento democrático no mundo árabe não é o golpe fatal para o islamismo anunciado pelos analistas ocidentais mais otimistas. Enquanto milhões de árabes pobres forem induzidos a recorrer a organizações como a Irmandade Muçulmana, em vez de procurarem o Estado para obter serviços básicos, e enquanto os locais sagrados islâmicos de Jerusalém seguirem sob o controle israelense, o braço político do Islã continuará a ter uma base de apoio significativa. Graças à experiência egípcia, contudo, as velhas divisões entre forças islâmicas e seculares foram atenuadas. Ficou demonstrado que elas podem atuar unidas em prol de objetivos políticos comuns. O canto ouvido de ponta a ponta na praça Tahrir – “A Tunísia é a solução” – em breve poderá eclipsar o velho slogan da Irmandade Muçulmana, “O Islã é a solução”.

Nos Estados Unidos, as revoltas provocam surpresa. Soam como non sequitur em um debate que, dez anos depois do 11 de Setembro, permanecia estagnado na ameaça do radicalismo islâmico. À medida que o medo se transformou em fascínio, e que os jornalistas e autoridades americanas começaram a tentar interpretar os protestos, eles se esforçam em encontrar explicações que parecem refletir um desejo de reenquadrá-los em uma imagem mais familiar. O debate americano sobre o Egito não tardou em se transformar num debate sobre os Estados Unidos.

Falou-se da influência de Gene Sharp, o renomado teórico da não-violência, citado como inspirador das revoluções na Tunísia e no Egito; das lições que os ativistas egípcios aprenderam em Belgrado com ativistas contrários ao ex-presidente da Iugoslávia, Slobodan Milošević, treinados pelos americanos; e, acima de tudo, do papel facilitador desempenhado pelo Twitter e pelo Facebook. A engenhosidade tecnológica americana, graciosamente transmitida para o mundo árabe, foi a parteira da revolução. Não é de espantar que, nos Estados Unidos, o rosto mais popular da revolta egípcia tenha sido um jovem executivo do Google, Wael Ghonim, cuja visão empreendedora de mudança não soaria deslocada no Vale do Silício. Só que os homens que fizeram as barricadas na praça Tahrir e as defenderam quando chegaram os rufiões a cavalo não eram usuários do Twitter; eram Irmãos Muçulmanos, cujas visões muito diferentes do futuro do Egito terão de ser levadas em conta, e não apenas como um perigo a ser evitado.

Acadêmicos americanos, tanto de direita quanto de esquerda, também tentaram reivindicar crédito pela revolta. Mas parecem não ter notado na praça Tahrir os cartazes que denunciavam Mubarak como um agente americano, e que sugeriam em hebraico que ele se exilasse em Tel-Aviv. Na verdade, a revolta brotou em parte de um movimento cujas origens remontam aos comitês populares em defesa da Segunda Intifada. Vários democratas egípcios se opuseram por muito tempo à posição do governo sobre a Palestina, considerada não só injusta, como um insulto à dignidade nacional.

Uma vez deposto Mubarak, o governo Obama, amplamente criticado por sua resposta incoerente – e muitas vezes ciclotímica – à revolta, tentou apresentar o seu desempenho como o triunfo de uma diplomacia silenciosa e heroicamente persistente. As mensagens ambíguas, contradições e mudanças de rumo repentinas refletiam, dizem-nos agora, uma disputa entre a jovem guarda da Casa Branca, comprometida com a mudança de ventos no Oriente Médio, e a velha guarda cautelosa do Departamento de Estado de Hillary Clinton. Mubarak podia ser abandonado, mas não o Estado egípcio, cuja cooperação é essencial para a política americana na região, do antiterrorismo à luta contra o Irã, do “processo de paz” entre Israel e os palestinos ao Canal de Suez.

Na realidade, se a resposta de Washington pareceu confusa, não foi tanto por causa de um conflito geracional em Washington, mas devido à enraizada “parceria” de trinta anos com o regime “moderado” do Egito. Não surpreende que o governo Obama tenha coberto de elogios os militares, que eles esperam que contenham os manifestantes ansiosos por mudanças mais radicais nas políticas interna e externa.

Em seu primeiro pronunciamento após a queda de Mubarak, Barack Obama não ocultou a natureza da relação dos Estados Unidos com o governo militar egípcio. Apenas fez o possível para expressá-la na retórica despolitizada da amizade e da parceria. O presidente pareceu tenso e preocupado à medida que narrava a derrota de um velho aliado. Enfatizou que os militares teriam de garantir uma transição “verossímil”, iniciar a redação de uma nova Constituição, suspender a Lei de Emergência e incluir “todas as vozes do Egito” – um aceno implícito à Irmandade Muçulmana.

Mas migrou rapidamente para o plano nobre e etéreo da História, no qual sempre se mostrou mais à vontade, seja discutindo revoluções no mundo árabe ou em sua vida pessoal. Obama celebrou a “força moral da não-violência”, citou Martin Luther King – “Há algo na alma que clama por liberdade” – e comparou a transformação democrática do Egito à queda do Muro de Berlim. O que Obama não disse – não poderia fazê-lo – é que ele não desempenharia o papel de Mikhail Gorbachev no processo atual.

“O Egito jamais será o mesmo”, disse Obama no discurso, mas sua equipe não parece achar que isso implique a necessidade de mudanças em Washington. O secretário de Imprensa da Casa Branca tentou transformar o sucesso da revolta no Egito – uma derrota americana – em uma futura vitória no Irã, saudando as manifestações do Movimento Verde em Teerã. Disse desejar que o governo iraniano honrasse a liberdade de reunião, como o governo no Cairo fizera. Mas parece ter se esquecido de que pelo menos 365 manifestantes no Egito morreram, milhares foram feridos e centenas detidos, e que a revolta em questão pretendia derrubar o governo que ele estava elogiando.

Nem Hillary Clinton nem Obama, porém, parecem ter se comovido quando aquele “algo na alma que clama por liberdade” se fez ouvir no Bahrein. Os protestos da maioria oprimida de xiitas contra a monarquia sunita apoiada pelos Estados Unidos eram inconvenientes: o rei Hamad bin Isa al-Khalifa, um inimigo confiável do Irã, é o anfitrião da Quinta Frota da Marinha americana e de mais de 2 mil militares americanos. Ademais, a derrubada do regime poderia dar ideias à maioria sunita insatisfeita nas províncias orientais, ricas em petróleo, da Arábia Saudita.

De repente, é Washington, e não o Oriente Médio, que parece estagnado. As revoltas na Tunísia e no Egito – e os sinais crescentes de turbulência na esfera de influência americana no Oriente Médio – aconteceram a despeito do poder americano, e não por causa dele. Deixaram os Estados Unidos confusos e isolados. Seus aliados mais próximos na região são uma monarquia absolutista em que mulheres não podem dirigir e decapitações determinadas pela Justiça são comuns, e um Estado judeu expansionista e cada vez mais chauvinista cuja amizade é tanto um bem quanto uma obrigação. Se os esforços de Barack Obama para mudar a imagem do império americano progrediram pouco, é em parte porque não foram acompanhados por uma tentativa séria para repensar essas prioridades estratégicas. A grandeza de sua retórica mal esconde a pobreza de sua visão.

Enquanto isso, no Oriente Médio a revolta é a última expansão de um novo dinamismo. Um governo apoiado pelo Hezbollah assumiu o poder no Líbano por meios constitucionais, invalidando os cálculos de Washington e aprofundando a influência de Teerã. A Turquia, sob um governo islâmico, tem conduzido uma política externa ambiciosa, que ignora a classificação de Washington. Mesmo no Iraque e no Afeganistão, os Estados Unidos não podem mais contar com a deferência dos governos que eles ajudaram a instituir.

Apesar da sua supremacia militar na região, Washington não parece conseguir traduzir seu poder em influência, ou seu domínio em hegemonia duradoura. Sua ajuda é raramente solicitada na resolução de conflitos. Uma preferência clara pela mediação regional tem emergido. Essa tendência é a expressão não de um antiamericanismo crescente, mas do aumento da autoconfiança e da convicção de que eles podem encontrar soluções sozinhos. O melhor que pode ser dito da política de Obama para o Oriente Médio é que ele não obstruiu essa tendência tanto quanto seu antecessor. Ele foi impedido de estimulá-la por seus instintos cautelosos e pelas alianças herdadas com Israel e a Arábia Saudita, cujos termos ele não quer ou não pode modificar. Os dias de hegemonia americana no Oriente islâmico não acabaram, mas pela primeira vez em anos, de Ancara ao Cairo, de Túnis a Beirute, os contornos de um Oriente Médio pós-americano podem ser vislumbrados.

17 de fevereiro de 2011

Na Tate Modern: Gabriel Orozco

Não há jeito de me lembrar por que fiquei tão irritado com a primeira exposição que vi de Gabriel Orozco, anos atrás, em Nova York. Sua retrospectiva de meio de carreira, que ficou na Tate Modern até 25 de abril, ao contrário, me pareceu acolhedora, inventiva e, sobretudo, despretensiosa. ...

T.J. Clark


Vol. 33 No. 4 · 17 February 2011

Tradução / Não há jeito de me lembrar por que fiquei tão irritado com a primeira exposição que vi de Gabriel Orozco, anos atrás, em Nova York. Sua retrospectiva de meio de carreira, que ficou na Tate Modern até 25 de abril, ao contrário, me pareceu acolhedora, inventiva e, sobretudo, despretensiosa. A mostra reuniu um conjunto variado de obras feitas com apuro: fotografias de boa qualidade, estranhas pinturas abstratas, objetos encontrados ao acaso (objets trouvés), geralmente alterados, pequenas esculturas em terracota ou plasticina, peças maiores feitas com pneus estourados ou com fiapos de tecido acumulados no filtro de secadoras de lavanderia, gravuras, desenhos e peças sensacionais de toy-art (brinquedos de arte): um Citroën DS fatiado e compactado, um jogo de bilhar no qual a bola vermelha é suspensa do teto por um fio de pêndulo (o visitante é convidado a jogar, e é divertido), uma caixa de sapatos vazia colocada no chão.

Quando vi Orozco em Nova York, nos anos 90, é possível que eu ainda estivesse vivendo um pouco no passado. Como os objetos encontrados e os artefatos inúteis pareciam provir de um vago ambiente dadaísta, minha expectativa era que fossem me morder ou machucar. Mas, na verdade, eram amistosos. Pediam que eu e o mundo da arte ficássemos tranquilos: a arte é um jogo. E só agora vejo o que os melhores críticos viram naquela ocasião: que se tratava de uma bem-vinda reação pós-adolescente ao Sturm und Drang da década anterior – todas aquelas pinturas nazistas e antinazistas feitas de estrume e palha – e também, talvez, uma maneira de manter sutilmente acesa a chama Dadá. Provavelmente, esse ainda seja o tema de Orozco.

Orozco é um colecionador do refugo das ruas. Ele faz muitas coisas, e tem uma capacidade de concentração maníaca e repetitiva, mas sua tática fundamental é correr o mundo em busca de objetos e instantes para, rapidamente, os fotografar ou catar. Na exposição da Tate, o exemplo que logo me vem à mente é uma fotografia da água se acumulando no telhado liso de um armazém abandonado, com o reflexo interrompido por suaves ondulações cinzentas. Ou, numa outra foto, a respiração condensada na tampa de um piano. Ou, ainda, uma pequena peça de terracota, cavada com os dedos, formando um coração, ou um rosto socado, ou uma vértebra, ou um monte de areia escavado numa praia batida pelas ondas, feito simplesmente com as duas mãos dobradas sobre um pedaço de argila. Essas coisas são bonitas (voltarei à questão da beleza mais adiante) e desarmam o espírito. Elas prescindem de toda pompa. Orozco é o tipo de artista capaz de esculpir quatro peças em terracota pintadas de preto, representando partes do corpo humano – ossos das pernas, um tronco achatado, uma face gravemente afetada – e, de uma forma ou de outra, deixá-las livres do estigma da catástrofe. Ele se recusa a entrar no clima de Auschwitz. É o anti-Joseph Beuys.

Até aí, tudo bem. Só que minha primeira reação a Orozco não desapareceu de todo. Admirar a modéstia de um artista é uma coisa; sentir-se convencido, comovido ou mesmo surpreso com o resultado da modéstia – compreender que, por algum motivo, jamais esqueceremos uma determinada modificação que o artista imprimiu ao mundo – é coisa muito diferente. Tenho dificuldade em entender por que o segundo tipo de envolvimento jamais aconteceu comigo na exposição da Tate Modern. Mais difícil ainda é explicar meu distanciamento de uma forma que não pareça de imediato pesada e estridente. Por que a leveza não pode ser tudo?

Orozco é um catador de trapos. Aceita como fato consumado a experiência da arte moderna de intervenção mínima no mundo – a tática do ready-made, do objeto encontrado ao acaso, da colagem, da assemblage e da instalação. É dessa experiência que ele tira sua sintaxe e seu vocabulário. Orozco sabe que chegou tarde ao centro da cena, e não está interessado em fazer muito estardalhaço sobre a sua (ou nossa) entrada tardia. Do ponto de vista da história da arte, a caixa de sapatos no chão é infinitamente sagaz: sabe-se muito bem que é uma reprise, quase uma paródia, de muitas situações anteriores destinadas a instigar o visitante a perguntar, talvez balbuciar: “Isso é arte?” E espera-se que o espectador saiba que balbuciar também é uma reprise, uma paródia. Tudo isso pode ser muito irritante, e para ser franco, me irrita um pouco a sofisticação da dupla mensagem aí embutida. Mas é o dar de ombros, a expressão de indiferença que a acompanha (“E o que mais você espera?”) que salva Orozco. A pergunta “E o que mais você espera” é dirigida ao mundo da arte. E Orozco sabe – esta é a sua grande sabedoria – que o mundo da arte espera (adora) que a pergunta seja feita com um tom de voz intimidador ou vitimizado. O som que emana da caixa de sapatos, no entanto, é levemente pessimista. É um novo frisson.

Só que para mim isso não basta. Uma forma de exprimir o que quero e não encontro em Orozco põe em foco a questão da beleza. Enquanto percorria as salas da Tate Modern, surpreendi-me indagando – insisto que não estava me colocando na posição de polícia vanguardista – que tipo de sensibilidade visual estava ali à mostra. Sem dúvida, uma sensibilidade discreta e meticulosa. Talvez a escolha dos objetos tenha exagerado isso. Eu gostaria de ver mais exemplos das pequenas esculturas de “objetos quase encontrados ao acaso”, que às vezes são menos comportados. Pareceu-me, algumas vezes, que o trabalho (nas gravuras ou nos desenhos mais elaborados, por exemplo) é tão limpo e apurado que chega a se esvanecer. Mas, de modo geral, a sua força está justamente na sobriedade. Até os pedaços de pano pendurados com desleixo em cordas que atravessam a sala – cujo título, Lintels (Vergas), tem algo a ver com a poeira respirada nas ruas logo após o 11 de Setembro – só conseguem mexer de modo fantasmagórico com sua própria forma monótona. É verdade que muitas vezes a beleza parece surgir como uma tentação em Orozco. A mesa de bilhar oval com o pêndulo de Foucault é bonita, assim como os pares de motocicletas amarelas fotografadas na cidade e as bicicletas axonométricas. Não me interessei nem um pouco pelo Citroën compactado, mas isso talvez aconteça porque também não dou a mínima para o original não compactado – pura esquisitice da futurologia francesa, com o espelho retrovisor que sempre parece ter mais de 10 centímetros de grossura, como se esperassem que Malraux ou De Gaulle fossem sentar no banco de trás, feito com couro de elefante. Mas até as obras de que não gostei me impressionaram pela beleza. E aí reside o problema, porque nenhuma delas, mesmo as mais bonitas, me pareceu ser mais do que isso. E a beleza é convencional (Orozco tem clareza disso, e não faz nenhuma apologia do fato em um vídeo que acompanha as obras). É a beleza do intrincado e do simétrico, e do cuidadosamente displicente. Ele gosta do casual e efêmero no mundo, mas nunca do decomposto. (Não aprendeu nada com a linha de fotografias que descende de Walker Evans.) Não havia um único objeto no qual eu achasse que podia perceber algo além de uma intuição de ordem ou equilíbrio: alguma coisa mais difícil e incontrolável, algo que se esquivasse da instigação original da peça, empurrando a obra para uma direção que o artista só compreendesse parcialmente.

Sei que parece estranho ficar procurando esse tipo de coisa. Mas, para mim, elas são naturais. Orozco, repito, é um colecionador do refugo das ruas. Ele sabe que, na arte do século XX, a tática de encontrar e colar foi usada para servir a um romantismo não apologético, cheio de paixão pelo que é desprezado e rejeitado, ou, de maneira igualmente produtiva, motivada por uma espécie de ódio louco ao lixo salvo da extinção. A extinção, diziam as colagens de Ernst e Schwitters, é o que a modernidade merece. As mercadorias são as coisas mais terríveis e dignas de pena que a humanidade já produziu, porque foram feitas para não durar. Orozco sabe de tudo isso, e ele inclusive acena ocasionalmente para o sarcasmo e a generosidade que caracterizam as melhores colagens. Na exposição, havia um trabalho feito com palavras, intitulado Óbitos, formado pelos títulos de necrológios publicados no jornal The New York Times: “Um mestre moderno do clichê”, “Um poeta de visão profunda e misteriosa”, “Excêntrico até para a Inglaterra”, “Construiu um império com otimismo”. Orozco, outra vez, me impressiona por se manter distante das banalidades que recolhe e junta. As tolices passam por ele e jamais o afetam; não há nunca o perigo de que comentários tolos como esses e outros se imiscuam em sua linguagem particular (e, por isso mesmo, nas nossas). 

Numa palavra, para Orozco, o cotidiano é uma casa do tesouro; ou será a arte a casa do tesouro, na qual só se admitem os detritos do mundo, sob pena de sublimação? Em Orozco, o cotidiano é pretensamente artístico. Sabe-se, desde o momento em que ele começa a colecionar pneus rasgados e estourados que encontra nas estradas do México, que um dia eles serão arrumados no chão de uma galeria – borrifados com alumínio, à maneira de Richard Serra – como se fossem preciosos fragmentos queimados do Teotihuacán. Orozco poderá retrucar-me e perguntar se o que estou querendo não é um clichê requentado do filme Week-end, de Jean-Luc Godard, ou do castelo inflável de Kaprow. Minha resposta é não. Mas ainda acho possível evitar o portentoso à la Beuys sem cair no lixo de bom gosto. Não estou dizendo que é fácil. 

Há razões históricas para isso. O Lintels, por exemplo, me fez pensar em outra instalação na qual pontas e pedaços de escombros são pendurados em cordas que atravessam uma sala: o grande 16 Ropes [16 Cordas] de 1984, de Ilya Kabakov, que tive a sorte de ver recriado, posteriormente, em Boston. Nunca me esquecerei do horror e da comédia naquela exposição, com seus trapos do entulho da ex-União Soviética parecendo varrer todo o páthos de um totalitarismo agonizante para dentro de nossa pele, de maneira indelével, à medida que procurávamos aos tropeços achar uma saída. Entre o riso desesperado de Kabakov e o louco emaranhado de Schwitters havia um caminho sem obstáculos. Eram esses os termos, as ambições, da colagem – que, como meio de expressão para a grande arte, é hoje coisa do passado. Feliz era o fazedor de colagens para quem os entulhos – dejetos, obsolescência, a produção de massa de Ford ou de Brejnev – ainda podiam parecer históricos, no sentido de poderem ser usados para contar a história de uma cultura que rumava, célere, para o progresso ou o abismo. Orozco sabe que isso não é mais possível. Todo louvor a ele por não falsificá-lo.

Este é um estranho momento nas artes visuais. O predomínio da fotografia colorida em grandes dimensões, feitas para a parede da galeria, e do curta-metragem de arte cada vez mais finamente calibrado está mudando o equilíbrio de forças na vanguarda artística. Voltou à tona a intensificação da estética – e de um tipo imprudente, talvez ditatorial, que obviamente descarta a modéstia de Orozco. A lembrança de um filme de cinco minutos, de Philippe Parreno, que eu tinha visto na Serpentine Gallery poucos dias antes, não me saiu da cabeça enquanto percorria a Tate Modern. O filme intitula-se Invisibleboy; se bem entendi, os cinco minutos de Parreno pareciam tratar da entrada de um menino chinês na ordem psíquica da globalização; a ambição, com certeza, não podia ser maior. Esse filme é representativo do que chamo de “alguma coisa mais difícil e incontrolável”. E além de tudo é desagradável e desconcertante – brilhante, incompreensível, envolvente, sentimental, profundamente tocante. A arte de Orozco já tem a aparência de uma reação contra essa nova onda de fantasias perigosas. O que é uma boa razão para ir vê-lo.

A propósito, há uma obra na exposição que me fez parar: foi quando tive de medir minha altura em relação à caixa de aço parada na qual me convidaram a entrar, e fiquei pensando se valia a pena correr o risco de “participar”. A obra, Elevator [Elevador], condensa de modo mais pesadamente visível o passado recente da arte: o minimalismo encontra Kienholz com uma pitada de ferrugem de Serra. A ameaça, diz a obra, é um efeito de segunda mão. As ruínas do capitalismo são do interesse de outros artistas. Mais uma vez, admiro-lhe a honestidade. Mas esse objeto, tirante o coração de terracota, me pareceu ser a melhor coisa da exposição de Orozco.

Sobre o autor

T.J. Clark’s most recent book is Heaven on Earth: Painting and the Life to Come.

11 de fevereiro de 2011

Os vitorianos não teriam medo disso

Assange e extradição

Bernard Porter



Tradução / No século XIX, era virtualmente impossível extraditar alguém da Grã-Bretanha. Em primeiro lugar, teria de haver acordo bilateral de extradição com o país envolvido. E esses tratados eram poucos. Todos especificavam muito precisamente a causa pela qual alguém poderia ser extraditado. Tinha de ser crime sério, reconhecido como tal também na Grã-Bretanha; teria de haver acusação formal; tinha de haver caso no qual se estabelecesse prima facie que a condenação seria altamente provável (também na Grã-Bretanha); ninguém poderia ser extraditado por um crime, para ser julgado por outro crime; e nunca haveria extradição por crime "político". O conceito de crime "político", naqueles dias, correspondia a crimes que seriam causa de extradição se não tivessem sido cometidos por causas políticas, como assassinato e também o que hoje se conhece como "terrorismo".

Por fim, os magistrados britânicos tendiam a só extraditar para países cujos processos judiciais fossem considerados o mais próximo possível dos processos britânicos. A falta de sistema judiciário confiável era alegação frequente [para negar a extradição]. Vários governos estrangeiros, é claro, protestavam contra isso, quando, por exemplo, os britânicos negavam sistematicamente entregar-lhes refugiados políticos considerados perigosos; e os governos britânicos não raras vezes sentiram-se, é verdade, incomodados. A certa altura, nos anos 1850s, uma “questão dos refugiados” complicou-se a ponto de quase gerar uma guerra entre Inglaterra e França.

Mas os cidadãos britânicos “comuns” orgulhavam-se muito da posição de seus magistrados; motivo pelo qual os governos jamais cediam ante exigências de estrangeiros nesse campo (nessa época, o verbo truckle começa a ser usado no sentido específico de “amaciar” ou “ceder”, como sinônimo de rendição vergonhosa a potência estrangeira).

Talvez porque sempre penso em termos históricos, e estude história há muito tempo, mas absolutamente não estava preparado para a possibilidade de a Grã-Bretanha acolher o pedido feito pela Suécia, e extraditar Julian Assange para a Suécia. No século 19, o pedido dos suecos teria ido diretamente para a lata de lixo das cortes britânicas. 

Sei que as coisas mudaram; mas eu ainda cria firmemente que a maioria das velhas salvaguardas ainda fossem vigentes. Parece que não. Pelo menos três das velhas boas exigências para que a Grã-Bretanha extraditasse alguém são absolutamente ausentes desse caso. Mas hoje já nem se poderia recorrer a elas, por obra do European Arrest Warrant. 

Essa ideia foi introduzida (por David Blunkett, do Partido Labour inglês) em 2003, para tornar mais fácil a extradição de suspeitos de terrorismo, mas – como sempre acontece com medidas do chamado “contraterrorismo” – já está sendo usada para prender também peixes pequenos: em 2009, cerca de 700 pessoas foram extraditadas da Grã-Bretanha para vários países da Europa. Basta que qualquer procurador estrangeiro requeira que lhe mandem qualquer tipo de suspeito, e lá se vai o suspeito, extraditado. Sequer se exige que haja processo ou acusação formais, e ninguém se interessa por saber com clareza o que alguém suspeita que o suspeito tenha feito. 

Resta à defesa tentar mostrar que os procedimentos formais não foram corretamente cumpridos – e essa parece ser a principal linha de defesa no caso de Julian Assange. A defesa também pode tentar convencer os magistrados de que o pedido de extradição jamais foi necessário – posto que Assange poderia ser interrogado na Inglaterra –, não é racional, é politicamente motivado ou ativamente criminoso e mal intencionado (viciado, como se pode dizer, desde que partiu da mesa de uma procuradora sueca e ‘feminista radical’, de nome Marianne Ny); mas não há qualquer garantia de que essas objeções convencerão os magistrados britânicos, mesmo sendo verdadeiras.

Se Ny conseguir arrancar Assange da Grã-Bretanha, não quero fazer prejulgamentos sobre o que enfrentará em corte sueca, mas entendo que o réu esteja nervoso, ainda que seja inocente.

A definição sueca de “estupro” é diferente e mais ampla que a britânica, onde se exige algum grau de coerção para que se caracterize o estupro. A imprensa e vários políticos suecos não se têm mostrado simpáticos. Já há quem diga que o problema está em os britânicos não levarmos o estupro muito a sério. O primeiro-ministro sueco Fredrik Reinfeldt já se saiu com essa – o que me parece muito flagrante interferência política em processo judicial. 

E há também o fato de que a lei sueca não assegura segredo de justiça a julgamentos por estupro. Tenho amigos suecos que não vêm problema nessa total publicidade, antes de haver culpa e culpados. Mas me preocupa. A todos deve ser assegurado o direito de ser julgado em corte judicial, antes, pelo menos, de ser linchado por jornalistas e por alguma chamada ‘opinião pública’. 

Fato é que a intromissão do primeiro-ministro sueco teria bastado, para que a Inglaterra vitoriana negasse à Suécia a extradição de Assange.

Valha o que valer a minha opinião, não creio em nenhuma das teorias conspiracionais que cercam o caso Assange: não acho que tenha sido ‘armado’ pela CIA. Tampouco acho que a opinião pública sueca teria permitido que Assange fosse extraditado para os EUA – esse, aliás, outro de seus temores: há telegramas publicados por WikiLeaks nos quais se descobre que o atual governo "moderado" da Suécia mantém contatos não confessáveis com os EUA, mais não confessáveis do que os suecos parecem dispostos a admitir. E ninguém pode saber se Assange será condenado ou absolvido das acusações que surjam contra ele na Suécia, nem pelos termos da justiça britânica nem pelos termos da justiça sueca. 

O que sei, sim, com razoável certeza, é que a Grã-Bretanha de modo algum concederia essa extradição, nas circunstâncias conhecidas, se o caso acontecesse há 100, 200 ou dez anos – quando a Grã-Bretanha orgulhava-se de ser mais liberal e, com certeza, orgulhava-se de ser nação soberana.

Guia essencial para a Jacobin

A Jacobin tem divulgado conteúdo socialista em ritmo acelerado desde 2010. Eis aqui um guia prático para algumas das obras mais importantes ...