No Iraque, Bradley Manning rapidamente percebeu que o segredo era uma praga para tudo o que ele valorizava.
Jeremy Harding
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Vol. 34 No. 14 · 19 July 2012 |
Tradução / O que teria empurrado Julian Assange na corrida em busca de espaço extra-territorial amigável? Os detratores dizem que foi movido pelo motor de sempre, a velha história, uma propensão a pôr-se no centro do universo, alvo de uma conspiração improvável para metê-lo numa cadeia nos EUA e jogar fora a chave. Essa derradeira honraria derramou-se sobre Bradley Manning.
Em matéria de vazamentos, os EUA já tem seu herói: por que se preocupar tanto com o editor-celebridade do herói? À frente da Embaixada do Equador, em Hans Crescent, praticamente nos fundos da loja Harrods, mantém-se, ininterrupta, uma presença rala, mas heróica, de apoiadores. Estive lá, no início do mês passado. Vi uma francesa que andava de um lado para o outro, carregando uma placa, que, depois, ela amarrou numa das barreiras que bloqueiam a passagem. Na placa, em mal traçadas letras, lia-se: “Obrigada, Assange, por nos dar a história dos derrotados”. Pensava em algum Brecht, disse-me ela. Ou, talvez, em Walter Benjamin. Outra figura, mais velha e mais excêntrica, garantiu-me que Assange já se escafedera da embaixada, uma semana antes, por um túnel que passa pelos subterrâneos da Harrods: seguranças da loja lhe contaram tudo. Um terceiro insistia que havia saída pronta, de Hans Crescent, para o homem que já saíra dali pelos esgotos de al-Fayed: primeiro, o governo de Rafael Correa dá asilo a Assange; depois, Assange candidata-se à cidadania equatoriana, que não demora; depois, passa a trabalhar no consulado, em função consular não muito importante, o que lhe garantirá a imunidade diplomática indispensável para percorrer a curta trilha que separa a embaixada e o portão de embarque em Heathrow.
Em recente visita a Queensland – estado onde nasceu Assange – o embaixador dos EUA na Austrália disse que os EUA poderiam extraditá-lo tão facilmente da Grã-Bretanha quanto da Suécia, se tivessem decidido pela extradição. Bob Carr, ministro das Relações Exteriores da Austrália, tampouco dá sinais de pressa: a relutância dos EUA para extraditar Assange da Grã-Bretanha, disse ele, é prova de que os EUA não estão empenhados nessa caçada. Carr é homem conhecido por jamais se afastar do roteiro que o mandem cumprir, mas a ideia de que os EUA possam tirar Assange da GB tão facilmente quanto da Suécia não se confirma. É preciso ouvir, além da opinião dos advogados e auxiliares de Assange, também a opinião, por exemplo, de John Bellinger, ex-acessor para questões jurídicas do Departamento de Estado, quem disse à rede Associated Press de televisão, em 2010, que acusar Assange enquanto permanecesse na GB, poria um aliado leal na difícil situação de ter de assinar uma extradição que lhe criaria problemas graves. O melhor, para os EUA, seria afastar-se do caso:
Devemos esperar que seja processado na Suécia. Depois, pedimos que os suecos os extraditem para cá.
O pessoal de Assange acrescenta que, diferentes dos britânicos, os suecos têm tratado de extradição com os EUA, que lhes permite “entrega temporária” [orig. ‘temporary surrender’] de suspeitos procurados por crimes graves, também no caso de serem acusados na Suécia. Esse arranjo pode ser chamado de ‘modelo Panamá’, depois que um telegrama diplomático de 2008, da embaixada dos EUA no Panamá, para Washington – que lemos por cortesia de WikiLeaks – expõe claramente as vantagens desse procedimento:
Por esse procedimento, o suspeito é “emprestado” aos EUA para ser processado, sob a condição de que será devolvido para ser processado no Panamá depois de cumprida a sentença que os EUA determinem. É procedimento muito mais rápido que a extradição formal e tem-se mostrado tão eficaz, que [a DEA, Drug Enforcement Administration] várias arquiteta operações para trazer suspeitos ao Panamá, para que possam ser presos no Panamá e, nessa condição, sejam rapidamente devolvidos às autoridades norte-americanas.
Pesa a favor de Assange a sugestão de que qualquer acusação que se apresente contra ele aplica-se também a Bill Keller, ex-diretor executivo do New York Times, que participou, como parceiro de WikiLeaks na divulgação dos documentos sobre as guerra do Afeganistão e do Iraque e também na divulgação dos telegramas diplomáticos.
Como Chase Madar explica no livro The Passion of Bradley Manning, nada, no material que se diz que Manning teria vazado, é top secret. Dos cerca de 250 mil telegramas diplomáticos, por exemplo, 15-16 mil telegramas são secretos; e menos ainda são para “leitura restrita”. Quanto a arquivos para “leitura restrita”, os telegramas diplomáticos perdem, de longe, para os documentos que Daniel Ellsberg vazou, no auge da Guerra do Vietnã. E, por fim, é opinião generalizada dentro do governo, de que os vazamentos não criaram qualquer risco de segurança nacional. (Os documentos em que se podem ler exatamente isso – um deles saído da Casa Branca – são, eles sim, para “leitura restrita”; os advogados de Manning já exigiram que alguns deles sejam exibidos, exigência acolhida pelo juiz que preside a corte militar que está julgando Manning.)
Seja como for, há muitas razões para que Assange tome todos os cuidados. Dianne Feinstein, presidente da Comissão do Senado para Assuntos de Inteligência, disse, em declaração ao jornal Sydney Morning Herald, no início do mês, que Assange “causara grave dano à segurança nacional dos EUA e deve ser acusado e processado pelo que fez.” Talvez pouco significasse em ano eleitoral. Mas... E quanto aos “telegramas de Stratfor”, a empresa privada de segurança e “inteligência global” com sede no Texas, obtidos pelos Anonymous, coletivo de hacker-ativistas, e divulgados há seis meses pela página WikiLeaks?
Naquele pacote, entre 5,5 milhões de mensagens, várias relacionadas a Assange, uma delas, de Fred Burton, vice-presidente para questões de contraterrorismo e segurança empresarial, diz apenas: “Não comentem por aí: Já temos acusação secreta, formal, contra Assange. Favor não divulgar.” Seja verdade, seja mentira, não é o tipo de informação que Assange possa dar-se o luxo de menosprezar.
Outra razão para extrema preocupação é o quadro estatístico, que Madar resume em seu livro, dos processos e processados durante o governo Obama: nos últimos quatro anos, seis pessoas (inclusive Manning) foram acusados de crimes tipificados na chamada “Lei Antiespionagem” [Espionage Act ] de 1917, por divulgação de informação reservada.
Embora, como candidato, Obama falasse como amigo e leal protetor dos sentinelas avançados que tocam o apito para alertar contra riscos e ameaças” – escreve Madar – “é hoje o presidente que mais processou acusados de crimes tipificados naquela lei de 1917; mais que todos os presidentes que o antecederam, somados.
Assange não está na lista de pagamento do governo dos EUA, diferente de tantos outros, e é problema persistente, que os EUA ainda não conseguiram resolver, agora na Embaixada do Equador, à espera, ouvindo zunir à sua volta os rádios e computadores que zunem, com o pessoal do Ministério do Exterior voando para Quito, e a embaixada dedicada a ampliar os cuidados de segurança, para evitar qualquer tipo de mal-entendido com os britânicos.
Simultaneamente, os e-mails sírios que começam a ser divulgados por WikiLeaks são prova de que Assange não está ocioso, em seus dias e noites na Embaixada do Equador. Empresas ocidentais de segurança, especializadas em tecnologia de vigilância e controle, aparecerão com destaque nos 2,4 milhões de documentos a serem divulgados. No primeiro pacote de documentos já divulgados, o foco é a empresa Finmeccanica, italiana, especialista em Defesa, e as muitas vendas que fez de equipamentos para telefonia móvel em Damasco, não antes de eclodir a “questão síria”, mas em fevereiro de 2012.
Bradley Manning, ao contrário, está fora de jogo. É preciso usá-lo como caso exemplar de castigo, porque era soldado a serviço dos órgãos de segurança. Assange pode ser um cruzado, mas não era alistado nas forças armadas dos EUA, e entregou cerca de um milhão de arquivos ligados “a ação significativa” no Afeganistão e no Iraque, e mais um quarto de milhão de telegramas diplomáticos a WikiLeaks. Todos esses documentos foram distribuídos por um soldado atento, no Iraque. Manning, que já está há dois anos sob detenção, primeiro na Base da Marinha em Quântico, Virgínia; agora na prisão de Fort Leavenworth, acusado nos termos da Lei Antiespionagem e, também, por “cooperação com o inimigo”.
Na sua estação de trabalho, num prédio pré-fabricado onde se instalaram unidades da inteligência, no Iraque, Manning rapidamente sentiu que o segredo era como espada a pesar sobre todos os valores que ele prezava. Sentiu, sobretudo, que o sigilo servia de cenário perfeito para todos os tipos de práticas ilegais. E decidiu agir.
Em seu livro, Madar concorda e elogia a “brilhante contribuição de Manning (...) à liberdade e à justiça em todo o mundo”.
Madar conta que, no início dos anos 1990s, o governo dos EUA protegia, sob ordem de sigilo, cerca de 6 milhões de documentos por ano; em 2010, o número já chegava a 80 milhões: o 9/11 explica esse aumento, mas deve-se considerar também a facilidade com que esses documentos podem ser gerados e armazenados. Há também uma nova obsessão com o segredo e o sigilo, em tempos nos quais o estrito controle sobre a informação é o principal aliado de governos que não querem ver o povo organizado e ativo na condução do próprio destino. A escuridão e o sigilo protegem os ditadores. E só a internet lança luz sobre tudo e sobre todos: fonte de energia, para hackers e apóstolos evangelistas da liberdade como Assange; por isso, a internet é hoje o inimigo que todos os poderes autoritários do mundo juraram de morte.
Há alguma diferença entre segredos militares e segredos gerados pelos governos, na administração da vida civil, com guerra ou sem guerra? Parece que sim. E os EUA, além do mais, estão sempre ou praticamente sempre em guerra ou em pé de guerra, aberta ou oculta; e a segurança militar acabou por ter repercussões também no universo do que hoje se chama “sociedade civil”. Ao mesmo tempo, os valores da vida civil não deixam de ser muito fortemente propagandeados também na linha de frente das tropas da Coalizão, para que os soldados não esqueçam as liberdades que estão defendendo, ou implantando. Viver cercado de todos os confortos eletrônicos de casa é parte chave da vida na caserna, nas guerras dos EUA.
O setor onde Manning trabalhava, na Base de Operações Avançada em Hammer era, nas palavras de Madar, “um armazém amplo, sem janelas, cheio de computadores e mesas e fios elétricos”, povoada de gente com acesso liberado aos mais variados níveis de sigilo. Como a tripulação da nave Nostromo em “Alien, o oitavo passageiro”, estacionada em algum ponto remoto do universo, todos ali, naquela nave hermética, viviam, até certo grau, mergulhados numa cultura do lazer e do ócio.
O pessoal, na área de inteligência conhecida como Instalação para Informação Compartimentada de Segurança [orig. Secure Compartmented Information Facility (SCIF)], passava horas sem fim navegando à toa, ouvindo-vendo gravações de vídeos dos cantores preferidos que carregavam na mochila, ou queimando mídia para baixar filmes. Manning descreve o cenário e o contexto, na transcrição de uma das pastas de arquivos de conversa que foram entregues ao FBI e aos órgãos de segurança do exército:
... todos chegavam e sentavam nas estações de trabalho (...) vendo vídeos musicais/corridas de carros/explosões de prédios (...) e escrevendo coisas em CD/DVD (...) oportunidades culturais que se encontravam (...) o mais engraçado (...) é que se gravavam tantos dados em CDs sem qualquer identificação (...) Todos gravavam (...) vídeos (...) filmes (...) música (...) todos ali, à vista de todos, no aberto, todos viam.
E havia tal quantidade, tão gigantesca, de informação tão devastadora, que comprovava tão completamente que a guerra não era o que se dizia que ela seria. Manning deve ter lembrado de “No espaço, ninguém ouve seu grito”, do Dr. Spock. Mas, com a nova tecnologia, isso já não é bem assim. Chega a ser difícil acreditar que geeks e tecno-revolucionários, tech-libertarians, como Madar os chama, tenham mudado o mundo, tanto e tão completamente como mudaram, de modo tão significativo.
Fato é que sim, podem mudar radicalmente a discussão. E mudar a discussão foi o que fizeram Manning e WikiLeaks em 2010 – confirmação final e exaustiva, de que a guerra do Iraque não passara de erro terrível.
Manning carrega o gene da informação: seu pai foi agente de segurança, com autorização para acesso a documentos e instalações secretas [orig.security clearance], deslocado pela Marinha dos EUA para Cawdor Barracks, Haverfordwest, onde conheceu a mãe de Manning, nos anos 1970s. (Nas mesmas instalações, está instalado hoje o 14th Signal Regiment, de especialistas em guerra eletrônica, capazes de derrubar qualquer discussão – e todas ao mesmo tempo – quando bem entendam). Manning Pai estimulou no filho o interesse por computadores e ensinou-lhe programação C++. Madar nos informa que, “aos dez anos, Manning desenhou e pôs em operação sua primeira página de Internet”. O lar dos Manning começou a ruir no início da adolescência do filho; em 2001, sua mãe mudou-se de Crescent, Oklahoma, e levou com ela o filho, para Wales. Quando voltou sozinho para Oklahoma, em 2005, o pai conseguiu-lhe um emprego numa empresa local de software, mas não deu certo. Depois de algum tempo de andar à toa – por Tulsa, Chicago, Washington DC –, Manning afinal decidiu alistar-se no Exército.
Sua vida na caserna foi tormentosa. No outono de 2007, apresentou-se em Fort Leonard Wood, Missouri, mas foi logo mandado para a “unidade de desalistamento”, para onde eram enviados os recrutas considerados não capacitados para o serviço, antes de voltarem para casa. Não tinha altura, não sabia distinguir o certo e o errado, nem o que tinha sentido e o sem sentido algum, era gay. Foi vítima de abusos durante o treinamento básico, por soldados que permaneceriam no serviço militar, e outra vez, na unidade de desalistamento, por gente que não interessava ao exército. Mas Manning foi enviado para uma unidade de reciclagem. Um de seus companheiros nessa unidade, entrevistado ano passado por Guardian Films, disse que teve a impressão de que o exército estava em situação de desespero.
Em 2007, o número de novos recrutas foi o mais baixo de toda a história. Já não havia mais como baixar o padrão, para conseguir recrutas. Pareciam doidos. Aceitavam qualquer coisa: tatuagem no rosto, baixos demais, altos demais, com ficha policial – qualquer coisa servia. Até aumentaram a idade máxima. Gente com 42 anos, podia alistar-se para treinamento básico. Pegavam qualquer um. O que aparecia por lá, eles pegavam.
Manning foi para o Arizona, para treinamento para unidade de inteligência e, de lá, no verão de 2008, foi mandado para Fort Drum, estado de New York, onde permaneceu até outubro de 2009. Foi quando foi despachado para a Base de Operações Avançadas Hammer, cerca de 35 milhas a leste de Bagdá, como analista de inteligência no Scif. Ali, como Madar explica, tinha acesso à rede SIPRNet – a rede-mãe usada pelos departamentos de Estado e da Defesa, para transferir dados sigilosos. Tinha acesso também ao Sistema Conjunto Mundial de Comunicações de Inteligência [orig. Joint Worldwide Intelligence Communications System], uma rede fechada intragovernamental, usada pelos departamentos chave, dentre os quais os departamentos de Defesa, de Segurança Nacional, de Estado e da Justiça, para intercâmbio de material sigiloso, de baixo até alto sigilo e top secret. Depois de poucas semanas no Iraque, Manning recebeu autorização para acesso a documentos de alto sigilo.
Madar identifica o momento crucial, nas conversas que manteve sobre os arquivos, que explicaria a desilusão de Manning, sobre como a guerra estava sendo conduzida.
Uma de suas tarefas era investigar um grupo de iraquianos que estavam sob vigilância por terem criticado o governo. Mas, como Manning praticamente afirma, nada haviam feito de errado. Haviam produzido um panfleto intitulado “Para onde vai o dinheiro?”, que um intérprete leu, traduzindo, para Manning; da leitura, Manning concluiu que “o autor do panfleto investigava uma trilha da corrupção no gabinete de al-Maliki”. Manning escreve:
...peguei a informação e *corri* à sala do oficial, para explicar o que estava acontecendo. Ele não quis nem ouvir. Mandou-me calar a boca e explicou que nosso trabalho era conseguir encontrar *MAIS* suspeitos.
Pela interpretação de Madar, o principal problema não era a censura, mas a tortura, a qual “como Manning sabia perfeitamente, continuava a ser prática comum das autoridades iraquianas, mesmo seis anos depois de o país estar ocupado e sob comando dos EUA”.
“Interrogatório estimulado” [orig. enhanced interrogation] era prática pregada por Rumsfeld. Em 2005, Peter Pace, chefe do Comando Conjunto do Estado Maior dos EUA, tentou introduzir uma lei – todos os soldados dos EUA ficariam obrigados a notificar qualquer prática de tortura no Iraque, de que fossem informados – mas Rumsfeld antecipara-se e já implantara uma norma secreta, conhecida como Fragmentary Order 242: soldados e oficiais dos EUA não devem intervir nem mover qualquer tipo de ação em casos de tortura praticada por agentes da segurança iraquiana. Manning havia-se posto em posição extremamente perigosa, e podia começar a esperar pelo pior.
Adiante, já perto do final de 2009, apareceu à frente de Manning o vídeofilme – que WikiLeaks publicaria adiante sob o título de “Collateral Murder” [Assassinato Colateral] – filmado de um helicóptero armado, e que mostrava um grupo de pessoas num subúrbio de Bagdá. Verificou a data nos seus arquivos – 12/7/2007 –, colheu as coordenadas pelo GPS e pôs tudo no Google. A primeira matéria que viu, do New York Times, falava de pelo menos 11 mortos – dois dos quais da equipe de jornalistas da Agência Reuters – e várias crianças gravemente feridas. O que se via no vídeo filmado de dentro do helicóptero Apache e os eventos em terra não eram facilmente conciliáveis.
Manning contou ao seu confidente na página de bate-papo na Internet que “não consegui esquecer aquelas coisas dentro do sistema (...) nem dentro da minha cabeça”. Pensou e repensou “neles durante semanas (...) acho que um mês e meio (...), antes de passar adiante o vídeo”. “Neles”, nessa frase, significa “WikiLeaks” – mas Manning não diz. O vídeo foi afinal exibido ao mundo no National Press Club, em Washington, dia 5/4/2010. E o resto é história conhecida.
Dado que não havia cuidado algum de segurança naquela unidade de SCIF, foi fácil, para Manning, tomar um CD e uma etiqueta rabiscada com caneta de ponta de feltro (“Lady Gaga”) – e baixar os conteúdos para o CD e “escrever um compressed split file (...) ninguém desconfiou de coisa alguma”. Um ex-agente encarregado da segurança na base Hammer em Bagdá explicou que deve, sim, ter sido facílimo:
Havia laptops espalhados por ali, todos com as senhas anotadas em etiquetas coladas nas próprias máquinas. Qualquer pessoa uniformizada que entrasse, sentava num dos computadores ao meu lado e fazia o que quisesse. Por mim... Que faça o que quiser...
Em dezembro de 2009, Manning já dava sinais tão claros de stress máximo, que um psicólogo aconselhou que se retirasse a munição de sua pistola de serviço. Na primavera de 2010, estava sendo devorado vivo pelos demônios da própria alma. Dia 7/5, teve um desentendimento com uma oficial superior, na base Hammer, e deu-lhe uma bofetada. Imediatamente, voltou a ser “cabo (de primeira classe) Manning”, perdeu o acesso à sala principal do serviço SCIF de inteligência, à qual não voltaria. Foi mandado para a faxina do almoxarifado.
Duas semanas depois, angustiado e solitário além do suportável para ele, cometeu o trágico erro de entrar numa sala de bate-papo e de mensagens instantâneas, onde encontrou Adrian Lamo, hacker-celebridade em Sacramento. Àquela altura, já havia distribuído todos os arquivos, não se sabe como nem para quem. Madar nada diz sobre como os arquivos saíram da base Hammer em Bagdá e só reapareceram em WikiLeaks. Manning está preso, em julgamento, e tudo que tenha feito, dito ou transmitido, online ou offline, aparece, na sóbria narrativa de Madar como “suposto”, ou “alegado”, ou “segundo” uma ou outra declaração.
Lamo emerge na narrativa como personagem cinza pálido, ambíguo, igual a muitos outros cavaleiros andantes dos códigos secretos que vivem de explorar territórios proibidos. A bissexualidade no mundo real e as façanhas como hacker – invadiu a rede do New York Times em 2002 – agiram, em Manning, como abismo que atrai além de qualquer possibilidade de resistência. Manning acabava de “exfiltrar” quantidades imensas de informação; é gay; e vivia rebaixado para um almoxarifado no meio do deserto, perto de Bagdá. Como montanhista que quisesse contar a outro montanhista sobre a vez que enveredou por trilha sem volta, Manning só queria falar; e Lamo era montanhista-celebridade. Sempre fez o que os hackers mais bem fazem: passara anos mudando de página para página, em ambientes reais e virtuais, às vezes cauteloso, às vezes sem nenhuma cautela. A aventura de Lamo pelos labirintos do Times deixara-o com vários grandes danos a pagar – ao jornal, à empresa Yahoo!, Microsoft e MCI – e custara-lhe seis meses na casa dos pais, como parte de pena mais longa. Em 2004 uma “ex” disse, em entrevista à revistaWired, que Lamo a atacara com um pistola de brinquedo. Pouco antes de Manning começar a falar, perto do final de maio, Lamo havia tido alta de um hospital psiquiátrico em Sacramento, onde fora forçado a permanecer por nove dias, depois que um policial entendeu que agia de modo não convencional; como depois se confirmou, ele entrou na delegacia de política para apresentar queixa de roubo de uma mochila.
Naquela página de bate-papo, Manning [codinome: bradass87], abre o coração para Lamo. Parece desesperado. Ás vezes, parece exaltado. Sobre a gigantesca reação desencadeada pelos tiros do helicóptero Apache, Manning escreveu":
...vídeo divulgado em 2010, os envolvidos discutem evento, vi os envolvidos discutindo abertamente; adicionei eles como amigos no Facebook (...) e eles nem desconfiam quem sou eu (...) mas tocaram minha vida. Toquei a vida deles (...) o círculo completo.
Companheirismo sem intimidade é parte do poder curativo da TI para soldados em postos remotos. É também a solução autoevidente para seu impasse moral. Manning explica a Lamo que viu
...coisas horríveis” em “redes secretas”, “coisas incríveis que [pertencem] ao domínio público (...) coisas que teriam impacto na vida de 6,7 bilhões de pessoas.
Sobre os telegramas diplomáticos, Manning pergunta:
...e podia ter vendido para Rússia ou China e fazer uma grana?
Lamo responde: “por que não vendeu?”
Manning: porque são dados públicos
Lamo: falo dos telegramas secretos
Manning: a informação tem de ser livre. pertence ao domínio público
Lamo joga com cartas bem escondidas. Nos excertos que se leem no livro de Madar, das conversas naquela página de bate-papo, Manning fala muito; Lamo fala pouco. Mais uma amostra, em conversa sobre as falhas de segurança na base Hammer em Bagdá:
Manning: era normal. todos levavam CDs para dentro e para fora/era comum
Lamo: foi assim que você conseguiu sair com os telegramas gravados?
Manning: talvez
Dois dias depois de iniciada a conversa, Lamo fez contato com as autoridades federais; manteve Manning falando por ainda algum tempo e em seguida entregou cópia de todos os arquivos de conversas com Manning, ao FBI, em encontro num café Starbucks em Sacramento. A vida, ao ritmo de um cafezinho. Na leitura generosa de Madar, Lamo não teria escolha:
...tudo leva a crer que teve de entregar aquela pessoa, com a qual encontrou sem procurar, porque seria Manning ou Lamo. Entregou-o, para salvar-se, o próprio Lamo, de ser sentenciado e preso. Quantos de nós, no lugar de Lamo, teríamos agido de outro modo?
A lamentar, em todo o caso, Madar insiste, é que ninguém tenha vazado antes: todo o serviço secreto dos EUA, oficiais militares, agentes do governo, dezenas de milhares de homens e mulheres tinham acesso àqueles arquivos e aos telegramas diplomáticos.
Em capítulo de muita coragem moral, “Os vazadores e seu público”, Madar mapeia quantidade imensa de documentos históricos que não conseguiram deter o sinistro cavaleiro da morte e da guerra; que sequer conseguiram fazê-lo avançar mais devagar. “A litania é longa e colossal, de documentos que têm conteúdo suficiente para provocar uma explosão radical no mundo do aparelho da guerra. Mas que, quando chegam a nós, já nada causam nem provocam”, de La Question, de Henri Alleg (1958), sobre sua prisão e tortura pelos Paras em Alger, até os telegramas entre Ellsberg e Karl Eikenberry, vazados de Cabul (2010), onde servia como embaixador.
Eikenberry, tenente-general da reserva, aconselhou, nos termos mais fortes possíveis, que não houvesse qualquer escalada na guerra do Afeganistão. E pediu revisão completa de todo o programa de antiguerrilha dos EUA. “Apesar das credenciais impecáveis de Eikenberry e apesar da queda vertiginosa do apoio popular à guerra, os telegramas de Cabul não impediram a “avançada” de Obama no Afeganistão, nem a intensificação dos ataques com drones”.
Manning sempre teve alguma noção sobre a sujeira geral da política, da guerra, da vida e da morte em tempo real. “A apatia” – confidenciou ele a Lamo, seu amigo dos bons tempos na sala de bate papo – “tem sua própria 3ª dimensão".