Por que, então, os radicais são tão hesitantes em falar sobre como deveria se parecer um sistema alternativo? Uma das mais antigas e influentes objeções a tal discurso vem de Marx, com seu sempre citado escárnio em relação aos “receitas” utópicas para os “caldeirões do futuro”. A moral da citação, supostamente, é que a sociedade futura deve emergir das dinâmicas espontâneas da história, não a partir das imaginações isoladas de algum escriba. Mas não sem uma ironia, uma vez que dois anos depois disso o escriba Marx escreveu sua própria pequena receita na sua Crítica ao Programa de Gotha – a qual envolvia vale-trabalho, armazéns de suprimentos, e uma contabilidade para determinar quanto cada trabalhador deveria receber.
Da forma como aconteceu, os comentários de Marx foram uma réplica à crítica que tinha recebido numa publicação de em um jornal parisiense editado por alguns devotos do filósofo Auguste Comte, criticando Marx por não oferecer nenhuma alternativa concreta ao sistema social que ele condenava. (É por isso que, na citação original, ele pergunta ironicamente se as receitas pela quais os editores esperavam encontrar tratavam-se de receitas “Comtianas”). O alvo de Marx era exatamente essa obsessão de "pintar um futuro".
Um motivo relacionado à essa reticência é o sentimento de que enunciar ideias para o futuro das instituições sociais contribui para um tipo de elitismo tecnocrático que sufoca o ímpeto utópico do povo em movimento. Grandes mudanças sociais nunca acontecem sem que as multidões ganhem inspiração para atos heroicos de entusiasmo, e tentativas pacientes de lidar realisticamente com os problemas materiais do funcionamento da sociedade raramente são inspiradoras. Este questionamento não é de forma alguma trivial; uma das mais antigas falácias da esquerda é a ilusão de que a mudança acontece quando alguém aparece com um brilhante plano de dez etapas e consegue convencer a todos de sua genialidade.
Ainda assim, um projeto radical bem-sucedido deve apelar para todo registro emocional: não apenas aqueles momentos de êxtase quando a história se revela e tudo parece ser possível, mas também aqueles nos quais os humores tornam-se pensativos e críticos, quando até o mais inveterado dos otimistas se deixa tomar pela dúvida e pela reflexão. Mesmo uma luta tão épica e apaixonada como o movimento pelas oito horas diárias – o qual “parecia ser uma das utopias mais marcantes do socialismo revolucionário” na época, como lembrou Elie Halévy – era, no fim das contas, sobre uma medida burocrática, imposta pela legislação e pelos inspetores de fábrica.
Talvez o motivo mais fundamental pelo qual a esquerda tem suspeitado desse tipo de visões seja o fato de que elas sempre são apresentadas como um ‘fim da linha’ histórico – e um ‘fim da linha’ é sempre desapontador. A noção de que a história vai alcançar um ponto final onde o conflito social vai desaparecer e a política chega a um fim tem sido uma fantasia equivocada para a esquerda desde sua gênese. Cenários futuros nunca devem ser pensados como finais, ou mesmo irreversíveis; mais do que considerá-los esquemas para algum destino futuro, seria melhor simplesmente vê-los como mapas indicando possíveis rotas para sair de um labirinto. Uma vez deixado o labirinto, cabe a nós decidir o que fazer em seguida.
Neste ensaio, começarei com a premissa socialista comum de que as deficiências centrais do capitalismo surgem do conflito entre a busca privada pelo lucro de um lado e, a satisfação das necessidades humanas, de outro. Depois, esboçarei algumas das considerações que deveriam ser consideradas em qualquer tentativa de remediar essas deficiências.
Não estou preocupado aqui em alcançar uma harmonia total final entre os interesses particulares e os interesses gerais, ou em expurgar a humanidade de qualquer conflito ou egoísmo. Estou em busca do passo mais curto possível, desta sociedade que temos agora para uma nova sociedade na qual a propriedade mais produtiva seja de propriedade comum – não para radicalizar a mudança, mas simplesmente para mudar.
Não há nada de errado em pensar concreta e praticamente sobre como podemos nos libertar das instituições sociais que impõem tais limites sobre qual o tipo de sociedade somos capazes de ter. Porque podemos ter certeza de uma coisa: ou o sistema atual será substituído ou durará para sempre.
Os radicais respondem ao fim do “socialismo realmente existente” principalmente de duas formas. A maioria deixou completamente de falar sobre um mundo após o capitalismo, recuando para um política modesta de reformismo fragmentário, ou localismo, ou crescimento pessoal.
A outra resposta é exatamente o oposto – uma fuga para uma visão mais pura e intransigente da reconstrução social. Em certos círculos radicais, esse impulso desembocou ultimamente num apelo para um mundo sem estados ou mercados, e assim sem dinheiro, salários, ou preços: um sistema no qual os bens poderão ser livremente produzidos e consumidos, onde a economia poderá ser totalmente governada pela máxima “de cada qual de acordo com suas capacidades, a cada qual de acordo com suas necessidades”.
Toda vez que tais ideias são consideradas, imediatamente o debate parece se focar nas grandes questões filosóficas sobre a natureza humana. Os céticos zombam porque as pessoas são egoístas demais para tal sistema funcionar. Os otimistas argumentam que os humanos são uma espécie naturalmente cooperativa. Evidências estão presentes em ambos os lados dessa argumentação. Mas é melhor deixar tal debate de lado. É mais seguro admitir que os humanos apresentam uma mistura de cooperação e egoísmo, em proporções que mudam de acordo com as circunstâncias.
A sublime visão de um mundo sem estados ou mercados encara obstáculos que não são morais, mas técnicos, e é importante compreender exatamente quais são eles.
Temos que assumir que não queremos regredir a um nível nitidamente inferior de desenvolvimento econômico no futuro; devemos querer experimentar pelo menos os mesmos confortos materiais que temos sob o capitalismo. Em um nível qualitativo, é claro, muitas coisas devem mudar para que a produção satisfaça de melhor maneira as necessidades humanas e ecológicas. Mas não queremos testemunhar um declínio geral de nossa capacidade produtiva.
Mas a forma de produção que somos capazes atualmente requer uma maciça e complexa divisão do trabalho. Isso nos coloca um problema complicado. Para compreender de maneira concreta o que isso significa, pense de que forma os americanos viviam na época da Revolução Americana, quando o cidadão comum trabalhava numa pequena e relativamente isolada fazenda familiar. Tais famílias, em grande parte, produziam o que consumiam e consumiam o que produziam. Caso se deparassem com um modesto excedente agrícola, podiam vendê-lo para outra família das redondezas, e com o dinheiro que ganhassem podiam adquirir alguns luxos. Para a maioria, porém, não havia a necessidade de se apoiar no trabalho de outros para conseguir as coisas das quais precisavam para viver.
Compare essa situação com a nossa. Não apenas dependemos dos outros para conseguir nossos bens, mas o já elevado número de pessoas de quem dependemos tem aumentado em grandes proporções.
Olhe para a sala onde está sentado e pense nas coisas que você tem. Agora tente pensar em quantas pessoas estão diretamente envolvidas na produção dessas coisas. O computador no qual estou digitando, por exemplo, tem um monitor, um gabinete, um player de DVD, e um microprocessador. Cada parte foi feita em um fábrica separada, provavelmente em países diferentes, por várias companhias que empregam centenas ou milhares de trabalhadores. E então pense no plástico, borracha e metal brutos que são utilizados em cada um desses componentes, e em todas as pessoas envolvidas na sua extração. Adicione a indústria energética que alimenta as fábricas, os navios, e os caminhões que levam os computadores até seu destino. Não é difícil imaginar milhões de pessoas participando na produção de apenas alguns itens da minha escrivaninha. E imagine as milhões de tarefas envolvidas, cada uma realizada por um indivíduo com um pequeno rotina de atividades distintas.
Como cada um sabe o que fazer? Bom, é claro que a maioria dessas pessoas são empregados e seus chefes falam o que eles devem fazer. Mas como esses chefes sabem o quanto de plástico eles devem produzir? E como eles sabem mandar o plástico mais fraco para a fábrica de computadores, mesmo que tenham sido capazes de produzir um material mais resistente e de alta qualidade reservado para os produtores de equipamentos hospitalares? E como esses industriais julgam se vale mais a pena gastar mais recursos produzindo computadores com belos monitores LCD, do que serem mais econômicos e produzir os simples e antigos monitores de tubo?
O número total desses dilemas é praticamente infinito em uma moderna economia com milhões de produtos diferentes e bilhões de trabalhadores e consumidores. E todos devem ser resolvidos de forma globalmente consistente, pois em cada momento existem tantos trabalhadores e máquinas envolvidos, que produzir mais de alguma coisa significa fazer menos de outra. Os recursos podem ser combinados em um número praticamente infinito de permutações possíveis; algumas podem satisfazer as necessidades e desejos materiais da sociedade muito bem, enquanto outras podem ser desastrosas, envolvendo enormes quantias de produtos não desejados e muitas coisas desejáveis acabam não sendo feitas. Teoricamente, qualquer grau de sucesso é possível.
Esse é o problema do cálculo econômico. Em uma economia de mercado os preços desempenham essa função. E a razão pela qual os preços podem fazer isso é porque eles carregam informações sistemáticas sobre o quanto uma pessoa está disposta a abrir mão para conseguir uma coisa, dentro de um conjunto de circunstâncias. Apenas exigindo que as pessoas desistam de alguma coisa para ter acesso à outra, em certa medida, pode-se gerar uma informação quantitativa que mostra, em termos relativos, como as pessoas valorizam tais coisas. E apenas por conhecer o quanto de valor relativo as pessoas dão para milhões de diferentes coisas, os produtores participantes dessa vasta rede podem tomar decisões racionais sobre quais serão suas pequenas contribuições neste sistema global.
Nada disso significa que esse cálculo pode ser feito apenas a partir dos preços, ou de que os preços gerados em um mercado são de alguma forma ideais ou ótimos. Mas não existe outra forma de um sistema descentralizado poder continuamente gerar e transmitir tamanha informação quantitativa sem, de alguma forma, o uso dos preços. Não precisamos, é claro, ter um sistema descentralizado. Podemos ter uma economia centralmente planejada, na qual todas ou a maioria das decisões sobre a produtividade da sociedade serão delegadas a planejadores profissionais e seus computadores. A tarefa deles seria extremamente complexa e, seu desempenho, incerto. Mas pelo menos tal sistema poderia fornecer algum método para o cálculo econômico: os planejadores tentariam aglomerar dentro de seus departamentos toda a informação necessária e então descobrir o que cada um deve fazer.
Então alguma coisa precisa realizar a função do cálculo econômico que os preços desempenham em uma economia de mercado e os planejadores em uma economia planejada. Sendo assim, foi feita uma tentativa de dizer exatamente o que seria preciso para o cálculo econômico em um mundo sem estados e mercados. O ativista anarquista Michael Albert e o economista Robin Hahnel conceberam um sistema que chamaram de Economia Participatória na qual cada decisão livremente tomada por algum indivíduo, sobre produção e consumo, poderia ser coordenada por meio de um vasto planejamento societário através de um processo “participatório” sem nenhuma burocracia centralizada.
A Parecon (Participatory Economics), como é chamada, é um exercício interessante por conta de seus propósitos, uma vez que trabalha rigorosamente com o que precisaria existir para que tal economia “anarquista” funcionasse. E a resposta, resumidamente, é a seguinte: No início de cada ano, cada um deve escrever uma lista constando cada item que ele ou ela deseja consumir no decorrer do ano, junto com a quantidade de cada item. Ao escrever essas listas, todos consultam uma relação improvisada de preços de cada produto no mercado (não se esqueça de que na Amazon.com existem mais de dois milhões de itens listados apenas na categoria “Cozinha e culinária”), e o valor total da lista de desejos da pessoa não pode exceder seu “orçamento” pessoal, que é determinado por quanto ele, ou ela, prometem trabalhar durante o ano.
Uma vez que os preços iniciais eram apenas estimativas improvisadas, uma rede de conselhos ‘diretamente democráticos’ deve inserir no computador todas as listas de consumo e compromissos de trabalho, de modo a gerar um conjunto aperfeiçoado de preços que resultará em níveis planejados de produção e consumo (oferta e demanda) próximos ao equilíbrio. Depois, então, tal lista aperfeiçoada é publicada, o que dá início a uma segunda “iteração” do processo: agora todos devem reescrever novamente suas listas de consumo e compromissos de trabalho, de acordo com os novos preços. Todo o procedimento é repetido várias vezes até oferta e demanda estarem finalmente equilibradas. Eventualmente, todos votam para escolher entre alguns planos possíveis.
Em seus discursos e escritos, Albert e Hahnel narram esse interessante processo para mostrar o quão atrativo e plausível seu sistema pode ser. Mas, para muitas pessoas – dentre as quais me incluo – o efeito é exatamente oposto. Ao contrário de uma demonstração precisa de como poderia ser o cálculo econômico na ausência de mercados ou estados tal descrição indica que, se não impossível em teoria, seu funcionamento fica, pelo menos, impossível de imaginar. E a Parecon é, em si mesma, uma concessão ao ponto de vista purista, uma vez que viola o princípio “de cada qual de acordo com sua capacidade, a cada qual de acordo com sua necessidade” – não seria permitido que o consumo individual requisitado excedesse seu compromisso de trabalho. Mas sem essa estipulação, é claro, os planos não avançariam de forma alguma.
A questão não é que uma economia de larga escala sem estado e sem mercado “não funcionaria”. Na ausência de algum mecanismo coordenador, como o de Albert e Hahnel, ela sequer existiria. Portanto, o problema do cálculo econômico é algo que temos que levar muito a sério se queremos contemplar algo melhor do que o status quo.
Mas e sobre a outra alternativa? Por que não uma economia centralmente planejada onde a função do cálculo econômico fica por conta dos experts acumuladores de informação – democraticamente responsáveis, esperamos. Temos, na verdade, exemplos históricos desse tipo de sistema, apensar de estarem, é claro, longe de serem democráticos. Economias centralmente planejadas alcançaram algumas realizações: quando o comunismo chegou ao países pobres e rurais, como a Bulgária ou Romênia, eles foram capazes de se industrializar rapidamente, eliminar o analfabetismo, elevar os níveis educacionais, modernizar as relações de gênero, e eventualmente garantir que a maioria da população tenham habitações básicas e assistência médica. Esse sistema também pode aumentar a produção per capita bastante rápido, para se dizer, do nível de um atual Laos para uma atual Bósnia; ou do nível do Yemen ao do Egito.
Mas, para além dessas conquistas, o sistema enfrentou problemas. Aqui, uma nota introdutória se faz necessária: Uma vez que a direita neoliberal tem o hábito de medir o sucesso de uma sociedade por meio da abundância de seus bens de consumo, a esquerda radical tem a tendência a adotar uma postura na qual nega que esse tipo de coisa tenha alguma relevância política. Isso é um erro. O problema com as prateleiras do supermercado cheias é de que elas não são o bastante – não que sejam indesejadas ou triviais. Os cidadãos dos países comunistas encaravam a escassez, a baixa qualidade e a uniformidade das mercadorias não como meros inconvenientes, mas como violações de seus direitos básicos. Como
um antropólogo da Hungria Comunista escreveu, “mercadorias de uma produção estatal-socialista... passaram a ser vistas como evidencias da falência da modernidade estatal-socialista e, mais do que isso, da negligencia do regime e até do tratamento ‘inumano’ de seus cidadãos”.
O desleixo com a oferta de suprimentos, na verdade, era popularmente sentido como uma traição da própria missão humanista do socialismo. Um
historiador da Alemanha Oriental cita as petições que os consumidores comuns enviavam ao estado: “Realmente não está no espírito do ser humano, enquanto o centro da sociedade socialista, quando tenho que economizar por anos para comprar um Trabant e então não poder usar meu carro por mais de um ano porque faltam peças de reposição no mercado!”, desabafou. Outro escreveu: “Quando leio na imprensa socialista ‘máxima satisfação para os anseios do povo e assim por diante’ e... ‘tudo em benefício do povo’, chego a me sentir enjoado”. Em diferentes países e linguagens através da Europa, cidadãos usaram praticamente as mesmas expressões para evocar a imagem das mercadorias de baixa qualidade que eram “empurradas” para eles.
Dentre os itens que várias vezes estiveram indisponíveis na Hungria por conta do mau planejamento estavam “o utensílio de cozinha usado para fazer o macarrão húngaro”, “tampas de ralo que se encaixavam nas tubulações em estoque; e a caixa de metal necessária para a fiação elétrica nos novos prédios de apartamentos”. Como foi observado por um editorial de jornal na década de 60, essas coisas “não parecem ter importância até o momento em que alguém precisa delas, e de repente elas se tornam muito importantes!”.
E em um nível geral, as melhores estimativas mostram os países comunistas constantemente desabando por detrás da Europa Ocidental: a renda per capita da Alemanha Oriental, que era ligeiramente superior que a das regiões da Alemanha Ocidental antes da Segunda Guerra Mundial, nunca conseguiu se recuperar em termos relativos no pós-guerra e continuamente perdeu fôlego de 1960 em diante. No fim dos anos 80 ela representava menos do que 40% do nível de desenvolvimento da Alemanha Ocidental.
Diferentemente de uma economia imaginária sem estados ou mercados, as economias comunistas tinhamum mecanismo de cálculo econômico. Ele apenas não funcionou como se esperava. Qual foi o problema?
Para a maioria dos economistas ocidentais, a resposta é simples: o mecanismo era muito desajeitado. Nesta narrativa, o problema tem a ver com a “mão invisível”, a expressão que Adam Smith usou apenas de passagem, mas que comandou os escritores posteriores à reinterpretação do papel dos preços, oferta, e demanda na distribuição dos recursos. Smith tinha originalmente invocado o sistema de preços para explicar porque as economias de mercado exibiam uma aparente ordem, ao invés do caos – porque, por exemplo, qualquer mercadoria desejada poderia geralmente ser encontrada à venda, mesmo que nenhuma autoridade central tenha vislumbrado a necessidade dela ser produzida.
Mas no fim do Século XIX, as ideias de Smith foram formalizadas pelos fundadores da economia neoclássica, uma tradição cujas ambições explicativas eram muito maiores. Eles escreveram equações representando compradores e vendedores como vetores de oferta e demanda: quando a oferta excedia a demanda em algum mercado específico, o preço caía; quando a demanda excedia a oferta, ele subia. E quando oferta e demanda se igualavam, o mercado em questão era considerado em “equilíbrio” e os preços eram considerados “preços equilibrados”.
Para a economia como um todo, com seus incontáveis e interligados mercados, as coisas não eram bem assim até 1954 quando os futuros vencedores do Prêmio, Nobel Kenneth Arrow e Gérard Debreu, desenvolveram o que então foi celebrada como a memorável descoberta da teoria do “equilíbrio geral” – um achado que, nas palavras de James Tobin, “repousa exatamente sobre o núcleo da base científica da teoria econômica”. Eles provaram matematicamente que, sob certas premissas específicas, livres mercados eram capazes de gerar um conjunto de potenciais preços equilibrados que poderiam balancear oferta e demanda em todos os mercados simultaneamente – e a alocação resultante de recursos seria, em um termo importante, “ótima”: ninguém poderia fazer melhor sem piorar alguma coisa para alguém.
A moral que pode ser extraída dessa descoberta era de que os preços não eram simples ferramentas de mercado que as economias usavam para criar certo grau de ordem e racionalidade. Em vez disso, os preços que eram gerados pelos mercados – se tais mercados fossem livres e desimpedidos – eram ótimos, e resultavam numa alocação de recursos de eficiência maximizada. Se os sistemas comunistas não estavam funcionando, então, era porque o estranho e falível mecanismo de planejamento não podia alcançar essa solução otimizada.
Essa narrativa repercutiu nos instintos mais profundos da profissão econômica. As historinhas dos manuais de economia explicando porque o salário mínimo ou o controle sobre a renda acabam por tornar as coisas piores para todos são destinadas a mostrar que a oferta e a demanda ditam os preços a partir de uma lógica superior, desafiada pelos mortais por sua própria conta e risco. Essas histórias são análises de “equilíbrio parcial” – elas apenas mostram o que acontece em um mercado particular, artificialmente separado daqueles outros mercados que o cercam. O que Arrow e Debreu forneceram, acreditavam os economistas, era uma prova de que essa lógica se estende para a economia como um todo, com todos seus mercados interligados: uma teoria do equilíbrio geral. Em outras palavras, era uma prova de que no fim, os preços do livre mercado orientarão o conjunto da economia para seu ponto ótimo.
Assim, quando os economistas ocidentais desembarcaram no antigo bloco soviético após 1989 para ajudar na transição pós-socialista, seu principal mantra, repetido à exaustão, era “Corrijam os preços”.
Mas um grande volume de evidencias contrárias foi acumulada nesse meio tempo. Na época do colapso soviético, o economista Peter Murrell publicou um artigo no Journal of Economic Perspectives analisando os estudos empíricos sobre a eficiência nas economias planificadas soviéticas. Tais estudos falharam consistentemente em dar apoio à análise neoclássica: praticamente todos descobriram que, pelo padrão neoclássico de mensuração de eficiência, as economias planificadas se saíram tão bem ou ainda melhor que as economias de mercado.
Murrell implorou que seus leitores deixassem seus preconceitos de lado:
A uniformidade e o conteúdo dos resultados irão surpreender muitos leitores. Eu estava, e estou, surpreso com a natureza destes resultados. Dado sua inconsistência com as doutrinas em questão, existe uma tendência de descartá-los sob motivos metodológicos. Entretanto, tal descarte se torna cada vez mais difícil quando encaramos um acúmulo de resultados consistentes de uma variedade de fontes.
Primeiro ele reavaliou dezoito estudos sobre eficiência técnica: o grau de produção de uma empresa a partir de seu nível máximo de tecnologia. Casando estudos sobre empresas centralmente planejadas com estudos sobre empresas capitalistas, e a partir da mesma metodologia, ele comparou os resultados. Um artigo, por exemplo, apontava um nível de 90% de eficiência em empresas capitalistas; outro, usando o mesmo método, encontrou um nível de 93% em empresas soviéticas. Os resultados continuaram da mesma forma: 84% versus 86%, 87% versus 95%, e assim por diante.
Então Murrell examinou os estudos sobre eficiência alocativa: o grau em que investimentos são alocados entre as firmas de modo a maximizar a produção total. Um artigo descobriu que uma realocação totalmente otimizada dos investimentos poderia aumentar a produção soviética total apenas em 3% ou 4%. Outro descobriu que aumentando a eficiência soviética até o padrão dos EUA o resultado seria um incremento máximo de 2% da produção total. Um terceiro estudo produziu uma série de estimativas em torno de 1,5%. O maior número encontrado em qualquer estudo sobre a economia soviética foi 10%. Como Murrell notou, tais resultado dificilmente corroborariam “o encorajamento para a derrubada de todo um sistema socioeconômico”. (Murrell não foi o único economista a noticiar essa anomalia: um artigo intitulado “Por que a economia soviética é tão eficiente alocativamente?” apareceu na publicação Soviet Studies mais ou menos no mesmo período.)
Dois microeconomistas alemães testaram a hipótese “amplamente aceita” de que “os preços em uma economia planificada são conjuntos de razões de troca arbitrários sem nenhuma relação com a escassez relativa ou valorações econômicas, [ao passo que] os preços dos mercados capitalistas estão próximos aos níveis de equilíbrio”. Eles empregaram uma técnica que analisa a distribuição dos investimentos de uma economia entre as indústrias a fim de mensurar o quão esse padrão foge do que seria esperado em uma economia com os preços neoclássicos perfeitamente otimizados. Examinando dados das Alemanhas Oriental e Ocidental de 1987, eles chegaram a um “resultado espantoso”: a divergência era de 16,1% na Ocidental e 16,5% na Oriental, uma diferença banal. A diferença em favor do Ocidente, escreveram, era maior nos setores da manufatura, onde deveria existir algo como condições competitivas. Mas na maior parte da economia da Alemanha Ocidental – que então vinha sendo mundialmente celebrada como Modell Deutschland – monopólios, taxas, subsídios e tudo mais, deixaram, na verdade, sua estrutura de preços tão distantes da “eficiência” ótima quanto estava o moribundo sistema comunista atrás do Muro de Berlim.
O modelo neoclássico também foi desmistificado pelos numerosos experimentos que falharam com versões mais mercantilizadas do socialismo no Leste Europeu. A partir de meados da década de 1950, intelectuais e economistas reformistas da região pressionaram a introdução de mecanismos de mercado a fim de racionalizar a produção. Reformas foram tentadas em países com vários graus de seriedade, incluindo a abortiva Primavera de Praga. Mas o país que foi mais longe nessas experiências foi a Hungria, que inaugurou seus “novos mecanismos econômicos” em 1968. As empresas ainda eram controladas pelo estado, mas era esperado que elas comprassem e vendessem no mercado aberto e maximizassem seus lucros. Os resultados foram desapontadores. Ainda que nos anos 1970 a fraca economia de consumo húngara tenha sido apelidada pelos correspondentes internacionais de “os quartéis mais felizes do bloco soviético”, seu deprimente crescimento de produtividade não deslanchou e a escassez permaneceu sendo comum.
Se todos esses fatos e descobertas representam um motivo para duvidar da narrativa neoclássica, existe outro motivo ainda mais fundamental: os economistas descobriram buracos em sua própria teoria. Nos anos seguintes à elaboração por Arrow e Debreu de sua famosa prova de que livres mercados sob as condições certas poderiam gerar preços ótimos, teóricos (incluindo o próprio Debreu) revelaram algumas características preocupantes do modelo. Descobriu-se que tais economias hipotéticas geravam múltiplos esquemas de preços equilibrados possíveis, e não havia nenhum mecanismo que poderia garantir que uma economia que se assentasse sobre determinado esquema não passasse por longos ou infinitos caóticos ciclos de tentativa e erro. Ou pior, os resultados dos modelos não podiam suportar muito relaxamento em relação a seus pressupostos iniciais, nitidamente irrealistas; por exemplo, sem os mercados perfeitamente competitivos – que são virtualmente inexistentes no mundo real – não havia motivo para se esperar equilíbrio algum.
Mesmo o refrão liberal de que as intervenções do governo se justificam pelas “falhas no mercado” – anomalias específicas oriundas dos pressupostos presentes no modelo Arrow-Debreu – perdeu o compasso por conta de outra descoberta nos anos 1950: a “teoria geral do segundo melhor”. Introduzido por Richard Lipsey e Kelvin Lancaster, o teorema prova que mesmo se forem aceitos os pressupostos idealizados do modelo padrão, tentativas de corrigir as “falhas do mercado” e as “distorções” (como tarifas, controle de preços, monopólios ou fatores externos) provavelmente tornariam as coisas piores do que melhores, enquanto todas as outras falhas de mercado permanecem sem correção – que sempre será o caso em um mundo de endêmica competição imperfeita e informação limitada.
Numa ampla revisão da “falência da teoria do equilíbrio geral”, o economista Frank Ackerman [1] concluiu:
A história sobre Adam Smith, a mão invisível, e os méritos dos mercados, impregnam os livros-texto introdutórios, o ensino nas salas de aula, e o discurso político contemporâneo. O fundamento intelectual dessa história repousa no equilíbrio geral... Se o fundamento da história econômica preferida de todos está sabidamente doentio... então os economistas devem alguma explicação ao mundo.
A questão é: se uma história determinística sobre livres mercados gerando preços ótimos, levando a uma maximização dos resultados, não é mais viável, então a falência das economias planificadas dificilmente pode ser atribuída a esses fatores. À medida que os sistemas comunistas entravam em colapso no Leste Europeu, os economistas que haviam perdido a fé na narrativa neoclássica começaram a argumentar que uma explicação alternativa era necessária. O principal teórico desse grupo foi Joseph Stiglitz, que ficou famoso por seu trabalho sobre a economia da informação. Seus argumentos se articularam com outros dissidentes da abordagem neoclássica, como o eminente professor de economias planificadas húngaro, János Kornai, e economistas evolucionários como Peter Murrell.
Todos eles indicam certo número de características, amplamente ignoradas pela escola neoclássica, que se encaixam melhor à capacidade das economias de mercado para evitar os problemas que assolam os sistemas centralmente planejados. Os aspectos por eles enfatizados diferem entre si, mas todos tendem a surgir de um fato bastante simples: nos sistemas de mercado, as empresas são autônomas.
Isso significa que dentro dos limites da lei; uma empresa pode entrar no mercado, escolher seus produtos e métodos de produção, interagir com outras empresas e indivíduos, e deve fechar se não conseguir se manter com recursos próprios. Como um manual de economia planificada indica, em sistemas de mercado o pressuposto é “que uma atividade pode ser exercida a menos que seja expressamente proibida”, ao passo que nos sistemas planificados “o pressuposto corrente na maioria das esferas da vida econômica é de que uma atividade não deve ser exercida a menos que uma permissão da autoridade competente tenha sido obtida”. A fixação neoclássica com a garantia de que as empresas exerçam sua autonomia em um ambiente de laissez-faire – que as restrições às trocas voluntárias sejam minimizadas ou eliminadas – fica basicamente fora de questão.
Assim, a livre entrada e as múltiplas fontes autônomas de capital significam que qualquer um com novas ideias de produção pode buscar recursos para pôr em prática suas propostas sem encarar nenhum veto por parte do aparato planejador. Como resultado, elas têm uma chance muito maior de obter recursos para testar suas ideias. Isso provavelmente leva a um maior desperdício, inerente aos experimentos que falham – mas também a uma grande ampliação do aperfeiçoamento dos produtos e processos, e um aumento constante do desenvolvimento tecnológico e crescimento econômico.
A autonomia empresarial para escolher os produtos e métodos de produção significa que eles podem se comunicar diretamente com seus consumidores e adequar seus resultados às suas necessidades – e com o livre acesso, os consumidores podem escolher entre a mercadoria de diferentes produtores: nenhuma agência é necessária para dizer o que precisa ser produzido. Para ilustrar a relativa eficiência informacional desse tipo de sistema, Stiglitz citou um contrato do Departamento de Defesa para a produção de camisetas brancas lisas: na proposta de licitação, a descrição física das camisetas desejadas se entendeu por trinta páginas. Em outras palavras, uma agencia centralizada jamais poderia estudar e depois especificar cada característica desejada de cada produto.
Enquanto isso, economistas do Leste Europeu perceberam que uma precondição essencial para as empresas serem verdadeiramente autônomas era a existência de um mercado de capital – e isso ajudava a explicar o insucesso das reformas orientadas pelo mercado na Hungria. Na busca de uma explicação para a persistência da escassez sob o novo sistema de mercado, o economista húngaro János Kornai tinha identificado um fenômeno que ele chamou de “leve restrição orçamentária” – uma situação na qual o estado continuamente transfere recursos para empresas deficitárias a fim de evitar sua falência. Tal fenômeno, argumentou, era o que estava por trás do problema da escassez na Hungria: na esperança de sempre serem salvas, as empresas operavam praticamente sem restrições orçamentárias, e assim praticavam ilimitadas demandas por bens materiais e de capital, causando crônicos gargalos produtivos.
Mas por que o estado continuava resgatando essas empresas com problemas? Não era, a princípio, porque as autoridades húngaras se opunham à quebra das empresas. Na verdade, quando as quebras aconteciam, a liderança comunista as tratavam como assuntos públicos, para demonstrar seu comprometimento com um sistema econômico racional.
A resposta definitiva era a ausência de um mercado de capital. Em uma economia de mercado, uma empresa com problemas pode vender parte de suas operações para outra firma. Ou poderia captar capital de credores ou investidores, se pudesse convencê-los do potencial para melhorar seu desempenho. Mas na ausência de um mercado de capital, as únicas opções práticas eram a bancarrota ou o salvamento por meio de bailouts. Constantes bailouts eram o preço que a autoridade húngara era forçada a pagar para evitar altas e dispendiosas taxas de falências empresariais. Resumindo, mercados de capital proporcionam um modo racional de lidar com a turbulência causada pelas duras restrições orçamentárias nos sistemas de mercado: quando uma firma precisa gastar mais do que arrecada, ela pode apelar para empréstimos ou investidores. Sem um mercado de capital, essas opções ficam excluídas.
À medida que a resistência ao comunismo crescia, aqueles no Leste Europeu que queriam evitar o retorno do capitalismo aprenderam boas lições. Em 1989, os dissidentes economistas reformistas poloneses Wlodzmierz Brus e Kazimierz Laski – ambos socialistas convictos e discípulos do renomado marxista-keynesiano Michal Kalecki – publicaram um livro examinando as previsões para a reforma do Leste Europeu. Os dois tinham sido influentes defensores das reformas democráticas e dos mecanismos econômicos socialistas desde os anos 1950.
A conclusão a que chegaram era que para ter um mercado socialista racional, empresas de propriedade pública deveriam ser criadas autonomamente – e isso exigiria um mercado de capital socializado. Os autores deixaram claro que isso deveria levar a um reordenamento fundamental da política econômica dos sistemas do Leste – e, de fato, das tradicionais noções de socialismo. Escrevendo às vésperas das agitações que derrubariam o comunismo, eles expuseram sua visão: “o papel da propriedade estatal deveria estar separado do estado enquanto autoridade investida da administração.... Empresas... têm que se afastar não apenas do estado em sua função mais ampla, mas também uma das outras”.
A noção esboçada por Brus e Laski era inovadora: uma constelação de empresas autônomas, financiadas por uma multiplicidade de bancos ou fundos de investimento autônomos, todas competindo e interagindo em um mercado – ainda que todas de propriedade pública.
Tudo isso serve de subsidio para se levantar a questão crítica sobre o lucro.
Existem dois modos para se pensar sobre a função dos lucros no capitalismo. Na concepção marxista, a busca incansável dos capitalistas por lucro dá ritmo e forma ao crescimento econômico, fazendo dele o definitivo “motor do sistema” – mas é tido como um motor errático e arbitrário, que deveria ser substituído por algo mais racional e humano. Na corrente econômica dominante, por outro lado, os lucros são entendidos simplesmente como um sinal benigno, transmitindo informações para as empresas e empreendedores sobre como satisfazer as necessidades da sociedade de maneira mais eficiente.
Cada uma dessas versões contem algo de verdadeiro. Observe a descrição da vertente dominante. Sua lógica é simples e direta: o lucro de uma empresa é o valor de mercado dos produtos que ela vende menos o valor de mercado dos insumos que ela compra. Então a busca pelo lucro leva a empresa a maximizar sua produção das mercadorias socialmente desejadas ao passo que economiza no uso das matérias primas escassas.
Mas essa lógica só se sustenta à medida que o valor de mercado de um item seja, na verdade, uma boa medida de seu valor social. Essa premissa é valida? Os esquerdistas sabem o suficiente para zombar dessa ideia. A história do capitalismo é um compêndio de mercadorias com preços mal estimados. Os capitalistas não são apenas dotados de uma riqueza de truques e manobras para inflacionar o valor de mercado dos produtos que vendem (através da propaganda, por exemplo) e depreciar o valor dos insumos que têm de comprar (trabalho de baixa qualificação, por exemplo). Mas o capitalismo em si produz, sistematicamente, preços para bens cruciais que guardam pouca relação racional com seu valor social marginal: pense nos planos de saúde, recursos naturais, taxas de juros, salários.
Então, se o lucro é um sinal, invariavelmente vem misturado com muito ruído. Mas ainda assim, existe um importante sinal ali. A maioria das mercadorias na economia não são como os planos de saúde ou os recursos naturais; elas são mais banais – como clipes de papel, chapas de metal, ou TVs de tela plana. Os preços relativos dessas mercadorias parecem funcionar como guias razoáveis para seu relativo valor social marginal. Quando eles se referem a esta porção dos insumos e produtos das empresas – digamos, uma companhia siderúrgica que compra ferro e o vende na forma de aço – a busca pelo lucro verdadeiramente faz com que os capitalistas queiram produzir coisas que as pessoas desejam da forma mais eficiente possível. São aqueles bens com valor mal estimados – trabalho, recursos naturais, informação, finanças, risco, e outros – que produzem a irracionalidade do lucro.
Em outras palavras, sob o capitalismo, as empresas podem aumentar seus lucros pela produção eficiente do que as pessoas querem. Mas elas também podem aumentá-los empobrecendo seus trabalhadores, pilhando o meio ambiente, enganando seus consumidores, ou endividando a população.
A resposta padrão para esse dilema é o que podemos chamar de solução social-democrata: deixe que as empresas busquem seus lucros privados, mas use a intervenção estatal para impedir que elas façam isso de forma nociva à sociedade. Banir a poluição, garantir direitos aos trabalhadores, defender o consumidor contra fraudes, combater a especulação. Essa agenda não é nada desprezível. O teórico social Karl Polanyi viu isso como parte do que chamou de um longo “duplo movimento” que está em andamento desde o início da revolução industrial. Polanyi argumenta que o capitalismo liberal sempre teve uma tendência de transformar tudo em mercadoria. Pela necessidade de a produção ser “organizada através de um mecanismo autorregulatório de trocas”, ela demanda que “homem e natureza devam ser trazidos à sua órbita; eles devem se sujeitar à oferta e demanda, isso é, serem tratados como mercadorias, como bens produzidos para serem postos à venda”.
Mas essa tendência mercantilizante sempre produziu seu oposto dialético, um contramovimento a partir da sociedade, buscando a desmercantilização. Assim, o duplo movimento de Polanyi era “a ação de dois princípios organizadores na sociedade, cada um deles impondo a si mesmo objetivos institucionais específicos, tendo o apoio de forças sociais definidas e utilizando distintos métodos próprios”:
Um era o princípio do liberalismo econômico, mirando o estabelecimento de um mercado autorregulatório, contando com o apoio das classes comerciais, e ostensivamente usando como métodos o laissez-faire e o livre mercado; e o outro era o princípio da proteção social, que busca a conservação do homem, da natureza e também da organização produtiva, contando com o apoio daqueles que são afetados de forma mais imediata pela ação deletéria do mercado – primeiramente, mas não de forma exclusiva, as classes trabalhadoras e campesinas – e usando legislação protetiva, associações restritivas, e outros instrumentos de intervenção como métodos.
Depois da Segunda Guerra, a pressão desse contramovimento fez da desmercantilização o motor implícito das políticas domésticas por todo o mundo industrializado. Partidos da classe trabalhadora, fortemente vulneráveis à pressão das camadas inferiores, estiveram no governo por mais de 40% do tempo nas décadas do pós-guerra – comparado com cerca de 10% no entreguerras, e quase nunca antes disso – e o “contágio da esquerda” forçou os partidos de direita a um consentimento defensivo. Educação, saúde, habitação, previdência, lazer, assistência à infância, a própria subsistência, e o mais importante, o trabalho assalariado: essas questões foram gradualmente removidas do âmbito de influência do mercado, transformados de bens que requerem dinheiro, ou artigos que são vendidos e comprados na base da oferta e demanda, em direitos sociais e objetos da decisão democrática.
Isso, pelo menos, era o programa social-democrata máximo – e em certos períodos e lugares no pós-guerra foram conquistas dramáticas.
Mas a solução social-democrata é instável – e é aí que entra a concepção marxista, com sua ênfase na busca do lucro como o motor do sistema capitalista.
Existe uma contradição fundamental entre aceitar que a busca pelo lucro do capitalista seja o motor do sistema, e acreditar que você pode sistematicamente domar e reprimi-la através de políticas públicas e regulações. Na descrição marxista clássica, a contradição é diretamente econômica: políticas que reduzem as taxas de lucro de forma demasiada levarão à queda do investimento e a uma crise econômica. Mas a contradição também pode ser política: os capitalistas sedentos por lucro usarão seu poder social para obstruir as políticas necessárias. Como você pode ter um sistema orientado por indivíduos que maximizam seu fluxo de caixa e ainda esperar sustentar normas, regras, leis e regulações reprimidoras do lucro necessárias para a manutenção do bem-estar coletivo?
O que se precisa é de uma estrutura que permita que empresas autônomas produzam e comercializem mercadorias para o mercado, visando gerar um superávit do resultado sobre a origem – ao passo que tais empresas sejam mantidas públicas e evitando que seu ganho seja apropriado por uma pequena classe de capitalistas. Sob tal tipo de sistema, os trabalhadores podem assumir qualquer grau de controle que desejem sobre a gestão das empresas, e que qualquer “lucro” possa ser socializado – isso é, ele pode verdadeiramente funcionar como um indicador, ao invés de uma força motriz. Mas a precondição de tal sistema é a socialização dos meios de produção – estruturados de forma a preservar a existência de um mercado de capitais. Como tudo isso pode ser feito?
Comece com o básico. O controle privado sobre a infraestrutura produtiva da sociedade é definitivamente um fenômeno financeiro. É pelo financiamento dos meios de produção que os capitalistas exercem seu controle, como uma classe ou indivíduos. O que seria preciso, então, é de uma socialização das finanças – ou seja, um sistema comum e coletivo de financiamento dos meios de produção e de crédito. Mas, o que isso significa na prática?
Pode-se dizer que as pessoas possuem dois tipos de ativos. Ativos “pessoais” incluem casas, carros ou computadores. Mas os ativos financeiros – posses sobre fluxos monetários, como ações, títulos, e fundos mútuos – são o que financiam a infraestrutura produtiva. Suponha que um fundo comum público tenha sido estabelecido, para realizar o que podemos eufemisticamente chamar de “compra compulsória” de todos os ativos financeiros de posses privadas. Ele poderia, por exemplo, “comprar” a participação de alguém em um fundo mútuo à preço de mercado, depositando o pagamento na conta bancária dessa pessoa. No fim desse processo, o fundo comum pode possuir todos os antigos ativos financeiros particulares, ao passo que toda a riqueza dos indivíduos teria sido convertida em depósitos bancários (mas com esses bancos sendo agora de propriedade comum, uma vez que o fundo comum possui todas as cotas de participação).
Ninguém perdeu nenhum valor; eles simplesmente venderam suas ações e títulos. Mas as consequências são de grande alcance. Os meios de produção e os créditos da sociedade constituem agora os ativos de um fundo público, enquanto os saldos dos indivíduos são agora passivos. Em outras palavras, o trabalho de intermediação entre as poupanças dos indivíduos e os ativos produtivos físicos da sociedade que costumava ser feita por bancos capitalistas, fundos mútuos, e assim por diante, foram socializados. O fundo comum pode agora restabelecer um mercado de capital “domado”, de base social, com uma multiplicidade de bancos socializados e fundos de investimento possuindo e alocando capital entre os meios de produção.
O exemplo aqui é que a transformação para um sistema diferente não precisa ser catastrófica. A situação que estou descrevendo, é claro, poderia ser revolucionária – mas ela não precisaria envolver um total colapso da antiga sociedade e a conjuração prometeica de algo completamente irreconhecível.
Ao fim do processo, as empresas não teriam mais donos individuais que buscam maximizar seus lucros. Ao invés disso, elas seriam propriedade da sociedade como um todo, da mesma forma que qualquer excedente (“lucros”) que elas possam gerar. Uma vez que as empresas ainda comprariam e venderiam no mercado, elas continuariam gerando excedentes (ou déficits) que podem ser usados para avaliar sua eficiência. Mas nenhum dono individual embolsaria, de fato, esses excedentes, fazendo que ninguém tenha interesses particulares em perpetuar ou explorar a falsa valorização de mercadorias que é endêmica ao capitalismo. A “solução social-democrata” que anteriormente era uma contradição – frustrando seletivamente a motivação-lucro para manter o bem comum, enquanto sistematicamente dependia dela como mecanismo do sistema – poderia então ser reconciliada.
Para o mesmo fim, os rendimentos das poupanças individuais poderiam ser fixados à determinado limite de renda, e para além desse nível, poderiam simplesmente compensar a inflação. (Ou o excedente social poderia ser dividido igualmente entre todos e ser simplesmente pago na forma de um dividendo social.) Isso poderia significar não exatamente a eutanásia do rentista, mas do “interesse” rentista na sociedade. E, ao passo que os indivíduos ainda poderiam ser livres para começar um negócio, e uma vez que suas empresas alcançassem certo tamanho, idade e importância, eles poderiam “virar públicas”: ser vendidas por seus donos num mercado socializado de capital.
O que estou descrevendo, em certo sentido, é o ápice de uma tendência que vem ocorrendo no capitalismo há séculos: a crescente separação entre propriedade e controle. Já em meados do Século XIX, Marx maravilhou-se com a proliferação do que agora chamamos de corporações: “Sociedades anônimas em geral – desenvolvidas a partir do sistema de crédito – fortaleceram a tendência de separar esse trabalho de gerência enquanto função da propriedade do capital, seja ele de posse própria ou emprestado. Da mesma forma como a sociedade burguesa testemunhou a separação das funções de juiz e administrador da posse fundiária, atributos estes da era feudal”. Marx viu grande significado nesse desenvolvimento: “É a abolição do capital como propriedade privada no próprio quadro da produção capitalista.”
Na década de 1930 essa “propriedade privada socializada” se tornou a forma dominante de produção no capitalismo americano, como Adolf Berle e Gardiner Means indicaram em The Modern Corporation and Private Propoerty. O modelo administrativo-corporativo pareceu enfrentar um desafio nos anos 1980 quando os proprietários capitalistas, insatisfeitos com as minguadas taxas de lucro, lançaram uma ofensiva contra o que eles identificaram como frouxos e complacentes gestores corporativos. Essa rixa titânica intra-classe pelo controle das corporações durou mais do que uma década. Mas no fim dos anos 1990, o resultado foi um compromisso auto-interessado dos dois lados: os CEOs mantiveram sua autonomia em relação ao mercado financeiro, mas abraçaram a ideologia da “valorização do acionista”; seus pacotes de ação eram construídos de forma mais sensível ao lucro da empresa e do desempenho no mercado de ações, mas também massivamente inflacionados. Na verdade, nenhum desses tecnicismos resolveu o problema da separação entre propriedade e controle, uma vez que novos esquemas de pagamento nunca chegaram realmente perto de conciliar os interesses pecuniários dos gestores e dos proprietários. Um estudo abrangente sobre a remuneração dos executivos de 1936 até 2005 feito pelo MIT e por economistas do Federal Reserve
descobriu que a correlação entre o desempenho das empresas e a remuneração total de seus executivos era insignificante – não apenas na época do gerencialismo da metade do século, mas através de todo o período.
Em outras palavras, o laboratório capitalista vem realizando, por séculos, experimentos para testar se um sistema econômico pode funcionar quando ele rompe o link direto entre os lucros de uma empresa e a remuneração destinada a seus controladores. O experimento foi um sucesso. No capitalismo contemporâneo, com sua radical separação entre propriedade e controle, não faltam exemplos de defeitos e patologias, mas a falta de atenção ao lucro não foi um deles.
Como tais empresas socializadas devem ser governadas? Uma resposta completa para essa questão escapa em muito o escopo de um artigo como este; descrever minuciosamente os estatutos e regimentos de empresas imaginárias é exatamente a espécie de livro de receitas comtista que Marx acertadamente ridicularizou. Mas a questão básica está suficientemente clara: uma vez que essas empresas compram e vendem no mercado, seus desempenhos podem ser racionalmente avaliados. Uma empresa pode ser completamente controlada por seus trabalhadores, caso no qual eles poderiam simplesmente recolher todo seu rendimento, depois de pagar pelo uso do capital [2]. Ou ela pode ser “possuída” por uma entidade no mercado de capital socializado, com uma administração escolhida por essa entidade e um forte sistema de co-determinação por parte dos trabalhadores para contrabalanceá-la no interior da empresa. Esses gestores e “donos” podem ser avaliados pelos retornos relativos que a empresa gera, mas eles não têm nenhum direito de propriedade privada sobre a massa absoluta de lucros [3]. Se as expetativas do desempenho futuro precisem ser de alguma forma “objetivamente” julgadas, isso seria algo que o mercado de capital socializado pode fazer.
Tal programa não constitui uma utopia; ele não proclama o Ano Zero ou trata a sociedade como uma lousa em branco. O que ele tenta é esboçar um mecanismo econômico racional que negue a busca do lucro como prioridade acima das realizações das necessidades humanas. E nem descarta outras mudanças, mais básicas, na forma com os humanos interagem entre si e com o meio ambiente – ao contrário, ele minimiza as barreiras para novas mudanças.
Em tributo à Isaac Deutscher, a historiadora Ellen Meiksins Wood louvou sua “visão equilibrada do socialismo, que reconhece seu compromisso com a emancipação humana sem alimentar as ilusões românticas de que ele poderia curar todas as mazelas humanas, milagrosamente tornando as pessoas ‘livres’, nas palavras de Shelley, ‘da culpa ou sofrimento’”. O socialismo, escreveu Deutscher, não era o “produto final e perfeito da evolução ou o fim da história, mas apenas o começo da história”. Enquanto a esquerda puder conservar essa base elementar de esperança, ela poderá manter em vista um horizonte para além do capitalismo.
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[1] Nenhum parentesco.
[2] A economia das empresas geridas por trabalhadores é um tópico imenso que levanta uma série de questões institucionais complexas que fogem ao escopo deste artigo. (Ver Governing the Firm de Gregory Dow para uma abordagem abrangente do tema.) Mas em relação à política, o importante a ser notado é que com tais empresas não existiria mais o conflito sistêmico entre um capitalista autônomo ou uma classe gerencial e a massa da população. Existem ainda, é claro, interesses setoriais conflitantes. Mas eles existem independente do modelo de propriedade em questão. Além disso, penso que exista uma boa razão para acreditar que a influência de interesses setoriais paroquiais sobre a política é maior quando existe uma classe capitalista autônoma do que quando ela não existe, uma vez que essa classe tem um interesse intrínseco na manutenção da permeabilidade do estado às minorias auto-interessadas em geral.
[3] Não é preciso assumir que os gerentes devem necessariamente obter recompensas pecuniárias para melhorar seu desempenho. Mas usar essa premissa torna possível uma simples exemplificação matemática de como os gestores podem ser avaliados em relação aos lucros relativos, e não absolutos. Suponha que no início de cada ano as autoridades decidam sobre determinada fração da renda nacional para ser utilizada no pagamento de bônus gerenciais ao fim do ano. O número pode variar em cada ano, mas digamos que este ano seja de 3%. Quando o ano acaba, a renda nacional cresce, junto com o lucro total. Se o lucro total alcança 30% da renda nacional, isso significa que os bônus serão de um décimo do total dos lucros (3%/30%) – o que significa que o pacote de bônus para cada gestor da empresa será igual a um décimo dos lucros dessa empresa. Em um sistema como esse, cada gestor pode ter interesse em melhorar o desempenho lucrativo de sua própria empresa; mas ele não poderá ter nenhum motivo racional para subverter ou questionar qualquer lei geral, norma, costume, ou regulação sobre a limitação de lucros assentada no interesse público, assumindo que sejam aplicadas igualmente a todas as empresas. Novamente, o que importa aqui é o conceito: se existe dinheiro ou consagração como recompensa para o bom desempenho, o princípio é o mesmo.
Seth Ackerman é editor executivo da Jacobin.