13 de dezembro de 2012

A arte do desastre financeiro

Não há, em toda a literatura universal, ensaio que tenha recebido mais belo título que “O Assassinato Considerado como Uma das Belas Artes” (1827), de Thomas de Quincey. Ocorre-me agora que, se De Quincey vivesse hoje, talvez se interessasse por escrever uma continuação ...

John Lanchester


Vol. 33 No. 24 · 15 December 2011

Tradução / Não há, em toda a literatura universal, ensaio que tenha recebido mais belo título que “O Assassinato Considerado como Uma das Belas Artes” (1827), de Thomas de Quincey. Ocorre-me agora que, se De Quincey vivesse hoje, talvez se interessasse por escrever uma continuação: “O Desastre Financeiro Considerado como Uma das Belas Artes”. O material básico talvez não seja tão cativante, mas abunda. Como o megainvestidor americano Warren Buffett já disse mais de uma vez, “só na maré vazante se vê a bunda de quem nada sem roupa.” Crises financeiras e econômicas sempre arrastam com elas um surto de escândalos e revelações. Estamos em plena maré vazante (e vazando) e, francamente, fica-se sem saber por onde começar, tantos são os casos.

Na Grã-Bretanha, quem mostrou as vergonhas foi o banco Northern Rock, que quebrou no outono de 2007, primeira amostra do que seriam as subsequentes quebradeira e Grande Recessão. A novidade mais recente foi a venda do Rock ao Virgin Money, por £747 milhões (1,174 bilhão de dólares). Se os lucros do banco sobem, os dividendos a serem pagos aos contribuintes podem chegar até a £1 bilhão (1,572 bilhão de dólares). Dado que o custo de nacionalizar o banco foi £1,4 bilhão (2,201 bilhões de dólares), e dado que só se vendeu a parte ‘boa’, quer dizer, a parte do banco que se supõe que seja mais solvente, o negócio, embora esteja nas manchetes, não foi lá grande coisa. No melhor cenário, o contribuinte perde £400 milhões (629 milhões de dólares). Antes dos desastres de 2008, parecia muito dinheiro, mas quanto mais se examinam os números, pior a coisa fica.

Por trás da aparente simplicidade da compra do Rock por Richard Branson, do Virgin, jaz uma história muito mais complicada: praticamente todo o dinheiro para o negócio veio do sócio de Branson, W.L. Ross & Co., especialista em companhias em dificuldades e ações em baixa (um dos codinomes de Wilbur Ross é “O Rei das Falências”): £260 milhões de W.L. Ross; £50 milhões de Virgin Money; £50 milhões de um fundo de investimentos de Abu Dhabi. Considere-se antecipadamente perdoado, caro leitor, se não percebeu que, nessa conta, ainda faltam vários milhões para completar os £747 milhões do negócio.

Quer dizer: e o resto do dinheiro? Resposta: o negócio foi, de fato, pago com o próprio capital do novo banco, coisa em torno de £400 milhões (650 milhões de dólares). Ao tempo de seus últimos resultados, o banco Rock tinha 30% de fundos próprios de base (orig. Tier One). Esse número é um quociente de segurança dos bancos; mostra quanto o banco tem de dinheiro próprio: quanto mais alta a porcentagem, mais sólido o banco; os bancos britânicos, hoje, devem estar com 10% de fundos próprios. O Virgin prometera que o novo banco teria 15% de fundos próprios, muito abaixo da margem que se considera segura. Tudo isso significa que muito dinheiro, do negócio, é dinheiro vivo para o comprador. Os compradores estão usando o próprio patrimônio do banco Rock, para ajudar a comprar a banco. É transação frequente no mundo da finança, mas não é negócio que gere tranquilidade para um público já farto, cansado, nauseado de tantas e tão complexas engenharias financeiras.

Em resumo: o negócio do Virgin garante grandes prejuízos para os contribuintes, usa técnicas financeiras exóticas, semelhantes às que causaram o colapso do banco Northern Rock (agora ‘resgatado’) e ‘cria’ um ‘novo’ banco consideravelmente menos sólido que o banco que antes havia. Sob todos os aspectos, é resultado ainda pior que a alternativa preferida de muitos: criar um banco prioritariamente imobiliário. Ou, melhor dizendo: é pior sob todos os aspectos, exceto um: é negócio possível bem aqui e bem agora.

Depois que se anunciou o ‘resgate’ do Virgin, circulou no Parlamento que a Comissão Europeia, em troca da permissão para estatizar o banco Rock, havia imposto um limite de prazo para que o banco permanecesse como propriedade do Estado. (A ideia era que o fato de o Rock Northern passar a ser propriedade do Estado permitia ao banco oferecer garantias aos clientes – e fazer investimentos de risco – contra as quais nenhum banco privado poderia competir.) A data limite para que o Rock fosse devolvido à iniciativa privada era 2013. Ante essa restrição, e somada ao fato de que não havia sobre a mesa ofertas sérias para criar um banco imobiliário, o governo teve de escolher entre um pássaro na mão e um distante rufar de asas no mato. Não creio que tenham tido muita escolha. O contribuinte, compreensivo, foi garfado, mas não se ouviu falar de novo escândalo, por causa do inexorável desdobramento do desastre que sobreveio, em 2007, quando o banco Rock implodiu.

Parece-me que De Quincey, do ponto de vista estético, teria preferido o escândalo do MF Global nos EUA. O personagem principal dessa história é Jon Corzine, cujo nome não é muito conhecido fora dos EUA. Foi o principal executivo do Goldman Sachs, responsável por levar o banco, de parceria privada, para a Bolsa de Valores, fazendo, no processo, um dos maiores lucros de todos os tempos no mundo do capital, para todos os sócios do Goldman. Sabe-se que Corzine tinha o hábito de cumprimentar os colegas dizendo “Paz!” (gosto de pensar que, se eu trabalhasse com ele, cada vez que ele dissesse “Paz!”, eu responderia: “Dinheiro!”). Como principal executivo do Goldman, Corzine embolsou $400 milhões. Depois deixou o banco e mergulhou na política do Partido Democrata; com sua fortuna, comprou para usufruto pessoal um assento de senador pelo Estado de New Jersey, como se faz. Foi senador de 2001 a 2006; depois, foi governador de 2006 a 2010, quando perdeu, na tentativa de reeleger-se, para o Republicano Chris Christie. Então, já tendo percorrido o trajeto do dinheiro para a política, Corzine voltou ao dinheiro: tornou-se presidente de um fundo de derivativos chamado MF Global, com o objetivo declarado de converter a empresa em rival do Goldman.

Muitos já tentaram derrotar o Grupo Goldman. Nenhum caso teve final feliz. O MF Global fazia corretagem – e corretores, na essência, vivem de comprar e vender coisas em nome de clientes. A empresa nasceu de um desmembramento do Grupo Man, que patrocinou o Prêmio Corretor Man, em 2007. James Man foi o mercador e corretor de açúcar que, em 1784, conseguiu o contrato para fornecer rum à Real Marinha Britânica; a firma deixou de negociar com açúcar e passou a dedicar-se ao rum e outras commodities, obteve outros contratos futuros, passou aos derivativos em geral e, afinal, chegou aos serviços financeiros. Firma assim jamais crescerá suficientemente, ou suficientemente depressa para rivalizar com os grandes bancos de investimentos. Corzine, então, por sua conta, arrastou a empresa para os negócios de trading. A esse título fez investimentos gigantescos (leia-se: especulou) em bônus da dívida soberana da União Europeia. Foi como ter apostado pesadamente no futuro dos zepelins, no dia em que o Hindenburg partiu para a última viagem.

Quando sobreveio a crise na eurozona, o valor daqueles investimentos desabaram; para continuar nos negócios, o MF Global teria de poder exibir muito mais dinheiro do que tinha. Não exibiu dinheiro algum e, no dia 31/10, o MF Global requereu falência – e foi exatamente aí que essa história obscena, mas, afinal, rotineira, converteu-se em grande escândalo. O que se viu foi que, além de a empresa estar quebrada, o MF Global tampouco sabia dizer que fim dera ao dinheiro dos clientes pelo qual lhe competia zelar. Na primeira avaliação, faltavam $600 milhões de dólares; hoje, fala-se em rombo de mais de $1,2 bilhão. Atenção: aí não se computam as perdas da empresa: só dinheiro de clientes. E nesse pé estão hoje as coisas.

Por feliz coincidência, a quantidade de dinheiro faltante é quase exatamente igual à quantidade de dinheiro que vazou pelo ralo no nosso terceiro escândalo. Nesse caso, trata-se da empresa japonesa Olympus, fabricante de câmeras fotográficas. No início desse ano, a empresa nomeou um britânico, Michael Woodford, para o posto de novo presidente executivo. Woodford era funcionário da empresa há 30 anos, mas, mesmo nessas circunstâncias, não é frequente que empresas japonesas indiquem ocidentais para a presidência – só se conhece outro caso: Welshman Howard Stringer, presidente da Sony.

O primeiro ato de Woodford na presidência foi interrogar o conselho da empresa sobre vários pagamentos inexplicáveis que haviam sido feitos: $687 milhões pagos a serviços de consultoria, para a compra de uma empresa britânica de equipamentos médicos, pagamento feito por misteriosos intermediários nas Ilhas Cayman e em New York; outro pagamento, de $773 milhões, pela compra de uma empresa de cosméticos, de uma fábrica de contêineres e de um negócio de disposição final de lixo – negócios que, todos eles, haviam perdido 75% do valor ao longo de um ano.

O total de dinheiro envolvido nessas transações bizarras alcançava àquela altura 1,4 bilhão de dólares. Em resposta às interrogações de Woodford, o conselho de administração da Olympus demitiu-o, acusando-o de não compreender a cultura dos negócios à japonesa. A empresa reconheceu que autorizara aqueles sinistros desembolsos, que visavam a encobrir perdas em outros investimentos. A última notícia que se tem sobre o affair diz que polícia e autoridades judiciárias investigam agora uma possível conexão entre a Olympus e a Yakuza – o crime organizado.

A probabilidade de uma ‘conexão gângsteres’, e o fato de envolver a maior quantidade de dinheiro, faz do escândalo Olympus o mais esteticamente denso dentre os escândalos recentes. Mas o detalhe provavelmente mais importante de todo o processo está numa similaridade crucial que une todos esses escândalos.

Três grandes empresas, em três diferentes ramos, em três diferentes países; como traço de ligação, a evidência de que, em todos esses casos, alguém que se aproximasse – qualquer pessoa ou instituição, qualquer terceiro que se aproximasse –, e que contasse exclusivamente com a informação que a mídia distribui, jamais conseguiria saber o que realmente se passava naquelas empresas e naqueles negócios. É precisamente o que De Quincey chama de “uma obscuridade viciosa”.

William Goldman dizia, de todos que viam o cinema como negócio, que “não sabem de nada!” Tudo bem. Parece adequado ao cinema como negócio. Mas não pode(ria) ser adequado ao modo como operam empresas comerciais, cujos sócios são conhecidos, em todas as modernas economias do mundo desenvolvido. Não pode(ria) ser adequado, mas parece ser exatamente o que se vê acontecer nesses escândalos ‘financeiros’: ninguém sabe nada e, se sabe, não conta e ajuda a esconder.

Há tantas notícias tão ruins nas manchetes ‘de economia’ no momento, que parece difícil conseguir algum alento imediato. Pois aqui fica uma conclusão provisória, que pode ser um útil alento: todos esses escândalos têm, em comum, que todos eles mostram, afinal, à vista de todos, que o capitalismo está funcionando muito mal – por mais que as coisas sejam feitas exclusivamente segundo as regras do próprio capitalismo contemporâneo e pelos próprios capitalistas. É boa notícia.

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