22 de junho de 2014

O outro Dia D... e o início da Guerra Fria

Foi a ofensiva de verão do Exército Vermelho na Bielorrússia, em 1944 - um Dia D que o Ocidente esqueceu - que ajudou a acabar com a guerra e redesenhou o mapa da Europa.

David Reynolds

The Guardian

Joseph Stalin e Winston Churchill na Conferência de Yalta, em 1945. Foto: Photoquest/Getty Images

Tradução / Houve dois Dias D em junho de 1944. Os desembarques de Normandia de 6 de junho, a Operação Overlord, tão comovedoramente evocada faz duas semanas, formam parte da memória nacional britânica. O outro dia segue sendo praticamente desconhecido, tanto entre nós como na América. No entanto, foi igualmente importante para concluir a Segunda Guerra Mundial. E também marcou o início da Guerra Fria na Europa.

Na noite de 21-22 de junho de 1944, o Exército Vermelho lançou sua ofensiva de verão na Bielorrússia, aos três anos completos do dia em que Hitler invadiu a União Soviética. Em 1941, os alemães haviam alcançado uma surpresa completa, cercando a milhões de soldados soviéticos e empurrando-os com enorme pressão até Moscou e Leningrado. No entanto, em 1944, o jogo virou. A Operação Bagration, batizada com o nome de um marechal czarista que havia lutado contra Napoleão, atingiu a Wehrmacht sem aviso prévio. Em cinco semanas, o Exército Vermelho avançou 700.000 quilômetros, atravessando Minsk até chegar aos arredores de Varsóvia e rasgando as entranhas do Grupo de Exércitos Centro de Hitler. Qause 20 divisões alemãs foram completamente destruídas e outras 50 seriamente atingidas, um desastre ainda pior que Stalingrado.

Este imponente êxito soviético aconteceu enquanto Overlord continuava estava presa nas sebes e becos da Normandia. Não foi até o final de julho, conforme Bagration ia perdendo gás, quando os exércitos de Eisenhower conseguiram sair e lançarem-se através da França para libertar Paris em 25 de agosto e Bruxelas em 3 de setembro. Em conjunto, Overlord e Bagration atingiram um duplo revés que deixou destruiu o Reich dos Mil Anos. Finalmente, a Alemanha teve de lutar uma guerra em duas frentes no norte da Europa, um pesadelo que Hitler tinha conseguido evitar desde 1939, e o povo alemão já podia ver o que se aproximava. Não é casual que em 20 de julho oficiais dissidentes tentaram de assassinar o Führer em uma tentativa corajosa, mas quixotesca de estabelecer a paz antes que a Alemanha terminasse arruinada.

Bagration ajudou a acabar com a guerra, mas também foi um sinal de coisas futuras. Quando o Exército Vermelho se aproximou de Varsóvia, o Exército do Interior polonês se levantou contra a brutal ocupação nazista. As forças soviéticas estavam exauridas e não podiam se dirigir para uma grande cidade, mas a recusa de Stalin em oferecer apoio uniforme para os poloneses ou permitir que os aviões de abastecimento britânicos e americanos utilizassem aeródromos controlados por soviéticos, enviou uma mensagem arrepiante para os aliados ocidentais.

Grande parte da Polônia havia sido subsumida no antigo império tsarista. Em 1920, os bolcheviques e os poloneses travaram uma guerra brutal pelas fronteiras da Polônia recentemente independente, que viu as tropas polonesas capturar brevemente Kiev antes de serem levadas de volta a Varsóvia. Duas décadas depois, Stalin estava determinado a resolver a questão. Em 1940, ele secretamente massacrou grande parte do corpo de policiais da Polônia em Katyn; quatro anos depois, ele observou alegremente os alemães esmagar a insurgência de Varsóvia - descrevendo seus líderes anti-soviéticos como um "punhado de criminosos que procuram o poder" - antes de invadir o país a seu bel-prazer.

No início de setembro de 1944, com as tropas de Eisenhower entrando nos Países Baixos, parecia que a segunda guerra mundial acabaria no Natal. Mas então os Aliados não conseguiram atravessar o Reno e a frente ocidental ficou atolada. Na memória britânica, o outono de 1944 centra-se na famosa "ponte longe demais" em Arnhem, enquanto que, na frente leste, Stalin fez avanços ainda mais dramáticos, quando o Exército Vermelho esmagou a Romênia e a Bulgária através da Iugoslávia e a Hungria. O líder que, pouco mais de um ano antes, tinha controlado apenas dois terços do seu país agora dominava boa parte do leste europeu.

Durante a Guerra Fria, a conferência de Yalta de fevereiro de 1945 foi muitas vezes estigmatizada no Ocidente, como o momento em que Roosevelt e Churchill "entregaram" a metade da Europa a Stalin. Na realidade, não houve transferência em 1945, mas uma conquista de terra em 1944, um subproduto da derrota alemã. Na época de Yalta, os soviéticos controlavam a Polônia e boa parte dos Balcãs: como admitiu Roosevelt em particular, tudo o que ele e Churchill podiam esperar era "melhorar" essa situação.

Tan importante como Yalta fue el encuentro de Churchill con Stalin cuatro meses antes. Aunque se trataba de un ardiente enemigo de lo que antaño había llamado "la fétida ridiculez del bolchevismo", Churchill albergaba una paradójica fe en la decencia esencial de Stalin, nacida de dos intensos encuentros bien regados con alcohol en 1942 y 1943. El dirigente soviético, aunque duro al hablar, resultó ser un tipo sin pretensiones, serio en sus tratos, con un sarcástico sentido del humor. "Sólo con cenar con Stalin una vez a la semana", le dijo Churchill a un periodista británico, "se acabarían los problemas. Nos llevamos a las mil maravillas".

Tão importante quanto Yalta foi a reunião de Churchill com Stalin quatro meses antes. Apesar de ser um ardente inimigo do que ele chamou de "o babuíno imundo do bolchevismo", Churchill mantinha uma fé paradoxal na decência essencial de Stalin, nascida de duas reuniões de cúpula intensas e abafadas em 1942 e 1943. O líder soviético, apesar de duro ao falar, era muito despretensioso e comercial, com um senso de humor sarcástico. "Se eu pudesse jantar com Stalin uma vez por semana", disse Churchill a um jornalista britânico, "não haveria nenhum problema. Tudo correu às mil maravilhas".

Con ese espíritu voló Churchill a Moscú en octubre de 1944, tratándose de llegar a un acuerdo sobre la forma que adoptarían los Balcanes en la postguerra antes de que se cerrara la tenaza del Ejército Rojo. El resultado fue el tristemente célebre acuerdo sobre "porcentajes" cerrado con Stalin a altas horas de una noche en el Kremlin. El objetivo de Churchill estribaba en preservar la influencia británica en Grecia y con suerte, en Yugoslavia. Se aseguró de lo primero, y afirmó posteriormente a menudo que Stalin "nunca rompió su palabra en lo tocante a Grecia". Pero eso se consiguió consintiendo de facto el predominio soviético a lo largo y ancho de casi todos los Balcanes.

Nesse espírito, Churchill voou para Moscou em outubro de 1944, buscando chegar a um acordo sobre a forma dos balcãs do pós-guerra antes que o Exército Vermelho garantisse seu controle. O resultado foi o agora notório acordo de "percentuais" concluído com Stalin tarde da noite no Kremlin. O objetivo de Churchill era preservar a influência britânica na Grécia e, esperava, na Iugoslávia. Ele assegurou o primeiro, muitas vezes dizendo que Stalin "nunca disse uma palavra sobre a Grécia". Mas isso foi obtido concedendo o efetivo predomínio soviético sobre os Balcãs.

Para cuando se llegó al acuerdo sobre porcentajes, y no digamos a Yalta, poca diferencia podía suponer la diplomacia. El nuevo mapa de Europa se había decidido, no en la mesa de la conferencia sino en el campo de batalla. Y en esa historia sangrienta, no debería olvidarse el otro día D de junio de 1944. "Esta guerra no es como las del pasado", le dijo Stalin a un comunista yugoslavo: "quien ocupa un territorio impone también su propio sistema social. No puede ser de otra manera". La paranoia soviética sobre su seguridad resultaba comprensible tras la pérdida de 28 millones de ciudadanos. Pero su obsesión con una zona de parachoques en Europa Oriental definiría la Guerra Fría, con un ingente coste humano.

No momento do acordo de porcentagens, e muito menos em Yalta, a diplomacia poderia, de fato, fazer pouca diferença. O novo mapa da Europa não havia sido decidido na mesa da conferência, mas no campo de batalha. E naquela história sangrenta, o outro dia D de junho de 1944 não deve ser esquecido. "Esta guerra não é do passado", disse Stalin a um comunista iugoslavo: "quem quer que ocupe um território também lhe impõe seu próprio sistema social... tanto quanto seu exército possa alcançar. Não pode ser de outra forma ". A paranoia soviética sobre segurança era compreensível após a perda de 28 milhões de cidadãos. Mas a obsessão com uma zona de amortecimento no leste europeu definirá a Guerra Fria, com um enorme custo humano. E a perda dessa proteção de segurança ainda assombra a Rússia de Putin.

Sobre o autor

David Reynolds preside o Departamento de História da Universidade de Cambridge, em cujo Christ's College leciona, tendo se especializado nas duas guerras mundiais e na Guerra Fria. Escreveu e apresentou vários documentários históricos para a BBC, é membro desde 2004 da Academia Britânica e em 2008 recebeu o prestigiado prêmio de história Wolfson. Seu libro mais recente é A longa sombra: A grande guerra e o século XX.

20 de junho de 2014

O espectador mais importante do mundo

David Bromwich

London Review of Books

Vol. 36 No. 13 · 3 July 2014

Tradução / O primeiro ano e meio do segundo mandato de Barack Obama tem sido espetacularmente azarado. Os sucessivos percalços de seu plano de assistência à saúde (Obamacare); os muitos erros da coordenação feita por computador que obrigou pessoas doentes e famílias a esperar dias ou semanas à frente de telas pretas consumiram a nova fé no governo que o tal plano pretendia afirmar. E quando, pelo final de abril de 2014, a coisa parecia meio resolvida, com milhões finalmente cobertos por seguro-saúde e inúmeras carências afinal superadas, começaram as histórias dos falsos relatórios de tratamentos e dos meses de espera por um internamento nos Hospitais dos Veteranos. Foi mais um fracasso do gerenciamento, em mais um ramo do governo com o qual Obama manifestara o mais caloroso interesse-envolvimento. E nem uma pequena coisa que de longe que fosse, se assemelhasse a um sucesso na política exterior, para compensar os embaraços em casa. Os EUA, que sempre precisam estar fazendo coisas e tomando providências, nada conseguiram fazer sobre a reintegração da Crimeia à Federação Russa, nem sobre o conflito na Ucrânia.

O traço comum em todos esses eventos foi que Obama, em pessoa, parecia sempre bem longe da cena. Obama estava trabalhando, nos induziram a crer, preocupado e atentamente compreensivo. Mas em questões como essas, sente-se facilmente que é indispensável um sinal bem claro de que o presidente está ali, “com a mão na massa”. O que se viu, contudo, foi que Obama foi surpreendido pela rejeição de seu plano de assistência à saúde – que ficou chocado e consternado, como todos os norte-americanos. Mas Obama não teria de saber mais, sobretudo, que a maioria de nós, norte-americanos comuns? Mais uma vez, o escândalo dos Hospitais dos Veteranos foi assunto (e escândalo) do qual Obama só soube pelos jornais... Mas por que só soube daquilo tudo quando ligou a TV ou abriu os jornais? O show de caras de confiança traída e surpresa que Obama ofereceu foi recebido com mais simpatia e solidariedade do que em outro evento, ainda mergulhado em obscuridades, em que quatro norte-americanos foram assassinados em Benghazi em 11 de novembro de 2012. Dessa vez, o presidente fora informado, mas estava em plena campanha eleitoral e deixou a crise para o Departamento de Estado. Ausente e absolvido. A questão é que sempre, em todos os casos, há algo de aéreo, zonzo, alheado e enervante em todas essas ausências do presidente Obama. Obama ordenou o bombardeio da Líbia, em março de 2011, depois de ter sinalizado que não bombardearia ninguém. E ordenou o bombardeio da Líbia num discurso inesperado, repentino, sem qualquer planejamento, enquanto fazia visita oficial ao Brasil.

O segundo mandato começou de forma diferente, com uma iniciativa espontânea que surgiu da presença voluntária de Obama numa cena da qual, se não quisesse, não precisaria ter participado. Depois de um assassinato em massa numa escola de crianças em Newtown, Connecticut, em dezembro de 2012, Obama falou com alarde de conseguir a aprovação para nova lei que apertaria o controle sobre posse e uso de armas. Quem o tenha visto, com certeza testemunhou o momento da mais profundamente engajada emoção de toda a presidência de Obama, e o presidente, assumindo o maior risco de todo o seu governo. O momento para divulgar as determinações da nova lei era durante aqueles dias de dezembro de 2012, quando o sofrimento das famílias comovia o país inteiro. A solução de Obama foi típica: anunciou que Joe Biden examinaria as possibilidades legislativas e tinha um mês para apresentar seu relatório. Foram-se as semanas, várias leis que proíbem posse e porte de armas foram veementemente criticadas em público... e a National Rifle Association teve todo o tempo de que precisava para se organizar. O momento passou, e a lei não apareceu. Isso foi mais ou menos o que aconteceu também com a promessa, em janeiro de 2009, de fechar Guantánamo. Obama saiu da sala e deixou ordens para que o chamassem quando o caso estivesse resolvido. A pausa da prudência foi alongada e logo se converteu em sinal tão claro de que o assunto não preocupava Obama, que a questão perdeu qualquer traço de urgência que algum dia tivesse tido.

Obama é adepto de transmitir sentimentos de benevolência que seus ouvintes querem, sentimentos que poderiam levar a ações benevolentes. Parecia estar em seu elemento em todos os discursos de luto & pêsames depois de assassinatos em massa nos EUA, não só em Newtown, mas em Aurora, em Fort Hood, em Tucson, em Boston depois das bombas da Maratona; e em seu encontro com desolados proprietários de casas destruídas em furacões recentes e respectivos prefeitos das áreas devastadas. É presidente para distribuir compaixão com cara de bom, e de uma altura decorosa e reduzida. Esse parece ser o papel que Obama prefere representar também no planeta. Seria a postura da qual teria gostado de falar sobre a Primavera Árabe, e, também, sobre a guerra na Síria. Bastaria que Assad tivesse obedecido às ordens de Obama, quando Obama disse que “Assad tem de sair”. Obama tem o desejo de ajudar o próximo mais puro do que qualquer dos seus predecessores na Casa Branca desde Jimmy Carter; e por alguma espécie de precaução que muito se aproxima da timidez, Obama jamais conversou com Carter, sequer uma vez, nos últimos cinco anos. Obama discursa pela boa causa, mas quase sempre acaba por aprovar o mal aceitável que os políticos ou os ricos dos EUA já tenham aceitado. Obama assiste ao mundo como o seu mais importante espectador.

Mas evita a companhia de outros políticos – traço já bem conhecido de muitos e sempre espantoso. Um importante Democrata do Senado, perguntado sobre quantas vezes conversara com Obama no ano passado, respondeu que só acontecera uma vez. O mesmo senador pediu que seu nome não fosse citado, porque tal grau de intimidade com o presidente despertaria ciúmes entre seus pares. A falta de interesse de Obama no dia a dia da política – ter de negociar e viver imerso também em interesses de outros, o tantas vezes apenas formal, mas necessário intercâmbio de ideias – muito fez para embotar a sensibilidade do presidente quanto a mudanças no sentimento da população. Avesso a conflitos como é, Obama jamais vê que alguma luta se aproxima, senão quando já está sobre a sua cabeça e quase totalmente fora de controle. O Tea Party começou na primavera de 2009, com um surto na Bolsa de Mercadorias de Chicago, do ex-administrador de hedge fund Rick Santelli, que perguntou por que os bons norte-americanos teriam de pagar pelos perdedores que o colapso financeiro afogara num mar de hipotecas impagáveis. Santelli prometeu criar um novo grupo insurgente nas semanas seguintes, feito à imagem do Tea Party de Boston. Foi um discurso espertalhão, mas moralmente feio, e poderia ter sido contido. Obama só tomou conhecimento do Tea Party mais de um ano depois. Quando já estava muito bem organizado e em posição de aplicar a Obama a fragorosa derrota que sofreu nas eleições de meio de mandato de 2010 e derrota da qual seu governo, na verdade, jamais se recuperou.

Por que tantos e tantos choques e surpresas? Obama chegou à presidência sem antes ter comandado coisa alguma. Indicou servidores com ares de muito bem qualificados, mas (como depois se viu) completamente ineptos, com nenhuma das habilidades indispensáveis para administrar. Steven Chu, secretário de Energia no primeiro mandato de Obama é dono de um Prêmio Nobel em Física, mas promulgou sem reagir a “acima exposta” política energética, que incluía, com ecumênica indiferença, energia nuclear, perfuração em águas profundas, perfuração no Ártico e extração xisto (fracking). Kathleen Sebelius, secretária da Saúde e Serviços Humanos, fora governadora do Kansas e leal apoiadora de Obama, mas sem qualquer experiência de administração em larga escala, antes de ver chegar ao seu gabinete o gigantesco aparelho da [lei] “Affordable Care Act”. O mesmo se pode dizer de Eric Shinseki, general famoso por dizer a verdade sobre o número de soldados necessários para tornar seguro o Iraque. Shinseki foi mal posto como administrador dos Assuntos dos Veteranos, e demitido apenas poucas semanas depois de Sebelius.

“Desengajamento” passou a ser a palavra polida para designar a relação de Obama com suas próprias políticas. Ausente, não cobrado e absolvido foi como se viu Obama na crise da Ucrânia que cresceu ao longo dos meses de janeiro e fevereiro. O golpe para derrubar Yanukovich e a tomada do poder por um governo provisório em Kiev foram antecipados e de fato encorajados pela comissão de Europa e Eurásia do Departamento de Estado. A secretária-assistente encarregada era Victoria Nuland, neoconservadora muito bem-sucedida no processo de transição, em 2009, da equipe de Dick Cheney, para a equipe de Hillary Clinton. Nuland é casada com o cofundador do “Projeto para o Novo Século Norte-americano” [orig. Project for the New American Century], Robert Kagan, um dos principais promotores da Guerra no Iraque. É provável que o mundo jamais venha a saber o que Obama supunha que Nuland planejava fazer quando ela voou para a Praça Maidan e lá reapareceu, distribuindo comida aos manifestantes contra a Rússia e a um passo das fronteiras russas. Mas a mensagem já circula amplamente: Obama é um homem que não se empenha muito para saber muito das coisas. Sobre a Ucrânia, parecia longe e distanciado da ação, possivelmente sem nada saber das implicações do investimento do seu Departamento de Estado na sociedade civil e na promoção da democracia para a Ucrânia: e foram mais de US$ 5 bilhões desde 1991 – como Nuland revelou em sessão do National Press Club, em 13 de dezembro de 2013 – soma gigantesca, pelos padrões da Agência USAID. Obama delegou ao seu secretário de Estado, John Kerry, o controle sobre a posição pública dos EUA no mundo. Resultado disso com a Ucrânia em 2014, como com a Síria em 2013, foi tornar a situação ainda mais confusa, cada dia mais carregada de oportunidades para hostilidades entre EUA e Rússia. Até que, no final de março, Obama pronunciou um discurso ante a União Europeia em Bruxelas, no qual expôs a débâcle, mas travestida como se fosse política.

A despreocupação, o descaso com que Obama vê Cheney semear nos canteiros de sua própria política é característico e revelador. Como Barton Gellman revelou em Angler, ainda o melhor livro sobre Cheney, o vice-presidente em 2001 recebeu carta-branca para encher todos os departamentos e agências do governo com trabalhadores de primeiro e segundo escalão que fossem fanaticamente leais a ele-Cheney. Muitos daqueles ainda permanecem por lá; Obama não fez esforço algum para preservar o próprio governo contra a influência deles. O desgosto contra Bush e Cheney, mesmo no Partido Republicano, era generalizado no início de 2009 e dava real poder de alavancagem a qualquer novo presidente. Mas a ideia de que o país tinha de voltar a ser estado de direito não prosperou sob Obama; até a expressão “estado de direito” deixou de ser ouvida. Não se viu sequer um criminoso de Wall Street que tenha sido processado; não se viu sequer uma ação judicial contra advogado que tenha defendido a tortura; ou contra funcionário público que tenha ordenado a tortura nos EUA ou em qualquer lugar do mundo em nome dos EUA; ou contra agente do governo dos EUA que torturou. Onde Cheney e Bush são vistos e ressentidos como instigadores desses crimes, Obama é tido como coadjuvante, cúmplice ou corresponsável.

O modo descontraído e relaxado com que lida com a Constituição, finalmente pôs o presidente Obama do lado oposto ao de seus mais fiéis aliados, mesmo entre os Democratas centristas. A Casa Branca está agora envolvida em luta-livre com a presidente da Comissão de Inteligência do Senado, Dianne Feinstein, tida como defensora rotineira dos interesses da polícia e dos serviços de inteligência, contra cidadãos e suspeitos. A recusa da CIA, mesmo com meses de atraso, a aprovar a entrega a uma comissão do Senado do relatório de suas ações desde 2001, levou Feinstein, afinal, a questionar o papel da Casa Branca, na ocultação do relatório. Feinstein interpretou o elaborado show de imparcialidade de Obama como uma extensão a mais do privilégio executivo, contra o braço do governo responsável pela fiscalização.

A ação executiva foi mais uma vez a opção de Obama, quando acertou o retorno, dia 31 de maio de 2014, de Bowe Bergdahl, prisioneiro norte-americano no Afeganistão, trocado por cinco Talibã que permaneciam presos em Guantánamo. E dia 2 de junho de 2014, a Agência de Proteção Ambiental, com apoio explícito de Obama, anunciou novos limites de carbono calculados para encurtar a vida de usinas movidas a carvão. Essas duas ações, uma doméstica, outra com efeitos fora do país, foram os movimentos mais firmes de Obama, em cinco anos. Mas ambos foram apresentados como decisões do Executivo, nada devendo a político algum, nenhum dos quais foi consultado. Democratas preocupados com eleições e que não foram consultados, teriam relutado a defender a troca de prisioneiros; e democratas dos estados de minas de carvão, como West Virginia e Kentucky já está denunciando ativamente os novos limites de carvão. E essa determinação de Obama, que insiste em fazer as coisas enquanto pode nos seus últimos anos de governo, e em agir sozinho quando não pode agir com o Congresso agora o prendeu e comprometeu-o de tal modo, que Obama está absolutamente sem saída. Aquelas são decisões que, pela própria natureza, não podem ser canceladas. Se o Partido Republicano já não tivesse desperdiçado um pedido de impeachment há pouco tempo demais contra Bill Clinton ele, com certeza, teria respondido à fúria que subia das suas fileiras, e teria castigado Barack Obama, com um impeachment.


O Tea Party tem fama de ser o lar dos liberais-libertaristas norte-americanos: defensores da separação dos poderes e da Bill of Rights, especialmente da 1ª, 2ª, 4ª e 5ª emendas – que protegem, respectivamente: a liberdade de expressão, de prática religiosa e de reunião pacífica; o direito de portar armas; o direito dos cidadãos de serem protegidos contra investigações, espionagem e prisão arbitrárias; e o direito de não ser acusado de crime capital, ou condenado ou punido sem o devido processo legal. Mas o Tea Party abriga crentes-defensores de mais dois tipos, além dos libertaristas de “direitos”: os defensores fanáticos da propriedade e dos lucros privados (não importa o meio pelo qual tenham sido adquiridos); e os odiadores da ação do estado e também do próprio estado, exceto para efeito de prender criminosos e fazer guerra aos inimigos do estado... Até aqui, só um candidato viável que não é membro inscrito do Tea Party parece preparado a candidatar-se à presidência em 2016. Trata-se de Jeb Bush, ex-governador da Florida, irmão caçula de George W. e, segundo o pai deles, o mais sensível dos irmãos.

Enquanto isso, os aspirantes do Tea Party são gente bem estranha, que refletem as características ainda não plenamente definidas do Partido. Marco Rubio, o simpático jovem senador pela Florida, de fala fácil, simpática e rasa, que pode ser equipado para recapturar o voto dos hispânicos de que os Republicanos precisam, se querem sobreviver. Rubio foi apanhado numa mentira há alguns meses: mudou a data da saída de seus pais de Cuba, para mostrá-los como fugitivos de Castro e do comunismo. Mas foi logo perdoado: nos estados do sul em geral, a doença anti-Castro já nada tem a ver, hoje, nem com Castro nem com algum comunismo, nada significa coisa alguma e... Rubio foi absolvido. Ted Cruz, jovem senador do Texas, formado em Princeton e na Faculdade de Direito de Harvard, apresenta-se também como norte-americano por adoção, grato filho de família EUA-cubana (embora tenha nascido no Canadá). É estranhamente parecido, no físico, com Joe McCarthy – um McCarthy bem barbeado, que não bebe, nem deixa beber, sem a pele flácida e as pálpebras avermelhadas pelas noitadas. Cruz fala bem, em tom suave e artisticamente mole, sempre em tom de acusação: um modo de falar que se suporia já morto e enterrado com McCarthy, mas o ódio e o ressentimento nacionalistas deixam sotaque que persiste e persiste.

“O líder incontestável do partido” no Texas (segundo o Dallas Morning News), o senador Cruz prometeu levar para a política nacional a plataforma de 2014 dos Republicanos do Texas. Elementos da plataforma são, dentre outros: selar a fronteira com o México e proibir anistia para imigrantes ilegais; permitir que proprietários de empresas neguem emprego a pessoas que considerem moral ou ofensivas, por motivos religiosos; abolição de todos os impostos sobre a propriedade; extinção da Agência de Proteção Ambiental; fim do salário mínimo; fim de qualquer “ação afirmativa”; apoio à “terapia de reparação” para converter homossexuais às práticas heterossexuais; e fim da loteria estadual. Qualquer esperança de que o establishment Republicano venha a suavizar os rigores desse programa diminuiu consideravelmente quando, dia 10 de junho de 2014, um insurgente do Tea Party derrotou Eric Cantor, líder da maioria no Senado, nas eleições primárias Republicanas no distrito de Cantor na Virginia. Cantor é considerado o representante de Bibi Netanyahu nos EUA e supunha-se que tivesse demarcado o limite máximo de intransigência Republicana durante o debate do teto da dívida em 2011. O homem que derrotou Cantor, com orçamento ínfimo, Dave Brat, é professor de Economia, denunciador do capitalismo-de-comadres e alarmista anti-imigrantes. “O cara” – escreveu o blogueiro que se assina Pangloss, em tom de absoluta surpresa – “achou espaço para se meter à direita de Cantor”.

Rand Paul, filho do libertarista Ron Paul, permanece, como Cruz, candidato ao apoio do Tea Party em 2016. Está entre os mais interessantes políticos contemporâneos, mas, também, entre os mais difíceis de seguir, por sua inconsistência. O discurso de Paul, contra a nomeação de John Brennan para dirigir a CIA, e que se tornou ação de 13 horas de presença ininterrupta na tribuna, para bloquear a ordem de Obama que autorizaria ataques com drones, foi evento que fez história em 2013, mas que, como depois se viu, não passou de prelúdio sem sequelas. Outros atos mais prudentes de Paul como candidato, como um adiamento errado de votação sobre mudança climática, a viagem que fez a Israel (com todo o ritual usual de servilismo), a solução oportunista que ofereceu para a questão da Ucrânia (entregue tudo aos russos, corte relações com todos eles e deixe que a Ucrânia quebre os russos), nada sugerem além das ideias-fixas obsessivas do pai. Mesmo assim será interessante ver quanto do liberal-libertarismo de Ron Paul, que não é partilhado por nenhum outro político de expressão nacional, pode vir a ser representado, seja como for, por Rand.

Em 21 de maio de 2014, Ron Paul fez um extraordinário discurso contra a nomeação de David Barron para a Corte Federal de Apelações; argumentou que Barron, autor do memorando secreto em que expôs argumentos a favor de o presidente assassinar cidadãos norte-americanos mediante o uso de drones, evidentemente era homem que acalentava ideias sobre o poder executivo que, elas próprias, o desqualificavam para o cargo de juiz. Paul instruiu-se nos escritos de jornalistas que não são, de modo algum, considerados da direita nos EUA, como Glenn Greenwald e Conor Friedersdorf; e apoiou toda a sua crítica na importância de o acusado ser julgado por júri qualificado, e na exigência de prova além de qualquer dúvida razoável:

Naqueles memorandos [que Barron redigiu para o presidente] há um padrão diferente (...) O padrão é que um assassinato seria justificado quando “um funcionário informado, de alto nível, do governo dos EUA tenha determinado que o indivíduo-alvo impõe ameaça iminente de ataque violento contra os EUA”. Assim sendo, já não se está usando a dúvida razoável como parâmetro. Esse padrão foi deixado de lado. Agora, já estamos falando de funcionár4io de alto nível, bem informado, que decide, em segredo, que algum ataque estaria para acontecer. 
Interessante sobre “ataque iminente” é que já não nos pautamos pelo que se entende por “iminente” (...) É nova definição do sentido de “iminência” que já não inclui a palavra “imediatamente” (...) O presidente crê, no que tenha a ver com a privacidade, na 4ª emenda, e no que tenha a ver com matar cidadãos norte-americanos, na 5ª emenda, que, se houver meia dúzia de advogados para reler o processo, pronto, já será o devido processo legal. É apavorante, porque isso nada tem a ver com “devido processo legal” (...) Não há devido processo legal se há segredos, processos internos reservados só ao Executivo (...) Da próxima vez, para assassinar um cidadão norte-americano, farão tudo em segredo, só o Executivo saberá do que o Executivo faz, porque essa é a nova norma. 
Vocês estão votando no homem que tornou possível esse precedente histórico pelo qual nós agora podemos assassinar norte-americanos em outros países do mundo. Em segredo – um braço do governo é o assassino – sem representação legal, sem processo legal, tudo baseado numa acusação e em nenhum a defesa. Deixamos para trás o critério da culpa provada além de qualquer dúvida razoável, e abraçamos o critério de que basta uma acusação, para a execução. Estou horrorizado, mas estamos exatamente nesse ponto (...) Temos de nos perguntar nós mesmos: quanto vale o conceito da inocência presumida?

No segundo período de Obama na presidência, coube a um Republicano enunciar essas palavras sobre liberdades civis – embora tenha sido o único no partido dele. Ao contrário, o professor da Faculdade de Direito de Harvard que escreveu aqueles memorandos para justificar o assassinato de cidadãos norte-americanos pelo estado norte-americano e sem o devido processo legal foi visto com máxima consideração pelo establishment liberal, porque tem posição “boa” sobre o casamento gay. Os Democratas têm maioria no Senado, e a nomeação de Barron para a Corte de Apelação já foi aprovada.

A anomalia do discurso de Paul no campo da oposição, e o voto Democrata a favor do advogado dos drones apontam para enigma muito mais profundo. Um perigoso e não dito acordo na política norte-americana cresceu e cresceu quando ninguém estava olhando, e hoje une a esquerda liberal e a direita autoritária. A esquerda liberal e a direita autoritária concordam no apoio não questionado a um governo sem controles e contrapesos; e coube à presidência de Obama cimentar o acordo. O aparelho de Estado que apoia guerras e a indústria de armas para os Republicanos gera bem-estar e direitos expandidos para os Democratas. Os Democratas pouco se incomodam com as guerras, mas tendem a aceitá-las e prescrevê-las pelo que obtêm em troca. Os Republicanos odeiam tudo que se pareça com gastos públicos a favor de qualquer “bem-estar”, mas não conseguem escapar de serem acusados de hipócritas quando votam a favor de gastos públicos sempre crescentes para os militares.

No final de maio, Obama acrescentou mais dois anos e meio ao prazo final que ele mesmo demarcara para retirar os soldados norte-americanos do Afeganistão. A data final para a retirada, agora, será em dezembro de 2016. Dois dias depois, recebeu na Casa Branca um “Concussion Summit” [ap. Cúpula das Cabeças Quebradas (NTs)], que discutiu efeitos de ferimentos na cabeça em crianças pequenas – exatamente o tipo de coisa que os Republicanos adoram usar como tema de zombaria, porque lhes parece atividade descabida para a dignidade do presidente. Entre o anúncio do prazo final da retirada do Afeganistão e o evento das “Cabeças Quebradas”, Obama fez um discurso em West Point, na formatura dos cadetes, que foi anunciado pelos assessores como a principal formulação da doutrina de política externa de Obama. O discurso é manifestação completa e consumada da tendência “nem isso, nem não isso, antes o contrário”, do presidente, embora ratifique a barganha contra o poder do estado, que é a força dominante na política dos EUA. Disse que os EUA vão se engajar em mais atividades militares do que jamais antes, mas como menos norte-americanos mortos. Vamos cuidar do bem-estar dos norte-americanos em primeiro lugar, sem esquecer que temos de defender coisa mais ampla e mais difícil de limitar: nossos “interesses básicos” e nosso “modo de vida” [orig. our “core interests” and our “way of life”].

A epígrafe invisível do discurso de Obama deve ter vindo de Madeleine Albright, secretária de Estado no segundo governo de Bill Clinton. “Se temos de usar a forçar”, disse Albright, “é porque somos os EUA; somos a nação indispensável. Estamos acima e vemos mais longe que outros países na direção do futuro”. Exatamente nesse espírito, Obama disse aos cadetes formandos de West Point que os EUA têm de liderar o mundo, embora não possam policiar o mundo. Por isso é indispensável um consenso internacional para aplicar “normas internacionais”. Essa expressão final tornou-se peça básica do mobiliário intelectual de Obama: normas internacionais existem para ampliar a diferença que separa a lei internacional (que os EUA reservam-se o direito de violar) e a nova “ordem mundial”, da qual os EUA são O Criador e devem permanecer como O Guardião.

“Nos retiramos do Iraque”, disse Obama; e estamos “encerrando nossa guerra no Afeganistão”; a liderança da al-Qaeda foi dizimada nas regiões de fronteira entre Paquistão e Afeganistão e Osama bin Laden já não existe”. Assim sendo, “a questão que enfrentamos (...) a questão que cada um de vocês enfrentará não é se os EUA liderarão, mas como os EUA liderarão”. Mas por que os EUA teriam de só liderar e fazer e acontecer? Porque “se não fizermos, ninguém mais fará”. Como se vê, a deferência ao chiliquismo nacionalista de Albright foi mantida, e deixou aberta uma porta para a doutrina da guerra humanitária inventada por Samantha Power – sucessora de Albright como embaixadora dos EUA à ONU, onde se converteu na mais consultada consultora de Obama para questões de sabedoria sobre engajamentos estrangeiros. Power ajudou Obama a reescrever seu segundo livro e bem pode ter ajudado a redigir o próprio discurso de West Point. Em homenagem àquele modo de pensar, que mistura persuasão, força e bote salva-vidas em resgate de emergência, “a ação militar dos EUA” – Obama prosseguiu – “não pode ser o único, sequer pode ser componente primário de nossa liderança em todos os casos”. O modo preferencial para tratar de problemas internacionais que “agridem a consciência” será multilateral. Mas os EUA, porém, usarão unilateralmente a força “quando nossos interesses básicos assim o exigirem; quando nosso povo estiver ameaçado; quando nossa vida estiver em risco; quando a segurança de nossos aliados estiver em perigo”.

Cada uma e todas as palavras dessa última passagem é, são, ambíguas. A frase inteira é como um convite aos que caçam ambiguidades como oportunidade para usar armas e fazer guerras. Mas... quem é “nosso povo”? Inclui os espiões e os que ouvem nossas conversas telefônicas? As forças especiais que operam na ilegalidade? Mas a palavra mais escorregadia de todas, aí, é a de sempre, eterna desculpa para “ação” e mais “ação”: segurança. Na sequência, então, vinha uma frase que é puro Obama: “A opinião internacional interessa, mas os EUA não precisamos pedir permissão para proteger nosso povo, nossa pátria ou nosso way of life”. Em resumo: até que nos esforçamos para respeitar a opinião internacional, tentando obrigar todos a concordarem conosco; mas, de fato, fazemos o que bem entendemos: impor “normas internacionais” pela violência não é crime que se compare a guerra de agressão, não importa o que diga a “opinião internacional”. O presidente Obama e o secretário de Estado pediram US$ 5 bilhões ao Congresso para apoiar “um novo fundo de parceira para o contraterrorismo” que “amparará países parceiros nas linhas de frente”. Cinco bilhões é eco do dinheiro de que Nuland falou no caso da Ucrânia (vídeo no fim do parágrafo, em inglês), e traz à mente o curioso fato de ajuda externa, seja violenta, seja não violenta, tem vindo muito mais frequentemente do Departamento de Estado, que do Departamento de Defesa. A Síria será o primeiro cenário de ação para esses fundos; parceiros devem ser o Líbano, a Turquia, o Iraque e a Jordânia. “Creio no excepcionalismo norte-americano” – disse Obama na conclusão – “com cada fibra do meu ser”. Essa formulação tem-se convertido em fórmula-juramento de fidelidade, com a mão sobre o coração, que se espera de todos os presidentes norte-americanos; e Obama pronunciou as sílabas com as necessárias reverência e unção. Mas imediatamente acrescentou que “os EUA desejam trabalhar com a OTAN, a ONU, o Banco Mundial e o FMI” (todas as organizações internacionais e financeiras juntas, sem qualquer distinção nem pausa).


Qual pode ser a razão de Obama para decidir “parceirizar” o treinamento contraterrorista e o suprimento de armas para prolongar a guerra na Síria? Não parece ser via que o interesse, se quer acordo com o Irã para usar como “chave de ouro” de sua política exterior. Mas Obama tem uma propensão, que não há via racional que justifique, para prometer coisas que parecem fortes, imediatamente depois cancelar tudo e depois fazer qualquer coisa, seja lá como for. A Síria no verão e outono de 2013 foi o pior momento possível para Obama fazer as coisas desse modo e à vista de todos. Da ameaça à hesitação, à declaração de guerra, a abortar o ataque, porque apareceu solução vinda de fora e que não exigia uso de força: a sucessão tonta de posturas “de guerra” ostentadas e abandonadas ano passado continuará agora, numa guerra por procuração, mais uma, afinal de contas.

O pior erro norte-americano da década passada foi falar de uma guerra ao terror, em vez de uma operação de política internacional cooperativa. Obama não gosta de pronunciar a expressão “guerra ao terror”, mas vive a falar em termos de prontidão bélica e capacidade bélica e leva os norte-americanos a assumirmos, como coisa garantida, que teremos de nos meter em mais de uma guerra de cada vez, e por mais de uma geração. É instrutivo que Dick Cheney, em 2002 e 2003, tenha dito, repetidamente, com essas palavras, que uma hipotética política de defesa poderia vir a ser descrita como “criminosa” ou “política”; e que falasse dessas descrições sempre em tom de desprezo. Ele sabia que, se algum dia o senso comum conseguisse imperar, o pânico, sem o qual sua própria política não sobreviveria, ficaria sem combustível. Fato é que, desde 2002, com exceção dos primeiros meses no Afeganistão e no Iraque, os EUA só fazem lutar contra insurgências. Os inimigos são rebeldes que fazem oposição a governo que os EUA queremos-porque-queremos que lá permaneçam, no Afeganistão, no Iêmen, na Somália e agora também na Líbia. Adeptos da guerra humanitária – Hillary Clinton e Samantha Power sobretudo – em sua loucura para fazer acontecer a guerra na Líbia, amassaram o alvo e confundiram o objetivo, convertendo os EUA em oponentes também de um governo soberano e reclamando para eles a prerrogativa de pôr-se contra governos e divulgar seus crimes, ao mesmo tempo em que encobrem, ignoram e fazem ignorar os crimes de (alguns) rebeldes. Na sequência, aplicaram o mesmo “princípio” à Síria. Os detalhes talvez desagradem Cheney, mas o resultado segue as “linhas” de Cheney. A nova “parceiragem” de Obama no contraterrorismo significará que não há problema algum em meter o país em uma dúzia de diferentes pequenas guerras simultâneas por aí, pelo mundo inteiro.

A próxima eleição já está sendo prejudicada pela imprensa. Já se sabe – já praticamente todos aceitamos – que a candidata dos Democratas será Hillary Clinton. Foi prestimosa secretária de Estado de Obama. Nunca disse bobagens descuidadas e altamente repetíveis que pudessem embaraçar o presidente, como vive a fazer seu sucessor, John Kerry, vezes sem fim. Mas, ao mesmo tempo, Clinton fez do Afeganistão provação muito mais difícil e mais longa, para Obama, quando ela se pôs ao lado dos generais; e cavou trincheira personalizada, para Obama e para os EUA, quando pressionou obsessivamente pela derrubada de Gaddafi. Mrs. Clinton anda ocupadíssima, agora, posicionando-se à direita de Obama. Faz sentido para ela e sua concepção de consenso dominante, como já fez também em 2008. Em semanas recentes, ela tem confessado uma queda já antiga por armar forças rebeldes na Síria; comparou Putin a Hitler; e até sugeriu que sua ideia sobre o Irã é menos positiva que a de Obama: ninguém deve esperar barganha decente das negociações sobre o processamento de urânio. É abordagem sórdida, acanalhada; afinal, pode, sim, acontecer como ela “prevê”. Iraque – guerra a favor da qual ambos, Hillary Clinton e John Kerry, votaram – foi uma catástrofe que bem deveria nos tornar mais atentos; mas desde que as tropas norte-americanas partiram, nos dedicamos a nos convencer de que nada temos a ver com a violência que destruiu o Iraque. Pois mesmo assim, Obama respondeu à rebelião de junho/2014 no Triângulo Sunita, com o envio de 275 marines para ajudar da defesa da embaixada dos EUA em Bagdá. Como se na sequência tivesse “pensado melhor”, pressionado, meteu logo na mesma lista mais 300 “conselheiros” militares; e já avisou que pode ordenar ataques aéreos e massacres por drones. Os neoconservadores estão em marcha outra vez, para as páginas das colunas assinadas nos jornais da imprensa-empresa. O Partido Republicano e alguns Democratas dizem que os EUA devem fazer mais (embora não saibam exatamente o quê). A julgar pelo caos na região (Oriente Médio e Ásia Central) e pela confusão que reina na classe política nos EUA, cujos mais ambiciosos membros continuam a superar-se sempre uns aos outros em matéria de pensamento e postura delirantes, ainda terá de haver ecos e ecos dos desastres do Iraque, Líbia e Afeganistão, antes que os EUA sejam obrigados a recomeçar a pensar.

19 de junho de 2014

Estratégia eleitoral para a esquerda

Os desafios políticos independentes são bem-vindos, mas quebrar o sistema bipartidário exigirá esforços que vão além das urnas.

Jennifer Roesch


daquellamanera / Flickr

Tradução / Quase seis anos sob a presidência neoliberal do Obama, há crescentes sinais de descontentamento entre as bases de voto tradicional dos democratas. Apesar de ambas as vitórias eleitorais de Obama poderem ser atribuídas ao surgimento de eleitoras/es jovens, femininos, negros, latinos e das classes trabalhadoras, estes são precisamente os grupos que mais têm sofrido com a crise econômica e com o envolvimento do seu governo com a austeridade. Isto é parte da razão porque, pela primeira vez desde 2000, há um espaço de abertura na política prevalecente à esquerda do partido democrata.

Em Seattle, a campanha do socialista Kshama Sawant para o Conselho Municipal foi capaz de conseguir o apoio de círculos eleitorais, incluindo alguns sindicatos, que normalmente iriam apoiar os democratas. No condado de Lorain, Ohio, sindicalistas irritados com o presidente da Câmara e vereação locais, Democratas, romperam fileiras e candidataram a sua própria lista independente com duas dúzias de candidatos do mundo do trabalho — tendo quase todos ganho. Isto representa mais uma flexão do músculo do Trabalho diante da traição democrata, do que uma ruptura firme, mas aponta para uma base potencial de classes trabalhadoras para uma alternativa política independente.

Estes são exemplos relativamente pequenos e localizados mas que refletem uma real e crescente frustração e impaciência que vai além da esquerda radical e chega às classes trabalhadoras americanas. A vitória de Sawant em Seattle pode ter sido ajudada pelo apoio de um jornal independente em voga e uma base de voluntários de esquerda, mas os seus temas de campanha eram solidamente da classe trabalhadora e os seus votos vieram esmagadoramente de famílias ganhando menos de 40.000 dólares por ano. O presidente da Câmara de Nova York, Bill DiBlasio, mantém-se um democrata solidamente comprometido, mas a sua campanha de "Um conto de duas cidades" reflete também um afastamento economicamente populista do status quo.

Que rumo isto vai tomar está ainda para se ver. Enquanto se está a abrir espaço para desafios políticos independentes, os progressistas que veem possibilidades de criação de uma ala esquerda dentro do partido democrata darão também um passo em frente. O artigo recente de Adolph Reed "Nothing Left" criticando o compromisso dos liberais para com os democratas foi reportagem de capa da Harper e levou a uma entrevista sobre Bill Moyers.

Que o seu argumento possa ter obtido este tipo de atenção é um sinal da abertura que existe. Mas a resposta de Michelle Goldberg acusando Reed de niilismo eleitoral dá para ter uma ideia da oposição que os liberais irão desenvolver à medida que nos aproximamos das eleições de 2016.

O estrangulamento por parte do sistema bipartidário foi, juntamente com o racismo, um grande obstáculo ao desenvolvimento da consciência e da organização da classe trabalhadora nos Estados Unidos. Isso significou que o debate político dominante manteve-se incrivelmente estreito, conduzido em termos em grande parte aceitáveis pela classe capitalista e que criou uma pressão inevitável sobre os movimentos sociais para se adaptarem à "política do possível".

Se os movimentos sociais e laborais hão-de sair deste ciclo, isso terá de significar uma rutura real para a esquerda do Partido Democrata. Enquanto alguns dos desenvolvimentos no mais recente ciclo eleitoral são encorajadores, isto não é de forma alguma tarefa fácil.

A última vez que houve um significativo desafio eleitoral à esquerda do Partido Democrata foi aquando da campanha presidencial de Nader em 2000. Embora Nader não fosse nenhum socialista, desafiou consistentemente e com sucesso o sistema bipartidário a partir de uma plataforma nacional, conquistando perto de 3 milhões de votos. Embora fosse uma pequena parte dos votos captados, ele conseguiu ter impacto no debate nacional e introduziu questões de esquerda numa discussão que de outra forma se manteria estreita. No auge da campanha falou para um público de mais de 20.000 em Madison Square Garden.

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Houve dois fatores que moldaram o desenvolvimento e a popularidade dessa campanha. Primeiro, dois mandatos de um neoliberal democrata no poder tinham produzido uma reserva de descontentamento, especialmente entre os jovens. Isto levou a que um grande número de eleitores (ou supostos eleitores) olhasse para a esquerda em busca de novas alternativas.

Mas o que realmente galvanizou o desafio de Nader e lhe deu o sentimento de um movimento foi a luta pela justiça global que tinha primeiro ocorrido nas ruas de Seattle nos protestos contra a Organização Mundial do Comércio, menos de um ano antes. A campanha de Nader representou um movimento, que naquela época estava em ascensão, a encontrar expressão eleitoral — "Seattle vai às urnas," como alguns disseram nesse momento.

Hoje, estamos também no segundo mandato de um neoliberal Democrata que tem frustrado e ficado aquém das expectativas. E estamos há cinco anos numa crise económica em que os dois principais partidos políticos seguiram um programa de austeridade. Neste contexto, campanhas de esquerda — ou mesmo socialistas — podem dirigir-se a esta frustração.

Ao mesmo tempo, muitas das lutas que inspiraram as pessoas nos últimos anos têm-se enfrentado com esses desafios ou foram completamente derrotadas. Portanto, as iniciativas eleitorais são menos um reflexo de um movimento em ofensiva do que uma tentativa da esquerda para encontrar uma via diferente para dar expressão política à radicalização que sabemos que existe.

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Este contexto explica o entusiasmo generalizado e a discussão à esquerda sobre as possibilidades eleitorais na sequência da vitória de Sawant. Mas ele também exprime alguns dos desafios que enfrentamos. É tentador ver o trabalho eleitoral como um caminho mais fácil de atividade política ou um atalho na transmissão de uma mensagem de esquerda para um público muito mais vasto. As duas coisas podem ser verdade, mas há duas questões que devem ser consideradas ao tentarmos desenvolver a nossa estratégia eleitoral.

Primeiro, temos de reconhecer que as condições favoráveis que existiam durante a campanha de Silva não são facilmente replicáveis. Estas incluem: leis eleitorais altamente favoráveis (eleições apartidárias que admitiam candidatos sem filiação partidária), com possibilidade de concorrer a qualquer lugar aberto ao nível de toda a cidade e voto postal (este último fator tornou-se decisivo nos dias finais da campanha); a falta de um candidato Republicano, que normalmente dá aos Democratas um meio para exigir uma votação de mal menor à sua base; e movimentos e organizações populares fortes que poderiam ser canalizadas para apoio.

De acordo com isto, precisamos de pensar tendo em conta a relação entre potenciais iniciativas eleitorais e lutas dos movimentos sociais. O trabalho eleitoral tem de ser entendido como uma parte de um processo de reconstrução de combatividade, consciência e confiança da classe trabalhadora.

Dadas as forças relativamente pequenas da esquerda, precisamos fazer algumas perguntas difíceis, incluindo se existem opções viáveis para uma campanha: direcionar energias para a uma campanha eleitoral irá ajudar a dar confiança, promover e dar projeção a lutas existentes e à resistência mais ampla, ou irá antes atuar como substituto dessas lutas ou como sorvedouro de recursos limitados?

Na maioria dos casos, é improvável que campanhas independentes realmente ganhem. Portanto, na maioria das situações, os principais objetivos são fazer crescer a necessidade de uma rutura política com os Democratas, ampliar e fortalecer os movimentos existentes e envolver um público mais amplo em ideias de esquerda. Mesmo em casos em que candidatos independentes sejam capazes de ganhar, como em Seattle, o êxito não pode ser medido nas condições habituais da política burguesa, tais como fazer acordos para aprovar legislação ou construir alianças com outros legisladores.

Em vez disso, o desafio será usar a sua plataforma para dar confiança e apoio às lutas e para criar um polo de atração de esquerda dentro da política dominante. Até agora Sawant tem demonstrado capacidade para aproveitar precisamente esse potencial.

Feitas essas considerações, há discussões ativas em vários lugares sobre como tirar proveito dessa audiência para a política independente. Em Nova York, Howie Hawkins, camionista e ativista laboral e ambiental de longa data, concorre a governador com a chancela do Partido dos Verdes. Ele tem emparceirado com Brian Jones, educador e socialista de longa data para fazer uma campanha que coloque as questões da defesa da educação pública, da luta pela justiça racial e das exigências da classe trabalhadora, como a luta por salário mínimo de 15 dólares por hora.

Hawkins está a concorrer contra Rob Astorino, um Republicano de extrema-direita sem nenhuma oportunidade real de ganhar, e o candidato da linha da frente Andrew Cuomo, o atual governador, que é um Democrata de direita com ambições presidenciais. Cuomo passou o primeiro mandato a atacar os sindicatos do setor público, minando o financiamento de hospitais públicos e seguindo uma agenda de “deformação educativa”1 que financiou escolas de parcerias privadas, forçou os exames eliminatórios e minou as escolas públicas.

Isso criou uma enorme reserva de raiva, que se refletiu na sondagem do [Instituto de Investigação] Sienna realizada em abril e que mostrou que 24% dos entrevistados preferiam um candidato não nomeado do Partido das Famílias Trabalhadoras a Cuomo.

O Partido das Famílias Trabalhadoras, embora formalmente independente, tem consistentemente endossado de forma cruzada Democratas (e, às vezes Republicanos) em sua linha de cédula — incluindo Cuomo, quando ele concorreu ao seu primeiro mandato. Este ano, houve uma luta amarga dentro do partido sobre a possibilidade de quebrar fileiras e ter um candidato independente.

Desde que a luta resultou numa decisão de endossar Cuomo num segundo mandato, há um vivo debate entre progressistas e ativistas sindicais sobre se agora é o momento para uma verdadeira alternativa política aos dois partidos. Isto abriu significativamente um espaço político mais amplo à esquerda dos Democratas e é esse espaço que a campanha de Hawkins-Jones pretende preencher.

Há desenvolvimentos interessantes a ocorrer em Chicago que mostram tanto o leque de possibilidades como os desafios na arena eleitoral. Isto não é de surpreender — a greve dos professores de Chicago de 2012 foi uma das mais bem sucedidas na memória recente. O Sindicato dos Professores de Chicago (CUT) foi capaz de construir com sucesso organizações de base nas escolas por toda a cidade, assim como construir alianças com os alunos e seus pais em luta pelas suas escolas.

Isto trouxe-os a um confronto direto com o presidente do município, o Democrata Rahm Emanuel, e com a agenda de reforma educativa promovida pela administração Obama. Quando Emanuel respondeu à greve bem sucedida, pressionando com o fecho de um número recorde de 50 escolas, levantou a questão de uma alternativa política de forma bem mais central.

Que formas eleitorais tomará esta resistência em desenvolvimento, é questão que permanece em aberto. Talvez a expressão mais clara destas dinâmicas seja a campanha de Tim Meegan pela Câmara Municipal no 33º círculo eleitoral de Chicago.

Meegan é um professor de estudos sociais e ativista das bases na CTU. Concorre como independente em três pancartas principais: escolas públicas totalmente financiadas,de qualidade para todos os alunos; justiça económica, incluindo os 15 dólares por hora de salário mínimo; o fim da privatização dos bens e serviços da cidade. A campanha tem-se erguido surgido organicamente a partir das lutas pela educação em Chicago e procura usar uma campanha eleitoral como veículo para a construção de mais movimento.

Ao mesmo tempo, a Campanha Socialista de Chicago — um projeto envolvendo forças principalmente da esquerda organizada — procurou construir a partir da experiência de Sawant, montando uma campanha explicitamente socialista. Ao contrário da campanha de Sawant, foi uma tentativa de aproximar tanto os progressistas sem filiação como os socialistas de diferentes organizações num esforço comum.

Depois de muita discussão, os ativistas organizaram-se para apoiar a campanha de Jorge Mujica para a Câmara Municipal, no bairro de Pilsen de forte componente de trabalhadores e imigrantes. Mujica foi um dos principais organizadores das manifestações massivas de 2006 pelos direitos dos imigrantes em Chicago. A sua campanha está enraizada nas lutas da e redes de ativistas existentes na comunidade e espera ampliar essas lutas através da arena eleitoral. Ao mesmo tempo, está também a criar um desafio mais amplo ao sistema bipartidário e a fazê-lo como campanha abertamente socialista.

As iniciativas descritas até aqui são todas de nível local e estadual. Neste ponto, são ainda conduzidas por progressistas na esperança de tirar partido de algumas das aberturas atuais. São também altamente dependentes, contudo, de condições locais específicas que permitem uma candidatura de um terceiro partido para serem viáveis.

Estas campanhas locais, sejam eles Verdes, independentes ou socialistas, podem desempenhar um papel importante dando expressão política à radicalização existente, reunindo diferentes forças da esquerda e criando confiança. Mas não representam ainda nem qualquer rutura significativa com o Partido Democrata nem a base para um desafio para um terceiro partido nacional.

São sinais de que as condições políticas estão a criar o potencial para este tipo de desenvolvimento, sendo uma proposta muito mais desafiadora do que a mera candidatura em disputas locais com condições favoráveis. O processo de tal rutura não será direto e provavelmente prosseguirá por ajustes e arranques.

A recente resolução do Sindicato dos Professores de Chicago de formar uma organização política independente (IPO) que "permita que uma ampla multiplicidade de organizações diversas estabeleçam um canal direto para desenvolvimento do candidato que identifique e forme as pessoas que fazem parte dos nossos movimentos para que se tornem representantes eleitos" abre uma janela sobre algumas das perspetivas e dos desafios. Esta resolução representa claramente o desenvolvimento político da luta pela educação pública de Chicago e o desejo de representar um desafio para a máquina do Partido Democrata, através do desenvolvimento de candidatos que irão prestar contas ao sindicato e aos movimentos.

Mas a iniciativa enfrenta-se com as questões do sistema bipartidário. No início deste ano, a CTU endossou dois candidatos democratas para a legislatura de Illinois: Will Guzzardi, que ganhou, e Jay Travis, que não ganhou. Ambos os candidatos eram claramente o mais à esquerda que era possível no Partido Democrata, tinham forte apoio nas suas comunidades e têm estado ativos em importantes lutas dos movimentos sociais.

Mas a campanha de Travis e a vitória de Guzzardi enquanto democratas não vai ajudar em nada a desenvolver uma alternativa política independente. Campanhas por candidatos desse tipo de têm sido um mecanismo tradicional pelo qual o Partido Democrata absorve ativistas nas suas fileiras e tenta cooptar as lutas emergentes. Christine Quinn, por exemplo, que perdeu a nomeação para presidente da Câmara de Nova York em favor de Bill de Blasio por causa da sua identificação com Bloomberg, começou a sua carreira como ativista LGBT de base com amplas conexões nas lutas locais.

Uma vez no poder, ativistas de esquerda que tentam continuar a sua luta enquanto representantes do Partido Democrata, acabam no fim por ter de escolher entre fazer acordos e acomodar-se à estrutura de poder existente, ou tornar-se marginalizados e incapazes de realizar os seus objetivos.

Isso não significa que a iniciativa da CTU deva ser descartada pela esquerda. Ela representa as brechas iniciais na base tradicional dos Democratas e é, portanto, um importante desenvolvimento. Mais que não seja, mostra que as tarefas para a esquerda são muito mais desafiadoras do que meramente fazer campanhas bem sucedidas nos nossos próprios termos.

Requer um compromisso de envolvimento com as forças mais amplas que começam a explorar o que poderão ser poder e genuína independência política. Cresce a partir de algumas condições que são as mesmas que deram origem à campanha do Trabalho independente em Lorain, Ohio. À medida que se desenvolvem as lutas sociais, poderemos ver mais lugares onde ativistas que anteriormente estavam ligados ao Partido Democrata comecem a questionar esse compromisso.

Um exemplo disso está em Oakland, Califórnia, onde o advogado de longa data pelos direitos civis Dan Siegel é candidato a presidente da Câmara. Tanto Siegel como o atual presidente de Oakland, Jean Quan, eram socialistas que entraram para o Partido Democrata na sequência da Rainbow Coalition de Jesse Jackson em 1984, na tentativa de puxar o partido para a esquerda.

O uso que Quan fez da repressão policial contra Occupy Oakland ocupam no Outono de 2011 demonstrado apropriadamente que foi o partido que mudou Quan e não Quan que mudou o partido. Isto levou Siegel a romper publicamente com ela e a participar na manifestação pela defesa das vítimas das inúmeras agressões policiais.

Siegel demitiu-se do Partido Democrata e decidiu concorrer como independente. A sua campanha tem destacado as questões essenciais enfrentadas pelas pessoas das classes trabalhadoras e de cor em Oakland e tem inspirado e organizado ativistas de movimentos que vão desde o Occupy até à luta contra a violência policial.

No entanto, ele ainda não tornou a necessidade de rutura política com os Democratas central na sua propaganda de campanha. O ponto até ao qual esta campanha pode dar um passo para organizar a vibrante comunidade ativista do Oakland numa formação independente dos Democratas dependerá precisamente de encarar esta questão.

*

Enquanto isso em Richmond, Califórnia, o veterano trabalhista radical Mike Parker é candidato a presidente da Câmara, dado que Gayle McGlaughlin, presidente do Partido dos Verdes há dois mandatos, está a chegar ao termo. Como ambas são candidaturas não-partidárias, o que exatamente constitui a independência em relação aos Democratas é questão espinhosa que terá de ser exercitada na prática.

Estes desenvolvimentos estão ainda em forma embrionária e é difícil prever se vão crescer num futuro próximo. Devemos incentivá-los e, em casos de candidaturas verdadeiramente independentes, considerar apoiar tais campanhas. E devemos continuar a participar e iniciar discussões no seio dos movimentos trabalhistas e outros movimentos sociais sobre a necessidade de uma alternativa política independente.

Mas também precisamos compreender que uma alternativa credível, de um terceiro partido nacional não surgirá neste país simplesmente a partir da acumulação de uma série de campanhas locais bem sucedidas. Nem será o resultado da crescente unidade à esquerda e de um acordo entre um diversificado leque de forças progressistas para apoiar um desafio nacional (embora isso fosse certamente uma coisa boa).

Se nosso objetivo é uma rutura política do sistema bipartidário, isto exigirá que forças substanciais que votariam normalmente nos democratas decidam quebrar fileiras.

O desenvolvimento das condições que tornem isso possível exigirá esforços que vão além das urnas. A base política para tal provavelmente desenvolver-se-á através de lutas que confrontem o Partido Democrata no poder. A CTU é um exemplo, e a luta pela educação pública está geralmente em contestação direta com a agenda de reformas da administração Obama.

Mas esta não é a única arena. Ativistas ambientais têm combatido a administração de Obama para que pare o oleoduto Keystone XL. Até agora, eles têm conseguido ganhar adiamentos na decisão, mas cada assalto desta luta suscitou questões sobre Obama e o Partido Democrata como um todo.

Os ativistas pelos direitos dos imigrantes estão cada vez mais a centrar o ataque nas deportações dado que Obama deportou um número recorde de imigrantes nos últimos cinco anos. Essas e outras lutas como elas, têm potencial para levar participantes em direção a alternativas de terceiros partidos enquanto também aumentam a confiança e a militância.

A vitória de Sawant em Seattle mostrou o potencial das campanhas eleitorais para dar expressão política e fazer avançar dessas lutas. Traçou uma marcação e criou expectativas à esquerda e para além. Mas seria um erro concluir que o próximo passo é simplesmente um maior envolvimento em campanhas eleitorais.

No momento, as perspetivas de tais campanhas permanecem localizadas, e seu potencial deve ser avaliado individualmente. Mas os nossos olhares devem também manter-se focados no desenvolvimento de lutas que possam reconstruir a confiança e a organização das classes trabalhadoras.

Dentro dessas lutas, deveríamos procurar todas as oportunidades, incluindo oportunidades eleitorais, para construir uma Esquerda mais forte, mais coerente e politicamente independente. Ao fazer este trabalho, agora, podemos começar a expandir os nossos horizontes — e o debate político prevalecente — para além dos limites estreitos definidos pelo sistema bipartidário.

Colaborador

Jennifer Roesch é ativista da Organização Socialista Internacional na cidade de Nova York e colaboradora do Socialist Worker, International Socialist Review e Indypendent.

18 de junho de 2014

Uma resposta ao “Acabar com mal-entendidos” da FIFA

Eddie Cottle

MR Online

Tradução / Em 10 de junho de 2014, a Fédération Internationale de Football Association (FIFA) divulgou o documento “Acabar com mal-entendidos” para desfazer o que seriam “equívocos” a respeito do impacto socioeconômico da Copa do Mundo e sobre o papel da entidade. A publicação do documento é importante: pela primeira vez a Fifa se viu forçada por protestos em massa – e pelos brasileiros – a defender sua imagem assim. As manifestações no Brasil têm ganhando dimensões bem maiores do que fatos como a onda de greves ocorrida durante a Copa na África do Sul exigindo da FIFA que incorporasse a agenda mundial por trabalho decente. E desta vez o cenário da maior revolta contra a entidade em uma Copa do Mundo é um país que ama o futebol!

O documento é revelador pelo tom defensivo adotado pela FIFA, até então a voz hegemônica do futebol mundial. Começa com uma afirmação cômica, mas inegavelmente franca: “Os contribuintes pagaram a conta, a FIFA não gastou nada”, diz, referindo-se aos custos de 15 bilhões de dólares em infraestrutura para a Copa, destacando que só é responsável por cobrir os custos operacionais do evento. Certo, estamos todos de acordo, a FIFA não gastou um centavo com o principal e mais caro fator do evento, a infraestrutura mega-esportiva. Faltou dizer que os contribuintes estão pagando um mega subsídio público, precisamente porque a FIFA não “gasta nada”! E além dessa e de outras doações públicas que recebe dos países que sediam a Copa do Mundo, a criança mimada FIFA exige mais uma série de concessões legais, as famigeradas Leis da FIFA (no Brasil, conhecidas como Lei Geral da Copa).

Essas leis têm um papel chave para garantir mega lucros à FIFA e a seus parceiros comerciais, bancos, empresas de construção e engenharia locais e internacionais. A acumulação de capital para FIFA, afiliadas, empresas e seus acionistas, baseia-se exatamente nesse acesso a fundos públicos, subsídios e isenções fiscais que permitem à entidade e seus parceiros juntar bilhões de dólares sem qualquer esforço. Quem toma os recursos dos contribuintes do país-sede são os Estados nacionais, que representam o grande capital. Na África do Sul isto foi bem documentado no livro “Copa do Mundo na África do Sul: Legado para quem?”.

A FIFA está correta ao dizer no documento que não há isenção fiscal total geral, mas há uma extensa série de isenções de impostos federais concedidas exclusivamente: (1) à própria FIFA e às entidades relacionadas domiciliadas no exterior; (2) às afiliadas da FIFA no Brasil; (3) aos prestadores de serviços da FIFA estabelecidos no Brasil; e (4) a pessoas físicas não-residentes contratadas para trabalhar nos eventos. As isenções incluem todas as receitas, lucros, despesas, custos, investimentos, folhas de pagamento e qualquer tipo de pagamento, em dinheiro ou de outra forma.

Há isenções fiscais por tempo determinado para importações realizadas pela FIFA, por subsidiárias brasileiras da FIFA, confederações da FIFA, membros de associações estrangeiras da FIFA, parceiros de negócios e prestadores de serviços estrangeiros da FIFA, e a transmissora oficial da FIFA.

Há também pagamentos especiais e únicos de prêmios no valor de R$ 100 mil (sem impostos), bem como uma bolsa mensal para os jogadores que fizeram parte das equipes vencedoras da Copa do Mundo de 1958, 1962 e 1970. Esses pagamentos serão feitos por intermédio do Ministério do Esporte e do Ministério da Previdência Social e a origem desses recursos é o erário público.

As Leis da FIFA estabelecem ainda que todos os “vistos e autorizações de trabalho” relacionados ao evento deverão ser emitidos gratuitamente a centenas de milhares de delegações da FIFA, aos que trabalham na transmissora oficial da entidade, e a seus parceiros comerciais, incluindo todos os fãs de futebol que têm ingressos para os jogos. Assim, milhões em receita pública foram perdidos antes mesmo de os jogos começarem.

Também há um gasto elevado do Estado para garantir os direitos de propriedade intelectual da FIFA em que a “FIFA deve ser liberada de pagar quaisquer taxas ao INPI (Instituto Nacional da Propriedade Industrial) até 31 de dezembro de 2014”. Esta lei também inclui uma “bolha livre de impostos” num raio de dois quilômetros ao redor dos locais oficiais da FIFA, o que na prática acaba com a livre concorrência e impede que qualquer um tenha lucro – a não ser que se consiga uma licença com a FIFA. As leis são tão extremas que um bar ou restaurante local não pode nem usar as palavras “copa do mundo”, “Brasil 2014”, “2014 Brasil” e muito menos “FIFA” para atrair clientes. Essa medida exclui a maioria dos comerciantes informais e negócios locais que desejam vender seus produtos durante a Copa do Mundo. A FIFA engana o público quando diz que “não expulsa comerciantes de rua” já que as novas condições (que na África do Sul resultaram em protestos massivos) para camelôs continuam impedindo a presença da maior parte deles nas ruas.

A FIFA ainda frisa que não ordenou que o “Brasil construísse 12 estádios caros”. Embora talvez a gente nunca fique sabendo quantos estádios a FIFA realmente pediu é fato que a entidade exige sim “estádios modernos... belos... de nível artístico”. O relatório de 228 páginas da FIFA “Estádios de futebol: Recomendações Técnicas e Requisitos”, que é considerado o guia dos estádios de futebol do século 21, com certeza deixa a impressão de que os estádios não só podem como devem ser caros. O lounge VIP da FIFA, por exemplo, exigido pela entidade, deve ser grande o suficiente para acomodar 500 convidados por partida em cada local e 2 mil pessoas nos locais de abertura e encerramento dos jogos. Somado a outras exigências de hospitalidade isso só pode ser considerado como um monstruoso desperdício, como despesas de luxo. Na África do Sul foi bem documentado que a FIFA exigiu a construção de um novo estádio moderno em Cape Town simplesmente por causa de seu preconceito de classe com Athlone, uma comunidade de trabalhadores onde já existia um estádio viável.

Agora a FIFA também diz que não é culpada por remoções forçadas. Isso é uma meia verdade. O fato é que as remoções forçadas ocorreram antes da Copa do Mundo e fazem parte da síndrome elitista “World Class City” que tem assolado países ao redor do mundo.

Finalmente a FIFA se esforça para provar que a Copa do Mundo não deixa o país anfitrião com “problemas sociais, econômicos e ecológicos“, que gastou US$ 182 milhões de dólares com o legado esportivo na África e que o evento respeita as questões ambientais. Novamente, meias-verdades: a FIFA teve o maior lucro da história da Copa do Mundo na África do Sul – cerca de US$ 2,3 bilhões de dólares – e o país teve que arcar com custos que ultrapassaram em 1.708% o previsto. Além disso, a Copa do Mundo de 2010 foi considerada o torneio mais poluente até agora.

Para todos os efeitos, a Copa do Mundo Brasil 2014 vai deixar um “legado” ainda maior do que a da África do Sul, que entrou para a história como o torneio mais caro e poluente da história da Fifa.

Eddie Cottle é o editor do livro “Copa do Mundo na África do Sul: Legado para quem?”. Ele é um pesquisador do Labour Research Service localizado na Cidade do Cabo.

12 de junho de 2014

Esperando pela Suprema Corte

Fixando-se no Supremo Tribunal, liberais herdaram o ceticismo dos autores da soberania popular e da política de massas.

Rob Hunter

Jacobin

Illustration by Maxwell Holyoke-Hirsch

Tradução / Os juízes da Suprema Corte não largam facilmente o serviço vitalício. Ruth Bader Ginsburg provocou uma onda de protestos de comentaristas liberais recentemente, quando descartou sugestões para que se aposentasse antes do fim do segundo mandato do presidente Obama. Em 1972, William Douglas desmantelou seus planos de aposentadoria quando a reeleição de Richard Nixon conjurou o espectro de uma substituição hostil. Mas talvez nenhum outro juiz tenha mostrado tanta determinação para permanecer no cargo quanto William Howard Taft. Em 1929, duas semanas depois da Sexta-feira Negra, o ex-presidente convertido em juiz da Suprema Corte declarou: "Tenho de permanecer nessa corte, para impedir que os bolcheviques tomem o controle."

Douglas e Taft eram ambos conscientes das consequências políticas de deixar a Corte. Juízes contemporâneos mostram-se menos inclinados a reconhecer o aspecto militante de seu ofício. Apesar de descrever a atual formação da Suprema Corte como "ativista", Ginsburg parece não se incomodar com a ideia de ser substituído por juiz conservador. Nisso acompanha a mitologia prevalecente sobre a Suprema Corte. Como o colega de Ginsburg, John Roberts, disse na sabatina antes de ser nomeado, em 2005, juízes com poder para revisão judicial – o poder, de fato, de mudar a lei por rever a constitucionalidade da legislação – devem lutar para ser "árbitros" imparciais.

Os liberais protestaram, acusando Roberts de argumentar de má fé, mas, de fato, partilham a mesma visão. Na imaginação política liberal, a Suprema Corte é instituição que deve fazer valer princípios, não práticas políticas. Como reconheceu uma vez o filósofo Richard Rorty, liberais "voltam-se na direção do Judiciário como a única instituição política diante da qual nós ainda sentimos algo semelhante a um respeito misturado ao medo. Essa emoção... tem a ver com respeito pela capacidade de homens e mulheres decentes, para se sentar, destrinçar assuntos e questões, argumentar a favor e contra e chegar a um consenso razoável."

Dado que sempre desdenham o conflito político, os liberais tendem a buscar consensos mediante a conversa. E sempre preferem que tais conversações tenham lugar num estrato estreito de elites e agentes do poder. O único "consenso razoável" que a Suprema Corte pode produzir é inerentemente antidemocrático. O entusiasmo dos liberais para conseguir mudanças políticas por ação da Suprema Corte, não pelo confronto ou pela luta, ilustra até que ponto a política dita progressista esvaziou-se de qualquer conteúdo e objetivo.


Em 1789 – mesmo ano em que os revolucionários franceses estavam tomando a Bastilha – as elites ricas e proprietárias de terras dos recém constituídos Estados Unidos já cuidavam de consolidar o próprio poder. A Revolução Francesa buscou abolir a aristocracia. Mas nos EUA, uma nova aristocracia de proprietários de terras, comerciantes e mercadores de escravos – os autores da Constituição, que entrara em vigor em março daquele ano – cuidavam de impedir que jamais acontecesse coisa semelhante à Revolução Francesa, em solo norte-americano. Estavam incomodados com levantes populares; demandas de perdão de dívidas, em massa; e governos estaduais que pareciam perigosamente interessados em subordinar os interesses de credores e das elites mercantis aos dos agricultores e dos trabalhadores.

Pela Constituição, aqueles agentes iniciais estavam determinados a pôr em ação um sistema de instituições capazes de resistir contra todas e quaisquer pressões democráticas e manifestações tácitas de soberania popular. Embora os autores frequentemente invocassem a ideia de soberania popular, não a tomaram de modo a fazer dela um tema coletivo; de fato, só cuidaram de impedir que ela aflorasse. A Convenção Constituinte de 1787 de modo algum pode ser classificada como assembleia constituinte como havia na França. Foi convocada sob estado de exceção, não em estado de fermentação revolucionária. Seus delegados empenharam-se, não para dar expressão constitucional à soberania popular, mas para criar um governo nacional cuja capacidade de responder adequadamente a políticas democráticas era limitada. Para aqueles que levaram a melhor na convenção, a soberania popular consistia em pouco mais do que a apresentação da Constituição aos governos estaduais para ratificação - uma forma profundamente participativa e popular da democracia não era o que tinha em mente.

A Constituição diz que o poder viria do povo, mas estabelece um sistema de instituições caracteristicamente antidemocráticas. Diferente das instituições políticas da França Republicana, as instituições estabelecidas pela Constituição dos EUA são dominadas por elites, descentralizadas e marcadas por poucas oportunidades para a participação popular direta. Essas são as instituições que o Supremo Tribunal defende quando revisa a constitucionalidade das leis. Desse modo, o Supremo Tribunal participa na política norte-americana sobretudo quando se aplica no esforço para fazer fracassar o exercício do poder democrático das massas.

Antes da Guerra Civil, o Supremo Tribunal praticamente jamais invalidava leis do Congresso, por questões constitucionais. O único episódio importante nesse sentido foi a decisão do presidente do Supremo Tribunal Roger Taney, no caso Dred Scott v. Sandford. Taney escreveu que o Congresso não tinha poderes para proibir a extensão da escravidão para os territórios, e acrescentou, para sua eterna infâmia, que as proteções constitucionais aplicavam-se exclusivamente aos brancos. Dred Scott prenunciava a futura utilização mais óbvia e frequente de revisão judicial: proteger limites constitucionais contra as incursões da política democrática.

A sentença Dred Scott não foi cancelada por alguma outra decisão do Supremo Tribunal, mas, sim, porque os estados secessionistas foram derrotados em guerra. A revolução burguesa nos EUA – a mobilização e morte de centenas de milhares de soldados, além do surgimento de um governo federal com prerrogativas e poderes realmente nacionais – foi o que pôs fim à escravidão, não alguma deliberação e decisão de nove homens velhos vestindo saiotes. A vitória do governo federal na Guerra Civil nos EUA foi cristalizada nas Emendas 13ª, 14ª e 15ª, que estabeleceram o primado de uma concepção nacional de cidadania, sobre a colcha de retalhos de direitos semifeudais de cidadania da república de antes da guerra. 

Mas nem a tinta em que foi escrita a 14ª Emenda havia secado, e o próprio Supremo Tribunal já tratava de apagar a cláusula dos Privilégios e Imunidades, que davam poder ao governo federal para proteger cidadãos contra abusos pelo governos estaduais. (Exemplos contemporâneos desses abusos são "reforma" da previdência social, ataques aos sindicatos e cortes de todos os tipos contra a educação pública.) Nos Slaughterhouse Cases, cinco juízes reescreveram a cláusula dos Privilégios ou Imunidades, de modo a impedir que fosse aplicada à política no estado – um alerta de que o judiciário federal só pode servir como reduto de resistência conservadora contra o projeto de construir um Estado nacional, centralizado e igualitário.

Nas décadas que se seguiram, a Corte só aprofundou seu papel de baluarte conservador contra qualquer tentativa para expandir o alcance e a autoridade das instituições públicas. Muitos historiadores do Supremo Tribunal lembram o caso Lochner v. New York como um marco, na era da reação judicial. Mas a decisão – na qual o Supremo Tribunal derrubou uma lei que criava um limite máximo de horas de trabalho – não foi considerada de grande importância pelos contemporâneos. Era raramente citada em casos subsequentes, e acabou por ser ultrapassada sem reconhecimento ou fanfarra. Mais importante que o caso exposto em Lochner eram os pressupostos ideológicos que animavam a decisão: um medo genuíno de que instituições democráticas se pusessem a meter o nariz no castelo oculto da produção, e uma convicção de que não se pode admitir que a política pública reconheça o conflito de classes. Escrevendo para o Tribunal, o juiz Rufus Wheeler Peckham esbravejava que reconhecer a legalidade de leis que limitassem as horas de trabalho a serem exigida do trabalhador seria abrir uma caixa de Pandora da mais insidiosa intervenção do Estado na economia. Essas preocupações inspiraram muitas das sentenças dos juízes durante esse período. Nenhuma decisão tomada individualmente foi a pedra angular da muralha que o Supremo Tribunal começava a erigir contra políticas progressistas e, portanto, nenhuma decisão considerada individualmente poderia derrubá-lo.

O Tribunal manteve esse viés ideológico ao longo dos anos 1920 e 1930, quando os juízes tinham presidentes conservadores como Taft reforçados por uma leva de reformas do Judiciário federal, que deu ao Supremo maior poder discricionário sobre as próprias súmulas e maiores poderes de supervisão sobre os tribunais inferiores. A Corte tornou-se importante ponto de veto conservador, durante os confrontos entre trabalho e capital antes do New Deal. Em casos como Adkins v. Children’s Hospital (sobre uma lei de salário mínimo federal), o poder do Judiciário para modificar o teor de uma lei, na direção de obstruir a criação de política social nacional ficou vividamente demonstrado. Os juízes conservadores estavam bem conscientes da volatilidade crescente das relações entre trabalho e administradores das fábricas, e da desigualdade econômica crescente. E estavam determinados a impedir quaisquer esforços democráticos que visassem a remediar as patologias do capitalismo.

Mas mesmo precedentes como Adkins logo foram, ou derrubados ou abandonados. Nos anos 1930, os juízes conservadores no Supremo Tribunal cederam a pressões políticas da coalizão do New Deal – como quando Franklin Roosevelt ameaçou desconstituir todo o Supremo Tribunal, como único meio para ultrapassar a intransigência de juízes conservadores – e de resistir contra a expansão dos poderes federais para intervir na economia. A experiência dos anos 1930 deveria ter ensinado duas lições aos liberais progressistas: primeira, que a habilidade do Tribunal para modelar a política nacional aparece, principalmente, sob a modalidade de o Tribunal derrubar legislação popular. A segunda, um Tribunal obstrucionista – como uma oposição obstrucionista – pode ser derrotado mediante ação bem organizada e concertada de líderes políticos, sindicatos e organizações partidárias, e ativistas das bases.

O Tribunal é capaz de desempenhar um papel construtivo na política, fornecendo apoio jurisprudencial a projetos específicos. Que esse apoio esteja sempre acessível e seja sempre farto para projetos conservadores, não é acaso. A Constituição descreve uma política descentralizada, fragmentada pelo federalismo e impenetrável a pressões populares. É, portanto, plataforma de lançamento retórico ideal para os esforços dos conservadores que queiram fazer retroceder quaisquer avanços de governos distributivos. E o Supremo Tribunal é veículo ideal para tais esforços. Como explicou o especialista e professor de Direito Larry Kramer, a antipatia contra a democracia entre conservadores e também entre liberais, na segunda metade do século 20 promoveu a noção de "supremacia do Judiciário", sob a qual o Supremo Tribunal é visto naturalmente como intérprete autorizado da Constituição.

O resultado líquido é duplo: o Supremo Tribunal agora já consegue quase sempre fazer valer as suas próprias construções do sentido da Constituição, e muitos agentes ativos na política (de modo especial os liberais) só pode conceber a tomada de decisões fundamentais sobre a ordem política americana em termos judiciais.

Com a assistência de governos republicanos amistosos, os recentes Tribunais Rehnquist (1986-2005) e Roberts (2005-atual) muito fizeram a favor de pulverizar e fazer sumir todos os fundamentos jurídicos do fragmentado estado de bem-estar que havia sido erguido no século 20. Os Tribunais conservadores passaram a rejeitar o entendimento – que fora alcançado durante o New Deal – de que o Congresso teria capacidade para regular a atividade econômica no plano dos estados, pondo abaixo a Lei das Áreas sem Armas em Áreas de Escolas e parte da Lei contra Violência contra Mulheres (aqui se abriu uma exceção: o Tribunal preserva a capacidade do Congresso para trabalhar a favor de políticas conservadoras, como usar a lei federal para desmontar esforços no plano dos estados para liberalizar o uso de drogas.) Durante a Era Rehnquist, o Supremo Tribunal frequentemente interveio no processo político, declarando limites severos ao poder público e disputando com o governo eleito a competência para administrar a economia. Na Era Roberts, os juízes do Tribunal deram continuidade ao trabalho do Tribunal Rehnquist: mantiveram o desmembramento das capacidades dos governos centrais (eleitos) para monitorar e intervir no mercado, além da fragmentação quase feudal do poder político no plano dos estados.

Mas é importante notar que o Tribunal Roberts é apenas um auxiliar do governo neoliberal. Suas decisões devem ser vistas como ratificações de fatos políticos consumados, não como movimentos independentes. Simplesmente substituir juízes conservadores por juízes liberais é nada, em termos práticos. Fato é que a ratificação judicial dos conservadores ajudou a lançar os alicerces de lei de uma política menos inclusiva, e a impedir contramovimentos também legalistas – únicos movimentos que os liberais ainda estão dispostos a considerar possíveis.

Mas é importante notar que o Tribunal Roberts é apenas um auxiliar da governação neoliberal. As suas decisões devem ser vistas como ratificações de fatos políticos consumados, ao invés de movimentos independentes. Simplesmente substituir os juízes conservadores pelos liberais equivaleria a pouco em termos práticos. No entanto, a ratificação judicial conservadora ajudou a construir as bases legais de um sistema político menos inclusivo, e evitar contramedidas legalistas - os únicos movimentos que os liberais ainda estão dispostos a considerar fazer.


Então, por que o Supremo Tribunal tem tantos defensores liberais? As respostas podem ser encontradas nas décadas de despolitização da segunda metade do século XX.

Jamais favoráveis à agitação, à organização da sociedade e aos confrontos (diferentes nisso dos conservadores, que são muito bem versados nessas táticas), liberais e alguns setores da esquerda puseram-se a imaginar – como tantos fazem ainda hoje – que os caprichos do antagonismo político poderiam ser superados através da majestade do direito constitucional. Inflaram o peito com uma imagem do papel do Tribunal como defensor de direitos e liberdades individuais. A principal pedra fundamental dessa visão é um punhado de decisões exaradas do Supremo Tribunal sob a presidência do juiz Earl Warren. Mas a experiência do Tribunal Warren foi anômala e não será repetida - não até que haja uma profunda mudança na política americana.

Só no ambiente político mais amplo da hegemonia dos liberais de centro, em meados do século 20 – sublinhado materialmente pelos anos do boom do pós-guerra e o equilíbrio, então ainda não completamente destruído, entre o trabalho organizado, o capital e o estado nacional em expansão –, foi que os juízes liberais afinal se sentiram no lugar certo, com poder suficiente para, temporariamente, obter modestos ganhos progressistas. Os feitos progressistas do Supremo Tribunal, que só foram possíveis sob aquelas condições do compacto de pós-guerra definiram as expectativas liberais sobre o quanto o Supremo Tribunal seria capaz de fazer, que se mantiveram mesmo quando, como hoje, aquele compacto já desapareceu completamente.

Apesar de suas realizações, os liberais de centro do Tribunal Warren não conseguiram lançar os alicerces legais para um realinhamento da Constituição, porque resultados realmente progressistas só poderiam ser obtidos se se derrubassem até as pilastras de base da lei constitucional. As decisões de Warren e seus aliados quebraram a continuidade legal – a relíquia feudal mais bem amada dos juristas conservadores. O resultado em Brown v. Board foi alcançado não por raciocínio doutrinal ortodoxo, mas pela consciência que os juízes partilhavam, de que a dessegregação das escolas era moralmente necessária (uma política que nunca foi plenamente implementada e permanece como ideal distante ainda hoje). A opinião majoritária em Griswold v. Connecticut – pedra de toque da moderna jurisprudência sobre privacidade – repousava sobre raciocínio textualmente espúrio. (Não tendo encontrado nenhum direito explícito a qualquer privacidade na "Bill of Rights", o juiz Douglas cozinhou um, extraído das "penumbras" e "emanações" dos direitos individuais lá listados.) E o Supremo Tribunal explicitamente criou novas políticas para comandar interações entre civis e polícia, em casos que se converteram em marcos históricos, como Mapp v. Ohio e Miranda v. Arizona. Sem querer esperar pelos movimentos legislativos de reforma política, o Tribunal se arrogou a missão de produzir políticas, ele mesmo.

Os ganhos obtidos pelo Tribunal Warren foram modestos, mas reais. Mas não podiam durar – como vários outros produtos do compacto do pós-guerra – precisamente porque foram resultado de deliberações feitas dentro da elite, não de mobilização de massas. Muitos casos que viraram referência só muito frouxamente tinham algo a ver com movimentos populares. Poucas das decisões do Tribunal Warren podem ser descritas como conquistas de longas lutas de grupos organizados. Quando foram contestadas por Supremos Tribunais posteriores, aquelas decisões, de modo geral, não encontraram grandes grupos de eleitores que se mobilizassem para defendê-las. Juristas conservadores armados com a doutrina politicamente potente (embora filosoficamente pueril) do "originalismo" sentiram-se suficientemente fortes para declarar que aquelas decisões não tinham base constitucional.

O originalismo – bem resumidamente – é a doutrina segundo a qual a visão e as preferências de políticos e juízes mortos há muito tempo devem sobrepor-se às dos vivos – ainda conserva considerável prestígio, porque é simples e é compatível com o conservadorismo. Os liberais criticam o originalismo por ser arbitrário e regressista, por mais que, eles mesmos, sirvam-se de argumentos também arbitrários e regressistas para defender decisões liberais do Supremo Tribunal contra o que os conservadores chamam de "ativismo judicial". Melhor seria falar de "juristocracia" [juristocracy], termo usado pelo cientista político Ran Hirschl para descrever o uso de tribunais para diminuir ou destruir a qualidade das democracias constitucionais. Contudo, o ativismo de tribunais conservadores recentes é simplesmente o resultado de consistente estratégia juristocrática, e de juízes superiores conservadores extraírem máximo proveito do papel institucional do Tribunal. Usar uma instituição inerentemente conservadora para defender uma Constituição inerentemente conservadora é ação bem direta. Tentar encher aquela instituição com liberais, que tentarão fazer interpretações liberais daquele documento é muito mais difícil.

Depois do auge do Tribunal Warren, presidentes Republicanos e seus governos – aqui se destacam Ronald Reagan e seu Advogado Geral Edwin Meese – trataram de cuidadosamente reformatar o Judiciário Federal, para que servisse como uma barricada contra novas expansões do poder federal. Com raras derrapadas – por exemplo, quando Robert Bork não foi aprovado em sabatina de admissão, principalmente porque pecou por excesso de sinceridade – esta estratégia conseguiu criar um Tribunal dominado por conservadores que se recusam a interpretações amplas sobre o poder do Congresso que judicialmente ratificou instituições do New Deal e da Great Society

Do ponto de vista liberal, juristocracia é uma aberração e não a norma. Na literatura de campanha, em artigos de revistas e editoriais de jornais, a colcha de retalhos do estado progressista condenado a uma existência precária no último século é frequentemente defendida em termos jurisprudenciais. Agir agora ou os republicanos vão anular Roe v. Wade! Meu adversário quer reverter Brown v. Board! Nós precisamos de reparar os danos causados ​​por esses juízes ativistas conservadores em Citizens United! juízes republicanos são uma ameaça aos nossos direitos civis constitucionais!

Essa perspectiva obscurece a importância da luta política concertada, organizada, e destaca, sem necessidade, o linguajar e a casuística legal. O crescente uso contemporâneo do linguajar jurídico também entre os liberais – relacionado que é à preservação de precedentes ainda sobreviventes e à continuidade das instituições, não à sua recriação política – é mais uma ilustração do fundo do poço a que chegou a despolitização das sociedades. Liberais judiciais abandonaram a política de massas, só para ver a hegemonia de juízes também liberais como eles ser detonada pelos sucessos eleitorais dos conservadores, e a resultante recomposição conservadora do Tribunal. A evidência de que rejeitaram a democracia nas ruas os deixam em situação de ter de ansiar por ver no Tribunal algo que muito se assemelha à monarquia.

Os prêmios obtidos mediante o liberalismo judicial jamais foram garantidos e agora parecem mais frágeis do que nunca: direito de optar pelo aborto, mais frágil que papel ao vento; a mais porosa concepção de privacidade; e as mais frágeis proteções que se poderia imaginar, contra uma resma de serviços de segurança cada vez mais militarizados. Esforços organizados de massa – que exigiriam que os liberais superassem a relutância para encontrar aliados na Esquerda – poderiam ter levado a obter os mesmos resultados, mas duradouros e que poderiam ser mantidos, desde que as instituições políticas fossem pressionadas para cumprir a lei, revisar procedimentos administrativos e até, claro, modificar a Constituição.

Mas muitos liberais concebem grupos marginalizados e minorias não como aliados ou camaradas, mas como pontos isolados que não se conectam e que só um Supremo Tribunal muito distanciado poderia proteger. Não existe solidariedade na gramática política liberal com tendência judicial. Em vez disso, há algo que mais parece um erro filosófico: simplesmente é impossível, não pode ser – ou é o que os liberais pensam –, é impossível que minorias engajem-se produtivamente com instituições das maiorias; que grupos marginalizados consigam bater acima da própria altura deles, desde que organizados, em coalizões construídas para essa finalidade; ou que a intersetorialidade da opressão em mundo do capitalismo tardio pode gerar novas compreensões de riscos partilhados e interesses comuns.


Os defensores originais da revisão judicial eram conservadores que desconfiavam da democracia. Hoje, a importância de confiar no Supremo Tribunal para que aja como freio, na política democrática, é como artigo de fé, aceito sem discussão na filosofia política liberal. Fazer a caça a políticas progressistas mediante apelos é elo central para as estratégias de incontáveis instituições políticas liberais. Candidatos à presidência dos EUA prometem nomear juízes que defenderão decisões como Roe v. Wade e rejeitarão decisões como Citizens United, mas não prometem liderar movimentos para expandir e garantir acesso significativo a recursos para aborto seguro, para reduzir a usurpação de prerrogativas democráticas, pelos plutocratas e corporações personalizadas. O liberalismo tecnocrático eclipsou o panorama de democracia aprofundada e de liberdade social significativa que ainda se viam, mesmo de relance, durante episódios como os movimentos para a Reconstrução e pelos direitos civis do século 20.

Direito constitucional não é um veículo para a política emancipatória. O Supremo Tribunal é ferramenta para preservar arranjos de poder institucionais existentes; e os liberais bem fariam se lembrassem o que foram e são aqueles arranjos e por que foram adotados. A concepção de liberdade humana imaginada pela Constituição dos EUA e pelo Supremo Tribunal é despolitizada. É exposta de forma resumida reduzida no texto Constitucional, nunca manifesto na prática política. Os juízes do Supremo Tribunal não considerarão nem agora nem nunca, valores como solidariedade e liberdade para a sociedade, precisamente porque esses valores não aparecem manifestos – sequer são pressupostos – na Constituição; por isso não são legíveis na Constituição. Sejam quais forem os ganhos a serem auferidos ao discutir sobre o significado de um documento nacional partilhado, do século XVIII, são mais do que superados pela hostilidade que aquele documento Constitucional manifesta contra todos os bens partilhados. E a experiência do Tribunal Warren sugere fortemente que as interpretações criativas de um texto de séculos de idade são as mais vulneráveis ​​a serem derrubados.

Liberais desperdiçaram grande quantidade de esforço tentando garantir que as interpretações para eles preferidas, da Constituição, sempre convencessem maiorias de juízes no Tribunal Superior. Um futuro mais justo, antirracista, pró-feminista, não discriminatório e menos ecologicamente destrutivo vai aparecer, depois que os juízes de direita do Supremo Tribunal ouvirem advogados de direita expor argumentos de direita. Isso, os liberais de esquerda já deveriam ter compreendido. Ao se autoatrelarem aos Supremos Tribunais, os liberais reciclavam o ceticismo dos impérios, que jamais levaram a sério a soberania do povo, a política de massas e o exercício do poder público. Adotaram uma visão de política constitucional que gira em torno de ideias de procedimento, consenso e finalidade.

Mas há outro modo de abordar a política constitucional, que a Esquerda conhece bem: como expressão do poder constituinte. Significa articular diferenças, confrontar oponentes e promover a solidariedade. Essas formas de políticas constituem regimes alternativos e contra instituições, e manifestam o desafio que a Esquerda impõe aos discursos constitucionais ossificados sobre como proceder e direitos formais. Porém, enquanto os liberais de esquerda e de centro permaneceram atrelados à aura de autoridade e à destinação engessada do Supremo Tribunal/Suprema Corte, eles continuarão sem conseguir ver o que Chantal Mouffe, teórica da política chamou de "caráter constitutivo da divisão social." Tal divisão e antagonismo são fundamentais para a democracia.

Organizar coalizões amplas e confrontar instituições poderosas pode aparecer na vanguarda da política democrática – não sutilezas de interpretações e interpretações espertas de textos ultrapassados. Direitos duráveis ao aborto serão sempre mais bem protegidos por ampla coalizão que exija direito universal a plano de saúde público do que por repetidos recursos a argumentos para proteger o legado de Roe. A reforma da Polícia racista e violenta que existe nada significa e em nada resultará se continuar a depender de interpretações judiciais da Quarta Emenda, e na ausência de qualquer desejo político de realmente subordinar a controle social os corpos policiais paramilitarizados. Confrontar padrões de grande desigualdade no que tenha a ver com gênero e sexualidade é projeto que se pode buscar mais efetivamente mediante alianças interseccionais, não em disputas medievais sobre doutrina constitucional.

Os liberais devem abandonar a busca de resultados progressistas através do direito constitucional. Não é tarde demais - nunca é tarde demais - para juntar-se na busca de uma política em que a interferência judicial na democracia não seja apenas desnecessária, mas impensável.

Sobre o autor

Rob Hunter é PhD em ciência política pela Universidade de Princeton. Ele mora em Washington, DC.

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