22 de junho de 2014

O outro Dia D... e o início da Guerra Fria

Foi a ofensiva de verão do Exército Vermelho na Bielorrússia, em 1944 - um Dia D que o Ocidente esqueceu - que ajudou a acabar com a guerra e redesenhou o mapa da Europa.

David Reynolds

The Guardian

Joseph Stalin e Winston Churchill na Conferência de Yalta, em 1945. Foto: Photoquest/Getty Images

Tradução / Houve dois Dias D em junho de 1944. Os desembarques de Normandia de 6 de junho, a Operação Overlord, tão comovedoramente evocada faz duas semanas, formam parte da memória nacional britânica. O outro dia segue sendo praticamente desconhecido, tanto entre nós como na América. No entanto, foi igualmente importante para concluir a Segunda Guerra Mundial. E também marcou o início da Guerra Fria na Europa.

Na noite de 21-22 de junho de 1944, o Exército Vermelho lançou sua ofensiva de verão na Bielorrússia, aos três anos completos do dia em que Hitler invadiu a União Soviética. Em 1941, os alemães haviam alcançado uma surpresa completa, cercando a milhões de soldados soviéticos e empurrando-os com enorme pressão até Moscou e Leningrado. No entanto, em 1944, o jogo virou. A Operação Bagration, batizada com o nome de um marechal czarista que havia lutado contra Napoleão, atingiu a Wehrmacht sem aviso prévio. Em cinco semanas, o Exército Vermelho avançou 700.000 quilômetros, atravessando Minsk até chegar aos arredores de Varsóvia e rasgando as entranhas do Grupo de Exércitos Centro de Hitler. Qause 20 divisões alemãs foram completamente destruídas e outras 50 seriamente atingidas, um desastre ainda pior que Stalingrado.

Este imponente êxito soviético aconteceu enquanto Overlord continuava estava presa nas sebes e becos da Normandia. Não foi até o final de julho, conforme Bagration ia perdendo gás, quando os exércitos de Eisenhower conseguiram sair e lançarem-se através da França para libertar Paris em 25 de agosto e Bruxelas em 3 de setembro. Em conjunto, Overlord e Bagration atingiram um duplo revés que deixou destruiu o Reich dos Mil Anos. Finalmente, a Alemanha teve de lutar uma guerra em duas frentes no norte da Europa, um pesadelo que Hitler tinha conseguido evitar desde 1939, e o povo alemão já podia ver o que se aproximava. Não é casual que em 20 de julho oficiais dissidentes tentaram de assassinar o Führer em uma tentativa corajosa, mas quixotesca de estabelecer a paz antes que a Alemanha terminasse arruinada.

Bagration ajudou a acabar com a guerra, mas também foi um sinal de coisas futuras. Quando o Exército Vermelho se aproximou de Varsóvia, o Exército do Interior polonês se levantou contra a brutal ocupação nazista. As forças soviéticas estavam exauridas e não podiam se dirigir para uma grande cidade, mas a recusa de Stalin em oferecer apoio uniforme para os poloneses ou permitir que os aviões de abastecimento britânicos e americanos utilizassem aeródromos controlados por soviéticos, enviou uma mensagem arrepiante para os aliados ocidentais.

Grande parte da Polônia havia sido subsumida no antigo império tsarista. Em 1920, os bolcheviques e os poloneses travaram uma guerra brutal pelas fronteiras da Polônia recentemente independente, que viu as tropas polonesas capturar brevemente Kiev antes de serem levadas de volta a Varsóvia. Duas décadas depois, Stalin estava determinado a resolver a questão. Em 1940, ele secretamente massacrou grande parte do corpo de policiais da Polônia em Katyn; quatro anos depois, ele observou alegremente os alemães esmagar a insurgência de Varsóvia - descrevendo seus líderes anti-soviéticos como um "punhado de criminosos que procuram o poder" - antes de invadir o país a seu bel-prazer.

No início de setembro de 1944, com as tropas de Eisenhower entrando nos Países Baixos, parecia que a segunda guerra mundial acabaria no Natal. Mas então os Aliados não conseguiram atravessar o Reno e a frente ocidental ficou atolada. Na memória britânica, o outono de 1944 centra-se na famosa "ponte longe demais" em Arnhem, enquanto que, na frente leste, Stalin fez avanços ainda mais dramáticos, quando o Exército Vermelho esmagou a Romênia e a Bulgária através da Iugoslávia e a Hungria. O líder que, pouco mais de um ano antes, tinha controlado apenas dois terços do seu país agora dominava boa parte do leste europeu.

Durante a Guerra Fria, a conferência de Yalta de fevereiro de 1945 foi muitas vezes estigmatizada no Ocidente, como o momento em que Roosevelt e Churchill "entregaram" a metade da Europa a Stalin. Na realidade, não houve transferência em 1945, mas uma conquista de terra em 1944, um subproduto da derrota alemã. Na época de Yalta, os soviéticos controlavam a Polônia e boa parte dos Balcãs: como admitiu Roosevelt em particular, tudo o que ele e Churchill podiam esperar era "melhorar" essa situação.

Tan importante como Yalta fue el encuentro de Churchill con Stalin cuatro meses antes. Aunque se trataba de un ardiente enemigo de lo que antaño había llamado "la fétida ridiculez del bolchevismo", Churchill albergaba una paradójica fe en la decencia esencial de Stalin, nacida de dos intensos encuentros bien regados con alcohol en 1942 y 1943. El dirigente soviético, aunque duro al hablar, resultó ser un tipo sin pretensiones, serio en sus tratos, con un sarcástico sentido del humor. "Sólo con cenar con Stalin una vez a la semana", le dijo Churchill a un periodista británico, "se acabarían los problemas. Nos llevamos a las mil maravillas".

Tão importante quanto Yalta foi a reunião de Churchill com Stalin quatro meses antes. Apesar de ser um ardente inimigo do que ele chamou de "o babuíno imundo do bolchevismo", Churchill mantinha uma fé paradoxal na decência essencial de Stalin, nascida de duas reuniões de cúpula intensas e abafadas em 1942 e 1943. O líder soviético, apesar de duro ao falar, era muito despretensioso e comercial, com um senso de humor sarcástico. "Se eu pudesse jantar com Stalin uma vez por semana", disse Churchill a um jornalista britânico, "não haveria nenhum problema. Tudo correu às mil maravilhas".

Con ese espíritu voló Churchill a Moscú en octubre de 1944, tratándose de llegar a un acuerdo sobre la forma que adoptarían los Balcanes en la postguerra antes de que se cerrara la tenaza del Ejército Rojo. El resultado fue el tristemente célebre acuerdo sobre "porcentajes" cerrado con Stalin a altas horas de una noche en el Kremlin. El objetivo de Churchill estribaba en preservar la influencia británica en Grecia y con suerte, en Yugoslavia. Se aseguró de lo primero, y afirmó posteriormente a menudo que Stalin "nunca rompió su palabra en lo tocante a Grecia". Pero eso se consiguió consintiendo de facto el predominio soviético a lo largo y ancho de casi todos los Balcanes.

Nesse espírito, Churchill voou para Moscou em outubro de 1944, buscando chegar a um acordo sobre a forma dos balcãs do pós-guerra antes que o Exército Vermelho garantisse seu controle. O resultado foi o agora notório acordo de "percentuais" concluído com Stalin tarde da noite no Kremlin. O objetivo de Churchill era preservar a influência britânica na Grécia e, esperava, na Iugoslávia. Ele assegurou o primeiro, muitas vezes dizendo que Stalin "nunca disse uma palavra sobre a Grécia". Mas isso foi obtido concedendo o efetivo predomínio soviético sobre os Balcãs.

Para cuando se llegó al acuerdo sobre porcentajes, y no digamos a Yalta, poca diferencia podía suponer la diplomacia. El nuevo mapa de Europa se había decidido, no en la mesa de la conferencia sino en el campo de batalla. Y en esa historia sangrienta, no debería olvidarse el otro día D de junio de 1944. "Esta guerra no es como las del pasado", le dijo Stalin a un comunista yugoslavo: "quien ocupa un territorio impone también su propio sistema social. No puede ser de otra manera". La paranoia soviética sobre su seguridad resultaba comprensible tras la pérdida de 28 millones de ciudadanos. Pero su obsesión con una zona de parachoques en Europa Oriental definiría la Guerra Fría, con un ingente coste humano.

No momento do acordo de porcentagens, e muito menos em Yalta, a diplomacia poderia, de fato, fazer pouca diferença. O novo mapa da Europa não havia sido decidido na mesa da conferência, mas no campo de batalha. E naquela história sangrenta, o outro dia D de junho de 1944 não deve ser esquecido. "Esta guerra não é do passado", disse Stalin a um comunista iugoslavo: "quem quer que ocupe um território também lhe impõe seu próprio sistema social... tanto quanto seu exército possa alcançar. Não pode ser de outra forma ". A paranoia soviética sobre segurança era compreensível após a perda de 28 milhões de cidadãos. Mas a obsessão com uma zona de amortecimento no leste europeu definirá a Guerra Fria, com um enorme custo humano. E a perda dessa proteção de segurança ainda assombra a Rússia de Putin.

Sobre o autor

David Reynolds preside o Departamento de História da Universidade de Cambridge, em cujo Christ's College leciona, tendo se especializado nas duas guerras mundiais e na Guerra Fria. Escreveu e apresentou vários documentários históricos para a BBC, é membro desde 2004 da Academia Britânica e em 2008 recebeu o prestigiado prêmio de história Wolfson. Seu libro mais recente é A longa sombra: A grande guerra e o século XX.

20 de junho de 2014

O espectador mais importante do mundo

David Bromwich

London Review of Books

Vol. 36 No. 13 · 3 July 2014

Tradução / O primeiro ano e meio do segundo mandato de Barack Obama tem sido espetacularmente azarado. Os sucessivos percalços de seu plano de assistência à saúde (Obamacare); os muitos erros da coordenação feita por computador que obrigou pessoas doentes e famílias a esperar dias ou semanas à frente de telas pretas consumiram a nova fé no governo que o tal plano pretendia afirmar. E quando, pelo final de abril de 2014, a coisa parecia meio resolvida, com milhões finalmente cobertos por seguro-saúde e inúmeras carências afinal superadas, começaram as histórias dos falsos relatórios de tratamentos e dos meses de espera por um internamento nos Hospitais dos Veteranos. Foi mais um fracasso do gerenciamento, em mais um ramo do governo com o qual Obama manifestara o mais caloroso interesse-envolvimento. E nem uma pequena coisa que de longe que fosse, se assemelhasse a um sucesso na política exterior, para compensar os embaraços em casa. Os EUA, que sempre precisam estar fazendo coisas e tomando providências, nada conseguiram fazer sobre a reintegração da Crimeia à Federação Russa, nem sobre o conflito na Ucrânia.

O traço comum em todos esses eventos foi que Obama, em pessoa, parecia sempre bem longe da cena. Obama estava trabalhando, nos induziram a crer, preocupado e atentamente compreensivo. Mas em questões como essas, sente-se facilmente que é indispensável um sinal bem claro de que o presidente está ali, “com a mão na massa”. O que se viu, contudo, foi que Obama foi surpreendido pela rejeição de seu plano de assistência à saúde – que ficou chocado e consternado, como todos os norte-americanos. Mas Obama não teria de saber mais, sobretudo, que a maioria de nós, norte-americanos comuns? Mais uma vez, o escândalo dos Hospitais dos Veteranos foi assunto (e escândalo) do qual Obama só soube pelos jornais... Mas por que só soube daquilo tudo quando ligou a TV ou abriu os jornais? O show de caras de confiança traída e surpresa que Obama ofereceu foi recebido com mais simpatia e solidariedade do que em outro evento, ainda mergulhado em obscuridades, em que quatro norte-americanos foram assassinados em Benghazi em 11 de novembro de 2012. Dessa vez, o presidente fora informado, mas estava em plena campanha eleitoral e deixou a crise para o Departamento de Estado. Ausente e absolvido. A questão é que sempre, em todos os casos, há algo de aéreo, zonzo, alheado e enervante em todas essas ausências do presidente Obama. Obama ordenou o bombardeio da Líbia, em março de 2011, depois de ter sinalizado que não bombardearia ninguém. E ordenou o bombardeio da Líbia num discurso inesperado, repentino, sem qualquer planejamento, enquanto fazia visita oficial ao Brasil.

O segundo mandato começou de forma diferente, com uma iniciativa espontânea que surgiu da presença voluntária de Obama numa cena da qual, se não quisesse, não precisaria ter participado. Depois de um assassinato em massa numa escola de crianças em Newtown, Connecticut, em dezembro de 2012, Obama falou com alarde de conseguir a aprovação para nova lei que apertaria o controle sobre posse e uso de armas. Quem o tenha visto, com certeza testemunhou o momento da mais profundamente engajada emoção de toda a presidência de Obama, e o presidente, assumindo o maior risco de todo o seu governo. O momento para divulgar as determinações da nova lei era durante aqueles dias de dezembro de 2012, quando o sofrimento das famílias comovia o país inteiro. A solução de Obama foi típica: anunciou que Joe Biden examinaria as possibilidades legislativas e tinha um mês para apresentar seu relatório. Foram-se as semanas, várias leis que proíbem posse e porte de armas foram veementemente criticadas em público... e a National Rifle Association teve todo o tempo de que precisava para se organizar. O momento passou, e a lei não apareceu. Isso foi mais ou menos o que aconteceu também com a promessa, em janeiro de 2009, de fechar Guantánamo. Obama saiu da sala e deixou ordens para que o chamassem quando o caso estivesse resolvido. A pausa da prudência foi alongada e logo se converteu em sinal tão claro de que o assunto não preocupava Obama, que a questão perdeu qualquer traço de urgência que algum dia tivesse tido.

Obama é adepto de transmitir sentimentos de benevolência que seus ouvintes querem, sentimentos que poderiam levar a ações benevolentes. Parecia estar em seu elemento em todos os discursos de luto & pêsames depois de assassinatos em massa nos EUA, não só em Newtown, mas em Aurora, em Fort Hood, em Tucson, em Boston depois das bombas da Maratona; e em seu encontro com desolados proprietários de casas destruídas em furacões recentes e respectivos prefeitos das áreas devastadas. É presidente para distribuir compaixão com cara de bom, e de uma altura decorosa e reduzida. Esse parece ser o papel que Obama prefere representar também no planeta. Seria a postura da qual teria gostado de falar sobre a Primavera Árabe, e, também, sobre a guerra na Síria. Bastaria que Assad tivesse obedecido às ordens de Obama, quando Obama disse que “Assad tem de sair”. Obama tem o desejo de ajudar o próximo mais puro do que qualquer dos seus predecessores na Casa Branca desde Jimmy Carter; e por alguma espécie de precaução que muito se aproxima da timidez, Obama jamais conversou com Carter, sequer uma vez, nos últimos cinco anos. Obama discursa pela boa causa, mas quase sempre acaba por aprovar o mal aceitável que os políticos ou os ricos dos EUA já tenham aceitado. Obama assiste ao mundo como o seu mais importante espectador.

Mas evita a companhia de outros políticos – traço já bem conhecido de muitos e sempre espantoso. Um importante Democrata do Senado, perguntado sobre quantas vezes conversara com Obama no ano passado, respondeu que só acontecera uma vez. O mesmo senador pediu que seu nome não fosse citado, porque tal grau de intimidade com o presidente despertaria ciúmes entre seus pares. A falta de interesse de Obama no dia a dia da política – ter de negociar e viver imerso também em interesses de outros, o tantas vezes apenas formal, mas necessário intercâmbio de ideias – muito fez para embotar a sensibilidade do presidente quanto a mudanças no sentimento da população. Avesso a conflitos como é, Obama jamais vê que alguma luta se aproxima, senão quando já está sobre a sua cabeça e quase totalmente fora de controle. O Tea Party começou na primavera de 2009, com um surto na Bolsa de Mercadorias de Chicago, do ex-administrador de hedge fund Rick Santelli, que perguntou por que os bons norte-americanos teriam de pagar pelos perdedores que o colapso financeiro afogara num mar de hipotecas impagáveis. Santelli prometeu criar um novo grupo insurgente nas semanas seguintes, feito à imagem do Tea Party de Boston. Foi um discurso espertalhão, mas moralmente feio, e poderia ter sido contido. Obama só tomou conhecimento do Tea Party mais de um ano depois. Quando já estava muito bem organizado e em posição de aplicar a Obama a fragorosa derrota que sofreu nas eleições de meio de mandato de 2010 e derrota da qual seu governo, na verdade, jamais se recuperou.

Por que tantos e tantos choques e surpresas? Obama chegou à presidência sem antes ter comandado coisa alguma. Indicou servidores com ares de muito bem qualificados, mas (como depois se viu) completamente ineptos, com nenhuma das habilidades indispensáveis para administrar. Steven Chu, secretário de Energia no primeiro mandato de Obama é dono de um Prêmio Nobel em Física, mas promulgou sem reagir a “acima exposta” política energética, que incluía, com ecumênica indiferença, energia nuclear, perfuração em águas profundas, perfuração no Ártico e extração xisto (fracking). Kathleen Sebelius, secretária da Saúde e Serviços Humanos, fora governadora do Kansas e leal apoiadora de Obama, mas sem qualquer experiência de administração em larga escala, antes de ver chegar ao seu gabinete o gigantesco aparelho da [lei] “Affordable Care Act”. O mesmo se pode dizer de Eric Shinseki, general famoso por dizer a verdade sobre o número de soldados necessários para tornar seguro o Iraque. Shinseki foi mal posto como administrador dos Assuntos dos Veteranos, e demitido apenas poucas semanas depois de Sebelius.

“Desengajamento” passou a ser a palavra polida para designar a relação de Obama com suas próprias políticas. Ausente, não cobrado e absolvido foi como se viu Obama na crise da Ucrânia que cresceu ao longo dos meses de janeiro e fevereiro. O golpe para derrubar Yanukovich e a tomada do poder por um governo provisório em Kiev foram antecipados e de fato encorajados pela comissão de Europa e Eurásia do Departamento de Estado. A secretária-assistente encarregada era Victoria Nuland, neoconservadora muito bem-sucedida no processo de transição, em 2009, da equipe de Dick Cheney, para a equipe de Hillary Clinton. Nuland é casada com o cofundador do “Projeto para o Novo Século Norte-americano” [orig. Project for the New American Century], Robert Kagan, um dos principais promotores da Guerra no Iraque. É provável que o mundo jamais venha a saber o que Obama supunha que Nuland planejava fazer quando ela voou para a Praça Maidan e lá reapareceu, distribuindo comida aos manifestantes contra a Rússia e a um passo das fronteiras russas. Mas a mensagem já circula amplamente: Obama é um homem que não se empenha muito para saber muito das coisas. Sobre a Ucrânia, parecia longe e distanciado da ação, possivelmente sem nada saber das implicações do investimento do seu Departamento de Estado na sociedade civil e na promoção da democracia para a Ucrânia: e foram mais de US$ 5 bilhões desde 1991 – como Nuland revelou em sessão do National Press Club, em 13 de dezembro de 2013 – soma gigantesca, pelos padrões da Agência USAID. Obama delegou ao seu secretário de Estado, John Kerry, o controle sobre a posição pública dos EUA no mundo. Resultado disso com a Ucrânia em 2014, como com a Síria em 2013, foi tornar a situação ainda mais confusa, cada dia mais carregada de oportunidades para hostilidades entre EUA e Rússia. Até que, no final de março, Obama pronunciou um discurso ante a União Europeia em Bruxelas, no qual expôs a débâcle, mas travestida como se fosse política.

A despreocupação, o descaso com que Obama vê Cheney semear nos canteiros de sua própria política é característico e revelador. Como Barton Gellman revelou em Angler, ainda o melhor livro sobre Cheney, o vice-presidente em 2001 recebeu carta-branca para encher todos os departamentos e agências do governo com trabalhadores de primeiro e segundo escalão que fossem fanaticamente leais a ele-Cheney. Muitos daqueles ainda permanecem por lá; Obama não fez esforço algum para preservar o próprio governo contra a influência deles. O desgosto contra Bush e Cheney, mesmo no Partido Republicano, era generalizado no início de 2009 e dava real poder de alavancagem a qualquer novo presidente. Mas a ideia de que o país tinha de voltar a ser estado de direito não prosperou sob Obama; até a expressão “estado de direito” deixou de ser ouvida. Não se viu sequer um criminoso de Wall Street que tenha sido processado; não se viu sequer uma ação judicial contra advogado que tenha defendido a tortura; ou contra funcionário público que tenha ordenado a tortura nos EUA ou em qualquer lugar do mundo em nome dos EUA; ou contra agente do governo dos EUA que torturou. Onde Cheney e Bush são vistos e ressentidos como instigadores desses crimes, Obama é tido como coadjuvante, cúmplice ou corresponsável.

O modo descontraído e relaxado com que lida com a Constituição, finalmente pôs o presidente Obama do lado oposto ao de seus mais fiéis aliados, mesmo entre os Democratas centristas. A Casa Branca está agora envolvida em luta-livre com a presidente da Comissão de Inteligência do Senado, Dianne Feinstein, tida como defensora rotineira dos interesses da polícia e dos serviços de inteligência, contra cidadãos e suspeitos. A recusa da CIA, mesmo com meses de atraso, a aprovar a entrega a uma comissão do Senado do relatório de suas ações desde 2001, levou Feinstein, afinal, a questionar o papel da Casa Branca, na ocultação do relatório. Feinstein interpretou o elaborado show de imparcialidade de Obama como uma extensão a mais do privilégio executivo, contra o braço do governo responsável pela fiscalização.

A ação executiva foi mais uma vez a opção de Obama, quando acertou o retorno, dia 31 de maio de 2014, de Bowe Bergdahl, prisioneiro norte-americano no Afeganistão, trocado por cinco Talibã que permaneciam presos em Guantánamo. E dia 2 de junho de 2014, a Agência de Proteção Ambiental, com apoio explícito de Obama, anunciou novos limites de carbono calculados para encurtar a vida de usinas movidas a carvão. Essas duas ações, uma doméstica, outra com efeitos fora do país, foram os movimentos mais firmes de Obama, em cinco anos. Mas ambos foram apresentados como decisões do Executivo, nada devendo a político algum, nenhum dos quais foi consultado. Democratas preocupados com eleições e que não foram consultados, teriam relutado a defender a troca de prisioneiros; e democratas dos estados de minas de carvão, como West Virginia e Kentucky já está denunciando ativamente os novos limites de carvão. E essa determinação de Obama, que insiste em fazer as coisas enquanto pode nos seus últimos anos de governo, e em agir sozinho quando não pode agir com o Congresso agora o prendeu e comprometeu-o de tal modo, que Obama está absolutamente sem saída. Aquelas são decisões que, pela própria natureza, não podem ser canceladas. Se o Partido Republicano já não tivesse desperdiçado um pedido de impeachment há pouco tempo demais contra Bill Clinton ele, com certeza, teria respondido à fúria que subia das suas fileiras, e teria castigado Barack Obama, com um impeachment.


O Tea Party tem fama de ser o lar dos liberais-libertaristas norte-americanos: defensores da separação dos poderes e da Bill of Rights, especialmente da 1ª, 2ª, 4ª e 5ª emendas – que protegem, respectivamente: a liberdade de expressão, de prática religiosa e de reunião pacífica; o direito de portar armas; o direito dos cidadãos de serem protegidos contra investigações, espionagem e prisão arbitrárias; e o direito de não ser acusado de crime capital, ou condenado ou punido sem o devido processo legal. Mas o Tea Party abriga crentes-defensores de mais dois tipos, além dos libertaristas de “direitos”: os defensores fanáticos da propriedade e dos lucros privados (não importa o meio pelo qual tenham sido adquiridos); e os odiadores da ação do estado e também do próprio estado, exceto para efeito de prender criminosos e fazer guerra aos inimigos do estado... Até aqui, só um candidato viável que não é membro inscrito do Tea Party parece preparado a candidatar-se à presidência em 2016. Trata-se de Jeb Bush, ex-governador da Florida, irmão caçula de George W. e, segundo o pai deles, o mais sensível dos irmãos.

Enquanto isso, os aspirantes do Tea Party são gente bem estranha, que refletem as características ainda não plenamente definidas do Partido. Marco Rubio, o simpático jovem senador pela Florida, de fala fácil, simpática e rasa, que pode ser equipado para recapturar o voto dos hispânicos de que os Republicanos precisam, se querem sobreviver. Rubio foi apanhado numa mentira há alguns meses: mudou a data da saída de seus pais de Cuba, para mostrá-los como fugitivos de Castro e do comunismo. Mas foi logo perdoado: nos estados do sul em geral, a doença anti-Castro já nada tem a ver, hoje, nem com Castro nem com algum comunismo, nada significa coisa alguma e... Rubio foi absolvido. Ted Cruz, jovem senador do Texas, formado em Princeton e na Faculdade de Direito de Harvard, apresenta-se também como norte-americano por adoção, grato filho de família EUA-cubana (embora tenha nascido no Canadá). É estranhamente parecido, no físico, com Joe McCarthy – um McCarthy bem barbeado, que não bebe, nem deixa beber, sem a pele flácida e as pálpebras avermelhadas pelas noitadas. Cruz fala bem, em tom suave e artisticamente mole, sempre em tom de acusação: um modo de falar que se suporia já morto e enterrado com McCarthy, mas o ódio e o ressentimento nacionalistas deixam sotaque que persiste e persiste.

“O líder incontestável do partido” no Texas (segundo o Dallas Morning News), o senador Cruz prometeu levar para a política nacional a plataforma de 2014 dos Republicanos do Texas. Elementos da plataforma são, dentre outros: selar a fronteira com o México e proibir anistia para imigrantes ilegais; permitir que proprietários de empresas neguem emprego a pessoas que considerem moral ou ofensivas, por motivos religiosos; abolição de todos os impostos sobre a propriedade; extinção da Agência de Proteção Ambiental; fim do salário mínimo; fim de qualquer “ação afirmativa”; apoio à “terapia de reparação” para converter homossexuais às práticas heterossexuais; e fim da loteria estadual. Qualquer esperança de que o establishment Republicano venha a suavizar os rigores desse programa diminuiu consideravelmente quando, dia 10 de junho de 2014, um insurgente do Tea Party derrotou Eric Cantor, líder da maioria no Senado, nas eleições primárias Republicanas no distrito de Cantor na Virginia. Cantor é considerado o representante de Bibi Netanyahu nos EUA e supunha-se que tivesse demarcado o limite máximo de intransigência Republicana durante o debate do teto da dívida em 2011. O homem que derrotou Cantor, com orçamento ínfimo, Dave Brat, é professor de Economia, denunciador do capitalismo-de-comadres e alarmista anti-imigrantes. “O cara” – escreveu o blogueiro que se assina Pangloss, em tom de absoluta surpresa – “achou espaço para se meter à direita de Cantor”.

Rand Paul, filho do libertarista Ron Paul, permanece, como Cruz, candidato ao apoio do Tea Party em 2016. Está entre os mais interessantes políticos contemporâneos, mas, também, entre os mais difíceis de seguir, por sua inconsistência. O discurso de Paul, contra a nomeação de John Brennan para dirigir a CIA, e que se tornou ação de 13 horas de presença ininterrupta na tribuna, para bloquear a ordem de Obama que autorizaria ataques com drones, foi evento que fez história em 2013, mas que, como depois se viu, não passou de prelúdio sem sequelas. Outros atos mais prudentes de Paul como candidato, como um adiamento errado de votação sobre mudança climática, a viagem que fez a Israel (com todo o ritual usual de servilismo), a solução oportunista que ofereceu para a questão da Ucrânia (entregue tudo aos russos, corte relações com todos eles e deixe que a Ucrânia quebre os russos), nada sugerem além das ideias-fixas obsessivas do pai. Mesmo assim será interessante ver quanto do liberal-libertarismo de Ron Paul, que não é partilhado por nenhum outro político de expressão nacional, pode vir a ser representado, seja como for, por Rand.

Em 21 de maio de 2014, Ron Paul fez um extraordinário discurso contra a nomeação de David Barron para a Corte Federal de Apelações; argumentou que Barron, autor do memorando secreto em que expôs argumentos a favor de o presidente assassinar cidadãos norte-americanos mediante o uso de drones, evidentemente era homem que acalentava ideias sobre o poder executivo que, elas próprias, o desqualificavam para o cargo de juiz. Paul instruiu-se nos escritos de jornalistas que não são, de modo algum, considerados da direita nos EUA, como Glenn Greenwald e Conor Friedersdorf; e apoiou toda a sua crítica na importância de o acusado ser julgado por júri qualificado, e na exigência de prova além de qualquer dúvida razoável:

Naqueles memorandos [que Barron redigiu para o presidente] há um padrão diferente (...) O padrão é que um assassinato seria justificado quando “um funcionário informado, de alto nível, do governo dos EUA tenha determinado que o indivíduo-alvo impõe ameaça iminente de ataque violento contra os EUA”. Assim sendo, já não se está usando a dúvida razoável como parâmetro. Esse padrão foi deixado de lado. Agora, já estamos falando de funcionár4io de alto nível, bem informado, que decide, em segredo, que algum ataque estaria para acontecer. 
Interessante sobre “ataque iminente” é que já não nos pautamos pelo que se entende por “iminente” (...) É nova definição do sentido de “iminência” que já não inclui a palavra “imediatamente” (...) O presidente crê, no que tenha a ver com a privacidade, na 4ª emenda, e no que tenha a ver com matar cidadãos norte-americanos, na 5ª emenda, que, se houver meia dúzia de advogados para reler o processo, pronto, já será o devido processo legal. É apavorante, porque isso nada tem a ver com “devido processo legal” (...) Não há devido processo legal se há segredos, processos internos reservados só ao Executivo (...) Da próxima vez, para assassinar um cidadão norte-americano, farão tudo em segredo, só o Executivo saberá do que o Executivo faz, porque essa é a nova norma. 
Vocês estão votando no homem que tornou possível esse precedente histórico pelo qual nós agora podemos assassinar norte-americanos em outros países do mundo. Em segredo – um braço do governo é o assassino – sem representação legal, sem processo legal, tudo baseado numa acusação e em nenhum a defesa. Deixamos para trás o critério da culpa provada além de qualquer dúvida razoável, e abraçamos o critério de que basta uma acusação, para a execução. Estou horrorizado, mas estamos exatamente nesse ponto (...) Temos de nos perguntar nós mesmos: quanto vale o conceito da inocência presumida?

No segundo período de Obama na presidência, coube a um Republicano enunciar essas palavras sobre liberdades civis – embora tenha sido o único no partido dele. Ao contrário, o professor da Faculdade de Direito de Harvard que escreveu aqueles memorandos para justificar o assassinato de cidadãos norte-americanos pelo estado norte-americano e sem o devido processo legal foi visto com máxima consideração pelo establishment liberal, porque tem posição “boa” sobre o casamento gay. Os Democratas têm maioria no Senado, e a nomeação de Barron para a Corte de Apelação já foi aprovada.

A anomalia do discurso de Paul no campo da oposição, e o voto Democrata a favor do advogado dos drones apontam para enigma muito mais profundo. Um perigoso e não dito acordo na política norte-americana cresceu e cresceu quando ninguém estava olhando, e hoje une a esquerda liberal e a direita autoritária. A esquerda liberal e a direita autoritária concordam no apoio não questionado a um governo sem controles e contrapesos; e coube à presidência de Obama cimentar o acordo. O aparelho de Estado que apoia guerras e a indústria de armas para os Republicanos gera bem-estar e direitos expandidos para os Democratas. Os Democratas pouco se incomodam com as guerras, mas tendem a aceitá-las e prescrevê-las pelo que obtêm em troca. Os Republicanos odeiam tudo que se pareça com gastos públicos a favor de qualquer “bem-estar”, mas não conseguem escapar de serem acusados de hipócritas quando votam a favor de gastos públicos sempre crescentes para os militares.

No final de maio, Obama acrescentou mais dois anos e meio ao prazo final que ele mesmo demarcara para retirar os soldados norte-americanos do Afeganistão. A data final para a retirada, agora, será em dezembro de 2016. Dois dias depois, recebeu na Casa Branca um “Concussion Summit” [ap. Cúpula das Cabeças Quebradas (NTs)], que discutiu efeitos de ferimentos na cabeça em crianças pequenas – exatamente o tipo de coisa que os Republicanos adoram usar como tema de zombaria, porque lhes parece atividade descabida para a dignidade do presidente. Entre o anúncio do prazo final da retirada do Afeganistão e o evento das “Cabeças Quebradas”, Obama fez um discurso em West Point, na formatura dos cadetes, que foi anunciado pelos assessores como a principal formulação da doutrina de política externa de Obama. O discurso é manifestação completa e consumada da tendência “nem isso, nem não isso, antes o contrário”, do presidente, embora ratifique a barganha contra o poder do estado, que é a força dominante na política dos EUA. Disse que os EUA vão se engajar em mais atividades militares do que jamais antes, mas como menos norte-americanos mortos. Vamos cuidar do bem-estar dos norte-americanos em primeiro lugar, sem esquecer que temos de defender coisa mais ampla e mais difícil de limitar: nossos “interesses básicos” e nosso “modo de vida” [orig. our “core interests” and our “way of life”].

A epígrafe invisível do discurso de Obama deve ter vindo de Madeleine Albright, secretária de Estado no segundo governo de Bill Clinton. “Se temos de usar a forçar”, disse Albright, “é porque somos os EUA; somos a nação indispensável. Estamos acima e vemos mais longe que outros países na direção do futuro”. Exatamente nesse espírito, Obama disse aos cadetes formandos de West Point que os EUA têm de liderar o mundo, embora não possam policiar o mundo. Por isso é indispensável um consenso internacional para aplicar “normas internacionais”. Essa expressão final tornou-se peça básica do mobiliário intelectual de Obama: normas internacionais existem para ampliar a diferença que separa a lei internacional (que os EUA reservam-se o direito de violar) e a nova “ordem mundial”, da qual os EUA são O Criador e devem permanecer como O Guardião.

“Nos retiramos do Iraque”, disse Obama; e estamos “encerrando nossa guerra no Afeganistão”; a liderança da al-Qaeda foi dizimada nas regiões de fronteira entre Paquistão e Afeganistão e Osama bin Laden já não existe”. Assim sendo, “a questão que enfrentamos (...) a questão que cada um de vocês enfrentará não é se os EUA liderarão, mas como os EUA liderarão”. Mas por que os EUA teriam de só liderar e fazer e acontecer? Porque “se não fizermos, ninguém mais fará”. Como se vê, a deferência ao chiliquismo nacionalista de Albright foi mantida, e deixou aberta uma porta para a doutrina da guerra humanitária inventada por Samantha Power – sucessora de Albright como embaixadora dos EUA à ONU, onde se converteu na mais consultada consultora de Obama para questões de sabedoria sobre engajamentos estrangeiros. Power ajudou Obama a reescrever seu segundo livro e bem pode ter ajudado a redigir o próprio discurso de West Point. Em homenagem àquele modo de pensar, que mistura persuasão, força e bote salva-vidas em resgate de emergência, “a ação militar dos EUA” – Obama prosseguiu – “não pode ser o único, sequer pode ser componente primário de nossa liderança em todos os casos”. O modo preferencial para tratar de problemas internacionais que “agridem a consciência” será multilateral. Mas os EUA, porém, usarão unilateralmente a força “quando nossos interesses básicos assim o exigirem; quando nosso povo estiver ameaçado; quando nossa vida estiver em risco; quando a segurança de nossos aliados estiver em perigo”.

Cada uma e todas as palavras dessa última passagem é, são, ambíguas. A frase inteira é como um convite aos que caçam ambiguidades como oportunidade para usar armas e fazer guerras. Mas... quem é “nosso povo”? Inclui os espiões e os que ouvem nossas conversas telefônicas? As forças especiais que operam na ilegalidade? Mas a palavra mais escorregadia de todas, aí, é a de sempre, eterna desculpa para “ação” e mais “ação”: segurança. Na sequência, então, vinha uma frase que é puro Obama: “A opinião internacional interessa, mas os EUA não precisamos pedir permissão para proteger nosso povo, nossa pátria ou nosso way of life”. Em resumo: até que nos esforçamos para respeitar a opinião internacional, tentando obrigar todos a concordarem conosco; mas, de fato, fazemos o que bem entendemos: impor “normas internacionais” pela violência não é crime que se compare a guerra de agressão, não importa o que diga a “opinião internacional”. O presidente Obama e o secretário de Estado pediram US$ 5 bilhões ao Congresso para apoiar “um novo fundo de parceira para o contraterrorismo” que “amparará países parceiros nas linhas de frente”. Cinco bilhões é eco do dinheiro de que Nuland falou no caso da Ucrânia (vídeo no fim do parágrafo, em inglês), e traz à mente o curioso fato de ajuda externa, seja violenta, seja não violenta, tem vindo muito mais frequentemente do Departamento de Estado, que do Departamento de Defesa. A Síria será o primeiro cenário de ação para esses fundos; parceiros devem ser o Líbano, a Turquia, o Iraque e a Jordânia. “Creio no excepcionalismo norte-americano” – disse Obama na conclusão – “com cada fibra do meu ser”. Essa formulação tem-se convertido em fórmula-juramento de fidelidade, com a mão sobre o coração, que se espera de todos os presidentes norte-americanos; e Obama pronunciou as sílabas com as necessárias reverência e unção. Mas imediatamente acrescentou que “os EUA desejam trabalhar com a OTAN, a ONU, o Banco Mundial e o FMI” (todas as organizações internacionais e financeiras juntas, sem qualquer distinção nem pausa).


Qual pode ser a razão de Obama para decidir “parceirizar” o treinamento contraterrorista e o suprimento de armas para prolongar a guerra na Síria? Não parece ser via que o interesse, se quer acordo com o Irã para usar como “chave de ouro” de sua política exterior. Mas Obama tem uma propensão, que não há via racional que justifique, para prometer coisas que parecem fortes, imediatamente depois cancelar tudo e depois fazer qualquer coisa, seja lá como for. A Síria no verão e outono de 2013 foi o pior momento possível para Obama fazer as coisas desse modo e à vista de todos. Da ameaça à hesitação, à declaração de guerra, a abortar o ataque, porque apareceu solução vinda de fora e que não exigia uso de força: a sucessão tonta de posturas “de guerra” ostentadas e abandonadas ano passado continuará agora, numa guerra por procuração, mais uma, afinal de contas.

O pior erro norte-americano da década passada foi falar de uma guerra ao terror, em vez de uma operação de política internacional cooperativa. Obama não gosta de pronunciar a expressão “guerra ao terror”, mas vive a falar em termos de prontidão bélica e capacidade bélica e leva os norte-americanos a assumirmos, como coisa garantida, que teremos de nos meter em mais de uma guerra de cada vez, e por mais de uma geração. É instrutivo que Dick Cheney, em 2002 e 2003, tenha dito, repetidamente, com essas palavras, que uma hipotética política de defesa poderia vir a ser descrita como “criminosa” ou “política”; e que falasse dessas descrições sempre em tom de desprezo. Ele sabia que, se algum dia o senso comum conseguisse imperar, o pânico, sem o qual sua própria política não sobreviveria, ficaria sem combustível. Fato é que, desde 2002, com exceção dos primeiros meses no Afeganistão e no Iraque, os EUA só fazem lutar contra insurgências. Os inimigos são rebeldes que fazem oposição a governo que os EUA queremos-porque-queremos que lá permaneçam, no Afeganistão, no Iêmen, na Somália e agora também na Líbia. Adeptos da guerra humanitária – Hillary Clinton e Samantha Power sobretudo – em sua loucura para fazer acontecer a guerra na Líbia, amassaram o alvo e confundiram o objetivo, convertendo os EUA em oponentes também de um governo soberano e reclamando para eles a prerrogativa de pôr-se contra governos e divulgar seus crimes, ao mesmo tempo em que encobrem, ignoram e fazem ignorar os crimes de (alguns) rebeldes. Na sequência, aplicaram o mesmo “princípio” à Síria. Os detalhes talvez desagradem Cheney, mas o resultado segue as “linhas” de Cheney. A nova “parceiragem” de Obama no contraterrorismo significará que não há problema algum em meter o país em uma dúzia de diferentes pequenas guerras simultâneas por aí, pelo mundo inteiro.

A próxima eleição já está sendo prejudicada pela imprensa. Já se sabe – já praticamente todos aceitamos – que a candidata dos Democratas será Hillary Clinton. Foi prestimosa secretária de Estado de Obama. Nunca disse bobagens descuidadas e altamente repetíveis que pudessem embaraçar o presidente, como vive a fazer seu sucessor, John Kerry, vezes sem fim. Mas, ao mesmo tempo, Clinton fez do Afeganistão provação muito mais difícil e mais longa, para Obama, quando ela se pôs ao lado dos generais; e cavou trincheira personalizada, para Obama e para os EUA, quando pressionou obsessivamente pela derrubada de Gaddafi. Mrs. Clinton anda ocupadíssima, agora, posicionando-se à direita de Obama. Faz sentido para ela e sua concepção de consenso dominante, como já fez também em 2008. Em semanas recentes, ela tem confessado uma queda já antiga por armar forças rebeldes na Síria; comparou Putin a Hitler; e até sugeriu que sua ideia sobre o Irã é menos positiva que a de Obama: ninguém deve esperar barganha decente das negociações sobre o processamento de urânio. É abordagem sórdida, acanalhada; afinal, pode, sim, acontecer como ela “prevê”. Iraque – guerra a favor da qual ambos, Hillary Clinton e John Kerry, votaram – foi uma catástrofe que bem deveria nos tornar mais atentos; mas desde que as tropas norte-americanas partiram, nos dedicamos a nos convencer de que nada temos a ver com a violência que destruiu o Iraque. Pois mesmo assim, Obama respondeu à rebelião de junho/2014 no Triângulo Sunita, com o envio de 275 marines para ajudar da defesa da embaixada dos EUA em Bagdá. Como se na sequência tivesse “pensado melhor”, pressionado, meteu logo na mesma lista mais 300 “conselheiros” militares; e já avisou que pode ordenar ataques aéreos e massacres por drones. Os neoconservadores estão em marcha outra vez, para as páginas das colunas assinadas nos jornais da imprensa-empresa. O Partido Republicano e alguns Democratas dizem que os EUA devem fazer mais (embora não saibam exatamente o quê). A julgar pelo caos na região (Oriente Médio e Ásia Central) e pela confusão que reina na classe política nos EUA, cujos mais ambiciosos membros continuam a superar-se sempre uns aos outros em matéria de pensamento e postura delirantes, ainda terá de haver ecos e ecos dos desastres do Iraque, Líbia e Afeganistão, antes que os EUA sejam obrigados a recomeçar a pensar.

19 de junho de 2014

Estratégia eleitoral para a esquerda

Os desafios políticos independentes são bem-vindos, mas quebrar o sistema bipartidário exigirá esforços que vão além das urnas.

Jennifer Roesch


daquellamanera / Flickr

Tradução / Quase seis anos sob a presidência neoliberal do Obama, há crescentes sinais de descontentamento entre as bases de voto tradicional dos democratas. Apesar de ambas as vitórias eleitorais de Obama poderem ser atribuídas ao surgimento de eleitoras/es jovens, femininos, negros, latinos e das classes trabalhadoras, estes são precisamente os grupos que mais têm sofrido com a crise econômica e com o envolvimento do seu governo com a austeridade. Isto é parte da razão porque, pela primeira vez desde 2000, há um espaço de abertura na política prevalecente à esquerda do partido democrata.

Em Seattle, a campanha do socialista Kshama Sawant para o Conselho Municipal foi capaz de conseguir o apoio de círculos eleitorais, incluindo alguns sindicatos, que normalmente iriam apoiar os democratas. No condado de Lorain, Ohio, sindicalistas irritados com o presidente da Câmara e vereação locais, Democratas, romperam fileiras e candidataram a sua própria lista independente com duas dúzias de candidatos do mundo do trabalho — tendo quase todos ganho. Isto representa mais uma flexão do músculo do Trabalho diante da traição democrata, do que uma ruptura firme, mas aponta para uma base potencial de classes trabalhadoras para uma alternativa política independente.

Estes são exemplos relativamente pequenos e localizados mas que refletem uma real e crescente frustração e impaciência que vai além da esquerda radical e chega às classes trabalhadoras americanas. A vitória de Sawant em Seattle pode ter sido ajudada pelo apoio de um jornal independente em voga e uma base de voluntários de esquerda, mas os seus temas de campanha eram solidamente da classe trabalhadora e os seus votos vieram esmagadoramente de famílias ganhando menos de 40.000 dólares por ano. O presidente da Câmara de Nova York, Bill DiBlasio, mantém-se um democrata solidamente comprometido, mas a sua campanha de "Um conto de duas cidades" reflete também um afastamento economicamente populista do status quo.

Que rumo isto vai tomar está ainda para se ver. Enquanto se está a abrir espaço para desafios políticos independentes, os progressistas que veem possibilidades de criação de uma ala esquerda dentro do partido democrata darão também um passo em frente. O artigo recente de Adolph Reed "Nothing Left" criticando o compromisso dos liberais para com os democratas foi reportagem de capa da Harper e levou a uma entrevista sobre Bill Moyers.

Que o seu argumento possa ter obtido este tipo de atenção é um sinal da abertura que existe. Mas a resposta de Michelle Goldberg acusando Reed de niilismo eleitoral dá para ter uma ideia da oposição que os liberais irão desenvolver à medida que nos aproximamos das eleições de 2016.

O estrangulamento por parte do sistema bipartidário foi, juntamente com o racismo, um grande obstáculo ao desenvolvimento da consciência e da organização da classe trabalhadora nos Estados Unidos. Isso significou que o debate político dominante manteve-se incrivelmente estreito, conduzido em termos em grande parte aceitáveis pela classe capitalista e que criou uma pressão inevitável sobre os movimentos sociais para se adaptarem à "política do possível".

Se os movimentos sociais e laborais hão-de sair deste ciclo, isso terá de significar uma rutura real para a esquerda do Partido Democrata. Enquanto alguns dos desenvolvimentos no mais recente ciclo eleitoral são encorajadores, isto não é de forma alguma tarefa fácil.

A última vez que houve um significativo desafio eleitoral à esquerda do Partido Democrata foi aquando da campanha presidencial de Nader em 2000. Embora Nader não fosse nenhum socialista, desafiou consistentemente e com sucesso o sistema bipartidário a partir de uma plataforma nacional, conquistando perto de 3 milhões de votos. Embora fosse uma pequena parte dos votos captados, ele conseguiu ter impacto no debate nacional e introduziu questões de esquerda numa discussão que de outra forma se manteria estreita. No auge da campanha falou para um público de mais de 20.000 em Madison Square Garden.

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Houve dois fatores que moldaram o desenvolvimento e a popularidade dessa campanha. Primeiro, dois mandatos de um neoliberal democrata no poder tinham produzido uma reserva de descontentamento, especialmente entre os jovens. Isto levou a que um grande número de eleitores (ou supostos eleitores) olhasse para a esquerda em busca de novas alternativas.

Mas o que realmente galvanizou o desafio de Nader e lhe deu o sentimento de um movimento foi a luta pela justiça global que tinha primeiro ocorrido nas ruas de Seattle nos protestos contra a Organização Mundial do Comércio, menos de um ano antes. A campanha de Nader representou um movimento, que naquela época estava em ascensão, a encontrar expressão eleitoral — "Seattle vai às urnas," como alguns disseram nesse momento.

Hoje, estamos também no segundo mandato de um neoliberal Democrata que tem frustrado e ficado aquém das expectativas. E estamos há cinco anos numa crise económica em que os dois principais partidos políticos seguiram um programa de austeridade. Neste contexto, campanhas de esquerda — ou mesmo socialistas — podem dirigir-se a esta frustração.

Ao mesmo tempo, muitas das lutas que inspiraram as pessoas nos últimos anos têm-se enfrentado com esses desafios ou foram completamente derrotadas. Portanto, as iniciativas eleitorais são menos um reflexo de um movimento em ofensiva do que uma tentativa da esquerda para encontrar uma via diferente para dar expressão política à radicalização que sabemos que existe.

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Este contexto explica o entusiasmo generalizado e a discussão à esquerda sobre as possibilidades eleitorais na sequência da vitória de Sawant. Mas ele também exprime alguns dos desafios que enfrentamos. É tentador ver o trabalho eleitoral como um caminho mais fácil de atividade política ou um atalho na transmissão de uma mensagem de esquerda para um público muito mais vasto. As duas coisas podem ser verdade, mas há duas questões que devem ser consideradas ao tentarmos desenvolver a nossa estratégia eleitoral.

Primeiro, temos de reconhecer que as condições favoráveis que existiam durante a campanha de Silva não são facilmente replicáveis. Estas incluem: leis eleitorais altamente favoráveis (eleições apartidárias que admitiam candidatos sem filiação partidária), com possibilidade de concorrer a qualquer lugar aberto ao nível de toda a cidade e voto postal (este último fator tornou-se decisivo nos dias finais da campanha); a falta de um candidato Republicano, que normalmente dá aos Democratas um meio para exigir uma votação de mal menor à sua base; e movimentos e organizações populares fortes que poderiam ser canalizadas para apoio.

De acordo com isto, precisamos de pensar tendo em conta a relação entre potenciais iniciativas eleitorais e lutas dos movimentos sociais. O trabalho eleitoral tem de ser entendido como uma parte de um processo de reconstrução de combatividade, consciência e confiança da classe trabalhadora.

Dadas as forças relativamente pequenas da esquerda, precisamos fazer algumas perguntas difíceis, incluindo se existem opções viáveis para uma campanha: direcionar energias para a uma campanha eleitoral irá ajudar a dar confiança, promover e dar projeção a lutas existentes e à resistência mais ampla, ou irá antes atuar como substituto dessas lutas ou como sorvedouro de recursos limitados?

Na maioria dos casos, é improvável que campanhas independentes realmente ganhem. Portanto, na maioria das situações, os principais objetivos são fazer crescer a necessidade de uma rutura política com os Democratas, ampliar e fortalecer os movimentos existentes e envolver um público mais amplo em ideias de esquerda. Mesmo em casos em que candidatos independentes sejam capazes de ganhar, como em Seattle, o êxito não pode ser medido nas condições habituais da política burguesa, tais como fazer acordos para aprovar legislação ou construir alianças com outros legisladores.

Em vez disso, o desafio será usar a sua plataforma para dar confiança e apoio às lutas e para criar um polo de atração de esquerda dentro da política dominante. Até agora Sawant tem demonstrado capacidade para aproveitar precisamente esse potencial.

Feitas essas considerações, há discussões ativas em vários lugares sobre como tirar proveito dessa audiência para a política independente. Em Nova York, Howie Hawkins, camionista e ativista laboral e ambiental de longa data, concorre a governador com a chancela do Partido dos Verdes. Ele tem emparceirado com Brian Jones, educador e socialista de longa data para fazer uma campanha que coloque as questões da defesa da educação pública, da luta pela justiça racial e das exigências da classe trabalhadora, como a luta por salário mínimo de 15 dólares por hora.

Hawkins está a concorrer contra Rob Astorino, um Republicano de extrema-direita sem nenhuma oportunidade real de ganhar, e o candidato da linha da frente Andrew Cuomo, o atual governador, que é um Democrata de direita com ambições presidenciais. Cuomo passou o primeiro mandato a atacar os sindicatos do setor público, minando o financiamento de hospitais públicos e seguindo uma agenda de “deformação educativa”1 que financiou escolas de parcerias privadas, forçou os exames eliminatórios e minou as escolas públicas.

Isso criou uma enorme reserva de raiva, que se refletiu na sondagem do [Instituto de Investigação] Sienna realizada em abril e que mostrou que 24% dos entrevistados preferiam um candidato não nomeado do Partido das Famílias Trabalhadoras a Cuomo.

O Partido das Famílias Trabalhadoras, embora formalmente independente, tem consistentemente endossado de forma cruzada Democratas (e, às vezes Republicanos) em sua linha de cédula — incluindo Cuomo, quando ele concorreu ao seu primeiro mandato. Este ano, houve uma luta amarga dentro do partido sobre a possibilidade de quebrar fileiras e ter um candidato independente.

Desde que a luta resultou numa decisão de endossar Cuomo num segundo mandato, há um vivo debate entre progressistas e ativistas sindicais sobre se agora é o momento para uma verdadeira alternativa política aos dois partidos. Isto abriu significativamente um espaço político mais amplo à esquerda dos Democratas e é esse espaço que a campanha de Hawkins-Jones pretende preencher.

Há desenvolvimentos interessantes a ocorrer em Chicago que mostram tanto o leque de possibilidades como os desafios na arena eleitoral. Isto não é de surpreender — a greve dos professores de Chicago de 2012 foi uma das mais bem sucedidas na memória recente. O Sindicato dos Professores de Chicago (CUT) foi capaz de construir com sucesso organizações de base nas escolas por toda a cidade, assim como construir alianças com os alunos e seus pais em luta pelas suas escolas.

Isto trouxe-os a um confronto direto com o presidente do município, o Democrata Rahm Emanuel, e com a agenda de reforma educativa promovida pela administração Obama. Quando Emanuel respondeu à greve bem sucedida, pressionando com o fecho de um número recorde de 50 escolas, levantou a questão de uma alternativa política de forma bem mais central.

Que formas eleitorais tomará esta resistência em desenvolvimento, é questão que permanece em aberto. Talvez a expressão mais clara destas dinâmicas seja a campanha de Tim Meegan pela Câmara Municipal no 33º círculo eleitoral de Chicago.

Meegan é um professor de estudos sociais e ativista das bases na CTU. Concorre como independente em três pancartas principais: escolas públicas totalmente financiadas,de qualidade para todos os alunos; justiça económica, incluindo os 15 dólares por hora de salário mínimo; o fim da privatização dos bens e serviços da cidade. A campanha tem-se erguido surgido organicamente a partir das lutas pela educação em Chicago e procura usar uma campanha eleitoral como veículo para a construção de mais movimento.

Ao mesmo tempo, a Campanha Socialista de Chicago — um projeto envolvendo forças principalmente da esquerda organizada — procurou construir a partir da experiência de Sawant, montando uma campanha explicitamente socialista. Ao contrário da campanha de Sawant, foi uma tentativa de aproximar tanto os progressistas sem filiação como os socialistas de diferentes organizações num esforço comum.

Depois de muita discussão, os ativistas organizaram-se para apoiar a campanha de Jorge Mujica para a Câmara Municipal, no bairro de Pilsen de forte componente de trabalhadores e imigrantes. Mujica foi um dos principais organizadores das manifestações massivas de 2006 pelos direitos dos imigrantes em Chicago. A sua campanha está enraizada nas lutas da e redes de ativistas existentes na comunidade e espera ampliar essas lutas através da arena eleitoral. Ao mesmo tempo, está também a criar um desafio mais amplo ao sistema bipartidário e a fazê-lo como campanha abertamente socialista.

As iniciativas descritas até aqui são todas de nível local e estadual. Neste ponto, são ainda conduzidas por progressistas na esperança de tirar partido de algumas das aberturas atuais. São também altamente dependentes, contudo, de condições locais específicas que permitem uma candidatura de um terceiro partido para serem viáveis.

Estas campanhas locais, sejam eles Verdes, independentes ou socialistas, podem desempenhar um papel importante dando expressão política à radicalização existente, reunindo diferentes forças da esquerda e criando confiança. Mas não representam ainda nem qualquer rutura significativa com o Partido Democrata nem a base para um desafio para um terceiro partido nacional.

São sinais de que as condições políticas estão a criar o potencial para este tipo de desenvolvimento, sendo uma proposta muito mais desafiadora do que a mera candidatura em disputas locais com condições favoráveis. O processo de tal rutura não será direto e provavelmente prosseguirá por ajustes e arranques.

A recente resolução do Sindicato dos Professores de Chicago de formar uma organização política independente (IPO) que "permita que uma ampla multiplicidade de organizações diversas estabeleçam um canal direto para desenvolvimento do candidato que identifique e forme as pessoas que fazem parte dos nossos movimentos para que se tornem representantes eleitos" abre uma janela sobre algumas das perspetivas e dos desafios. Esta resolução representa claramente o desenvolvimento político da luta pela educação pública de Chicago e o desejo de representar um desafio para a máquina do Partido Democrata, através do desenvolvimento de candidatos que irão prestar contas ao sindicato e aos movimentos.

Mas a iniciativa enfrenta-se com as questões do sistema bipartidário. No início deste ano, a CTU endossou dois candidatos democratas para a legislatura de Illinois: Will Guzzardi, que ganhou, e Jay Travis, que não ganhou. Ambos os candidatos eram claramente o mais à esquerda que era possível no Partido Democrata, tinham forte apoio nas suas comunidades e têm estado ativos em importantes lutas dos movimentos sociais.

Mas a campanha de Travis e a vitória de Guzzardi enquanto democratas não vai ajudar em nada a desenvolver uma alternativa política independente. Campanhas por candidatos desse tipo de têm sido um mecanismo tradicional pelo qual o Partido Democrata absorve ativistas nas suas fileiras e tenta cooptar as lutas emergentes. Christine Quinn, por exemplo, que perdeu a nomeação para presidente da Câmara de Nova York em favor de Bill de Blasio por causa da sua identificação com Bloomberg, começou a sua carreira como ativista LGBT de base com amplas conexões nas lutas locais.

Uma vez no poder, ativistas de esquerda que tentam continuar a sua luta enquanto representantes do Partido Democrata, acabam no fim por ter de escolher entre fazer acordos e acomodar-se à estrutura de poder existente, ou tornar-se marginalizados e incapazes de realizar os seus objetivos.

Isso não significa que a iniciativa da CTU deva ser descartada pela esquerda. Ela representa as brechas iniciais na base tradicional dos Democratas e é, portanto, um importante desenvolvimento. Mais que não seja, mostra que as tarefas para a esquerda são muito mais desafiadoras do que meramente fazer campanhas bem sucedidas nos nossos próprios termos.

Requer um compromisso de envolvimento com as forças mais amplas que começam a explorar o que poderão ser poder e genuína independência política. Cresce a partir de algumas condições que são as mesmas que deram origem à campanha do Trabalho independente em Lorain, Ohio. À medida que se desenvolvem as lutas sociais, poderemos ver mais lugares onde ativistas que anteriormente estavam ligados ao Partido Democrata comecem a questionar esse compromisso.

Um exemplo disso está em Oakland, Califórnia, onde o advogado de longa data pelos direitos civis Dan Siegel é candidato a presidente da Câmara. Tanto Siegel como o atual presidente de Oakland, Jean Quan, eram socialistas que entraram para o Partido Democrata na sequência da Rainbow Coalition de Jesse Jackson em 1984, na tentativa de puxar o partido para a esquerda.

O uso que Quan fez da repressão policial contra Occupy Oakland ocupam no Outono de 2011 demonstrado apropriadamente que foi o partido que mudou Quan e não Quan que mudou o partido. Isto levou Siegel a romper publicamente com ela e a participar na manifestação pela defesa das vítimas das inúmeras agressões policiais.

Siegel demitiu-se do Partido Democrata e decidiu concorrer como independente. A sua campanha tem destacado as questões essenciais enfrentadas pelas pessoas das classes trabalhadoras e de cor em Oakland e tem inspirado e organizado ativistas de movimentos que vão desde o Occupy até à luta contra a violência policial.

No entanto, ele ainda não tornou a necessidade de rutura política com os Democratas central na sua propaganda de campanha. O ponto até ao qual esta campanha pode dar um passo para organizar a vibrante comunidade ativista do Oakland numa formação independente dos Democratas dependerá precisamente de encarar esta questão.

*

Enquanto isso em Richmond, Califórnia, o veterano trabalhista radical Mike Parker é candidato a presidente da Câmara, dado que Gayle McGlaughlin, presidente do Partido dos Verdes há dois mandatos, está a chegar ao termo. Como ambas são candidaturas não-partidárias, o que exatamente constitui a independência em relação aos Democratas é questão espinhosa que terá de ser exercitada na prática.

Estes desenvolvimentos estão ainda em forma embrionária e é difícil prever se vão crescer num futuro próximo. Devemos incentivá-los e, em casos de candidaturas verdadeiramente independentes, considerar apoiar tais campanhas. E devemos continuar a participar e iniciar discussões no seio dos movimentos trabalhistas e outros movimentos sociais sobre a necessidade de uma alternativa política independente.

Mas também precisamos compreender que uma alternativa credível, de um terceiro partido nacional não surgirá neste país simplesmente a partir da acumulação de uma série de campanhas locais bem sucedidas. Nem será o resultado da crescente unidade à esquerda e de um acordo entre um diversificado leque de forças progressistas para apoiar um desafio nacional (embora isso fosse certamente uma coisa boa).

Se nosso objetivo é uma rutura política do sistema bipartidário, isto exigirá que forças substanciais que votariam normalmente nos democratas decidam quebrar fileiras.

O desenvolvimento das condições que tornem isso possível exigirá esforços que vão além das urnas. A base política para tal provavelmente desenvolver-se-á através de lutas que confrontem o Partido Democrata no poder. A CTU é um exemplo, e a luta pela educação pública está geralmente em contestação direta com a agenda de reformas da administração Obama.

Mas esta não é a única arena. Ativistas ambientais têm combatido a administração de Obama para que pare o oleoduto Keystone XL. Até agora, eles têm conseguido ganhar adiamentos na decisão, mas cada assalto desta luta suscitou questões sobre Obama e o Partido Democrata como um todo.

Os ativistas pelos direitos dos imigrantes estão cada vez mais a centrar o ataque nas deportações dado que Obama deportou um número recorde de imigrantes nos últimos cinco anos. Essas e outras lutas como elas, têm potencial para levar participantes em direção a alternativas de terceiros partidos enquanto também aumentam a confiança e a militância.

A vitória de Sawant em Seattle mostrou o potencial das campanhas eleitorais para dar expressão política e fazer avançar dessas lutas. Traçou uma marcação e criou expectativas à esquerda e para além. Mas seria um erro concluir que o próximo passo é simplesmente um maior envolvimento em campanhas eleitorais.

No momento, as perspetivas de tais campanhas permanecem localizadas, e seu potencial deve ser avaliado individualmente. Mas os nossos olhares devem também manter-se focados no desenvolvimento de lutas que possam reconstruir a confiança e a organização das classes trabalhadoras.

Dentro dessas lutas, deveríamos procurar todas as oportunidades, incluindo oportunidades eleitorais, para construir uma Esquerda mais forte, mais coerente e politicamente independente. Ao fazer este trabalho, agora, podemos começar a expandir os nossos horizontes — e o debate político prevalecente — para além dos limites estreitos definidos pelo sistema bipartidário.

Colaborador

Jennifer Roesch é ativista da Organização Socialista Internacional na cidade de Nova York e colaboradora do Socialist Worker, International Socialist Review e Indypendent.

12 de junho de 2014

Esperando pela Suprema Corte

Fixando-se no Supremo Tribunal, liberais herdaram o ceticismo dos autores da soberania popular e da política de massas.

Rob Hunter

Jacobin

Illustration by Maxwell Holyoke-Hirsch

Tradução / Os juízes da Suprema Corte não largam facilmente o serviço vitalício. Ruth Bader Ginsburg provocou uma onda de protestos de comentaristas liberais recentemente, quando descartou sugestões para que se aposentasse antes do fim do segundo mandato do presidente Obama. Em 1972, William Douglas desmantelou seus planos de aposentadoria quando a reeleição de Richard Nixon conjurou o espectro de uma substituição hostil. Mas talvez nenhum outro juiz tenha mostrado tanta determinação para permanecer no cargo quanto William Howard Taft. Em 1929, duas semanas depois da Sexta-feira Negra, o ex-presidente convertido em juiz da Suprema Corte declarou: "Tenho de permanecer nessa corte, para impedir que os bolcheviques tomem o controle."

Douglas e Taft eram ambos conscientes das consequências políticas de deixar a Corte. Juízes contemporâneos mostram-se menos inclinados a reconhecer o aspecto militante de seu ofício. Apesar de descrever a atual formação da Suprema Corte como "ativista", Ginsburg parece não se incomodar com a ideia de ser substituído por juiz conservador. Nisso acompanha a mitologia prevalecente sobre a Suprema Corte. Como o colega de Ginsburg, John Roberts, disse na sabatina antes de ser nomeado, em 2005, juízes com poder para revisão judicial – o poder, de fato, de mudar a lei por rever a constitucionalidade da legislação – devem lutar para ser "árbitros" imparciais.

Os liberais protestaram, acusando Roberts de argumentar de má fé, mas, de fato, partilham a mesma visão. Na imaginação política liberal, a Suprema Corte é instituição que deve fazer valer princípios, não práticas políticas. Como reconheceu uma vez o filósofo Richard Rorty, liberais "voltam-se na direção do Judiciário como a única instituição política diante da qual nós ainda sentimos algo semelhante a um respeito misturado ao medo. Essa emoção... tem a ver com respeito pela capacidade de homens e mulheres decentes, para se sentar, destrinçar assuntos e questões, argumentar a favor e contra e chegar a um consenso razoável."

Dado que sempre desdenham o conflito político, os liberais tendem a buscar consensos mediante a conversa. E sempre preferem que tais conversações tenham lugar num estrato estreito de elites e agentes do poder. O único "consenso razoável" que a Suprema Corte pode produzir é inerentemente antidemocrático. O entusiasmo dos liberais para conseguir mudanças políticas por ação da Suprema Corte, não pelo confronto ou pela luta, ilustra até que ponto a política dita progressista esvaziou-se de qualquer conteúdo e objetivo.


Em 1789 – mesmo ano em que os revolucionários franceses estavam tomando a Bastilha – as elites ricas e proprietárias de terras dos recém constituídos Estados Unidos já cuidavam de consolidar o próprio poder. A Revolução Francesa buscou abolir a aristocracia. Mas nos EUA, uma nova aristocracia de proprietários de terras, comerciantes e mercadores de escravos – os autores da Constituição, que entrara em vigor em março daquele ano – cuidavam de impedir que jamais acontecesse coisa semelhante à Revolução Francesa, em solo norte-americano. Estavam incomodados com levantes populares; demandas de perdão de dívidas, em massa; e governos estaduais que pareciam perigosamente interessados em subordinar os interesses de credores e das elites mercantis aos dos agricultores e dos trabalhadores.

Pela Constituição, aqueles agentes iniciais estavam determinados a pôr em ação um sistema de instituições capazes de resistir contra todas e quaisquer pressões democráticas e manifestações tácitas de soberania popular. Embora os autores frequentemente invocassem a ideia de soberania popular, não a tomaram de modo a fazer dela um tema coletivo; de fato, só cuidaram de impedir que ela aflorasse. A Convenção Constituinte de 1787 de modo algum pode ser classificada como assembleia constituinte como havia na França. Foi convocada sob estado de exceção, não em estado de fermentação revolucionária. Seus delegados empenharam-se, não para dar expressão constitucional à soberania popular, mas para criar um governo nacional cuja capacidade de responder adequadamente a políticas democráticas era limitada. Para aqueles que levaram a melhor na convenção, a soberania popular consistia em pouco mais do que a apresentação da Constituição aos governos estaduais para ratificação - uma forma profundamente participativa e popular da democracia não era o que tinha em mente.

A Constituição diz que o poder viria do povo, mas estabelece um sistema de instituições caracteristicamente antidemocráticas. Diferente das instituições políticas da França Republicana, as instituições estabelecidas pela Constituição dos EUA são dominadas por elites, descentralizadas e marcadas por poucas oportunidades para a participação popular direta. Essas são as instituições que o Supremo Tribunal defende quando revisa a constitucionalidade das leis. Desse modo, o Supremo Tribunal participa na política norte-americana sobretudo quando se aplica no esforço para fazer fracassar o exercício do poder democrático das massas.

Antes da Guerra Civil, o Supremo Tribunal praticamente jamais invalidava leis do Congresso, por questões constitucionais. O único episódio importante nesse sentido foi a decisão do presidente do Supremo Tribunal Roger Taney, no caso Dred Scott v. Sandford. Taney escreveu que o Congresso não tinha poderes para proibir a extensão da escravidão para os territórios, e acrescentou, para sua eterna infâmia, que as proteções constitucionais aplicavam-se exclusivamente aos brancos. Dred Scott prenunciava a futura utilização mais óbvia e frequente de revisão judicial: proteger limites constitucionais contra as incursões da política democrática.

A sentença Dred Scott não foi cancelada por alguma outra decisão do Supremo Tribunal, mas, sim, porque os estados secessionistas foram derrotados em guerra. A revolução burguesa nos EUA – a mobilização e morte de centenas de milhares de soldados, além do surgimento de um governo federal com prerrogativas e poderes realmente nacionais – foi o que pôs fim à escravidão, não alguma deliberação e decisão de nove homens velhos vestindo saiotes. A vitória do governo federal na Guerra Civil nos EUA foi cristalizada nas Emendas 13ª, 14ª e 15ª, que estabeleceram o primado de uma concepção nacional de cidadania, sobre a colcha de retalhos de direitos semifeudais de cidadania da república de antes da guerra. 

Mas nem a tinta em que foi escrita a 14ª Emenda havia secado, e o próprio Supremo Tribunal já tratava de apagar a cláusula dos Privilégios e Imunidades, que davam poder ao governo federal para proteger cidadãos contra abusos pelo governos estaduais. (Exemplos contemporâneos desses abusos são "reforma" da previdência social, ataques aos sindicatos e cortes de todos os tipos contra a educação pública.) Nos Slaughterhouse Cases, cinco juízes reescreveram a cláusula dos Privilégios ou Imunidades, de modo a impedir que fosse aplicada à política no estado – um alerta de que o judiciário federal só pode servir como reduto de resistência conservadora contra o projeto de construir um Estado nacional, centralizado e igualitário.

Nas décadas que se seguiram, a Corte só aprofundou seu papel de baluarte conservador contra qualquer tentativa para expandir o alcance e a autoridade das instituições públicas. Muitos historiadores do Supremo Tribunal lembram o caso Lochner v. New York como um marco, na era da reação judicial. Mas a decisão – na qual o Supremo Tribunal derrubou uma lei que criava um limite máximo de horas de trabalho – não foi considerada de grande importância pelos contemporâneos. Era raramente citada em casos subsequentes, e acabou por ser ultrapassada sem reconhecimento ou fanfarra. Mais importante que o caso exposto em Lochner eram os pressupostos ideológicos que animavam a decisão: um medo genuíno de que instituições democráticas se pusessem a meter o nariz no castelo oculto da produção, e uma convicção de que não se pode admitir que a política pública reconheça o conflito de classes. Escrevendo para o Tribunal, o juiz Rufus Wheeler Peckham esbravejava que reconhecer a legalidade de leis que limitassem as horas de trabalho a serem exigida do trabalhador seria abrir uma caixa de Pandora da mais insidiosa intervenção do Estado na economia. Essas preocupações inspiraram muitas das sentenças dos juízes durante esse período. Nenhuma decisão tomada individualmente foi a pedra angular da muralha que o Supremo Tribunal começava a erigir contra políticas progressistas e, portanto, nenhuma decisão considerada individualmente poderia derrubá-lo.

O Tribunal manteve esse viés ideológico ao longo dos anos 1920 e 1930, quando os juízes tinham presidentes conservadores como Taft reforçados por uma leva de reformas do Judiciário federal, que deu ao Supremo maior poder discricionário sobre as próprias súmulas e maiores poderes de supervisão sobre os tribunais inferiores. A Corte tornou-se importante ponto de veto conservador, durante os confrontos entre trabalho e capital antes do New Deal. Em casos como Adkins v. Children’s Hospital (sobre uma lei de salário mínimo federal), o poder do Judiciário para modificar o teor de uma lei, na direção de obstruir a criação de política social nacional ficou vividamente demonstrado. Os juízes conservadores estavam bem conscientes da volatilidade crescente das relações entre trabalho e administradores das fábricas, e da desigualdade econômica crescente. E estavam determinados a impedir quaisquer esforços democráticos que visassem a remediar as patologias do capitalismo.

Mas mesmo precedentes como Adkins logo foram, ou derrubados ou abandonados. Nos anos 1930, os juízes conservadores no Supremo Tribunal cederam a pressões políticas da coalizão do New Deal – como quando Franklin Roosevelt ameaçou desconstituir todo o Supremo Tribunal, como único meio para ultrapassar a intransigência de juízes conservadores – e de resistir contra a expansão dos poderes federais para intervir na economia. A experiência dos anos 1930 deveria ter ensinado duas lições aos liberais progressistas: primeira, que a habilidade do Tribunal para modelar a política nacional aparece, principalmente, sob a modalidade de o Tribunal derrubar legislação popular. A segunda, um Tribunal obstrucionista – como uma oposição obstrucionista – pode ser derrotado mediante ação bem organizada e concertada de líderes políticos, sindicatos e organizações partidárias, e ativistas das bases.

O Tribunal é capaz de desempenhar um papel construtivo na política, fornecendo apoio jurisprudencial a projetos específicos. Que esse apoio esteja sempre acessível e seja sempre farto para projetos conservadores, não é acaso. A Constituição descreve uma política descentralizada, fragmentada pelo federalismo e impenetrável a pressões populares. É, portanto, plataforma de lançamento retórico ideal para os esforços dos conservadores que queiram fazer retroceder quaisquer avanços de governos distributivos. E o Supremo Tribunal é veículo ideal para tais esforços. Como explicou o especialista e professor de Direito Larry Kramer, a antipatia contra a democracia entre conservadores e também entre liberais, na segunda metade do século 20 promoveu a noção de "supremacia do Judiciário", sob a qual o Supremo Tribunal é visto naturalmente como intérprete autorizado da Constituição.

O resultado líquido é duplo: o Supremo Tribunal agora já consegue quase sempre fazer valer as suas próprias construções do sentido da Constituição, e muitos agentes ativos na política (de modo especial os liberais) só pode conceber a tomada de decisões fundamentais sobre a ordem política americana em termos judiciais.

Com a assistência de governos republicanos amistosos, os recentes Tribunais Rehnquist (1986-2005) e Roberts (2005-atual) muito fizeram a favor de pulverizar e fazer sumir todos os fundamentos jurídicos do fragmentado estado de bem-estar que havia sido erguido no século 20. Os Tribunais conservadores passaram a rejeitar o entendimento – que fora alcançado durante o New Deal – de que o Congresso teria capacidade para regular a atividade econômica no plano dos estados, pondo abaixo a Lei das Áreas sem Armas em Áreas de Escolas e parte da Lei contra Violência contra Mulheres (aqui se abriu uma exceção: o Tribunal preserva a capacidade do Congresso para trabalhar a favor de políticas conservadoras, como usar a lei federal para desmontar esforços no plano dos estados para liberalizar o uso de drogas.) Durante a Era Rehnquist, o Supremo Tribunal frequentemente interveio no processo político, declarando limites severos ao poder público e disputando com o governo eleito a competência para administrar a economia. Na Era Roberts, os juízes do Tribunal deram continuidade ao trabalho do Tribunal Rehnquist: mantiveram o desmembramento das capacidades dos governos centrais (eleitos) para monitorar e intervir no mercado, além da fragmentação quase feudal do poder político no plano dos estados.

Mas é importante notar que o Tribunal Roberts é apenas um auxiliar do governo neoliberal. Suas decisões devem ser vistas como ratificações de fatos políticos consumados, não como movimentos independentes. Simplesmente substituir juízes conservadores por juízes liberais é nada, em termos práticos. Fato é que a ratificação judicial dos conservadores ajudou a lançar os alicerces de lei de uma política menos inclusiva, e a impedir contramovimentos também legalistas – únicos movimentos que os liberais ainda estão dispostos a considerar possíveis.

Mas é importante notar que o Tribunal Roberts é apenas um auxiliar da governação neoliberal. As suas decisões devem ser vistas como ratificações de fatos políticos consumados, ao invés de movimentos independentes. Simplesmente substituir os juízes conservadores pelos liberais equivaleria a pouco em termos práticos. No entanto, a ratificação judicial conservadora ajudou a construir as bases legais de um sistema político menos inclusivo, e evitar contramedidas legalistas - os únicos movimentos que os liberais ainda estão dispostos a considerar fazer.


Então, por que o Supremo Tribunal tem tantos defensores liberais? As respostas podem ser encontradas nas décadas de despolitização da segunda metade do século XX.

Jamais favoráveis à agitação, à organização da sociedade e aos confrontos (diferentes nisso dos conservadores, que são muito bem versados nessas táticas), liberais e alguns setores da esquerda puseram-se a imaginar – como tantos fazem ainda hoje – que os caprichos do antagonismo político poderiam ser superados através da majestade do direito constitucional. Inflaram o peito com uma imagem do papel do Tribunal como defensor de direitos e liberdades individuais. A principal pedra fundamental dessa visão é um punhado de decisões exaradas do Supremo Tribunal sob a presidência do juiz Earl Warren. Mas a experiência do Tribunal Warren foi anômala e não será repetida - não até que haja uma profunda mudança na política americana.

Só no ambiente político mais amplo da hegemonia dos liberais de centro, em meados do século 20 – sublinhado materialmente pelos anos do boom do pós-guerra e o equilíbrio, então ainda não completamente destruído, entre o trabalho organizado, o capital e o estado nacional em expansão –, foi que os juízes liberais afinal se sentiram no lugar certo, com poder suficiente para, temporariamente, obter modestos ganhos progressistas. Os feitos progressistas do Supremo Tribunal, que só foram possíveis sob aquelas condições do compacto de pós-guerra definiram as expectativas liberais sobre o quanto o Supremo Tribunal seria capaz de fazer, que se mantiveram mesmo quando, como hoje, aquele compacto já desapareceu completamente.

Apesar de suas realizações, os liberais de centro do Tribunal Warren não conseguiram lançar os alicerces legais para um realinhamento da Constituição, porque resultados realmente progressistas só poderiam ser obtidos se se derrubassem até as pilastras de base da lei constitucional. As decisões de Warren e seus aliados quebraram a continuidade legal – a relíquia feudal mais bem amada dos juristas conservadores. O resultado em Brown v. Board foi alcançado não por raciocínio doutrinal ortodoxo, mas pela consciência que os juízes partilhavam, de que a dessegregação das escolas era moralmente necessária (uma política que nunca foi plenamente implementada e permanece como ideal distante ainda hoje). A opinião majoritária em Griswold v. Connecticut – pedra de toque da moderna jurisprudência sobre privacidade – repousava sobre raciocínio textualmente espúrio. (Não tendo encontrado nenhum direito explícito a qualquer privacidade na "Bill of Rights", o juiz Douglas cozinhou um, extraído das "penumbras" e "emanações" dos direitos individuais lá listados.) E o Supremo Tribunal explicitamente criou novas políticas para comandar interações entre civis e polícia, em casos que se converteram em marcos históricos, como Mapp v. Ohio e Miranda v. Arizona. Sem querer esperar pelos movimentos legislativos de reforma política, o Tribunal se arrogou a missão de produzir políticas, ele mesmo.

Os ganhos obtidos pelo Tribunal Warren foram modestos, mas reais. Mas não podiam durar – como vários outros produtos do compacto do pós-guerra – precisamente porque foram resultado de deliberações feitas dentro da elite, não de mobilização de massas. Muitos casos que viraram referência só muito frouxamente tinham algo a ver com movimentos populares. Poucas das decisões do Tribunal Warren podem ser descritas como conquistas de longas lutas de grupos organizados. Quando foram contestadas por Supremos Tribunais posteriores, aquelas decisões, de modo geral, não encontraram grandes grupos de eleitores que se mobilizassem para defendê-las. Juristas conservadores armados com a doutrina politicamente potente (embora filosoficamente pueril) do "originalismo" sentiram-se suficientemente fortes para declarar que aquelas decisões não tinham base constitucional.

O originalismo – bem resumidamente – é a doutrina segundo a qual a visão e as preferências de políticos e juízes mortos há muito tempo devem sobrepor-se às dos vivos – ainda conserva considerável prestígio, porque é simples e é compatível com o conservadorismo. Os liberais criticam o originalismo por ser arbitrário e regressista, por mais que, eles mesmos, sirvam-se de argumentos também arbitrários e regressistas para defender decisões liberais do Supremo Tribunal contra o que os conservadores chamam de "ativismo judicial". Melhor seria falar de "juristocracia" [juristocracy], termo usado pelo cientista político Ran Hirschl para descrever o uso de tribunais para diminuir ou destruir a qualidade das democracias constitucionais. Contudo, o ativismo de tribunais conservadores recentes é simplesmente o resultado de consistente estratégia juristocrática, e de juízes superiores conservadores extraírem máximo proveito do papel institucional do Tribunal. Usar uma instituição inerentemente conservadora para defender uma Constituição inerentemente conservadora é ação bem direta. Tentar encher aquela instituição com liberais, que tentarão fazer interpretações liberais daquele documento é muito mais difícil.

Depois do auge do Tribunal Warren, presidentes Republicanos e seus governos – aqui se destacam Ronald Reagan e seu Advogado Geral Edwin Meese – trataram de cuidadosamente reformatar o Judiciário Federal, para que servisse como uma barricada contra novas expansões do poder federal. Com raras derrapadas – por exemplo, quando Robert Bork não foi aprovado em sabatina de admissão, principalmente porque pecou por excesso de sinceridade – esta estratégia conseguiu criar um Tribunal dominado por conservadores que se recusam a interpretações amplas sobre o poder do Congresso que judicialmente ratificou instituições do New Deal e da Great Society

Do ponto de vista liberal, juristocracia é uma aberração e não a norma. Na literatura de campanha, em artigos de revistas e editoriais de jornais, a colcha de retalhos do estado progressista condenado a uma existência precária no último século é frequentemente defendida em termos jurisprudenciais. Agir agora ou os republicanos vão anular Roe v. Wade! Meu adversário quer reverter Brown v. Board! Nós precisamos de reparar os danos causados ​​por esses juízes ativistas conservadores em Citizens United! juízes republicanos são uma ameaça aos nossos direitos civis constitucionais!

Essa perspectiva obscurece a importância da luta política concertada, organizada, e destaca, sem necessidade, o linguajar e a casuística legal. O crescente uso contemporâneo do linguajar jurídico também entre os liberais – relacionado que é à preservação de precedentes ainda sobreviventes e à continuidade das instituições, não à sua recriação política – é mais uma ilustração do fundo do poço a que chegou a despolitização das sociedades. Liberais judiciais abandonaram a política de massas, só para ver a hegemonia de juízes também liberais como eles ser detonada pelos sucessos eleitorais dos conservadores, e a resultante recomposição conservadora do Tribunal. A evidência de que rejeitaram a democracia nas ruas os deixam em situação de ter de ansiar por ver no Tribunal algo que muito se assemelha à monarquia.

Os prêmios obtidos mediante o liberalismo judicial jamais foram garantidos e agora parecem mais frágeis do que nunca: direito de optar pelo aborto, mais frágil que papel ao vento; a mais porosa concepção de privacidade; e as mais frágeis proteções que se poderia imaginar, contra uma resma de serviços de segurança cada vez mais militarizados. Esforços organizados de massa – que exigiriam que os liberais superassem a relutância para encontrar aliados na Esquerda – poderiam ter levado a obter os mesmos resultados, mas duradouros e que poderiam ser mantidos, desde que as instituições políticas fossem pressionadas para cumprir a lei, revisar procedimentos administrativos e até, claro, modificar a Constituição.

Mas muitos liberais concebem grupos marginalizados e minorias não como aliados ou camaradas, mas como pontos isolados que não se conectam e que só um Supremo Tribunal muito distanciado poderia proteger. Não existe solidariedade na gramática política liberal com tendência judicial. Em vez disso, há algo que mais parece um erro filosófico: simplesmente é impossível, não pode ser – ou é o que os liberais pensam –, é impossível que minorias engajem-se produtivamente com instituições das maiorias; que grupos marginalizados consigam bater acima da própria altura deles, desde que organizados, em coalizões construídas para essa finalidade; ou que a intersetorialidade da opressão em mundo do capitalismo tardio pode gerar novas compreensões de riscos partilhados e interesses comuns.


Os defensores originais da revisão judicial eram conservadores que desconfiavam da democracia. Hoje, a importância de confiar no Supremo Tribunal para que aja como freio, na política democrática, é como artigo de fé, aceito sem discussão na filosofia política liberal. Fazer a caça a políticas progressistas mediante apelos é elo central para as estratégias de incontáveis instituições políticas liberais. Candidatos à presidência dos EUA prometem nomear juízes que defenderão decisões como Roe v. Wade e rejeitarão decisões como Citizens United, mas não prometem liderar movimentos para expandir e garantir acesso significativo a recursos para aborto seguro, para reduzir a usurpação de prerrogativas democráticas, pelos plutocratas e corporações personalizadas. O liberalismo tecnocrático eclipsou o panorama de democracia aprofundada e de liberdade social significativa que ainda se viam, mesmo de relance, durante episódios como os movimentos para a Reconstrução e pelos direitos civis do século 20.

Direito constitucional não é um veículo para a política emancipatória. O Supremo Tribunal é ferramenta para preservar arranjos de poder institucionais existentes; e os liberais bem fariam se lembrassem o que foram e são aqueles arranjos e por que foram adotados. A concepção de liberdade humana imaginada pela Constituição dos EUA e pelo Supremo Tribunal é despolitizada. É exposta de forma resumida reduzida no texto Constitucional, nunca manifesto na prática política. Os juízes do Supremo Tribunal não considerarão nem agora nem nunca, valores como solidariedade e liberdade para a sociedade, precisamente porque esses valores não aparecem manifestos – sequer são pressupostos – na Constituição; por isso não são legíveis na Constituição. Sejam quais forem os ganhos a serem auferidos ao discutir sobre o significado de um documento nacional partilhado, do século XVIII, são mais do que superados pela hostilidade que aquele documento Constitucional manifesta contra todos os bens partilhados. E a experiência do Tribunal Warren sugere fortemente que as interpretações criativas de um texto de séculos de idade são as mais vulneráveis ​​a serem derrubados.

Liberais desperdiçaram grande quantidade de esforço tentando garantir que as interpretações para eles preferidas, da Constituição, sempre convencessem maiorias de juízes no Tribunal Superior. Um futuro mais justo, antirracista, pró-feminista, não discriminatório e menos ecologicamente destrutivo vai aparecer, depois que os juízes de direita do Supremo Tribunal ouvirem advogados de direita expor argumentos de direita. Isso, os liberais de esquerda já deveriam ter compreendido. Ao se autoatrelarem aos Supremos Tribunais, os liberais reciclavam o ceticismo dos impérios, que jamais levaram a sério a soberania do povo, a política de massas e o exercício do poder público. Adotaram uma visão de política constitucional que gira em torno de ideias de procedimento, consenso e finalidade.

Mas há outro modo de abordar a política constitucional, que a Esquerda conhece bem: como expressão do poder constituinte. Significa articular diferenças, confrontar oponentes e promover a solidariedade. Essas formas de políticas constituem regimes alternativos e contra instituições, e manifestam o desafio que a Esquerda impõe aos discursos constitucionais ossificados sobre como proceder e direitos formais. Porém, enquanto os liberais de esquerda e de centro permaneceram atrelados à aura de autoridade e à destinação engessada do Supremo Tribunal/Suprema Corte, eles continuarão sem conseguir ver o que Chantal Mouffe, teórica da política chamou de "caráter constitutivo da divisão social." Tal divisão e antagonismo são fundamentais para a democracia.

Organizar coalizões amplas e confrontar instituições poderosas pode aparecer na vanguarda da política democrática – não sutilezas de interpretações e interpretações espertas de textos ultrapassados. Direitos duráveis ao aborto serão sempre mais bem protegidos por ampla coalizão que exija direito universal a plano de saúde público do que por repetidos recursos a argumentos para proteger o legado de Roe. A reforma da Polícia racista e violenta que existe nada significa e em nada resultará se continuar a depender de interpretações judiciais da Quarta Emenda, e na ausência de qualquer desejo político de realmente subordinar a controle social os corpos policiais paramilitarizados. Confrontar padrões de grande desigualdade no que tenha a ver com gênero e sexualidade é projeto que se pode buscar mais efetivamente mediante alianças interseccionais, não em disputas medievais sobre doutrina constitucional.

Os liberais devem abandonar a busca de resultados progressistas através do direito constitucional. Não é tarde demais - nunca é tarde demais - para juntar-se na busca de uma política em que a interferência judicial na democracia não seja apenas desnecessária, mas impensável.

Sobre o autor

Rob Hunter é PhD em ciência política pela Universidade de Princeton. Ele mora em Washington, DC.

1 de junho de 2014

Movimentos populares em direção ao socialismo: Sua unidade e diversidade

Este artigo analisa a emergência e o papel das mobilizações populares em direção ao socialismo, argumentando que embora os movimentos sejam múltiplos, diversos e localmente distintos, eles compartilham elementos comuns — como a crítica radical ao capital, a busca por democracias econômicas efetivas e a necessidade de ação coletiva — o que permite identificar uma unidade estratégica entre diferentes lutas.

Samir Amin

Monthly Review Vol. 66 (2014–2015), No. 02 (June 2014)

O movimento ao socialismo

Tradução / As reflexões que seguem dizem respeito a um desafio permanente e fundamental que todos os movimentos populares em luta contra o capitalismo enfrentaram e enfrentam. Por lutas contra o capitalismo entendo sejam (a) as lutas dos movimentos que assumam o objetivo radical de abolir esse sistema baseado na propriedade privada dos meios de produção modernos (o capital), para substituí-lo por sistema baseado na propriedade social dos trabalhadores; e (b) as lutas dos movimentos que, sem ir até lá, mobilizam-se para realmente transformar, e em medida significativa, as relações entre o trabalho (“empregado do capital”) e o capital (“que emprega trabalhadores”). Esses movimentos (a) e (b) podem contribuir, em graus diferentes, para pôr o capitalismo outra vez em causa; como podem também só criar a ilusão de que agem naquela direção, quando, de fato, só constrangem o capital a se transformar para absorver, caso a caso, as reivindicações do trabalho. Sabendo que a fronteira entre a eficácia e a impotência das estratégias adotadas nem sempre é fácil de demarcar, como tampouco é fácil o choque entre as perspectivas estratégicas e as contingências táticas.

Considerados em conjunto, bom número desses movimentos podem ser qualificados como “movimento ao socialismo”. Tomo emprestada a locução ao vocabulário posto em uso ao longo das últimas décadas por alguns partidos da América do Sul (Chile, Bolívia e outros). Esses partidos renunciaram ao objetivo tradicional dos partidos comunistas (“exercer o poder para construir o socialismo”), para substituí-lo por outro – de aparência mais modesta – de construir pacientemente as condições sociais e políticas que permitem avançar rumo ao socialismo. A diferença está em que a construção do socialismo pregada pelos partidos comunistas a ela dedicados partia de uma definição de socialismo previamente conhecida, inspirada pela experiência soviética, que se pode resumir em dois termos: nacionalizações e planejamento de Estado. Os partidos que se definem pelo “movimento ao socialismo” deixam aberta a identificação final dos meios para socializar a gestão de uma economia moderna.

Certo número de organizações e partidos – mas não todos – que reivindicam para eles o socialismo, ou ainda o comunismo, declaram-se herdeiros de Marx e mesmo, às vezes, de um marxismo histórico como formulado pelas tradições do sovietismo e/ou do maoísmo.

De fato, o triunfo do capitalismo a partir da revolução industrial e sua globalização pela expansão imperialista criaram simultaneamente as condições para a emergência de um projeto de civilização universal superior, o do socialismo/comunismo. Várias fontes convergiram nessa invenção; e Lênin, depois de Engels, ofereceu-lhe uma classificação bem conhecida da variante marxista: a economia clássica inglesa, o socialismo utópico francês, a filosofia hegeliana alemã. Apresentação que simplifica a realidade e ignora várias outras contribuições de antes e depois de Marx.

Sem dúvida, a contribuição de Marx à formulação do projeto socialista/comunista constitui a cisão decisiva na elaboração do projeto. O pensamento de Marx constrói-se, de fato, a partir de uma análise científica rigorosa do capitalismo considerado em todas as facetas de sua realidade histórica, o que não havia nas formulações socialistas anteriores e mesmo posteriores, que ignoraram Marx. A formulação da lei do valor própria do capitalismo, a identificação das tendências longas da acumulação do capital, a identificação das contradições, a análise das relações entre as lutas de classes e os conflitos internacionais, por um lado; e das transformações das modalidades da gestão da acumulação e da política, por outro lado; e a análise das expressões alienadas das consciências sociais definem juntas o pensamento de Marx que inaugura o desdobramento de marxismos históricos, em particular os da II e da III Internacionais, do sovietismo e do maoísmo.

A posição central da Revolução Francesa na formação do mundo moderno

A Revolução Francesa ocupa, na minha leitura da construção moderna, uma posição central. Porque ela define um sistema de valores (liberdade, igualdade, fraternidade – hoje se diria solidariedade) que enraíza a modernidade em sua contradição fundamental; porque esses valores são, definitivamente, bem mais os valores de uma civilização socialista superior a ser inventada, que valores que o capitalismo possa honrar com plena e autêntica realização. Nesse sentido, a Revolução Francesa é mais que uma “revolução burguesa” (como o foi, por exemplo, a de 1688 na Inglaterra); ela anuncia, com a Convenção da Montanha – a necessidade de ir além.

Os valores do capitalismo – os que são úteis para o desdobramento do capitalismo – são os que inspiraram a não-revolução americana: liberdade e propriedade. Juntas, elas definem a liberdade de empresa, a liberdade de empreender, seja a pequena empresa agrícola familiar, como foi o caso nas colônias da Nova Inglaterra, seja a fazenda escravista nas colônias do sul, ou seja, mais tarde, a grande empresa industrial, depois os monopólios financeirizados. Juntos, esses dois valores associados excluem qualquer aspiração à igualdade que vá além da igualdade que haja no direito igual para todos: “igualdade de oportunidades”, dirá o discurso ideológico que ignora as desigualdades iniciais que separam as classes de proprietários, do proletariado vendedor de força de trabalho.

Liberdade e propriedade dão, juntas, uma legitimidade aparente à desigualdade: a desigualdade será o produto do talento e do trabalho do indivíduo. Elas ignoram as virtudes da solidariedade, para só reconhecerem as de seu antípoda: a competição entre indivíduos e empresas.

Liberdade e igualdade são valores conflitantes por natureza, e só se tornariam complementares se se suprimisse a propriedade burguesa, entendida como propriedade de uma minoria. A Revolução Francesa, mesmo em seu momento de radicalismo “montanhês”, não vai até lá: ela continua a proteger a propriedade sacralizada, que concebe como generalizável, sob a forma de pequena propriedade agrícola e artesanal familiar. Ela não tem os meios que lhe permitiriam conter o movimento do capitalismo que reconhecerá a concentração progressiva e inevitável da propriedade moderna – a concentração do capital.

A ideia do socialismo/comunismo, entendida como etapa da civilização superior à ideia do capitalismo, constitui-se precisamente na tomada gradual de consciência do que está implicado na prática sincera da divisa “liberdade, igualdade, solidariedade”: substituir a propriedade coletiva da minoria dos burgueses, pela propriedade coletiva dos trabalhadores.

As diferentes linhagens na formação do pensamento e da ação socialistas

Confrontar as relações sociais do capitalismo e a exploração dos trabalhadores a elas associados está na origem dos movimentos de lutas populares modernas. Esses movimentos podem ter sido em certos casos, na origem, espontâneos; em outros casos, foram impulsionados com diferentes graus de sucesso por grupos que se dedicaram a mobilizar e a organizar, para esse fim, os trabalhadores.

Esses movimentos em questão aparecem muito cedo na nova Europa, entrada na revolução industrial, em particular na Inglaterra, na França e na Bélgica, um pouco mais tarde na Alemanha e em outros pontos na Europa, como nos EUA, na Nova Inglaterra. Desenrolam-se ao longo de todo o século XIX, para tomar vários rumos (qualificados de “revolucionários” e de “reformistas” no século XX).

Outros movimentos surgem nas sociedades do capitalismo periférico, quer dizer, em países integrados ao sistema globalizado do capitalismo em muitas regiões submetidas às exigências da acumulação, dos centros dominantes. Em seu desdobramento mundial, o capitalismo histórico é polarizador, no sentido de que centros dominantes e periféricos dominados são construídos simultaneamente em uma relação de assimetria sempre reproduzida e aprofundada pela lógica do sistema. Capitalismo e imperialismo constituem o verso e o reverso indissociáveis da mesma realidade.

Nessas condições, os movimentos em luta contra o sistema instalado são largamente anti-imperialistas, no sentido de que as forças sociais que estão na origem deles propõem-se como objetivo, não construir uma sociedade pós-capitalista, mas, sim, “copiar para resgatar” as sociedades capitalistas opulentas dos centros. Todavia, porque a burguesia desses países é modelada desde o nascimento pela relação de dependência (e por isso qualificada como “compradora” por natureza, para empregar o termo com que, na origem, foi designada pelo comunismo chinês), ela não tem meios para reconstruir-se como burguesia nacional capaz de uma autêntica revolução burguesa (“antifeudal”, para empregar o termo em uso no comunismo da III Internacional). Daí que o combate contra o imperialismo, conduzido como grande aliança social anti-imperialista e antifeudal dirigida por um partido que reivindica para ele a perspectiva socialista/comunista, torne-se potencialmente anticapitalista.

Esses movimentos de emancipação nacional e popular põem-se o objetivo de atravessar a etapa da revolução anti-imperialista/antifeudal/popular (e não burguesa)/democrática. Inscrevem-se então no movimento ao socialismo.

Temos, pois, de examinar de mais perto duas famílias de movimentos ao socialismo: os que emergem e desenrolam-se nos centros imperialistas; e os que se desenrolam nas periferias dominadas. Essas duas famílias de movimentos jamais se beneficiam da garantia de que serão vistas como famílias de movimentos ao socialismo, mas alguns movimentos podem, potencialmente, vir a sê-lo. Quais são as condições e quais os critérios que nos permitem classificar como tal alguns movimentos?

Linhagens de movimentos ao socialismo nos centros do sistema capitalista mundial

A tomada de consciência de que o capitalismo deve ser abolido e substituído por uma organização socialista da sociedade opera seus primeiros avanços na França, mais que em outros pontos da Europa do século XIX ou nos EUA. O vetor dessa progressão é fornecido pelos herdeiros do jacobinismo, atores maiores em 1848 depois na Comuna de 1871, cuja teoria foi produzida por Blanqui, a qual se inspirou no sindicalismo revolucionário francês. A cooperativa de produção e a autogestão fornecem o quadro institucional e jurídico dessas primeiras formulações da socialização da propriedade.

O “socialismo francês” – podemos chamá-lo assim – distingue-se do outro cuja emergência será inspirada por Marx, por seu caráter idealista. De fato, suas origens devem ser buscadas na herança da Filosofia das Luzes do século XVIII, à qual dá a mais radical interpretação social do sentido dos valores éticos de justiça, cidadania, igualdade, liberdade, solidariedade. Mas persiste sem tomar conhecimento do exame científico dos processos que regem a produção e a reprodução da acumulação – que Marx será o primeiro e único a analisar para compreender as razões e a natureza da aspiração ao socialismo.

Compreende-se assim que Marx, depois os marxismos históricos da II e da III Internacionais, tenha sido críticos da teoria e da prática desse “socialismo francês”. Crítica do blanquismo que substitui a estratégia da luta de longa duração do proletariado que se organiza ele próprio, pela estratégia de conspiração e do golpe de estado; crítica não menos violenta da filosofia de Proudhon; crítica da concepção “elitista” da organização do sindicalismo revolucionário. Adiante, voltaremos sobre essa questão do “sindicalismo revolucionário” (à francesa), cujos traços estão ainda vivos na França contemporânea, e que o distingue do “sindicalismo de massa” (ou de “consenso”) de outros países europeus.

Marx ouviu bem outras linhagens, além da francesa, que contribuíram para a formação do (ou dos) movimento ao socialismo, efetivo ou ilusório, na Europa, portanto, da linhagem inglesa em particular. Mas não as examinarei aqui.

Essas fontes convergirão para a construção da Associação Internacional dos Trabalhadores - Association Internationale des Travailleurs (AIT) -, a I Internacional, criada quando Marx ainda vivia e com sua ativa participação.

Sobre ela, Marx escreveu em 1866 (Resolução do 1º Congresso da Associação Internacional dos Trabalhadores): "A obra da AIT é generalizar e unificar os movimentos espontâneos da classe operária, mas não prescrever-lhe ou impor algum sistema doutrinal seja qual for."

A AIT associa organizações – embriões de partidos e de sindicatos, associações diversas – que reivindiquem para elas “sistemas doutrinais” diferentes: o de Marx, mas também os de Bakunin e de Proudhon. Marx combate, no seio da AIT, um combate ideológico e político contra as doutrinas que para ele não têm fundamento científico e, por isso mesmo, são fonte de ilusão e ineficácia para o movimento operário. Mas, na frase citada acima, Marx expõe o princípio fundamental ao qual me alinho: aceitar, reconhecer a diversidade, agir para reforçar a unidade nas lutas.

Ora, o que se desenvolverá na Europa ao longo do último terço do século XIX, depois da morte de Marx, mas com Engels ainda vivo, é exatamente uma evolução dos movimentos europeus ao socialismo que surgirão desse princípio.

A II Internacional é marcada pelo encontro de “partidos” que se haviam tornado – em termos relativos – “grandes partidos operários”, praticamente um por país. Essa evolução será concomitante à formação de grandes sindicatos, incomparavelmente maiores que os da Europa de Marx. A cada país “seu” partido. São diferentes, de um país a outro. Mas todos partilham o ideal de serem “o partido operário único” em seu país. A formação deles, como tal, baseia-se de fato na fusão de movimentos que, na origem, cumpriam diferentes obediências. O Partido Operário Social Democrata Alemão associa lassalistas e marxistas; o Partido Socialista Francês, jaurès-sistas (herdeiros da tradição do “socialismo francês"), guesdistas (marxistas) e blanquistas. O Partido Britânico confunde-se com os sindicatos federados no Partido Trabalhista. Essa evolução, na época, pareceu positiva e sólida, a muitos. A história mostrará que é mais frágil do que se supunha.

Mas “a unidade” formalmente realizada do plano organizacional irá, dali em diante, ser concebida não como complementar da diversidade – cuja existência é negada – mas como em conflito com ela.

A unidade aparente do partido operário parece consolidada pela emergência do sindicalismo, ele também unificado. O “sindicalismo de massa” encontra via livre: todos os assalariados de um ramo de atividades industriais e comerciais têm de ser sindicalizados (é o objetivo que se autoimpõem) e tem de pertencer ao mesmo sindicato único. O modelo por excelência desse sindicalismo será dado, um pouco mais tarde, pelos países escandinavos. Mas a França continua a ser a exceção a essa tendência geral. Na tradição do sindicalismo revolucionário, o Sindicato só recruta a vanguarda politizada e dedica a adestrar as massas de assalariados, a organizar as lutas delas, e/ou a apoiar os movimentos espontâneos. O Sindicato faz-se de quase-partido, aliado ou concorrente dos partidos operários. O sindicalismo de massa não favorece a politização de suas tropas, mas, ao contrário, facilita sua obediência passiva, sua despolitização. O Sindicato de massas alinha-se pelo menor denominador comum: a reivindicação estritamente econômica, vez ou outra o apoio eleitoral ao seu aliado, o partido socialdemocrata.

A guerra de 1914 fará eclodir à luz do dia a impotência dos partidos e sindicatos da II Internacional. A “traição” de Kautsky surpreendeu o próprio Lênin. Contudo, a deriva “revisionista” iniciada por Bernstein – e o sucesso que teve – faria compreender que os partidos e sindicatos não mais constituíam qualquer “movimento ao socialismo”. A razão maior dessa deriva não estava porém na “traição dos chefes”, nem na corrupção da magra faixa de aristocracia operária e do carreirismo dos burocratas da organização. Sua origem estava em um fato objetivo: a opulência da sociedade fundada sobre a pilhagem imperialista. A deriva persistirá no período do entre-guerras (1920-1939) e mesmo depois da II Guerra Mundial, durante os “30 anos gloriosos” (1945-1975). Os partidos e os sindicatos “reformistas” – que renunciaram a repor em questão o capitalismo – manteriam a confiança da maioria dos trabalhadores, relegando os comunistas leninistas ao status de minorias.

Claro que há nuanças em tudo isso, e o autor dessas linhas crê ter consciência delas, desde o início. Em alguns momentos do entre-guerras, ante a ameaça fascista e nazista, as lutas para salvaguardar a democracia (burguesa) convergem com as lutas por melhores condições para os trabalhadores. As Frentes Populares podem então fazer renascer a esperança de que o movimento seja reconvertido ao socialismo. No pós-guerra, a soma da colaboração de classes das burguesias do continente europeu e a Alemanha nazista rampante, o papel decisivo das classes operárias nos movimentos de resistência, o prestígio do Exército Vermelho que derrotou os nazistas, tudo isso torna outra vez possível que renasça uma esperança de movimento ao socialismo, sobretudo na França e na Itália. As conquistas das classes operárias, na Grã-Bretanha e na Europa ocidental, mesmo nos EUA – a seguridade social, as políticas de pleno emprego, o aumento dos salários paralelo aos ganhos anuais da produtividade média do trabalho social – nada disso pode ser visto, em nenhum caso, com desprezo. Tudo isso transformou – e para melhor – as condições de dezenas de milhões de trabalhadores. Tudo isso transformou – e para melhor – a figura das sociedades envolvidas.

Mas ao mesmo tempo é forçoso constatar que esses ganhos dos trabalhadores foram possibilitados – pelo capital – pela pilhagem imperialista reforçada. Durante todos os “30 anos gloriosos”, a energia (o petróleo) tornou-se praticamente gratuita.

Não há pois oposição séria, nos centros imperialistas, que se oponha à vitória do capital, em contraofensiva, a partir de 1975, pondo fim aos “30 anos gloriosos” e às conquistas operárias e, simultaneamente, à progressão da deriva dos partidos e sindicatos da ex-II Internacional, alinhando-se pois no social-liberalismo. Chegamos assim ao fim da progressão: à sociedade de “consenso”, entendido como a aceitação do “capitalismo eterno”, da despolitização, da substituição do trabalhador-cidadão pelo espectador e pelo consumidor.

Essa vitória do capital e o desaparecimento nos centros imperialistas que tenham a ver, de qualquer movimento ao socialismo, não foram contudo assim tão firmes como se acreditou ou se fez crer. A renovação das lutas contra as devastações sociais associadas ao diktat do capital vitorioso anuncia a possibilidade de uma renovação do movimento ao socialismo. Adiante, voltaremos a isso.

As linhagens leninistas do movimento ao socialismo

A primeira revolução vitoriosa feita em nome do socialismo é a da Rússia, país semiperiférico. E não por acaso. O Partido Operário Social Democrata Russo, criado no fim do século XIX, acredita pertencer à família europeia da época e Kautsky é seu mentor. De fato, o POSDR não pertence à Europa; e anuncia a transferência do centro de gravidade dos movimentos ao socialismo, dos centros imperialistas para os centros periféricos. Essa transferência vai modelar todo o século XX. Não é pois por acaso que a tendência radical (os bolcheviques) vença na Rússia a tendência da conciliação (os mencheviques) que ela empurra para a defensiva, quando, em todos os países europeus, vê-se acontecer o inverso.

Não obstante, Lênin permanece ligado aos conceitos da II Internacional no que tenha a ver com a relação entre a unidade necessária e a diversidade das correntes do movimento ao socialismo. E, em duas questões importantes, até lhes acentua os traços. Primeiramente, considera que só há lugar para um único partido da classe operária – “uma classe/um partido”. Todos os outros partidos que a III Internacional reconhecerá não participam do movimento ao socialismo. São traidores; nada além disso; é preciso ganhar as massas que eles enganam. Pode-se fazê-lo, ele acreditou, até a derrota – a qual, contudo, já estava anunciada – da revolução alemã de 1918-1919. Em segundo lugar, não se admite a independência sindical. Porque os sindicatos, diz ele, entregues a eles mesmos, não conseguem ultrapassar a consciência reformista, da reivindicação. É preciso pois integrar os sindicatos no sistema do movimento ao socialismo, submetendo-os ao status de correia de transmissão da estratégia revolucionária do Partido revolucionário.

Contudo, a história real das lutas sociais na própria Europa desmentiria a conceitualização da II Internacional e a conceitualização de Lênin, sobre o papel dos sindicatos. Os “grandes sindicatos de massa” (como na Alemanha), baseados no consenso e aliados fiéis dos “grandes partidos” da esquerda eleitoral (como o SPD na Alemanha) não foram obstáculo ao desdobramento da ofensiva do capital dos monopólios financeirizados. Ao contrário: ajudaram-nos a alcançar seus objetivos. Por outro lado, o que resta da tradição do sindicalismo revolucionário na França (chamado de “elitista” e de minoritário), porque deixa boa margem de autonomia às iniciativas da base, mostra-se mais eficaz na resistência à ofensiva do capital. O que o patronato francês deplora, enquanto não se cansa de elogiar o “modelo alemão”.

O leninismo, assim definido, inspirará as linhagens dominantes do movimento ao socialismo do século XX; enquanto as linhagens europeias, como já observei acima, deslizarão cada vez mais abertamente para posições oportunistas, no melhor dos casos só de reivindicação, inscrevendo-se nas relações capitalistas fundamentais; e assim, sairão do que se pode considerar como o movimento ao socialismo.

Lênin, pessoa, é responsável pelo “leninismo” de seus sucessores, na União Soviética e no mundo? Sim e não. Sim, no sentido da adesão de todos os sucessores, Stálin inclusive, aos dogmas do leninismo sobre a gestão da relação unidade/diversidade. Não, com certeza, na medida em que Lênin só viveu os primeiros anos da Revolução russa e não pode ser responsabilizado pessoalmente pelo que veio depois.

Essa sequência tem, contudo, um aspecto positivo que tem importância decisiva para o futuro do movimento mundial ao socialismo. O leninismo rompe com o dogma eurocêntrico segundo o qual a revolução socialista só estará na ordem do dia nos países capitalistas avançados – de fato, imperialistas. Ele faz o ato de transferir o centro de gravidade do combate pelo socialismo, dos centros para as periferias. [O Congresso dos Povos do Leste, em] Baku (1920) anunciou exatamente isso, diante de Lênin: que a III Internacional estaria presente no mundo inteiro, enquanto a II só existia na Europa.

No que tenha a ver com a sociedade soviética, o movimento ao socialismo dirigido pelo bolchevismo leninista foi forçado, pelas condições objetivas do país (o atraso; o caráter de capitalismo semiperiférico), a reduzir a “construção do socialismo” (seu objetivo proclamado) à construção de um socialismo de Estado.

Insisto aqui sobre a diferença entre socialismo de estado e capitalismo de estado. O capitalismo de estado (como o da França de De Gaulle) continua a ser um sistema a serviço do capital dos monopólios (mesmo quando faz concessões importantes em benefício dos trabalhadores); o socialismo de estado comporta dois traços de natureza muito diferente: (I) a obrigação de mostrar-se como equivalente do poder dos trabalhadores, pelo menos para o desdobramento de políticas sociais ousadas que lhe dão a legitimidade que tem; e (II) a postura independente nas relações com o sistema capitalista mundial.

Esse socialismo de Estado, que define o stalinismo e assim autoriza a classificar o stalinismo como um leninismo, levava nele a possibilidade de evoluir gradualmente à esquerda, isso é, de dar à socialização da gestão econômica formas progressivamente mais avançadas, mais conformes aos valores do socialismo, pela participação efetiva dos trabalhadores no exercício do poder. Mas levava nele igualmente o risco de estagnação, para finalmente tombar à direita, por uma restauração capitalista. O que se passou na Europa Oriental e na União Soviética com Ieltsin e Gorbatchev. Trotski teria feito melhor? Duvido muito. E essa é a razão pela qual a IV Internacional (de fato, uma III Internacional) jamais foi mais que a tribuna para oradores que reproduziram ad nauseam os princípios do leninismo, sem jamais ir além deles.

Os sistemas stalinistas e pós-stalinistas jamais conseguiram sequer começar a ultrapassar o estágio de socialismo de Estado (estatização e planejamento). Mas o início dessa ultrapassagem aconteceu, por obra da Iugoslávia de Tito. Não é acaso que essa tentativa tenha sido posta em ostracismo por Moscou. Porque, no plano de suas intervenções em escala mundial, o comunismo da III Internacional (depois do Kominform) foi gradualmente submetendo todas as estratégias dos movimentos ao socialismo aos imperativos das táticas do Estado Soviético, exclusivamente preocupado com as exigências da resistência contra o cerco capitalista.

A teoria da “via não capitalista” imposta aos parceiros dos países não alinhados na época de Bandung – sobretudo ao Egito do nasserismo anti-imperialista radicalizado, que critiquei desde que foi formulada (só posso, aqui, remeter a meus outros escritos sobre o assunto) – inscrevia-se nesse abandono da perspectiva estratégica, em benefício unicamente de uma tática.

Caberia ao comunismo chinês e a Mao conceber o movimento ao socialismo nas periferias do capitalismo mundial de maneira diferente, não em ruptura contra a herança do leninismo, mas por ultrapassá-la. Esse é o tema de uma outra linhagem do movimento ao socialismo, que abordaremos na sequência.

As linhagens do movimento ao socialismo nas periferias do capitalismo mundial

Começo por considerar a experiência da China.

A Comuna de Paris (março-maio 1871) e a Revolução (digo deliberadamente “revolução”, não “revolta”) dos Taipings (1851-1864) anunciam a entrada da humanidade na fase contemporânea de sua história. Põem fim às ilusões sobre o caráter progressista do capitalismo e anunciam o outono.

Duas revoluções gigantescas, pelo alcance de longo prazo. Uma (a Comuna de Paris) desenrola-se num centro capitalista desenvolvido; a segunda, à época, em termos de desenvolvimento econômico, depois da Inglaterra; a outra (a revolução dos Taipings) irrompe numa região que acabava apenas de ser integrada, na qualidade de periferia dominada, no capitalismo imperialista globalizado.

A Revolução dos Taipings derruba a autocracia imperial despótica da China dos Qing, abole o regime de exploração dos camponeses pela classe dirigente desse modo social de produção que classifiquei como “tributário” (que os comunistas chineses classificam como “feudal” – e a questão semântica é secundária). Mas, ao mesmo tempo, a Revolução dos Taipings recusa as formas do capitalismo infiltradas nas falhas do sistema tributário; ela aboliu o comércio privado. E rejeita com o mesmo vigor a dominação estrangeira pelo capital imperialista. E o fez muito cedo, porque a partir das primeiras agressões do imperialismo – a guerra do ópio de 1840 – apenas dez anos antes, que se destinava a reduzir a China ao status de periferia dominada na globalização capitalista imperialista. Antes do próprio tempo, os Taipings aboliram a poligamia, o concubinato e a prostituição.

A Revolução dos Taipings – chamados também de “os filhos do céu” – lança as bases do socialismo/etapa mais avançada da civilização humana, ao formular a primeira estratégia revolucionária dos povos das periferias do capitalismo imperialista global. A Revolução dos Taipings é a ancestral da “revolução popular antifeudal – anti-imperialista” (para usar a linguagem posterior dos comunistas chineses). Ela anuncia o despertar dos povos do Sul (da Ásia, da África e da América Latina) que modelará o século 20. Ela inspira Mao. Ela indica a via da revolução para todos os povos das periferias do moderno sistema mundial capitalista, a via que lhe permitirá engajar-se na longa transição socialista.

A Comuna de Paris não é capítulo da história da França, nem os Taipings, da história da China. São duas revoluções de alçada universal. A Comuna de Paris dá a substância ao internacionalismo “proletário” da 1ª Internacional (a Associação Internacional dos Trabalhadores), clama para que se substituam os nacionalismos chovinistas, o cosmopolitismo do capital, pelas identidades comunitária do passado. O universalismo do apelo dos Taipings encontra seu símbolo na figura do Cristo, adoção simbólica, pode-se dizer “curiosa”, estranha à história chinesa. Como um ser humano batido pelos adversários – o poder – poderia ser um “Deus” pressuposto invencível? Para os Taipings, esse Cristo não é o mesmo do cristianismo de submissão que os missionários tentam introduzir na China, mas é caso exemplar de o que deve ser o combatente que luta pela libertação dos seres humanos: corajoso até a morte e cuja morte faz prova de que o segredo do sucesso é a solidariedade na luta.

A Comuna de Paris e a Revolução dos Taipings demonstram que o capitalismo não é mais que um parêntese na história, como já escrevi. Parêntese de curta duração. O capitalismo apenas cumpriu a função – honrosa – de ter criado – por um breve tempo histórico – as condições que tornam sua superação/abolição necessária para permitir a construção de um estágio mais avançado da civilização humana. A Comuna de Paris e a Revolução dos Taipings abrem por isso o capítulo da história contemporânea – que se vai desenvolver no século 20 e entrará pelo século 21. Elas abrem capítulos sucessivos das primaveras dos povos, paralelas ao outono do capitalismo.

Na outra extremidade do continente, a China apresentava também caracteres especiais favoráveis a uma precoce maturação política. A China havia começado muito cedo a ultrapassar o modo social/econômico tributário (aqui numa forma sólida, “avançada”), antes mesmo que a Europa. Estava cinco séculos à frente, na invenção de sua modernidade (abandonar uma religião de salvação individual – o budismo –, em benefício de uma espécie de laicidade a-religiosa avant la lettre, o desenvolvimento ousado de relações comerciais centradas no mercado interno). Aqui, remeto o leitor ao que já escrevi sobre essas questões. A China igualmente resistiu por muito tempo ao assalto do capitalismo imperialista europeu (contrastando, nesse ponto, com a Índia e o Império Otomano). Só em 1840 os canhões britânicos forçaram as portas do Império celeste. A conjunção dessa agressão e dos avanços prévios do capitalismo chinês teve aqui, portanto, prodigiosos efeitos aceleradores: as desigualdades no acesso à terra (aos quais a lógica do sistema tributário opunha resistência em declínio) foram aceleradas, e a “traição” da classe dirigente (o Imperador e a aristocracia fundiária) impôs-se rapidamente aos esforços anteriores de resistência “nacional”. Compreende-se então a precocidade da Revolução dos Taipings e seu caráter “antifeudal/anti-imperialista”.

Duas grandes revoluções, portanto, mas duas revoluções operando sobre dois terrenos complementares do capitalismo imperialista globalizado – no centro e na periferia – nos dois “elos fracos” desse sistema global.

Marx e o (ou os) marxismo histórico estiveram à altura das exigências dessa realidade do capitalismo globalizado e, assim, das exigências para formular estratégias eficazes para “mudar o mundo”, quer dizer, abolir o capitalismo? Sim e não. Marx cedeu à tentação de ver na expansão mundial do capitalismo uma força que devia homogeneizar as condições econômicas e sociais, reduzindo os trabalhadores de todo o mundo ao mesmo estatuto de assalariados explorados da mesma maneira e com a mesma intensidade pelo capital. Sobre essa base justificava a colonização, que finalmente implicaria progresso. Não faltam citações de escritos de Marx em apoio a essa interpretação, pondo em destaque as “consequências” progressistas da colonização, ainda que involuntárias, quer dizer, apesar de suas práticas odiosas (que Marx denunciou), na Índia, na Argélia, na África do Sul, na Eritreia, como na anexação do Texas e da Califórnia pelos “yankees” (“trabalhadores”, em oposição aos mexicanos “preguiçosos”). Marx condena, nessa lógica, os Taipings (sobre os quais, de fato, ignora absolutamente tudo!). E contudo, Marx, se tratava de país do qual não ignorasse tudo, esboçava visão completamente diferente da expansão capitalista. Marx não vê coisa alguma de positivo na colonização da Irlanda pela Inglaterra; ao contrário, denuncia sem reservas os efeitos destrutivos sobre a própria classe operária inglesa.

Tratando da Rússia que lhe era menos desconhecida que a China – Marx tem a intuição de que se trata de um “elo fraco” da cadeia capitalista mundial (para empregar o termo que Lênin usará), e que uma revolução anticapitalista que abra a via de uma avançada socialista é aí, por isso, possível. Há evidências disso na correspondência de Marx com Vera Zassoulitch. Uma revolução de forte dimensão camponesa, fundada sobre a resistência das comunidades camponesas (organizadas no “mir”), se elas libertam-se da exploração feudal pela abolição real da servidão, mas mesmo assim continuam ameaçadas de serem expropriadas em favor, simultaneamente, de novos camponeses ricos e de novos latifundiários (os antigos “feudais”), parece a Marx que é possível que ela abra e que seja até capaz de abrir uma via original para a avançada socialista.

Lênin e, pois, o marxismo histórico “leninista”, dá um grande passo adiante: Lênin denuncia “o imperialismo”. Pouco importa que, provavelmente por respeito por Marx, ele o qualifique como um novo estágio, recente, do capitalismo. E extrai a dupla consequência que se impõe: a “revolução” não está mais na ordem do dia “no Ocidente”; ao contrário, a “revolução” entra na ordem do dia no “Oriente”.

Lênin não extrai imediatamente essa consequência: ele hesita. Espera sempre, dentre outras esperanças, que a revolução acontecida no “elo fraco do sistema” (a Rússia) arrastará a revolução dos trabalhadores nos centros desenvolvidos (a Alemanha é o primeiro lugar). Ele continua a ler a primeira grande crise sistêmica do capitalismo (iniciada nos anos 1870 e que levou à I Guerra Mundial) como se fosse simultaneamente “a última” do capitalismo moribundo. Mas afinal Lênin, sim, extrai a conclusão dos fatos: ele se enganara, a revolução na Europa (na Alemanha) acabou; a (ou as) revolução que desponta(m) aponta(m) para o leste, para o oriente (na China, no Irã, no Império Otomano, nas colônias e semicolônias).

Lênin contudo não associa a nova leitura que faz do marxismo, ao aprofundamento de uma revolução sobre o lugar da Rússia no sistema capitalista mundial – lugar periférico (ou semiperiférico). Vê nesse traço – a “Rússia semiasiática” – mais um obstáculo, que uma vantagem. Lênin não vê tampouco que a questão camponesa é central na nova “revolução” que chega à ordem do dia. Avalia, acertada ou erradamente, que as possibilidades do “mir” foram aniquiladas pelo desenvolvimento do capitalismo na Rússia (título de uma de suas obras da juventude). E extrai disso a consequência: a revolução russa dará terra aos camponeses, mas para fazer deles, proprietários.

Caberá pois a Mao, herdeiro dos Taipings – extrair até o fundo as lições dessa história.

Mao formula a estratégia e os objetivos da longa transição ao socialismo iniciada numa revolução anti-imperialista/“antifeudal” conduzida sob as condições que havia nas sociedades periféricas do sistema mundial. A definição das tarefas dessa revolução “antifeudal” manifesta o desprezo absoluto, por Mao, da ilusão passadista sob qualquer de suas formas.

A revolução dos povos da periferia inscreve-se necessariamente na perspectiva universalista do socialismo.

O comunismo chinês de Mao vai, pois, pôr em ação uma estratégia coerente do movimento ao socialismo para a China, cujas lições têm alcance importante para todos os povos das periferias (Ásia, África, América Latina). Aqui se encontra a questão fundamental: a da relação entre unidade e diversidade.

A revolução anti-imperialista/antifeudal/popular e democrática (e não burguesa democrática) associa classes e forças sociais, ideológicas e culturais diversas. Não pode ser uma “revolução do proletariado”. Além disso, essa “revolução do proletariado” tem sido, até aqui, embrionária e fraca em todas as sociedades das modernas periferias. Deve ser, sim, revolução da maioria dos camponeses, oprimidos e explorados. Deve ser revolução dos segmentos importantes das classes médias educadas que se manifestam na intelligentsia revolucionária. Ela pode neutralizar (sem suprimir) a intervenção política da burguesia local, que se dedica a frear o movimento ao socialismo. Ela pode, mesmo, favorecer o deslizamento da burguesia em questão, de seu comportamento comprador natural, para tomadas de posição nacionais.

Resta que as condições objetivas da China só permitiam que se criasse um socialismo de estado naquela etapa. O que foi feito. Mas esse socialismo de estado, no início à imagem do modelo soviético, rapidamente distanciou-se dele, em pontos diversos e importantes. Dentre outros, nas questões indissociáveis da gestão do mundo rural e da democratização da socialização da vida econômica e política.

A manutenção e o reforço da unidade do povo selada durante a guerra de libertação implicava, segundo Mao, uma gestão das relações cidade-campo que dava pleno espaço à igualdade das condições dos trabalhadores (“camponeses e operários”) e inicialmente rejeita a opção da “acumulação primitiva socialista” que deixava sobre as costas do campesinato todo o peso do desenvolvimento e da modernização industrial. Feita essa escolha, as condições estavam reunidas para avançar numa democratização possível da sociedade. A fórmula maoísta para isso foi a da “linha de massa”. Envio o leitor, no que se relacione à evolução do sistema chinês do movimento ao socialismo, avanços e recuos (pós-maoístas), alternativas de diferente futuro que ela abre (transformação do socialismo de estado em capitalismo de estado), a meus escritos recentes sobre a questão.

A lição importante que extraio dessa leitura da evolução da China (de 1950 a hoje) é que até aqui o tratamento da relação entre unidade (da nação, do povo) e a diversidade (dos elementos sociais que compõem aquela nação) foi suficientemente correto, para dar ao sistema de poder de Pequim uma legitimidade certa e assim garantir a estabilidade social. O sucesso da emergência da China, sem par, quando se a compara com outros países do sul contemporâneo (Índia e Brasil, por exemplo), é produto dessa melhor gestão (ou menos má, pelo menos) da relação unidade/diversidade.

Outros exemplos de movimento ao socialismo em países da periferia venceram com sucesso algumas belas etapas, dentre outros motivos porque souberam gerir corretamente a relação unidade/diversidade, e assim facilitaram a evolução da luta anti-imperialismo de origem, em direção à implantação de políticas que, saídas do quadro das lógicas do capitalismo, inscrevem-se na longa rota ao socialismo. Penso é claro no Vietnã e em Cuba.

Pode-se também fazer referência aos avanços obtidos na América do Sul ao longo das décadas passadas, na Venezuela, no Brasil, na Bolívia e no Equador. A partir de revoltas potentes das classes populares, esses movimentos venceram eleições (caso excepcional em nossa época) e ultrapassaram uma primeira etapa. Mas, para ir além e tornarem-se autênticos movimentos ao socialismo que se veja em fatos, e não só na manifestação dos que o desejam, eles precisam ainda encontrar respostas mais eficazes ante o desafio da contradição unidade/diversidade.

Mas não se podem ignorar os exemplos de fracassos imensos de grandes movimentos populares que derrubaram ditaduras sangrentas ao longo das últimas décadas, mas não conseguiram impor-se como movimentos ao socialismo. Penso aqui nos movimentos que derrubaram as ditaduras de Moussa Traoré no Mali; de Marcos nas Filipinas e de Suharto na Indonésia. Nenhum desses movimentos conseguiu formular e impor um programa que se baseasse na unidade na diversidade. Também essa gestão dessa contradição, inexistente ou, mesmo, deplorável, caracteriza os movimentos no mundo árabe a partir de 2011 (Egito, Tunísia, Síria). Não há pois movimento ao socialismo em todos esses países, apesar de que estejam ali reunidas as condições objetivas para sua possível emergência.

Mais atrás no tempo, a época da [Conferência de] Bandung (1955-1975/1980) é tempo de avanço vitorioso dos movimentos de libertação nacional na Ásia e na África. Todos esses movimentos, pelas razões de fundo que invoco em minha análise, trazem neles a possibilidade de vir a ser movimentos ao socialismo. Mas o que houve na realidade de seu desenvolvimento, de suas vitórias e de seus desdobramentos?

Essa resposta tem de ser nuançada. Sim, em certos momentos do desdobramento de movimentos populares mais avançados que outros, o movimento ao socialismo desenha-se como uma possibilidade. Foi o caso, por exemplo no Iêmen do Sul “comunista” (de fato, nacional popular avançado) ou, esboçado, no Sudão. Em bom número de experiências africanas, os poderes de Estado assumidos pelos partidos que haviam organizado e dirigido a libertação nacional se autoproclamaram socialistas, às vezes, até, marxistas leninistas, muitas vezes reivindicando para eles uma tradição mais imaginária que real e dita socialista. E essa postura não era demagógica; traduzia as ambições de grupos dirigentes progressistas e de seus reais apoios populares.

Contudo, todos esses regimes insistiram na “unidade do povo” (sob seus dirigentes!) e frequentemente negaram a importância, i.e., a realidade da diversidade dos interesses sociais em competição dentro da grande aliança nacional, ou diversidades de outros tipos entre os componentes da nação (étnicas, religiosas, linguísticas). Essa gestão medíocre, no mínimo, da contradição fundamental do movimento ao socialismo está na origem da incapacidade de aqueles regimes seguirem em frente em ritmo sustentado; da rápida erosão que sofreram, depois de alcançados os limites do que podiam fazer, da legitimidade que tivesses e, assim, de seu deslizar de volta, em direção à dobra gerada pelo imperialismo contemporâneo e seus associados, a burguesia “compradorizada” ou, no pior dos casos, ao estado “comprador”.

Sem exame concreto, país a país, não é possível dizer mais. Propus análises concretas dessa emergência ‘aleijada’ do movimento ao socialismo para alguns países africanos, asiáticos e do mundo árabe, com atenção especial, é claro, ao Egito nasserista.

Nessa história movimentada os partidos que reivindicam para eles o marxismo-leninismo – quando havia – não conseguiram empurrar a evolução a favor do movimento ao socialismo. Há várias razões para essa fraqueza daqueles partidos; mas sem dúvida a adesão ao campo do comunismo internacional dirigido por Moscou foi inúmeras vezes o fator decisivo para aniquilar as esperanças depositadas neles. Seu alinhamento à tese da “via não capitalista” pregada por Moscou é o exemplo mais dramático: esses partidos tornar-se-iam “a ala esquerda” de um poder que deslizava para a direita. No caso da Índia, o esfacelamento do antigo Partido Comunista da Índia, que se alinhou, de facto, sob o Partido do Congresso, e a Constituição do PC-Marxista (inspirado no maoísmo) não produziram o salto qualitativo que teria sido necessário para fazer do segundo a réplica do que o Partido Comunista Chinês havia sido. Razões numerosas e diferentes explicam esse fracasso: o caráter sagrado do sistema de castas e seus efeitos de alienação no desdobramento das lutas de classes; a diversidade das nações que constituem a União Indiana. O PC-M que chegou ao governo (pela via eleitoral) em Bengala ocidental e em Kerala tem certamente a seu favor a realização de avanços sociais não desprezíveis. Mas não conseguiu inverter o equilíbrio das forças na escala da União Indiana em favor de um movimento ao socialismo. Foi assim gradualmente “absorvido” pelo sistema, incapaz de ir além dos limites do que podia fazer nos dois estados em que operava. Uma radicalização do comunismo maoísta indiano delineou-se então, com a constituição do PC-ML e a guerra dos camponeses/dalits que ele iniciou. Mas é forçoso reconhecer que fracassou, e, na sequência, o partido fragmentou-se. Mas, deve-se observar, a mesma linha de ação deu alguns resultados no Nepal e desenhou, em linha pontilhada, um movimento ao socialismo possível.

Chamei a família desses avanços do “primeiro despertar do Sul” (as décadas de Bandung), de regimes “nacionais-populares”, no seio dos quais o movimento ao socialismo só se inscreveu em linhas pontilhadas, prejudicado em seu desenvolvimento possível pela tendência, das classes políticas dirigentes, a manter o próprio poder exclusivo, mesmo que ao preço de um retorno ao berço comprador.

O desafio para o movimento ao socialismo: A socialização da gestão de uma economia moderna

A questão central posta pelos avanços revolucionários e/ou reformistas autênticos que reivindicam para si socialismo, comunismo, marxismo, marxismo-leninismo, maoísmo foi e é a da socialização da gestão de uma economia “moderna”, cujas bases foram construídas pelo desenvolvimento do capitalismo histórico seja nos centros dominantes seja nas periferias dominadas. Nos centros, a deriva do socialismo reformista e em seguida o abandono da referência a Marx levaram logicamente a renunciar à pergunta pelo “pós-capitalismo”. Nas periferias, ao contrário, que foram teatro de revoluções conduzida na perspectiva de construir o socialismo, a questão da socialização da gestão da vida econômica permaneceu no coração dos debates e dos conflitos que se travaram dentro das vanguardas revolucionárias e dos poderes do estado.

As condições objetivas específicas da revolução nas periferias do capitalismo globalizado pesaram muitíssimo, é claro, na balança: era preciso “resgatar” (desenvolver as forças produtivas e, para fazê-lo, era preciso “copiar” e reproduzir formas capitalistas de organização da produção) e “fazer diferente” (construir o socialismo). A resposta a essa questão foi dada pela construção de “socialismos de estado” ou de “capitalismos de Estado”, com fronteiras sempre fluidas e moventes entre as duas modalidades. Resta disso que nos desenvolvimentos teóricos, tanto quanto nos programas dos partidos que se declaram socialistas, os avanços na socialização da gestão da economia e os avanços na democratização da gestão política da sociedade sempre foram pensados como indissociáveis.

A afirmação desse princípio central na formulação do projeto do socialismo/comunismo do futuro deve ser lembrada, uma vez que precisamente os socialismos/capitalismo de estado das experiências soviética, chinesa e outras dissociaram enormemente, em sua prática, essas duas dimensões do mesmo desafio.

Outono do capitalismo, primavera dos povos?

Embora suscetíveis de constituir o verso e o reverso da mesma moeda, o outono do capitalismo e a primavera dos povos são diferentes.

A emergência da nova forma do capitalismo – a do capitalismo dos monopólios – a partir do fim do século 19 inicia o fim desse sistema – desse parêntese na história, como já disse. O “turno” que o capitalismo tinha a cumprir, período curto (só o século 19) – durante o qual cumpriu funções progressistas – acabou. Entendo por isso que, se, no século 19, as dimensões “criativas” da acumulação capitalista (a aceleração fantástica do progresso tecnológico, em comparação a épocas anteriores de toda a história da humanidade; a emancipação do indivíduo – ainda que reduzida a emancipação só dos privilegiados, limitada e deformada para os demais) apoiavam-se sobre as dimensões negativas daquela mesma acumulação (em primeiro lugar os efeitos de destruição de sociedades periféricas integradas na expansão imperialista indissociável do capitalismo histórico, com a emergência do capitalismo dos monopólios a relação entre essas duas dimensões foi invertida, em detrimento das primeiras).

É nesse quadro da perspectiva da longa duração que analisei as duas longas crises sistemáticas do capitalismo “obsoleto” (“senil”): a primeira longa crise que desenvolve de 1871-73 até 1945-55; a segunda, sempre em andamento, inicia-se um século mais tarde, a partir de 1971-73. Nessa análise, destaco o meio central que o capital mobilizou para superar sua crise permanente: a construção e o crescimento vertiginoso de um terceiro setor (para complementar os dois setores – de produção de bens de produção e de produção de bens de consumo dos quais Marx tratou –, de absorção da mais-valia associada à renda dos monopólios simultaneamente renda imperialista (remeto o leitor àqueles textos).

Lênin começou a tomada em consideração dessa mudança qualitativa da natureza do capitalismo. Pecou apenas por optimismo, ao crer que essa primeira crise sistemática do capitalismo seria a última. Subestimou os efeitos perversos e corruptores do desenvolvimento imperialista nas sociedades do centro do sistema. Mao, extraindo as consequências da exata avaliação desses efeitos, optou pela paciência: a rota do socialismo será necessariamente muito longa e semeada de percalços.

O século 20 foi, sim, um tempo do “despertar do Sul”, mais exatamente dos povos, das nações e dos estados das periferias do sistema: falava da Rússia (“semiperiferia”) para englobar China, Ásia, África e América Latina. O século 20 é, nesse sentido, tempo da primeira primavera desses povos. Listei uma série de eventos maiores que, desde o início do século, anunciam essas primaveras – as revoluções russas (1905-1917), chinesas (1911 e a continuação), mexicana (1910-20) e outras. Substituí nesse quadro o período de Bandung pela Ásia e a África contemporâneas (1955-1980), que coroa, mas simultaneamente conclui esse grande momento da história universal. De certa maneira portanto pode-se ler essa resposta dos povos dominados pelo desenvolvimento imperialista como o prosseguimento da tarefa iniciada pela revolução dos Taipings e sua generalização para os três continentes.

Em contraste, a Comuna de Paris não teve sucessores no Ocidente desenvolvido. Apesar de suas corajosas tentativas, os comunistas da 3ª Internacional não conseguiram construir um bloco histórico alternativo ao bloco alinhado sobre a direção da sociedade pelos monopólios imperialistas. Aqui jaz o verdadeiro drama do século 20, não nas insuficiências do despertar das periferias, mas no nenhum despertar nos centros. As insuficiências – depois derivas fatais – das nações das periferias teriam sido superadas provavelmente, se os povos dos centros tivessem rompido com seu alinhamento pró-imperialista.

As primaveras dos povos que se desenrolaram durante o século 20 esgotaram seus efeitos. De deriva em deriva, terminaram por afundar-se e cair à direita face à contraofensiva do capital. Esse afundamento exprime-se pela série de contrarrevoluções triunfantes dos anos 1990. As possibilidades que existiam seja de evolução à esquerda desses sistemas inflados, em crise; ou de sua estabilização em trono de fórmulas de centro-esquerda que preservam o futuro, foram quebradas pela tríplice conjunção em que se associam: (I) insuficiências do protesto popular, limitado à reivindicação da democracia dissociada da questão social e da geopolítica; (II) as respostas dos poderes, exclusivamente repressivas; (III) as intervenção do Ocidente imperialista. Qualificar nessas condições as “revoluções” da União Soviética e dos países do leste europeu (1989-91) de “primavera dos povos” é farsa. Construídos sobre ilusões gigantescas sobre a realidade capitalista, esses movimento deram em nada que se possa considerar positivo. Os povos envolvidos ainda esperam sua primavera, que talvez venha.

Ao longo de todo o século 20, e até hoje, o outono do capitalismo e a primavera dos povos (eles próprios já reduzidos aos povos das periferias) foram dissociados. O outono do capitalismo, assim, constituiu o elemento motor principal da evolução. Pôs a evolução nos trilhos rumo à barbárie sempre crescente, única resposta lógica que está em acordo com as exigências da manutenção da dominação do capital. Daí a barbárie imperialista redobrada pela entrada em ação do controle militar sobre o planeta pelas forças armadas dos EUA e de seus aliados subalternos europeus (a OTAN), em benefício exclusivo dos monopólios do imperialismo coletivo da ‘tríade’ (EUA, Europa, Japão). Mas, também em resposta a essa trinca, o deslizamento das respostas de suas vítimas – os povos do Sul –, na direção de ilusões passadistas, que também são portadoras de barbárie.

Esse risco – que é a realidade dominante hoje – permanecerá total, dado que os avanços em direção à conjunção entre o outono do capitalismo e a primavera dos povos – de todos os povos, das periferias, mas também dos centros – não foram suficientemente decisivos para abrir a perspectiva socialista universalista. Será então o século 21 um ‘remake’ do século 20, associando tentativas de libertação dos povos do Sul, à manutenção do alinhamento pró-imperialista dos povos do Norte?

Construir a unidade no reconhecimento da diversidade

Não há avançada revolucionária possível do movimento ao socialismo, sem que se construa a unidade estratégica de ação que associe a massa crítica necessária de diferentes forças sociais em conflito com o sistema do capitalismo dominante. Ainda falta identificar a natureza da diversidade social de que aqui se trata. As diferenças que contam e as que contam menos. As fontes e as formas da diversidade – elas próprias inumeráveis. Descrição dessas formas cobriria páginas e páginas de quadros estatísticos: há homens e mulheres; jovens e idosos; nacionais e imigrados; em muitos países, seres humanos com uma ou outra cor de pele, que professam uma ou outra religião, que falam uma ou outra língua; os proprietários e os não proprietários; trabalhadores qualificados e os demais, etc..

Uma análise de classe não simplificadora permite ir mais longe na análise dos problemas. Há, claro, fundamentalmente, no capitalismo, o contraste entre os burgueses (proprietários dos meios de produção e/ou gestionários dessa propriedade) e os proletários (que nada têm para vender, além da própria força de trabalho). Mas esse contraste expressa-se mediante uma grande diversidade de situações sociais concretas. Há assalariados (que vendem força de trabalho) que se beneficiam de certo grau de estabilidade que lhes dá sua qualificação privilegiada; e há os que são condenados à eterna instabilidade. Há os capitalistas – proprietários – empresários, pequenos, médios ou grandes; e há os gerentes do grande capital dos monopólios financeirizados, etc..

Essa grande diferenciação das classes fundamentais também é extremamente variada, conforme a sociedade considerada seja de país capitalista/imperialista dominante, ou de país do capitalismo periférico dominado. A situação social de um proletário num país opulento é diferente da de seu alter ego de uma sociedade pobre. A massa rural e camponesa, reduzida hoje à insignificância numérica nos centros, permanece fortemente presente nas periferias, etc..

Há certamente uma pesada tendência lógica da acumulação do capital (concentração da propriedade e/ou centralização do controle) a simplificar a estruturação social, mas algumas ideias concernentes à simplificação da estruturação social que o capitalismo produziria são falsas: (I) a ideia de que o contraste burguesia/proletariado aniquilaria a presença de outras forças sociais que se expressam no campo político; (II) a ideia de que a burguesia por um lado, e o proletariado por outro lado, converter-se-iam em blocos homogêneos pouco diferenciados; (III) a ideia de que a expansão globalizada do capitalismo aproximaria as formas das estruturações sociais avançadas, das forma dos países atrasados que sejam engajados no caminho do “resgate” (como se diz: “em vias de desenvolvimento”).

Tomemos o exemplo da expansão do capitalismo industrial na Europa do século 19. Em nenhum país desse continente a burguesia, classe dominante nova, eliminou as classes de aristocratas do Antigo Regime. Por toda parte a burguesia aprovou compromissos políticos com aqueles aristocratas, que conservaram o controle de segmentos importantes do poder (como o corpo de oficiais militares). E se a guerra de 1914 é guerra interimperialistas, ela é também guerra entre as cabeças coroadas de toda a Europa (a França é a única República em guerra, à espera dos EUA).

A burguesia não é classe que reúna todos os proprietários formais dos meios de produção. Essa propriedade pode, com a invenção da sociedade por ações, ser disseminada, mesmo que o controle sobre essa propriedade não o seja. A burguesia não é classe homogênea simplesmente organizada sobre o modelo da pirâmide da riqueza de pequenos, médios e grandes capitalistas. Ela integra camadas médias (pelo volume de rendas, formalmente, rendas do trabalho assalariado) associadas à gestão econômica e política (burguesa) da sociedade. A burguesia é também diferenciada segundo se situe em setores da atividade e/ou regiões em crescimento ou em declínio, etc..

A burguesia nas periferias não é simplesmente nascida tardiamente, mas em via de expansão sobre o modelo da burguesia dos centros. Tampouco é partilhada em dois segmentos, um comprador (o mau burguês), o outro nacional (os bons burgueses). Emergente no quadro da expansão mundial do imperialismo, a burguesia em seu conjunto é comprador por natureza. Mas ela pode adotar o comportamento de uma burguesia nacional, se as circunstâncias lhe oferecem margem possível de manobra. Insisti na importância dessa leitura maoísta sobre a natureza das burguesias periféricas.

A estrutura das classes populares nos países periféricos é também muito diferente da que se vê nos centros. Os campesinatos do sul são eles também diferenciados de vários modos, de um país a outro, com estruturações herdadas em parte de diferentes passados pré-capitalistas os quais, por sua vez, foram remodelados pelos específicos modos da integração/submissão ao capitalismo moderno. Os processos de pauperização produzidos pela acumulação capitalista mundial criaram aqui, nas periferias, uma massa crescente de precários que só sobrevivem por atividades do “informal”.

Pesadas tendências operaram ao longo das três últimas décadas no quadro do desenvolvimento do capitalismo dos monopólios globalizados, financeirizados e generalizados (remeto o leitor aos meus escritos em que elaboro sobre essa transformação qualitativa do capitalismo) – sob o nome, enganador, de “neoliberalismo”. Essas pesadas tendências produziram: (I) uma proletarização generalizada (a população de trabalhadores, pelo menos nos centros, passou a ser constituída, em mais de 80%, de assalariados vendedores de força de trabalho) mas extremamente segmentada; (II) por toda parte, nos centros e nas periferias, a implantação de formas de submissão de atividades aparentemente independentes dos monopólios (em particular dos campesinatos das periferias, mas também de suas indústrias) e da redução desses trabalhadores ao estatuto de subcontratados (de fato ou de direito), o que permite a formação de uma fração crescente da mais valia da renda dos monopólios; (III) a substituição de formas históricas de organização do capitalismo encarnado nas burguesias concretas, por uma nova forma de dominação do capital abstrato (“encarnado pelo mercado e, em particular, o “mercado financeiro”). A burguesia é, assim, classe constituída de assalariados – muito bem remunerados! – empregados pela oligarquia financeira (os 1% de Occupy Wall Street e os Indignados da Espanha).

O desdobramento dessa nova estrutura do capitalismo dos monopólios generalizados não produziu (nem pode produzir) estabilização social relativa, mas, ao contrário, uma degradação social portadora das revoltas populares. Ela não produziu (nem pode produzir) qualquer estabilização relativa das novas relações centros/periferias, mas, ao contrário, produziu o agravamento das contradições e dos conflitos entre eles. Os centros imperialistas históricos (a trinca EUA/Europa/Japão) não podem mais manter sua dominação, senão mediante o controle limitar do planeta. Em face desse desdobramento geoestratégico de Washington e de seus aliados subalternos, alguns estados e povos do Sul (os “emergentes”) resistem pela afirmação – em graus diversos – de “projetos soberanos”, fonte de conflitos crescentes Norte-Sul. Em outros países da periferia, o sistema de dominação do capitalismo dos monopólios globalizados opera mediante sua aliança com os poderes do estado compradorsem legitimidade nacional e popular. É um segundo motivo das revoltas dos povos.

O capitalismo dos monopólios generalizados implode ante nossos olhos nas formas variadas lembradas aqui. Decorre daí que um período novo de situações revolucionárias abre-se frente a nós. Como agir, nessas circunstâncias, para fazer do possível, uma realidade: como obter avanços do movimento ao socialismo? A resposta exige que retomemos a reflexão sobre a relação unidade estratégica de ação/diversidade dos elementos sociais e políticos que compõem o movimento dos povos.

No passado, as situações revolucionárias permitiram avanços revolucionários (rumo ao socialismo) cada vez que se deram respostas concretas a essa contradição dialética unidade/diversidade.

Falo aqui de contradição dialética. Porque, de fato, a solução dela não passa pela negação de um dos termos, mas pela transformação do contraste entre ambas, em complementaridade ativa. A visão metafísica da contradição é incapaz de compreender a natureza desse desafio e o meio de responder a ele. Ora, essa visão foi muitas vezes, e ainda é, dominante, porque suas respostas são fáceis e, na aparência imediata, podem parecer as únicas possíveis.

Por exemplo: afirma-se a absoluta prioridade de “a unidade” (do povo) e negam-se os efeitos reais da diversidade que torna impossível ou nefasta a operação daquela “unidade”. Ou, ao contrário, nega-se a necessidade incontornável da unidade (a identificação de objetivos estratégicos de etapas comuns e da organização de frente unida que assume a responsabilidade de realizar aqueles objetivos) e afirma-se que as diversas lutas (das frações diversas do povo em revolta) produzirão, por elas mesmas, a solução do problema. Elude-se assim a questão (incontornável) do poder. Essa resposta metafísica à contradição ainda domina a cena contemporânea por toda parte, no Norte e ao Sul. Ela reduz os movimentos em luta a manter-se em posições defensivas, deixando a iniciativa ao adversário – o capital dos monopólios e seus instrumentos políticos de Estado no Norte e no Sul. Essa é pois estratégia impotente para fazer avançar o movimento ao socialismo.

Como já disse em escritos anteriores, respostas dialéticas foram algumas vezes postas em operação, com sucesso. Na Rússia em 1917, Lênin colheu o momento de dar toda sua potência à unidade, propondo objetivos estratégicos comuns, aos componentes diversos do povo em revolta: paz e terra. A terra para os camponeses soldados funda uma aliança que permite ao novo Partido bolchevique sair de seu isolamento. Porque esse partido jamais tivera real penetração no campesinato. Na China, Mao refunda desde os anos 1930 o Partido Comunista sobre a base de uma aliança sólida e durável com o campesinato pobre e explorado. É o segredo do triunfo de 1949. O que adveio na sequência, sobre a gestão da relação unidade/diversidade (quer dizer, a questão das alianças constitutivas do bloco histórico do movimento ao socialismo) é outro problema, do qual não trato aqui.

Nos dois casos, a resposta ao desafio foi concreta. Partiu de uma análise concreta, que se revelou justa, do que as diversidades são, quais são decisivas (no sentido de que levá-las em contra permite fazer funcionar a alavanca do avanço revolucionário) e quais não são decisivas. Não há receita geral útil nesse domínio, que possa ser usada em substituição à análise concreta. As diversidades decisivas hoje não podem ser as mesmas na França e nos EUA, na China e na Índia, no Congo e no Peru.

Tudo que se possa dizer de “geral” aqui, creio já o ter formulado nas minhas proposições sobre a “audácia” necessária que, só ela, pode permitir às esquerdas radicais de nossa época que elas responder corretamente ao desafio. Remeto o leitor àqueles escritos. Resumo aqui, nos parágrafos a seguir o sentido daquelas proposições: (I) Nos centros imperialistas, a esquerda radical deve opor-se á expropriação pura e simples dos monopólios, pela nacionalização/estatização (primeira etapa), acompanhada de planos sobre a organização de avanços na direção da socialização democrática progressiva da gestão daqueles planos. Trata-se então de identificar as diversidades decisivas que devem ser associadas pela construção de uma unidade de ação fundada na identificação de objetivos comuns de cada etapa. (II) Nas periferias, a esquerda radical deve ser capaz de identificar os componentes diversas de um bloco social hegemônico alternativo àquele sobre o qual se apoia o bloco comprador no poder. Só poderá chegar a esse resultado se se torna capaz de identificar: (1) objetivos estratégicos comuns de cada etapa aos (2) segmentos decisivos do bloco anti-comprador.

Só quando essas condições forem satisfeitas, poder-se-á ver o movimento ao socialismo afirmar-se por avanços na transformação real, mais progressiva, das sociedades contemporâneas.

O comunismo, etapa superior da civilização humana

Em direção a uma segunda onda da emergência dos estados, das nações e dos povos das periferias.

O movimento ao socialismo tem a ambição de refundar a sociedade humana sobre bases diferentes das que caracterizam fundamentalmente o capitalismo. Esse futuro é concebido como a realização de uma etapa superior da civilização humana universal, não como modelo simplesmente “justo”, a saber, mais “eficaz”, da civilização que nós conhecemos (a civilização “moderna” do capitalismo).

Ora, preparar o futuro, mesmo distante, começa hoje. É bom saber o que se quer. Que modelo de sociedade? Fundada sobre quais princípios: a concorrência destruidora entre os indivíduos, ou a afirmação das vantagens da solidariedade?; a liberdade que dá legitimidade à desigualdade, ou a liberdade associada à igualdade?; a exploração de recursos do planeta sem qualquer preocupação com o futuro, ou a plena atenção à medida exata das exigências da reprodução da condições de vida do planeta?

O socialismo será democrático ou não será socialismo. Temos de compreender a democratização da sociedade como um processo sem fim, que não podemos reduzir à fórmula da democracia eleitoral pluripartidária representativa. Os veículos da imprensa-empresa ocidental dominante propõem para os países o Sul “a democracia em primeiro lugar”, entendendo por essa expressão a realização de eleições pluripartidárias imediatas; e um grande número de organizações da sociedade civil no Sul reuniram-se em torno dessa proposição. Contudo, repetidas experiências mostram que se trata, aí, de miserável farsa que os imperialistas e seus aliados locais reacionários sabem manipular a favor deles, sem dificuldade. Nos centros, a democracia eleitoral representativa sempre foi meio eficaz para manter o fracasso das ameaças de radicalização das lutas sociais. As lutas de classes, que se desenvolvem sobre o fundo de extrema diversidade das condições sociais de segmentação das classes trabalhadoras, articuladas nessas condições de regramento dos conflitos políticos pela eleição, sempre foram eficazes para manter em estado de fracasso a radicalização dos movimentos populares.

O eleitoralismo (o cretinismo parlamentar, dizia Lênin) reforça os efeitos negativos da segmentação das classes populares e aniquila a eficácia das estratégias de construção da sua unidade. A opinião pública ocidental não vê, infelizmente, alternativa para esse sistema de gestão da política, ao qual até os comunistas se alinharam. Mas, com a constituição do capitalismo dos monopólios generalizados, a farsa eleitoral explode à luz do dia, apagando o velho contraste direita/esquerda.

O movimento ao socialismo tem o dever de abrir campos novos à invenção de procedimentos mais avançados, de gestão da democracia política.

O socialismo será verde (“solar”) ou não será socialismo, escreveu Elmar Altvater. Acrescento que o capitalismo verde é sempre utopia, impossível, porque o respeito às exigências de uma ecologia política digna do nome é incompatível com o respeito às leis fundamentais que regem a acumulação capitalista. Também aqui, o movimento ao socialismo tem o dever de abrir novos campos à invenção de procedimentos de gestão econômica que integrem o longo prazo, que associam a socialização democrática das relações sociais às exigências da reprodução dos espaços de vida sobre o planeta, a qual, por sua vez, condiciona a transmissão, de uma geração a outra, da herança desses bens comuns.

O movimento ao socialismo não pode sequer limitar-se, nas respostas a essas questões, a expressão de votos piedosos, propor um remake dos socialismos utópicos do século 19. Para evita-lo, deve responder às seguintes questões: (I) quais são hoje nossos conhecimentos científicos em matéria de antropologia e sociologia que repõem em questão as “utopias” formuladas no passado? (II) quais são nossos conhecimentos científicos novos que tratam das condições de reprodução da vida sobre o planeta? (III) pode-se integrar esses conhecimentos num pensamento marxista aberto?

Nesse quadro geral, deve-se garantir todo o espaço necessário aos projetos da emergência dos estados e povos da Ásia, da África e da América Latina. A primeira onda dessas emergências, que se desdobrou com sucesso entre os anos 1950 e 1980, já passou. A página virada permitiu às potências imperialistas retomar a iniciativa e impor o “diktat” (não o, como se diz, pretenso “consenso”) de Washington. Por sua vez, esse projeto de globalização selvagem está em vias de implodir, oferecendo aos povos das periferias a possibilidade de engajar-se numa segunda onda de libertação e de progresso. Quais podem ser os objetivos dessa segunda onda? Diferentes visões políticas e culturais (reacionárias, ilusórias, progressistas) enfrentam-se aqui; e é preciso, pois, estudar suas possibilidades.

O movimento ao socialismo não conta com nenhum espaço que permita que comece a desdobrar-se sobre o terreno da realidade no quando do modelo da globalização presente. Deve, pois, escrever em seu programa objetivos estratégicos imediatos e mais distantes, que lhe permitam sair desse quadro. Pelo padrão, não se sairá do modelo de “lumpen desenvolvimento”, fundado sobre o destrato e a pilhagem dos recursos, produtor de uma pauperização insondável, que é a de todos os países que aceitam a submissão às exigências do desdobramento da globalização liberal.

O problema é mundial; a solução deve ser mundial. A primeira proposição é verdadeira; a segunda não é conclusão necessária. Uma transformação da globalização por cima, pelas negociações internacionais, no quadro da ONU, por exemplo, não tem absolutamente nenhuma chance de levar a qualquer progresso. Prova disso é a longa série de conferências internacionais da ONU das quais jamais saiu ideia alguma (o que sempre seria previsível). O sistema mundial jamais foi transformado de cima para baixo, mas sempre a começar por baixo, quer dizer, a partir de mudanças da linha de desenvolvimento possibilitadas, de início, nas escalas locais (quer dizer, nacionais, no quadro dos estados/nações que são locus de lutas políticas decisivas). Agora se podem reunir as condições para eventualmente se abrirem as possibilidades de transformação das relações globalizadas. É preciso sempre desconstruir, para poder reconstruir de outro modo. O exemplo da Europa aí está, como prova. A construção europeia jamais poderá ser transformada de cima para baixo, por Bruxelas. Só a desobediência de um estado europeu, seguido logo por outro, permitiria considerar alguma real possibilidade de reconstruir alguma “outra Europa”.

A estratégia de iniciar as transformações pela ação nos planos nacionais pode ser expressa pela seguinte frase: recusar o ajuste unilateral às exigências do desenvolvimento da globalização presente; substituir esse ajuste unilateral pela prioridade para implantação de “projetos soberanos”, forçar o sistema mundial a ajustar-se, ele, às exigências do desenvolvimento desses projetos nacionais.

Mas o que entendemos por “projetos soberanos”?

Pôr em ação projetos soberanos abre, sob determinadas condições, um espaço para avanços do movimento ao socialismo.

Claro: é preciso discutir a própria noção de “projeto soberano”. Dado o nível de penetração dos investimentos transnacionais em todos os domínios e em todos os países, não há como fugir da pergunta: a que tipo de soberania nos referimos?

O conflito mundial pelo acesso aos recursos naturais é um dos mais determinantes da dinâmica do capitalismo contemporâneo. Trata-se de uma questão particular, cujo exame não de ser misturado a outras considerações gerais. A dependência dos EUA para inúmeros recursos e a demanda crescente da China são desafios para a América do Sul, África e Oriente Médio, particularmente bem dotados em recurso e modelados pela história da pilhagem desses recursos. É possível desenvolver políticas nacionais e regionais nesses domínios que inaugurem uma gestão planetária racional e equitativa, da qual todos os povos seriam beneficiários? É possível desenvolver relações novas entre a China e os países do Sul dos quais se fala aqui, que se inscrevam nessa perspectiva? Associando o acesso da China àqueles recursos ao apoio à industrialização de cada país (o que os supostos “doadores” da OCDE recusam)?

O quadro de desenvolvimento de um projeto soberano eficaz não se reduz ao campo da ação internacional. Uma política nacional independente permanece frágil e vulnerável se não receber apoio nacional e popular real, o que exige que se assente sobre políticas econômicas e sociais que permitam que as classes populares sejam as beneficiárias do “desenvolvimento”. Esse é o preço da estabilidade social, condição do sucesso do projeto soberano face às políticas de desestabilização dos imperialistas. Será preciso pois examinar a natureza das relações entre os diferentes projetos soberanos existentes ou possíveis e as bases sociais do sistema de poder: projeto nacional, democrático e popular, ou projeto (ilusório?) de capitalismo nacional?

Pode-se agora, então, avaliar os “projetos soberanos” que estão sendo postos em prática hoje pelos países “emergentes”: (I) A China é o único país verdadeiramente engajado na via de um projeto soberano; só há ela. Esse projeto é coerente: articula a implementação planejada de um sistema industrial moderno e completo, autocentrado, além de simultaneamente agressivamente aberto para a exportação, a um modo de desenvolvimento da agricultura fundado sobre a modernização da pequena exploração sem pequena propriedade (garantindo assim o acesso de todos à terra). Mas qual é a natureza do objetivo de soberania buscada? Trata-se de uma soberania burguesa nacional (cujo sucesso permanece fundado, na minha opinião, em ilusões), ou de um projeto de soberania nacional/popular? Trata-se de um capitalismo de Estado fundado sobre a ilusão de um papel dirigente de uma nova burguesia nacional (de Estado, em parte)? Ou de um capitalismo de Estado com dimensão social, evoluindo para um “socialismo de Estado” possível, etapa, ele também, na longa rota até o socialismo? Os fatos ainda não responderam essa pergunta. Remeto o leitor aos meus escritos sobre as alternativas de futuro que se oferecem à China contemporânea. (II) A Rússia está de volta à cena política internacional, onde se afirma como o adversário de Washington. Está engajada na via de um projeto soberano? Sim, talvez, nas intenções do poder, de reconstruir um capitalismo de Estado independente dos diktats dos monopólios globalizados. Mas a gestão econômica do país permanece liberal, controlada pela oligarquia dos monopólios privados instalados por Ieltsin, sobre o modelo ocidental. Essa política permanece privada de qualquer dimensão social que permitiria arregimentar o povo russo. (III) Há elementos de política soberana na Índia, notadamente políticas industriais dos monopólios industriais privados nacionais, sustentados pelo Estado. Mas nada além disso; as políticas econômicas gerais continuam as ser as do liberalismo, acelerando dramaticamente a pauperização da maioria dos camponeses. (IV) Assim também, há elementos de política soberana no Brasil, conduzido pelo grande capital privado brasileiro industrial e financeiro, e pela grande propriedade agrícola capitalista. Mas aqui, como na Índia, as políticas econômicas gerais permanecem liberais, sem trazer qualquer solução aos problemas da pobreza num país já 90% urbanizado, exceto que a miséria é atenuada por meios de assistência redistributiva. No Brasil como na Índia, as hesitações do poder, que não vai ‘além’, favorecem a ambiguidade dos comportamentos do grande capital, tentado pela busca de compromissos com o capital internacional. As fabulosas riquezas naturais do Brasil, e sua exploração em condições deploráveis (a destruição da Amazônia) reforçam ainda a busca de inserção, pelo país, no sistema de globalização que há.(V) Não há projeto soberano na África do Sul, cujo sistema econômico permanece sob controle do império anglo-norte-americano. Quais são então as condições para a emergência de um projeto soberano nesse país? E essa emergência implicaria quais novas relações com a África? (VI) Países não continentais podem desenvolver projetos soberanos? Dentro de quais limites? Que formas de aproximações regionais poderiam facilitar-lhes o avanço?

Por onde começar?

Proporia, para os projetos soberanos cujo movimento ao socialismo deveria promover-lhe a implantação, começar o serviço pela identificação de ações prioritárias a serem empreendidas no plano econômico e no plano político.

Em relação ao nível econômico:

Sugeriria começar o serviço por sair da globalização financeira. Atenção: trata-se só da faceta financeira da globalização, não da globalização em todas suas dimensões, notadamente comerciais.

Parte-se da hipótese de que aí está o elo mais frágil do sistema neoliberal globalizado que há. Nesse espírito, examinaremos:


  • a questão do dólar-moeda-universal; de seu futuro, considerado o crescimento da dívida externa dos EUA; 
  • as questões relativas às perspectivas de adoção do princípio da “convertibilidade total” do yuan, do rublo e da rúpia (ver meu artigo sobre o debate em torno do Yuan); 
  • a questão de “sair da convertibilidade” de algumas moedas de países emergentes (Brasil, África do Sul); 
  • as medidas que os países frágeis poderiam tomar no domínio da gestão da moeda nacional (África, em especial).

Houve iniciativas, de alcance ainda modesto; podem-se mencionar aqui a constituição da Conferência de Xangai; os acordos China/ASEAN, a ALBA, o Banco do Sul, o projeto “Sucre”, o Banco dos BRICS.

Em relação ao nível político:

Sugeriria que a prioridade seja implantar estratégicas capazes de pôr em xeque a geopolítica e a geoestratégia desenvolvidas pelos EUA e seus aliados subalternos da tríade.

Nosso ponto de partida é o seguinte: a busca da dominação mundial, pelos monopólios das potências imperialistas históricas (EUA, Europa, Japão) está ameaçada pelos crescentes conflitos entre (I) de um lado os objetivos da tríade (manter sua dominação) e; (II) de outro lado as aspirações dos países emergentes e dos seus povos em revolta, vítimas do “neoliberalismo”. Nessas condições, os EUA e seus aliados subalternos (associados no “imperialismo coletivo da tríade”) escolheram a fuga para adiante, com recurso à violência e às intervenções militares. Evidências disso são: (a) o desenvolvimento e o reforço das bases militares dos EUA (Africom e outros); (b) as intervenções militares no Oriente Médio (Iraque, Síria, no futuro o Irã?); (c) as medidas para cercar militarmente a China; as provocações que o Japão tem feiro, as manipulações relacionadas aos conflitos China/Índia e China/Sudeste da Ásia.

Mas parece que, enquanto a violência das intervenções das potências imperialistas continua inscrita na ordem do dia dos fatos, elas respondem cada dia com mais dificuldade às exigências de alguma estratégia coerente, condição de qualquer eventual sucesso. Os EUA estão à deriva? O declínio dessa potência é passageiro ou decisivo? As respostas de Washington, decididas, parece, ao sabor do dia a dia, nem por isso são menos perigosamente criminosas.

Em face desses grandes desafios, que estratégias de alianças políticas internacionais (ou militares) poderiam fazer recuar o projeto dos EUA, de controle militar de todo o planeta?

A importância dos avanços possíveis nesse terreno é evidente. Não por acaso, os BRICS, e depois deles bom número de países do Sul, uns envolvidos em graus diversos na via de projetos soberanos, outros ainda enredados nas dificuldades do lumpen desenvolvimento, manifestam cada dia mais claramente sua recusa a apoiar as aventuras militares dos EUA e ousam tomar iniciativas que contrariam Washington (como usar o direito de veto, como fizeram Rússia e China [no Conselho de Segurança da ONU]). É necessário ir mais longe nestas direções, de uma forma mais ampla e sistemática.

Notas

Teodor Shanin, ed., Late Marx and the Russian Road (New York: Monthly Review Press, 1983), 97–126.
Samir Amin, Three Essays on Marx’s Value Theory (New York: Monthly Review Press, 2013), 67–76.
See in particular my discussion of this in The Implosion of Contemporary Capitalism (New York: Monthly Review Press, 2013).
Ibid, 133–47.
See Samir Amin, “China 2013,” Monthly Review 64, no. 10 (March 2013): 14–33.
Samir Amin, “The Chinese Yuan and HSBC Bank,” Pambazuka no. 643, August 13, 2013, http://pambazuka.org/.

Referências

The paper deals strictly with the issue as indicated in the title. Yet it hints to concepts that I introduced in my recent writings: generalized monopoly capitalism, generalized and segmented proletarization, implosion of the system, the historical trajectory of capitalism, the long systemic crisis of declining capitalism, emergent nations, lumpen development, revolutionary advances and retreats in a number of African, Asian, and Arab countries, green capitalism and green socialism, a critique of international aid. The reader will find developments on these issues in the following bibliography:

Livros

The Liberal Virus (New York: Monthly Review Press, 2003)
Obsolescent Capitalism (London: Zed Books, 2003), chapters 4 and 5
Beyond US Hegemony (London: Zed Books, 2006), chapters 2, 4, and 5
Ending the Crisis of Capitalism or Ending Capitalism? (Oxford: Pambazuka Press, 2011), chapters 1, 2, and 4
The Law of Worldwide Value ((New York: Monthly Review Press, 2011), chapter 4
The Implosion of Contemporary Capitalism (New York: Monthly Review Press, 2013), chapters 1 and 2
Global History: A View from the South (Oxford : Pambazuka, 2011), chapters 5 and 6
Three Essays on Marx’s Value Theory (New York: Monthly Review Press, 2013)

Artigos

Samir Amin interviewed by Ali Amady Dieng, Development and Change 38, no.6 (November 2007): 1149–59.
“‘Market Economy’ or Oligopoly Finance Capital,” Monthly Review 59, no. 11 (April 2008): 51–61.
Nepal, APromising Revolutionary Advance,” Monthly Review 60, no.9 (February 2009): 12–16.
Seize The Crisis,” Monthly Review 61, no.7 (December 2009): 1–16.
Capitalism and the Ecological Footprint,” Monthly Review 61, no. 6 (November 2009): 19–22.
The Trajectory of Historical Capitalism and Marxism’s Tricontinental Vocation,” Monthly Review 62, no. 9 (February 2011): 1–18.
Modernity and Religions Interpretations,” in Lansana Keita, ed., Philosophy and African Development (Dakar: CODESRIA, 2011).
Y a-t-il une solution aux problèmes” Recherches Internationales, no. 89 (January–March 2011): 233-36.
Egypte: Changement: demandez le programme!” Afrique-Asie, December 28, 2012, http://afrique-asie.fr.
“Preface,” in Hocine Belalloufi, ed., La démocratie en Algérie: Réforme ou Révolution? (Alger: APIC, 2012).
The Center Will Not Hold: The Rise and Decline of Liberalism,” Monthly Review 63, no. 8 (January2012): 45–57.
The Surplus in Monopoly Capital and the Imperialist Rent,” Monthly Review 64, no. 3 (July-August 2012): 78–85.
China 2013,” Monthly Review 64, no. 10 (March 2013): 14–33.
“Class Suicide, The Post Bourgeoisie and the Challenge of Development,” in Firoze Manji, ed.,Claim no Easy Victory (Dakar: CODESRIA, 2013).
“Audacity, More Audacity,” Review of Radical Political Economics 45, no. 3 (September 2013): 400–409.
Egypt, July 2013” (interview on July 15, 2013), July 24, 2013, http://samiramin1931.blogspot.com.
Egypt Today: The Challenges for the Democratic Popular Movement,” August 23, 2013,http://samiramin1931.blogspot.com.
The Chinese Yuan and HSBC Bank,” Pambazuka no. 643, August 13, 2013, http://www.pambazuka.org.

Samir Amin é diretor do Fórum do Terceiro Mundo em Dakar, Senegal. Seus livros publicados pela Monthly Review Press incluem The Liberal Virus, The World We Wish to See, The Law of Worldwide Value e, mais recentemente, The Implosion of Contemporary Capitalism. Este artigo foi traduzido do francês por Shane Mage.

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