30 de junho de 2015

A restauração da dignidade

Agora mais do que nunca, o povo grego está na necessidade de apoio e solidariedade em todas as formas.

Giannakopoulos Georgios

Jacobin

Manifestantes em um protesto antiausteridade ontem em Atenas. Daniel Nide / Flickr

Tradução / Em 11 de novembro de 2011, o Primeiro-Ministro da Grécia, George Papandreou, foi convocado para uma reunião de emergência em Cannes, França, para defender seu plano de fazer um referendo destinado a validar o segundo acordo de resgate e o plano de reestruturação da dívida.

Papandreou argumentou que um voto "sim" sobre os termos do programa acordado iria acalmar as tensões crescentes na sociedade grega e criar consenso tão necessário para as "reformas" que o governo grego tinha concordado em empreender.

Os principais atores da Eurozona insistiram que a única opção que havia sobre a mesa era um referendo do tipo “dentro-ou-fora”, sobre a permanência da Grécia na Eurozona e na União Europeia (UE). Diante de uma rebelião de seu próprio partido, Papandreou engavetou o plano para o referendo, declarou-se vencido e renunciou. O governo de coalizão que veio em seguida ratificou todos os acordos pró-catástrofe, que só fizeram aprofundar a crise econômica e reduzir ainda mais o poder de barganha dos gregos.

Domingo, foi a vez de um novo Primeiro Ministro, Alexis Tsipras, jogar outra vez com um referendo. Mas a decisão do governo Tsipras nada tem a ver com 2011. O referendo proposto por Papandreou era a última chantagem tentada por um governante encurralado, tentando ludibriar os eleitores e induzi-los a acreditar que votar a favor do “resgate” seria votar a favor da permanência da Grécia na Eurozona.

É muito irônico que Papandreou acuse Tsipras de explorar “aa grande arma da democracia como uma manobra tática, minando sua essência política.”

Diante da intransigência das “instituições” (FMI, BCE e CE), e com o modus operandi de “chutar o balde” dos demais estados europeus, Tsipras decidiu convocar o eleitorado para que avalie as demandas irracionais dos credores. O radicalismo popular do governo parece ser a única tática que resta para melhorar o cada vez mais fraco poder de barganha da Grécia – uma das últimas cartas que resta, numa série de derrotas táticas. Ele também é o único caminho para defender a soberania popular do país.

A rápida formação de uma estranha coalizão de governo com o partido ANEL, de direita, deu ao partido Syriza autoridade sobre a economia. Uma equipe constituída dos principais economistas do partido e respectivos assessores recebeu a missão de renegociar os programas de “resgate”. O Ministro das Finanças, Yanis Varoufakis, tornou-se o rosto da mudança política e levou essa mensagem por toda a Europa. A Grécia procuraria renegociar os acordos de empréstimo, visando a conseguir um “compromisso honroso” que garantiria o acerto final para a Questão Grega.

O argumento foi formulado na linguagem da democracia: as instituições tinham de respeitar “o mandato” do governo recém eleito para pôr fim às políticas de arrocho “austeridade. Além disso, o governo grego fez repetidos apelos a um “interesse europeu mais amplo”: uma mudança na Grécia faria subir a maré anti-austeridade na Europa e traria de volta o crescimento, em benefício do “europeu médio”. Por fim, as reformas que o governo busca promover teriam o selo de aprovação de instituições internacionais “benevolentes” como a Organisation for Economic Co-operation and Development (OECD) e a Organização Internacional do Trabalho. (OIT).

O acordo de fevereiro foi o primeiro marco na internacionalização da questão grega. Alguns viram aí um passo em direção a um “compromisso honroso”. Outros, como um passo atrás, tropeço, derrota estratégica. Naquele momento, argumentei que seria um recuo tático, o qual, pelo menos, parecia tem criado um horizonte político mais favorável à estratégia antiausteridade do Syriza.

No entanto, o tempo que o governo grego parecia ter ganho ficou aquém. Ao contrário do que cabia esperar, o Banco Central Europeu extrapolou seu papel tecnocrático e impôs novas sanções, dessa vez limitando a liquidez do sistema bancário grego. Intensificava-se o estrangulamento da economia grega. Até o Ministro Varoufakis usaria depois um termo tradicional da região dos Bálcãs “besa”, para denunciar aos gregos o quanto era vergonhosa a posição dos parceiros europeus. O horizonte político não mudou. A única mudança efetiva foi trocar o nome da Troika e iniciar novo processo de negociação.

"Flexibilidade" tornou-se a palavra-chave das semanas seguintes. As negociações resumiram-se a processo de duas frentes. De um lado, grupos reuniram-se em Paris, Bruxelas e Atenas para discutir metas fiscais e coleta de dados. O fato de que já não houvesse ministros gregos a fazerem fila para receber ordens dos representantes da troika foi visto como um pequeno passo na direção de restaurar a dignidade do povo grego. De outro lado, vários canais abriram-se entre Tsipras e os mais altos funcionários da UE. Mas não tardou para que todos vissem que a tal “flexibilidade” que ofereciam aos gregos tinha alcance muito limitado.

Um bloco de estados credores na Europa, liderados pela Alemanha, não quis correr o “risco” de ceder às “demandas” gregas. Qualquer mudança no status quo implicaria grave atentado contra o dogma da estabilidade fiscal que prevalecia na Europa. Ao mesmo tempo, governos no atormentado sul da Europa, especialmente na Espanha, temiam que qualquer concessões à Grécia pusesse em perigo o futuro político deles mesmos. Há um método cuidadosamente pensado e conduzido nessa loucura – o que explica as repetidas convocações para “restaurar a sanidade e a humanidade”.

Quando entramos em maio, foram empregados uma série de novos neologismos para refletir as novas realidades: Grimbo [“Grécia” + “limbo”], Graccident [“Grécia” + “acidente”], “Varoufexit” [“Varoufakis” + “Sair”], “Gredge” [“Grécia” + “beira do abismo”]. As táticas de negociação dos gregos trocaram de marcha. Naquele momento já se tornara muito claro que as esperanças dos gregos – de obter um acordo-ponte que conduzisse rumo a um acordo final para a questão grega – sempre fora miragem. As instituições europeias até gostaram de reiniciar as negociações em Bruxelas, servindo-se de uma equipe de especialistas para discutir detalhes das medidas fiscais.

Quatro linhas vermelhas gregas começaram a tomar forma: o sistema de aposentadorias, o mercado de trabalho, privatização e arrecadação de impostos. A progressão das negociações levou a violações de quase tudo que havia nas linhas vermelhas do governo, ao mesmo tempo em que cresciam as tensões entre as instituições. Reinava a desarmonia, e uma nova linha, dessa vez ainda mais vermelho rubra, raiava no horizonte: recusa total a aceitar nova rodada de cortes, já inimagináveis, em salários e aposentadorias.

Este mês, a coisa engrossou, com o atraso no pagamento da parcela devida ao FMI. Discussões, reuniões, teleconferências, minirreuniões proliferaram. Debate exaustivo, sem precedentes, sobre o Imposto sobre Valor Agregado (IVA) virou assunto de conversas diárias em toda a Grécia e em toda a Europa. Com o passar do tempo, foi-se tornando cada vez mais claro que as propostas não passavam de ultimatos, cujo único objetivo era quebrar o governo Tsipras. Embora recessionária, a última proposta grega fazia algum sentido com alívio da dívida e previa plano moderado para atender às necessidades mais imediatas de dinheiro no país.

A troika não mostrou qualquer flexibilidade. Já estavam sendo elaborados planos para “mudança de regime”. Os líderes da direita no Partido Nova Democracia e os partidos de centro-esquerda da coalizão Potami foram chamados a Bruxelas, para conversações. Era hora para o Presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Junker, fazer o que ele mais sabe fazer – jogar culpas e responsabilidade nas costas dos outros.

Enfrentado a demandas impossíveis, o governo Tsipras só tinha duas opções. Uma, submeter-se ao aprofundamento da depressão econômica na Grécia. Segunda, convocar o povo, fosse em novas eleições ou num referendo.

A política grega entra agora em fase nova, mais divisiva, que aprofunda as divisões políticas do período chamado “do memorandum”. Ao contrário do que demandam alguns líderes europeus e seus procuradores políticos na Grécia, o governo insistiu que a votação nada tem a ver com o lutar da Grécia na Eurozona e na União Europeia.

O referendum nada tem a ver com “dentro/fora” nem com “euro/dracma”. Pelo modo como foi redigido, o referendum tem a ver com aceitar ou rejeitar o mais recente acordo proposto pelas instituições. O governo tem sugerido que pode mudar de posição no caso de se viabilizar algum acordo de último momento, mas nada disso parece agora possível.

Apesar de esse movimento não conflitar com o mandato do Syriza para negociar um acordo anti-austeridase, dentro do contexto hoje existente da Eurozona, seria hipocrisia não reconhecer que, no caso de resultado “Não” no referendo, será imperioso pôr outras alternativas sobre a mesa. É preciso dizer também que um “Não não é de modo algum rejeição ou renúncia à condição da Grécia, de membro da Eurozona e da União Europeia, como pregam o Partido Comunista da Grécia e outros partidos menores da esquerda radical. Um “Não” no referendo de 5 de agosto de 2015 reafirmará que o país continua interessado em encontrar terreno comum na Europa.

No caso de resultado “Sim”, o governo e o Partido Syriza ter-se-ão deixado apanhar numa “armadilha da democracia”. Os credores da Grécia e seus procuradores na política local argumentarão que, apesar da clara maioria parlamentar com que conta o governo, ele já não tem legitimidade política para firmar qualquer tipo de acordo com os credores da Grécia. Discussões sobre novas eleições ou outras coalizões para governar com certeza proliferarão. Essa é a razão pela qual cada um e todos os euroburocratas em Bruxelas estão fazendo campanha a favor do voto “sim”.

Comentaristas observaram corretamente que a decisão do governo a favor do referendum repõe em cena o direito à oposição democrática e repõe a democracia outra vez no mapa de uma Europa cada dia mais autoritária. O demos tomou o palco e tem de ser deixado deliberar livremente sobre o futuro de sua comunidade política. Mas a corrida aos bancos patrocinada pelo credor e o inevitável controle sobre capitais nos bancos gregos fez surgir uma política do medo.

A Grécia não está só nem pode ser deixada só nesses tempos críticos. Como disse Pablo Iglesias: "O problema não é a Grécia: o problema é a Europa." Agora, mais que nunca, o povo grego precisa de apoio e solidariedade, de todas as formas, por todos os meios acessíveis: que se tomem as ruas, no dia do referendum, que se criem e divulguem-se campanhas de solidariedade por toda a Europa e em todo o mundo.

Haverá, dentre os que pregam um voto “não” – como o líder do ANEL [“Gregos Independentes”] e Ministro da Defesa, Panos Kammenos — os que abraçam o mais furioso nacionalismo. Esse não é o argumento que inspira a esquerda. Entendemos que o interesse nacional que o governo grego defende corretamente está em primeiro lugar e sobretudo alinhado a interesses transnacionais europeus. Nosso amor à Grécia não nos faz fantasiar com grandezas nacionais “só nossas” nem nos empurra para ilusões de autossuficiência econômica.

Por décadas, o destino da Grécia esteve entregue aos seus estadistas “iluminados”. Agora é diferente. É chegada a hora de o povo exercer o seu direito democrático e decidir sobre o futuro das gerações vindouras.

Colaborador

Giannakopoulos Georgios é doutorando em História na Queen Mary University of London.

28 de junho de 2015

John Locke contra a liberdade

O liberalismo clássico de John Locke não é uma doutrina da liberdade. É uma defesa de expropriação e escravização.

John Quiggin

Jacobin

Retrato de John Locke, de Sir Godfrey Kneller.

Tradução / Para os liberais clássicos (muitas vezes chamados de libertários no contexto dos EUA), os textos fundadores do liberalismo são o Segundo Tratado sobre Governo e Cartas sobre Tolerância de John Locke, que apresenta o argumento de um governo limitado, respeitoso dos direitos de propriedade privada e tolerante às diferenças religiosas. Locke viveu na Inglaterra (e durante cinco anos no exílio na Holanda) no século XVII, e seu trabalho é normalmente interpretado em termos das lutas entre o rei inglês e o parlamento da Guerra Civil pela "Revolução Gloriosa" de 1688, em que a dinastia absolutista Stuart foi derrubada.

Para aqueles que realmente se interessam por ler o Tratado, existem algumas passagens pouco atraentes em que Locke justifica a escravidão (como aplicado aos prisioneiros capturados na guerra) e nega que sua teoria dos direitos de propriedade se aplique às sociedades caçadoras-coletoras, como as dos nativos americanos. Mas estas questões parecem estar tão distantes do contexto social de Locke na Inglaterra do século XVII como meras circunstâncias, irrelevantes para o argumento principal.

Considerando tanto sua própria vida como seu impacto histórico, no entanto, Locke é mais exatamente considerado como um filósofo americano do que um inglês, mesmo que ele nunca tenha cruzado o Atlântico pessoalmente. Estudos recentes sobre Locke centraram-se em fatos que sempre foram bem conhecidos, mas, como outros fatos históricos desagradáveis, foram ignorados ou desconsiderados. Esta reavaliação histórica implica uma compreensão nova e radicalmente diferente de sua filosofia política.

Em uma carreira de fortunas flutuantes, Locke estava intimamente envolvido com os assuntos americanos. Como secretário do Earl of Shaftesbury, então chanceler do tesouro, Locke ajudou na elaboração das Constituições Fundamentais da Carolina. Foi secretário do Conselho de Comércio e Plantações (1673-74) e membro da Câmara de Comércio (1696-1700), responsável pelas colônias americanas. Ele era um importante investidor no comércio de escravos ingleses através da Royal African Company e da empresa Bahama Adventurers.

Assim, quando Locke escreveu sobre a escravidão e as condições em que a propriedade de terra poderia ser adquirida, as condições americanas eram muito mais diretamente relevantes do que as da Inglaterra, onde a escravidão “tradicional” era desconhecida e onde a aquisição original de terras era uma ficção histórica.

Dada a sua reputação como defensor dos direitos de propriedade e da liberdade pessoal, Locke foi acusado de hipocrisia por seu papel na promoção e benefício da escravidão e da expropriação de populações indígenas, ações que parecem contrariar sua posição filosófica. Isso é muito caritativo.

As verdadeiras contradições são encontradas nos escritos filosóficos de Locke. Estes são projetados para encaixar suas posições políticas tanto na Inglaterra, onde ele apoiou a resistência às pretensões absolutistas do católico James II, e na América, onde ele fazia parte da classe proprietária de escravos (embora de longe).

Um exemplo inicial da flexibilidade doutrinária de Locke pode ser encontrado em suas Cartas Sobre a Tolerância. Embora o argumento para a tolerância pareça geral, Locke consegue encontrar razões para excluir os católicos e os ateus. Assim, no contexto da Inglaterra do século XVII, o único grupo que se beneficiaria com a política de tolerância proposta por Locke seria o de dissidentes protestantes da igreja estabelecida da Inglaterra. Este era, não surpreendentemente, o grupo ao qual Locke pertencia.

A teoria da propriedade de Locke é similarmente egoísta. É geralmente vista como uma ficção histórica, usada para justificar os direitos de propriedade atualmente existentes, apesar de não terem sido realmente adquiridos da maneira que Locke sugere. Como Hume se opôs, “não há propriedade em objetos duráveis, como terras ou casas, quando cuidadosamente examinadas de passagem de mão em mão, mas devem, em algum tempo, ter sido fundadas em fraude e injustiça”.

Isso é verdade, é claro. Considerado no contexto americano, no entanto, Locke não oferece uma teoria da aquisição original. Em vez disso, sua teoria é uma expropriação, projetada especificamente para justificar a “fraude e injustiça” a que Hume se refere.

A ideia central de Locke é que os agricultores, misturando seu trabalho com o solo, adquirem um título para ele. Ele imediatamente enfrenta a objeção de que antes da chegada da agricultura, os caçadores e os coletores trabalhavam na terra e ganhavam seu sustento. Então, parece, o futuro agricultor chegou muito tarde. O exemplo óbvio, ao qual se refere várias vezes, é o dos colonos europeus que chegam na América. A resposta de Locke é dupla.

Em primeiro lugar, ele invoca sua afirmação usual de que há uma terra abundante para todos, por isso apropriar-se de uma terra para a agricultura não pode prejudicar os caçadores-coletores. Isso é obviamente bobo. Talvez seja verdade para o primeiro agricultor (embora em motivos malthusianos padrão não haja razão para supor), ou o segundo ou o quinquagésimo, mas, em algum momento, a terra deve deixar de ser suficiente para sustentar a população preponderante de caçadores-coletores . Neste ponto, bem antes de toda terra ter sido adquirida por agricultores, sua teoria falha.

Locke certamente deve ter percebido que sua afirmação era falsa, não como uma questão de raciocínio abstrato, história distante, mas em termos de fato contemporâneo. Seus Tratados sobre o Governo foram publicados em 1689, um ano após o início da Guerra do Rei William (o teatro norte-americano da Guerra dos Nove Anos). A questão central nesta guerra, como em uma série de conflitos anteriores, foi o controle do comércio de peles, a forma economicamente mais significativa de atividade do caçador-coletor. Mas subjacente era a pressão geral decorrente da expansão constante da agricultura européia em terras anteriormente detidas por tribos indianas.

Como capitalista e acionista em empresas americanas, como a esclavagista Bahama Adventurers, Locke mal podia ter desconhecido esses fatos. Na verdade, ele se refere no Tratado aos contatos americanos que lhe deram sua informação.

A verdadeira defesa de Locke é que, independentemente de haver muito ou pouco, a terra não cultivada é essencialmente sem valor. Todo, ou quase todo o valor, diz ele, vem dos esforços dos agricultores que melhoram a terra. Uma vez que Deus nos deu a terra para ser melhorada, ela pertence legitimamente a quem a melhora.

Este é exatamente o raciocínio da maioria da Suprema Corte em Kelo v. City of New London. A Sra. Kelo e seus vizinhos estavam realmente ocupando a terra em questão, mas, assim concluiu o Tribunal, não podiam ou estavam dispostos a fazer o melhor uso dela. Assim, a única maneira pela qual a cidade poderia garantir o melhor uso econômico da terra em questão era usar seu domínio eminente de aquisição compulsória.

Tudo isso se relaciona com o ponto que eu mencionei antes, que a credibilidade de qualquer teoria Lockeana defendendo direitos de propriedade estabelecidos pelo Estado que os estabeleceu depende da existência de uma fronteira, além da qual encontram-se terras utilizáveis sem limites. Isso, por sua vez, requer o apagamento (mentalmente e geralmente na realidade brutal) das pessoas que já vivem além da fronteira e que extraem o sustento da terra em questão.

Agora, Locke sobre a escravidão. A reputação de Locke como oponente da escravidão repousa em parte ao mal-entendido e, em parte, ao fato de que ele ofereceu uma justificativa mais limitada da escravidão do que os escritores anteriores.

No que diz respeito ao mal-entendo, a afirmação ofensiva de Locke de que “A escravatura é um estado tão vil e miserável do homem, e tão diretamente oposta ao generoso temperamento e coragem de nossa nação; que dificilmente deve ser concebido que um inglês, e muito menos um cavalheiro, lhe seja favorável", parece uma declaração de condenação absoluta. Na verdade, no entanto, é mais apropriadamente entendido como uma versão inicial do jingoísmo expressado no sentimento de que “os britânicos nunca, nunca, nunca serão escravos”.

A intenção de Locke, nesta passagem, era demolir a ideia de Sir Robert Filmer de que os ingleses (incluindo os ingleses americanos) poderiam voluntariamente concordar em submeter-se a um governo com as reivindicações absolutistas dos Stuarts – era a essa submissão a que o termo “escravidão” se referia. Ao mesmo tempo, ele permitiu a escravidão intelectual absoluta, com poder de vida e morte, no caso de “prisioneiros levados em uma guerra justa”. Em seu trabalho sobre a Constituição das Carolinas, Locke estendeu o mesmo poder absoluto para os proprietários de escravos afro-americanos.

Há uma óbvia contradição aqui. Enquanto os africanos eram frequentemente escravizados como resultado da guerra, não havia motivos para supor que essa guerra fosse justa e, obviamente, era impossível estender essa justificativa a seus filhos.

Alguns estudiosos de Locke concluíram, como resultado, que sua posição política estava em contradição hipócrita com suas visões teóricas. Isso parece muito generoso para Locke como teórico.

Como já vimos, sua teoria da propriedade em geral tem precisamente as mesmas características: uma defesa liberal dos direitos dos ingleses à propriedade e à liberdade para justificar a privação desses direitos para os indígenas. Similarmente, nas suas tão vividas Cartas sobre a Tolerância, ele conseguiu encontrar razões para excluir católicos e ateus, de modo que os únicos beneficiários aa tolerância proposta eram protestantes dissidentes como ele.

Locke é americano em outro aspecto crucial. Seus escritos foram amplamente ignorados na Inglaterra, e ganharam sua proeminência quase que inteiramente por sua influência sobre os fundadores dos Estados Unidos.

Mais precisamente, os princípios de Locke se adequavam perfeitamente aos federalistas do sul que dominavam os primeiros anos dos Estados Unidos. Por um lado, eles justificaram a rebelião contra a Coroa britânica. Por outro, rejeitaram qualquer interferência sobre os direitos de propriedade, incluindo a propriedade de escravos. Mais amplamente, a teoria de Locke se opôs às possibilidades democráticas radicais da Revolução Americana, representadas por figuras como Benjamin Franklin e Thomas Paine.

As contradições inerentes à posição de Locke foram apontadas pelos críticos na época e resumidas por aquele velho Tory, o Dr. Samuel Johnson, que comentou: “Como é que ouvimos os gritos mais altos para a liberdade dos controladores dos negros?" (A amizade de Johnson com seu criado jamaicano, Francis Barber, um ex-escravo, foi um testemunho impressionante de seu personagem).

Mas a história é escrita pelos vencedores. Locke se beneficiou da mesma amnésia histórica que absolveu todos os fundadores dos EUA, mais notavelmente Jefferson e Madison, juntamente com líderes antebellum como Calhoun e Clay, de seu papel na manutenção e extensão da escravidão. Esta amnésia foi reforçada pelo domínio da Escola de Dunning, pró-escravidão, na discussão histórica da Era da Guerra Civil e da Reconstrução. É somente desde o surgimento do Movimento dos Direitos Civis que essas questões foram reabertas.

Se Locke é visto, corretamente, como um defensor da expropriação e da escravidão, quais são as implicações para o liberalismo clássico e o libertarianismo? O mais importante é que não há justificativa para o tratamento dos direitos de propriedade como direitos humanos fundamentais, em detrimento da liberdade pessoal e da liberdade de expressão.

A verdadeira tradição liberal é representada não por Locke, mas por John Stuart Mill, cujo compromisso sincero com a liberdade política foi consistente com sua eventual adoção do socialismo (reconhecidamente de forma bastante refinada e abstrata).

Mill não era perfeito, como é evidenciado pelo apoio ao imperialismo britânico, para o qual trabalhou como funcionário da Companhia das Índias Orientais e, mais geralmente, por seu apoio às limitações às maiorias democráticas. Mas a versão de Mill do liberalismo tornou-se mais democrática, pois a experiência mostrou que os temores sobre as maiorias ditatoriais eram infundados. Em contraste, o liberalismo clássico de Locke se endureceu no dogma apropriado.

Conforme Mill reconheceu, os mercados e os direitos de propriedade são instituições que são justificadas pela sua utilidade, não por qualquer direito humano fundamental. Onde os mercados funcionam bem, os governos não devem interferir neles. Mas, quando eles falham, como costumam fazer, é inteiramente apropriado modificar os direitos de propriedade e os resultados do mercado, ou substituí-los completamente pelo controle público direto.

As idéias recebidas mudam apenas lentamente, e a visão padrão de Locke como defensor da liberdade provavelmente irá persistir nos próximos anos. Ainda assim, a reavaliação está em andamento e o resultado é inevitável. Locke foi um defensor teórico e participante pessoal da expropriação e da escravização. Seu liberalismo clássico não oferece garantias de liberdade para ninguém, exceto os donos da propriedade privada capitalista.

Sobre o autor

John Quiggin, an Australian economist at the University of Queensland, blogs at Crooked Timber.

27 de junho de 2015

O novo movimento de desinvestimento

Depois de quase dois anos de organização estudantil, Universidade Columbia retira investimento da indústria da prisão privada esta semana.

Por George Joseph

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Tradução / Na última semana, líderes estudantis norte-americanos anunciaram que o conselho administrativo da Universidade Columbia, em Nova York, votou pela retirada dos investimentos da instituição do setor prisional privado. Esta é uma vitória da campanha liderada pelo grupo estudantil Columbia Prison Divest ("Desinvestimento Prisional da Universidade Columbia"), realizada ao longo dos últimos dois anos.

A votação decidiu que a universidade venderá suas ações da G4S, empresa britânica do setor de prisões e de segurança privada que opera penitenciárias no mundo todo e fornece equipamentos para postos de controle israelenses na Palestina ocupada. Além disso, a Universidade Columbia se comprometeu com nunca mais investir qualquer parte de seu orçamento de mais de 8 bilhões de dólares em empresas privadas do setor prisional, como a Corrections Corporation of America, da qual a universidade possuía ações no valor de 8 milhões de dólares, segundo um relatório estudantil.

Estes investimentos são uma pequena parcela do lucro de cerca de 3 bilhões de dólares gerado anualmente por prisões, penitenciárias e instalações de detenções para estrangeiros em situação irregular. Os estudantes argumentam que a campanha nunca teve a intenção de fazer grande diferença nas margens de lucro destas empresas, mas, na verdade, visava chamar atenção para esta indústria e para o encarceramento em massa de maneira mais ampla nos Estados Unidos.

"São empresas de bilhões de dólares", disse Gabriela Pelsinger, organizadora da Columbia Prison Divest. "Se quisermos colocar um fim nisso, temos que nos focar na engrenagem econômica que movimenta a exploração e o encarceramento, expondo-a. Em grande parte, esta engrenagem é o lobby e a presença política das empresas privadas do setor".

O ímpeto para a campanha veio de uma visita da então veterana Asha Rosa e de uma amiga à secretaria de "investimento socialmente responsável" da universidade, em dezembro de 2013. Ao perguntarem onde a Columbia estava investindo seu dinheiro, descobriram que pelo menos 10 milhões de dólares eram investidos diretamente em empresas privadas do setor prisional. "Assim que vimos a lista, não paramos um minuto para nos perguntar se deveríamos ou não tomar uma atitude", diz.

No dia 3 de fevereiro de 2014, um grupo de cerca de vinte estudantes foi até o escritório do presidente da universidade, Lee Bollinger, e leu uma carta exigindo que a escola deixasse de investir no setor.

Desde o início, no entanto, os organizadores do movimento Columbia Prison Divest sabiam que teriam de promover uma mobilização local para difundir sua mensagem de maneira direta. No primeiro artigo do jornal universitário Columbia Spectator sobre a campanha, por exemplo, o jornal contestou as referências dos organizadores à Palestina e afirmou que o ponto principal dos esforços deveria ser tornar os dados financeiros da universidade mais transparentes.

Desta forma, em lugar de esperar a atenção da mídia para difundir sua mensagem, a Columbia Prison Divest buscou se fortalecer criando vínculos com a comunidade universitária, buscando interagir ativamente com estudantes e funcionários pelo menos semanalmente e, às vezes, diariamente. "Organizar uma campanha midiática é importante, mas isso não pode substituir a organização das pessoas", diz Rosa.

"Tínhamos um cartaz pendurado na parede com todos os nossos objetivos. Nós circulamos e grifamos três deles: 1) retirada dos investimentos, 2) educar as pessoas a respeito de sistemas prisionais e de policiamento, 3) contribuir com um movimento mais amplo pela abolição das penitenciárias", explica Rosa. "Dissemos a nós mesmos que não teríamos vencido se não mudássemos fundamentalmente a maneira como as pessoas pensam sobre tudo isso, do encarceramento em massa à Palestina. Não seria uma vitória se não conseguíssemos nos conectar a movimentos sociais maiores na cidade de Nova York. O fato de que a Universidade Columbia deixou de investir 10 milhões não significa que empresas como a CCA ou a G4S deixarão de existir e, por isso, a forma como isso é feito é igualmente importante".

O surgimento da indústria prisional privada nos Estados Unidos começou em meados dos anos 1980, em resposta à superlotação e aos crescentes custos das prisões estatais, causados por uma "guerra às drogas" racista e por uma legislação "severa contra o crime". Por meio de um lobby persistente e de influência legislativa, as empresas privadas do setor prisional cresceram, chegando a encarcerar 19% da população prisional federal e 7% da população prisional estadual.

Foi este tipo de informação que os organizadores divulgaram por meio de apresentações e encontros, levando estudantes interessados a desenvolver uma compreensão maior sobre a forma pela qual o aumento do setor prisional privado está intimamente ligado ao encarceramento em massa e ao capitalismo.

"A campanha foi iniciada por estudantes em um grupo que já existia chamado Students Against Mass Incarceration ["Estudantes contra o Encarceramento em Massa"], que tinha como base políticas antirracismo, antiencarceramento e anticapitalismo", disse Dunni Oduyemi, organizadora da Columbia Prison Divest. "Desta forma, baseamos nossa educação política para a comunidade e nossas mensagens naquelas ideias. Queríamos chegar até os estudantes mais liberais da Columbia, mas evitar que nossa mensagem parecesse alguma solução simplista e vaga".

Em outras palavras, não era suficiente convencer as pessoas de que as prisões privadas eram o problema. "Quando começamos, falávamos com pessoas com quase nenhuma consciência política, dizendo: 'É por isto tudo que as prisões privadas são ruins'", diz Rosa. "Mas, por fim, decidimos mudar nosso discurso, adequando-o ao que realmente queríamos dizer: 'Todas as prisões são instituições degradantes e violentas, vamos pensar em como as prisões privadas se encaixam neste modelo?'. Perguntávamos: 'Como podemos nos organizar da maneira mais honesta?' Não queríamos ganhar por meio de um recurso à política fiscal, como os irmãos Koch".

O trabalho do grupo para transformar a campanha em um movimento político e de maior abrangência, mais racialmente diverso do que qualquer outro na memória recente da universidade, deu ao movimento um impulso inexorável.

Enquanto o apoio e a filiação ao grupo No Red Tape, que atua contra a violência sexual na universidade, diminuiu ao longo do ano, a abordagem democrática do Columbia Prison Divest fez com que a filiação crescesse cada vez mais, ainda que a elite nova-iorquina tenha lhe dado menos atenção.

Galvanizado pelo movimento Black Lives Matter ("As Vidas das Pessoas Negras Importam", em tradução livre), o grupo deu início a atividades de militância cada vez mais intensas, realizando uma passeata pelo campus, confrontando Bollinger, reunindo-se diante de prefeituras para pressionar seus administradores e terminando o ano em um protesto sentado do lado de fora do escritório do presidente. "Usamos várias estratégias, algumas por meio de processos burocráticos da universidade, mesmo sabendo que a estrutura não havia sido criada para que vencêssemos", explica Rosa. "Dissemos que iríamos abrir um processo administrativo contra o presidente Bollinger e que apareceríamos em todos os eventos universitários em que ele estivesse".

No protesto sentado, diz Oduyemi, quase todos os grupos de militância por justiça social do campus compareceram para demonstrar apoio à causa, incluindo Students Against Mass Incarceration, Black Students' Organization ("Organização dos Estudantes Negros"), Students for Justice in Palestine ("Estudantes por Justiça na Palestina") e Student Worker Solidarity ("Solidariedade entre Estudantes e Trabalhadores"). Além da tradicional esquerda da Universidade Columbia, membros da comunidade organizados contra a gentrificação e o policiamento excessivo na região oeste do bairro do Harlem também prestaram solidariedade.

Embora a vitória da campanha Columbia Prison Divest seja a primeira do tipo em um campus universitário nos EUA, ela reflete o fato de que o sistema de encarceramento em massa norte-americano está se tornando cada vez mais conhecido do público.

Nos EUA, a demanda pela retirada dos investimentos no setor prisional parece estar se espalhando para além do campus da Universidade Columbia, evocando as reivindicações estudantis dos anos 1980, que exigiam o fim dos investimentos na África do Sul sob o apartheid. Desde 2013, cinco conselhos estudantis da Universidade da Califórnia aprovaram resoluções que exigem o fim dos investimentos na indústria prisional privada, e os estudantes da Universidade da Cidade de Nova York, da Universidade Wesleyan e da Universidade de Nova York estão se organizando de maneira similar aos de Columbia.

Colaborador

George Joseph é aluno de graduação na Universidade de Columbia.

24 de junho de 2015

"A escandalosa política grega da Europa", por Jürgen Habermas

Não cabe aos banqueiros, mas aos cidadãos tomar as decisões que dizem respeito à Europa, considera o filósofo alemão.

Jürgen Habermas 



Tradução / O resultado das eleições na Grécia exprime a escolha de uma nação onde uma grande maioria da população se colocou numa posição defensiva face à miséria social, tão humilhante como esmagadora, provocada por uma política de austeridade, imposta ao país a partir do exterior. A votação propriamente dita não permite nenhum subterfúgio: a população rejeitou a continuação de uma política cujo falhanço sofreu brutalmente, na sua própria carne. Com a força desta legitimação democrática, o governo grego tentou provocar uma mudança de política na zona euro. Ao fazê-lo, entrou em choque com os representantes de dezoito outros governos que justificam recusas referindo-se, friamente, ao seu próprio mandato democrático.

Lembramo-nos dos primeiros encontros em que noviços arrogantes, levados pela exaltação do triunfo, se entregavam a um torneio ridículo com pessoas bem instaladas, que reagiam umas vezes com gestos paternalistas de um bom tio e outras com uma espécie de desdém rotineiro: cada uma das partes gabava-se de desfrutar do poder conferido pelo seu respectivo «povo» e repetia o refrão como papagaios. Foi ao descobrir até que ponto a reflexão que então faziam, e que se baseava no quadro do Estado-nação, era involuntariamente cómica, que toda a opinião pública europeia percebeu o que realmente fazia falta: uma perspectiva que permitisse a constituição de uma vontade política comum dos cidadãos, capaz de colocar no centro da Europa marcos políticos com consequências reais. Mas o véu que escondia esse deficit institucional ainda não foi realmente rasgado.

A eleição grega introduziu grãos de areia na engrenagem de Bruxelas: foram os próprios cidadãos que decidiram a necessidade urgente de propor uma política europeia alternativa. Mas é verdade que, noutras paragens, os representantes dos governos tomam decisões entre eles, segundo métodos tecnocráticos, e evitam infligir às suas opiniões públicas nacionais temas que possam inquietá-las.

Se as negociações para um compromisso falharem em Bruxelas, será certamente sobretudo porque os dois lados não atribuem a esterilidade dos debates ao vício na construção dos procedimentos e das instituições, mas sim ao mau comportamento do parceiro. Não há dúvida de que a questão de fundo é a obstinação com que se agarra uma política de austeridade, que é cada vez mais criticada nos meios científicos internacionais e que teve consequências bárbaras na Grécia, onde se concretizou num fracasso óbvio.

No conflito de base, o facto de uma das partes querer provocar uma mudança desta política, enquanto a outra se recusa obstinadamente a envolver-se em qualquer espécie de negociação política, revela, no entanto, uma assimetria mais profunda. Há que compreender o que esta recusa tem de chocante, e mesmo de escandaloso. O compromisso não falha por causa de alguns milhares de milhões a mais ou a menos, nem mesmo por uma ou outra cláusula de um caderno de encargos, mas unicamente por uma reivindicação: os gregos pedem que seja permitido à sua economia e a uma população explorada por elites corruptas que tenham um novo começo, apagando uma parte do passivo – ou tomando uma medida equivalente como, por exemplo, uma moratória da dívida cuja duração dependesse do crescimento. Em vez disso, os credores continuam a exigir o reconhecimento de uma montanha de dívidas, que a economia grega nunca poderá pagar.

Note-se que ninguém contesta que uma supressão parcial da dívida é inevitável, a curto ou a longo prazo. Os credores continuam, portanto, com pleno conhecimento dos factos, a exigir o reconhecimento formal de um passivo cujo peso é, na prática, impossível de carregar. Até há pouco tempo, persistiam mesmo em defender a exigência, literalmente fantasmagórica, de um excedente primário de mais de 4%. É verdade que este passou para o nível de 1%, mas continua irrealista. Até agora, foi impossível chegar a um acordo – do qual depende o destino da União Europeia – porque os credores exigem que se mantenha uma ficção.

Claro que os «países credores» têm motivos políticos para se agarrarem a esta ficção que permite, no curto prazo, que se adie uma decisão desagradável. Por exemplo, temem um efeito dominó em outros «países devedores» e Angela Merkel não está segura da sua própria maioria no Bundestag. Mas quando se conduz uma má política, é-se obrigado a revê-la, de uma forma ou de outra, se se percebe que ela é contra-produtiva.

Por outro lado, não se pode atirar com toda a culpa a um falhanço para cima de uma das duas partes. Não posso dizer se o processo táctico do governo grego se baseia numa estratégia reflectida, nem ajuizar sobre aquilo que, nesta atitude, tem origem em constrangimentos políticos, inexperiência ou incompetência do pessoal encarregado dos assuntos. Não tenho informação suficiente sobre as práticas habituais ou sobre as estruturas sociais que se opõem às reformas possíveis.

O que é óbvio, seja como for, é que os Wittelsbach não construíram um Estado que funcione. Mas estas circunstâncias difíceis não podem no entanto explicar por que motivo o governo grego complica tanto a tarefa dos que tentam, mesmo sendo seus apoiantes, discernir uma linha no seu comportamento errático. Não se vê nenhuma tentativa racional de formar alianças; é caso para perguntar se os nacionalistas de esquerda não se apegam a uma representação um tanto etnocêntrica da solidariedade, se só permanecem na zona euro por razões que relevam do simples bom senso – ou se a sua perspectiva excede, apesar de tudo, o âmbito do Estado-nação.

A exigência para uma corte parcial das dívidas, que constitui a base contínua das suas negociações, não é suficiente para que a outra parte tenha pelo menos confiança para acreditar que o novo governo não é como os anteriores e que agirá com mais energia e de forma mais responsável do que os governos clientelistas que substituiu.

Mistura tóxica

Alexis Tsipras e o Syriza poderiam ter desenvolvido o programa de reformas de um governo de esquerda e «ridicularizar» os seus parceiros de negociações em Bruxelas e em Berlim. Amartya Sen comparou as políticas de austeridade impostas pelo governo alemão a um medicamento que contivesse uma mistura tóxica de antibióticos e de veneno para matar ratos. O governo de esquerda teria tido perfeitamente a possibilidade, na linha do que entendia o Prémio Nobel de Economia, de proceder a uma decomposição keynesianada mistura de Merkel e de rejeitar sistematicamente todas as exigências neoliberais; mas, ao mesmo tempo, devia ter tornado credível a intenção de lançar a modernização de um Estado e de uma economia (de que tanto precisam), de procurar uma melhor distribuição dos custos, de combater a corrupção e a fraude fiscal, etc.

Em vez disso, ele limitou-se a um papel de moralizador – um blame game. Dadas as circunstâncias, isto permitiu que o governo alemão afastasse, de uma penada, com a robustez da Nova Alemanha, a queixa justificada da Grécia sobre o comportamento mais inteligente, mas indigno, que o governo de Kohl teve no início dos anos 90.

O fraco exercício do governo grego não altera o escândalo: os homens políticos de Bruxelas e de Berlim recusam assumir o papel de homens políticos quando se reúnem com os seus colegas atenienses. Têm certamente boa aparência, mas, quando falam, fazem-no unicamente na sua função económica, como credores. Faz sentido que se transformem assim em zombies: é preciso dar ao processo tardio de insolvência de um Estado a aparência de um processo apolítico, susceptível de se tornar objecto de um procedimento de direito privado nos tribunais. Uma vez conseguido este objectivo, é muito mais fácil negar uma co-responsabilidade política. A nossa imprensa diverte-se porque se rebaptizou a «troika» – trata-se, efectivamente, de uma espécie de truque de mágico. Mas o que ele exprime é o desejo legítimo de ver surgir a cara de políticos atrás das máscaras de financeiros. Porque este papel é o único no qual eles podem ter de prestar contas por um falhanço que se traduziu numa grande quantidade de existências estragadas, miséria social e desespero.

Intransigência

Para levar por diante as suas duvidosas operações de socorro, Angela Merkel, meteu o Fundo Monetário Internacional no barco. Este organismo tem competência para tratar do mau funcionamento do sistema financeiro internacional. Como terapeuta, garante a estabilidade e age portanto em função do interesse geral dos investidores, em especial dos investidores institucionais. Como membros da «troika», as instituições europeias alinharam com esse actor, a tal ponto que os políticos, na medida em que actuam nessa função, podem refugiar-se no papel de agentes que operam no estrito respeito das regras e a quem não é possível pedir contas.

Esta dissolução da política na conformidade com os mercados pode talvez explicar a insolência com a qual os representantes do governo alemão, que são pessoas de elevada moralidade, negam a co-responsabilidade política nas consequências sociais devastadoras que no entanto aceitaram como líderes de opinião no Conselho Europeu, quando impuseram o programa neoliberal para as economias.

O escândalo dos escândalos é a intransigência com a qual o governo alemão assume o seu papel de líder. A Alemanha deve o impulso que lhe permitiu ter a ascensão económica de que se alimenta ainda hoje à generosidade das nações de credores que, aquando do acordo de Londres, em 1954, eliminaram com um simples traço cerca de metade das suas dívidas.

Mas o essencial não é o embaraço moral, mas sim o testemunho político: as elites políticas da Europa já não têm o direito de se esconder atrás dos seus eleitores e de fugirem a alternativas perante as quais nos coloca uma comunidade monetária politicamente inacabada. São os cidadãos, não os banqueiros, que devem ter a última palavra sobre questões que dizem respeito ao destino europeu.

A sonolência pós-democrática da opinião pública deve-se também ao facto de a imprensa se ter inclinado para um jornalismo de «enquadramento», que avança de mão dada com a classe política e se preocupa com o bem-estar dos seus clientes.

23 de junho de 2015

Em busca do tempo perdido

Depois de cinco meses de negociações, as escolhas da SYRIZA permanecem as mesmas: capitular para os credores da Grécia ou romper com o euro.

Stathis Kouvelakis


Créditos: Yannis Behrakis/ Reuters.

Tradução / Parece que eram necessários cinco meses para o governo grego afinal se retirar de um processo que exauriu o próprio governo como tal e a sociedade como um todo. Era o tempo necessário para pôr um fim (talvez temporário) ao repagamento de prestações aos bancos e para o SYRIZA lançar convocação para reativar a mobilização popular que foi interrompida pelo acordo catastrófico de 20 de fevereiro de 2015.

Com os cofres públicos vazios, com a economia patinando nos efeitos do estrangulamento da liquidez implementado pelo Banco Central Europeu, com a população num estado de inércia e confusão, a questão que surge é se todas essas iniciativas de último minuto, além de insuficientes e mal preparadas, só apareceram tarde demais para fazer qualquer diferença.

Se, em outras palavras, é possível recuperar o tempo que já começou a trabalhar contra o governo grego a partir do momento em que tentou apresentar como “sucesso nas negociações” o que não passou de inabilidade para modificar, um mínimo que fosse, a posição dos credores.

Uma paródia de negociações

Assim, apesar da verborragia sobre “progresso” e “acordo iminente”, o que os mais recentes desenvolvimentos vieram confirmar é que os últimos cinco meses nada foram além de paródia de “negociações”. E como se poderia descrever de outro modo um procedimento pelo qual, depois de quatro meses de alardeado progresso, a proposta – ou melhor dizendo, o ultimato – que um dos lados apresentou é, como confessou o Ministro do Interior da Grécia, Nikos Voutsis, variante particularmente carregada da proposta que estava na mesa desde o início, ou. em outras palavras, do acordo que o antigo governo grego, de direita, já aceitara?

O mínimo que se pode esperar, depois dessa provocação, é que os gregos deixem a sala. Mas o mais crucial, se não queremos ver repetir-se o mesmo cenário de pesadelo, é o reconhecimento público de que toda essa “negociação” foi uma armadilha na qual o lado grego foi apanhado, com consequências muito dolorosas – situação que só pode ser corrigida com radical mudança de rumo.

Mas o tempo perdido nessas intermináveis “negociações” não foi puro prejuízo para todos. Evidentemente os que cobram a Grécia nada perderam, e continuam a manter com absoluta consistência a estratégia do “estrangulamento por iliquidez” que foi iniciada pelo presidente do Banco Central Europeu, Mario Draghi, apenas dez dias depois das eleições.

E obtiveram algo que – pelo menos aos olhos dos que apoiaram o projeto de um governo de esquerda, e contribuíram para que chegasse ao poder de Estado – era inconcebível há poucos meses: fazer um governo, que foi eleito para romper com a “terapia de choque” neoliberal imposta ao país pelos memorandos, aceitar um quadro apenas marginalmente modificado de políticas de austeridade.

De que outro modo se poderia caracterizar o inacreditável “texto de 47 páginas”, como foi apresentada a mais recente versão completa da proposta grega? É documento que se move sob a velha e indiscutivelmente orientada pelo Memorando, lógica dos superávits fiscais, das privatizações, dos aumentos repetidos na idade mínima para aposentadorias, da consolidação da super-taxação extorsionária dos anos recentes (com aumento paralelo na taxação indireta), da proteção reduzida para a propriedade da residência familiar, de relegar a futuro indeterminado quase a totalidade dos compromissos programáticos do SYRIZA (os que já não foram virtualmente cancelados).

Vamos ser claros sobre isso: embora tenha havido derrapagens nas posições dos gregos desde o início das chamadas negociações, o novo texto marca um ponto de virada. Ainda que as propostas do lado grego lá estivessem para ser aceitas como “base para discussão” – e sabemos que uma vez que elas foram feitas houve novas medidas no sentido de alinhamento com as demandas dos credores (o mais característico sendo a plena aceitação do metas de superávits fiscais) - o resultado ainda seria continuação da austeridade e fortalecimento do regime memorando. Nesse sentido, podemos dizer que a violação do mandato popular já ocorreu.

Apostando na passividade social

Mas o “tempo perdido” não se aplica só ao recuo continuado dos negociadores gregos. Igualmente crucial é a desmobilização da sociedade, a baixa continuada das expectativas, o senso de impotência que se vai generalizando. A perda começou no acordo de 20 de fevereiro de 2015, que pôs fim ao clima de esperança e ao entusiasmo combativo que foram disparados pela vitória eleitoral do SYRIZA em janeiro.

O discurso oficial do governo foi fator decisivo nesse processo, tanto quanto a inabilidade do SYRIZA como partido para falar em outra escala tonal. O que prevaleceu no final, e se mantém em algum sentido nesse curso póstumo, foi a interminável “negociaçãologia”, o canto & dança intermináveis sobre o “acordo” sempre iminente e um tal suposto “compromisso honroso” misturado de tempos em tempos com explosões de truculência que sugeririam “uma ruptura” – mas sem jamais a terem preparado ou explicado como opção viável e positiva.

Mas nada disso surpreende, e as convocações adiadas, improvisadas e sem alvo preciso, para mobilizações populares, como a lançada dia 17 de junho de 2015, devem ser recebidas com ceticismo.

Tornou-se abundantemente claro que o governo, mas também toda a coalizão SYRIZA em geral, enfrenta hoje um problema de credibilidade. Que credibilidade teria declarar, como Alexis Tsipras declarou dia 16 de junho de 2015, em discurso ao seu grupo parlamentar, que agora “começam as negociações reais”, depois de decorridos cinco meses exaustivos?

Que sentido haveria em reiterar, como fez o Primeiro-Ministro no mesmo discurso, que teria havido algum “acordo positivo de 20 de fevereiro de 2015”, quando já mais ou menos todos percebem que os banqueiros ataram as mãos do governo, sem ceder nem alguma mínima concessão no estrangulamento da liquidez?

Quantos ainda acreditam que o “grupo de Bruxelas” e as “equipes técnicas” seriam de algum modo diferentes da Troika, que a dita “quinta revisão do atual programa” teria sido retirada da mesa, quando lá está, no documento de 47 páginas das propostas gregas, e, até, que já não haveria memorando?

E esses continuados truques verbais não seriam, de qualquer modo, confissão implícita de fracasso (quando não se consegue mudar alguma coisa, muda-se o nome) e, ao mesmo tempo, sintoma de continuada demolição da própria linguagem política da esquerda?

Tempo de romper

Em seu monumental romance “À procura do tempo perdido”, Marcel Proust demonstrou o que Heráclito codificou na frase famosa, “Não se entra duas vezes no mesmo rio”. O tempo passado é irrevogavelmente perdido, e só é possível voltar a ele guiado pela memória, como narrativa, uma reconstrução que acontece noutro nível, da linguagem e da reinvenção imaginada. Para fazer o que fez, Proust parou de viver. Deteve o fluxo do tempo, como transcorria para ele, para deixar que sua escrita fosse como a encenação do confronto, no homem, com a experiência da perda.

Mas, mesmo assim, este escritor francês tem algo pertinente a dizer para aqueles que optam por fazer o oposto do que ele mesmo fez, para aqueles que continuam vivendo e agindo no mundo, com uma consciência, porém, que tudo conserva algum traço do passado, o gosto da incompletude. Só quem cria tempo novo pode vingar o que tenha sido ferido pelo tempo passado. Nesse sentido, nada tem maior relevância hoje que o programa do SYRIZA, que os compromissos que assumiram e que tornaram possível sua histórica vitória eleitoral. Não apesar de, mas precisamente porque sabemos que essa implementação não pode acontecer como a imaginamos inicialmente. Recomeçar não implica voltar à marca inicial. Mas tampouco é possível recomeçar sem romper com o que existiu mas já não existe, já se foi.

O governo SYRIZA, o povo grego, encontram-se hoje ante um dilema que pode ser formulado de modo duramente simples: capitulação ou rompimento; rendição ou abertura ampla para o futuro. A segunda opção implica riscos, é claro, mas a primeira nada tem a oferecer além da segurança de demorada, mortal agonia.

O futuro ainda está em aberto, e permanecerá assim por um breve espaço de tempo. Em qualquer caso, ninguém pode dizer o que Proust teria feito se não tivesse experimentado aquele pequeno pedaço de bolo que os franceses chamam de "madeleine".

15 de junho de 2015

O despertar da Alemanha

Modelo econômico da Alemanha não cumpriu suas promessas de justiça social. Será que a recente onda de greves representa uma ameaça à "parceria social"?

Mark Bergfeld


Painéis de informação vazios em Colônia, Alemanha, durante uma greve ferroviária no mês passado. Martin Meissner / AP

Tradução / Ao longo das últimas semanas, os sites de agências de notícias alemãs vêm publicando manchetes sensacionalistas como "Willkommen, Streikrepublik Deutschland" [Bem-vinda, República alemã da greve]. O Süddeutsche Zeitung, o maior jornal diário da Alemanha, noticiou na capa o aumento vertiginoso na adesão sindical no país. E o The Guardian de Londres fez questão de publicar um artigo do famoso sociólogo alemão Wolfgang Streeck intitulado "The strikes sweeping Germany are here to stay" [As greves que varrem a Alemanha vieram para ficar].

Mas o que exatamente está acontecendo na Alemanha?

Em resumo, trata-se da maior onda de greves em décadas: apenas este ano, mais de 350.000 dias de trabalho foram perdidos em greves. Esse número foi de apenas 156.000 em todo o ano passado; em 2010, foram 28.000 dias.

Pilotos de avião, condutores de trem, trabalhadores dos correios, professores de pré-escola e enfermeiros, apenas para citar alguns, fizeram greve ou fazem neste momento. O movimento representa a maior ameaça ao modelo econômico alemão desde os protestos contra as reformas Hartz IV – que liberalizaram os mercados de trabalho – mais de dez anos atrás.

Durante gerações, os sindicatos alemães não se destacaram exatamente por sua militância. Entre o fim dos anos 1960 e o início dos anos 1970, enquanto o Reino Unido, a Itália e a França foram palco de ferozes conflitos industriais, a Alemanha viveu relativa calma. No modelo corporativista e de "parceria social" alemão, o destino dos trabalhadores estava claramente ligado à economia de exportação do país, e os sindicatos subordinavam seus interesses aos da empresa.

Por algumas razões, o modelo tem funcionado na Alemanha. A taxa de produtividade do país é muito alta, e os produtos para exportação mantêm-se relativamente baratos no exterior. Trabalhadores têm garantidos alguns direitos democráticos através da política de co-determinação, o que lhes permite eleger representantes para os conselhos de trabalhadores das empresas. E a taxa de sindicalização continua muito mais alta do que nos Estados Unidos, por exemplo.

No entanto, o modelo tem se sustentado às custas de arrocho salarial e diminuição das condições de segurança no trabalho. Enquanto muitos liberais americanos alardeiam que o modelo alemão, com sua falta de entraves, representa um sucesso, há um importante setor da população com baixos salários. Entre 1998 e 2008, o número de trabalhadores com contrato de tempo integral diminuiu em 800.000, enquanto o número de trabalhadores com empregos precários aumentou em 2,4 milhões. Em 2012, trabalhadores "atípicos" correspondiam a 21,2% da força de trabalho alemã. Hoje, mais de 2,6 milhões de pessoas têm dois empregos.

A adesão sindical se estabilizou, e o número de delegados sindicais nos locais de trabalho continua a diminuir. Apenas 58% da força de trabalho alemã são cobertas por um contrato coletivo de trabalho. Para piorar, o parlamento acaba de aprovar uma lei que visa a restringir o direito de organização e de greve.

Trata-se de um ataque direto a um dos principais grupos envolvidos na onda de greves: o sindicato dos condutores de trens, cuja greve de 34.000 membros demonstrou o poder do grupo de trabalhadores pequeno mas estruturalmente forte. Suas paralisações afetaram mais de seis milhões de passageiros e impediram a circulação de mais de 600 mil toneladas de matérias-primas e bens por dia. Cada dia de greve custou à empresa ferroviária cerca de 10 milhões de euros, e o prejuízo de cada dia de greve para a economia alemã foi de aproximadamente 100 milhões de euros.

Desde a privatização parcial da empresa ferroviária, os condutores de trem alemães recebem salários menores que os de seus homólogos europeus. Mesmo que suas reivindicações por um aumento salarial de 5%, pela redução da jornada de trabalho, melhores condições de trabalho, e pelo direito de representar outras categorias do transporte ferroviário fossem absolutamente razoáveis, foram recebidas com total hostilidade por políticos e pela imprensa (com algumas louváveis exceções), e até mesmo por setores do movimento sindical. (O fato de o sindicato dos condutores de trem não ser o sindicato oficial na confederação sindical tornou-os, junto com o líder Klaus Weselsky, um alvo fácil).

Enquanto os condutores de trem lutam por uma fatia maior do bolo, os trabalhadores hospitalares da Charité, em Berlim, querem assumir o controle da confeitaria.

No mês passado, os trabalhadores da Charité lideraram a maior greve hospitalar na história alemã quando fizeram uma paralização de apenas dois dias. Eles não pediam mais dinheiro. Reivindicam equipes de saúde maiores por paciente, ao contrário da situação de sobrecarga atual.

Além disso, a greve retomou ações anteriores, já conduzidas pelo pessoal administrativo e de manutenção, entre outros. Trabalhadores da saúde têm sofrido o impacto da reestruturação neoliberal dos hospitais, e é nesta base que vêm construindo alianças bem sucedidas com grupos de pacientes, médicos, estudantes, iniciativas cidadãs e com o partido de esquerda Die Linke.

Professores da educação infantil exigem reconhecimento social do seu trabalho, e um aumento de 10% a 15%. As reivindicações geraram um debate público sobre como deveria ser a educação na primeira infância, e por que as desigualdades nos salários persistem: por que um homem qualificado ganha mais do que uma professora? E, se as elites políticas, assim como a chanceler Angela Merkel, reconhecem a importância da educação na primeira infância, por que os educadores não recebem remuneração adequada? Os professores de pré-escola não brincam com as crianças apenas, como muitas vezes se imagina. Seu trabalho é educativo.

A greve também questiona a política de austeridade fiscal Schwarze Null (Déficit zero), implementada pelo ministro das Finanças, Wolfgang Schäuble e por Merkel. A meta do governo de evitar a todo o custo a dívida foi alcançada a um preço enorme. Cidades alemãs foram à falência, escolas estão caindo aos pedaços, e muitas pontes correm o risco de desabar.

Se os trabalhadores ganharem, esse modelo é que pode desabar. Municípios alemães teriam que pagar salários decentes aos seus trabalhadores pelos serviços prestados, e os trabalhadores poderiam, por sua vez, exercer pressão por serviços melhores e mais bem financiados. Mas com um processo de arbitragem – como ocorreu com os professores pré-escolares, no auge de sua greve – essa hipótese torna-se improvável.

É este desdobramento que deve nos fazer parar e pensar antes de tirar conclusões exuberantes sobre a agitação dos trabalhadores na Alemanha. Muitas oportunidades foram perdidas, e têm sido feitas demasiadas concessões nos últimos anos para imaginar uma guinada de 180 graus. Afinal, neste país, um funcionário sindical da IG Metall foi alçado à administração da Volkswagen, enquanto acionistas e proprietários discutem as estratégias.

O recurso à arbitragem, mesmo quando os envolvidos tinham o apoio dos pais e do público, parece confirmar a suspeita de que os sindicatos alemães continuam a apoiar o modelo de co-determinação, cujas promessas de justiça social têm sido questionadas. Hoje, a Alemanha é uma das sociedades mais desiguais da Europa. O crescimento econômico tem cobrado um preço humano e ambiental cada vez maior.

Até agora, as greves foram convocadas por grupos bem organizados de trabalhadores com longa tradição sindical. O setor com os mais baixos salários, por outro lado, tem se mantido à margem do movimento. Se as paralisações se espalharem, os trabalhadores em greve precisam arrancar ganhos dos patrões, para mostrar que travar a produção também é um método eficaz no contexto alemão – em vez de acreditar que a parceria social vai dar conta das contradições.

Este movimento pode ser o início de algo real se os trabalhadores ousarem romper a lógica que há muito domina a política sindical oficial na Alemanha. Afinal de contas, houve um tempo em que a língua oficial do movimento operário era o alemão.

Colaborador

Mark Bergfeld é o Diretor de Serviços de Propriedade e UNICARE na UNI Global Union - Europa.

12 de junho de 2015

O iminente pacote de austeridade

Costas Lapavitsas

As "instituições" europeias procuram uma derrota pública de Syriza e o fechamento de qualquer alternativa.

Jacobin

Alex Tsipras em uma conferência de imprensa na cidade portuária do norte de Salónica. Professor Dude / Flickr

Tradução / Nas semanas recentes houve muitos e importantes desenvolvimentos nas negociações da dívida entre Grécia e as “instituições” europeias: o lado grego apresentou propostas, vazaram supostas contrapropostas dos credores, o Primeiro-Ministro Alexis Tsipras rejeitou-as, houve debate pré-agenda no Parlamento – onde Tsipras repetiu a total rejeição das contrapropostas – e depois sua recusa a pagar a prestação que vencia em 5 de junho de 2015 ao Fundo Monetário Internacional (FMI). Estamos claramente num momento crítico de virada.

O único partido capaz de fazer a Grécia andar para frente agora é o Syriza. O [partido] Nova Democracia está minado por disputas pela liderança e eleitoralmente despenca ladeira abaixo. O Potami não tem nenhuma, nem qualquer mínima, credibilidade. O Pasok está moribundo. O que os três propõem, na essência, é uma volta ao regime dos Memorandos. O Partido Comunista da Grécia afundou, por conta própria, num pântano de esquerdismo o mais turvo. E a via escolhida pelo Aurora Dourada, para completar o quadro, é de total descarrilamento do país, social e nacionalmente.

O povo grego portanto continua a investir todas as suas esperanças no Syriza. É o que se vê pelas pesquisas. Por tudo isso, é imensamente importante que o experimento do Syriza seja bem-sucedido. Pela mesma razão, as discussões que estão sendo conduzidas dentro do Partido ganham automaticamente dimensão nacional.

Neste momento histórico crucial, uma análise cuidadosa das propostas do governo grego e contra-propostas dos credores, é necessário para tirar algumas conclusões sobre o curso das negociações.

As propostas dos gregos

O texto que o governo grego apresentou para acordo com os parceiros pode ser resumido em torno dos seguintes pontos chaves.

1. O governo projeta superávit primário de 0,6% em 2015; 1,5% em 2016; 2,5% em 2017 e 3,5% para os cinco anos seguintes. Estas projeções são, sem dúvida, menor do que a quimera de 3% para 2015 e 4,5% para 2016 citados nos Memorandos. Mas não há afrouxamento real das políticas fiscais. Ao contrário, o tipo de gestão proposto pelo governo é muito apertado, como se vê na desistência de tentar orçamentos equilibrados. Em termos práticos, haverá austeridade em 2015-2016 e, com certeza, depois de 2017.

2. Para alcançar os superávits em 2015-2016, que são os únicos anos para os quais pode haver qualquer previsão realista, o governo está propondo elevar impostos. A medida mais importante são três aumentos de Imposto sobre Valor Agregado (IVA) [Value Added Tax (VAT)] (6,5%, 11% e 23%), com medicamentos recebendo o menor imposto, e alimentos comuns, energia e água, um imposto médio.

Esses são os maiores aumentos de impostos indiretos, mas estão sendo feitas tentativas para buscar políticas redistributivas, com os impostos mantidos mais baixos para itens de consumo popular (por exemplo, eletricidade, que recebe redução de imposto, de 13% para 11%). Mas inescapavelmente, se o VAT aumentar em escala adequada para gerar o necessário superávit, haverá nível significativo de ajuste fiscal. 

3. O governo também está propondo aumento na contribuição solidária (com peso maior sobre os mais ricos), taxação especial sobre os lucros de grandes empresas, um imposto sobre anúncios por televisão, cobrança de licença para funcionamento de estações de TV, uma taxa ‘sobre o luxo’ e outras medidas. O governo grego também está propondo uma série de medidas administrativas e legislativas para facilitar o processo de pôr fim à evasão fiscal, reduzir as isenções fiscais e melhorar a arrecadação.

4. Além das medidas fiscais, o governo propõe privatização de cerca de €3,2 bilhões para 2015-16; €2,1 bilhão para 2017-19; e €10,8 para depois de 2020. Haverá provisão para investimentos e para proteção de direitos trabalhistas nas empresas privatizadas, e o que for obtido dessas privatizações será usado para seguridade social e para reforçar o banco de investimentos a ser constituído.

5. No que tem a ver com a seguridade social, as propostas incluem abolir a cláusula de déficit-zero para 2015-16 e gradualmente adiar as aposentadorias para depois dos 62 anos. São propostas também várias medidas específicas para limitar o trabalho precarizado e a sonegação de contribuições para a seguridade.

6. Na área das relações trabalhistas, o governo deseja reintroduzir os acordos coletivos e, depois do final de 2016, restaurar o salário mínimo para os níveis de 2010.

7. Quanto a “empréstimos no vermelho”, há uma proposta para que se constitua um grupo de trabalho que delineará medidas que possam, gradualmente, mitigar a atual situação. Além disso, será temporariamente suspenso o leilão de imóveis que sejam primeira residência familiar.

8. O governo também está introduzindo várias reformas no sistema judiciário, sobre insolvências, turismo, comércio, telecomunicações, trabalhadores autônomos, registro de propriedade agrária, administração pública e setor de energia.

9. Por fim, o governo propõe duas medidas para reestruturar a dívida em 2015-2016. Primeiro, em 2015 haverá repagamento dos papéis gregos pertencentes ao Banco Central Europeu, usando-se fundos disponibilizados pelo Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE) (European Stability Mechanism).

Segundo, em 2015-16 serão pagos as dívidas com o Fundo Monetário Internacional (FMI), mais uma vez com fundos disponibilizados pelo MEE. Não há qualquer referência ao total de novos impostos, mas logicamente terão de estar em torno de €50 bilhões. Nessa base, estima-se que a Grécia poderá estar de volta aos mercados em março de 2016. O governo também requer que “as instituições” considerem um programa para financiar o desenvolvimento do país no período 2016 -2021. Mas não se especificam o tipo e as dimensões do programa.

As propostas do governo grego são concessão extremamente dolorosa, e tem de haver discussão interna no Partido sobre as consequências delas em relação à implementação da plataforma eleitoral do Syriza, o “Programa de Thessaloniki”. Por exemplo, não há menção ao cancelamento da dívida, nem a isenção de impostos, mas, ao contrário, fala-se de novos IVA e outros impostos, do adiamento do alívio creditício (seisachteia), nem uma palavra sobre nacionalização de bancos e daí por diante.

É preciso ter em mente que o Thessaloniki Program não é alguma modalidade de bolchevismo. É só keynesianismo moderado. A concessão que o governo faz às “instituições” também levanta realmente a questão de o quanto será implementável.

Claramente, a estratégia de negociação do governo é pôr fim ao processo de avaliação, garantir uma retomada na liquidez enquanto, simultaneamente, busca arrancar dos credores alguma redução no endividamento e nos patamares de crescimento exigidos. O Syriza está bem visivelmente se afastando do Programa de Thessaloniki, mas ainda tenta manter viva a esperança de que, no futuro, poderá seguir outra via.

As propostas dos credores

Então, qual tem sido a reação dos "parceiros"? A julgar pelo texto que foi vazado, a resposta tem sido brutal.

1. As “instituições” estão exigindo superávits primários de 1% em 2015, 2% em 2016, 3% em 2017, 3,5% em 2018, e 3,5% em cada ano subsequente. Esses objetivos não são muito diferentes dos do lado grego, o que implica que há reconhecimento implícito de que as metas anteriores eram inatingíveis. Os credores fizeram uma concessão. Mas a gestão fiscal continua extremamente apertada. Haverá “regime de austeridade” por muitos anos no futuro.

2. O problema é que as “instituições” entendem que, segundo as projeções atuais, a economia grega terá esse ano déficit primário de 0,66%. Também é óbvio que as “instituições” não acreditam na renda estimada pelo lado grego a ser gerada pelas medidas que os gregos propõem. As “instituições” portanto estão dizendo que medidas “específicas e de alta qualidade” devem ser tomadas para que os superávits sejam alcançados para 2015-16 e de modo compatível com o Programa de Médio Prazo para 2016-19. Logo...

3. Em primeiro lugar e sobretudo, um aumento no IVA que gere aumento de aproximadamente mais € 2 bilhões. Haverá duas taxas, 23% e 11%, a mais baixa aplicada a alimentos de consumo diário, medicamentos, hospedagem em hotéis (e a energia recebendo a taxa máxima de imposto). Serão abolidos os descontos que antes se aplicavam às ilhas. 

4. As “instituições” exigem muitas outras medidas draconianas de taxação, como a eliminação de subsídios – inclusive o subsídio para o combustível – para agricultores, e fim do subsídio para óleo para calefação. Também exigem um ajuste na avaliação objetiva da propriedade, de modo que o imposto sobre a propriedade gere renda idêntica à de 2015 e 2016, i.e. €2,65 bilhões anuais. Além disso, as “instituições” insistem na eliminação de acordos favoráveis sobre contribuições que tenham repercussão na dívida acumulada.

5. Além das medidas tributárias, as “instituições” estão exigindo reforma no sistema de aposentadorias com cortes de gastos da ordem de 0,25-0,5% do PIB em 2015 e 1% em 2016. Significa introduzir uma série de mudanças, inclusive eliminar a Contribuição Social de Solidariedade aos Aposentados [Pensioners’ Social Solidarity Grant] e adiar a aposentadoria para 67 anos, para quem começou a receber pensão depois de 30 de janeiro de 2015.
6. As “instituições” estão propondo uma série de outras medidas para reforma da administração pública e do Judiciário, e tornando independentes os mecanismos de arrecadação, além de proporem gestão privada para o sistema fiscal.

7. No que tem a ver com questões trabalhistas, propõem um processo de consultas para: salário mínimo, negociação coletiva, demissões em massa e greves, semelhante à “melhor prática” europeia.

8. Querem também desregulamentação geral de vários mercados, o mais importante dos quais é o mercado de geração e distribuição de energia elétrica.

9. Querem também continuação sistemática das privatizações extensivas, incluindo a rede ferroviária, os aeroportos regionais, Εgnatia Odos, o porto de Pireus, e o porto de Thessaloniki.

10. E as “instituições” não fazem qualquer referência a alguma reestruturação da dívida ou a algum programa de investimento e desenvolvimento.

Do texto vazado, o que se tem é que os credores estão insistindo em impostos duros e de “alta qualidade” com o objetivo de garantir superávits primários “baixos”. Ao mesmo tempo, exigem duras medidas de restrição a aposentadorias e pensões, terríveis reformas no trabalho, e uma coorte de políticas de desregulação.

O pressuposto é que, assim, se completará a avaliação pelos credores e o país poderá receber injeção de alguma liquidez em futuro imediato. Mas não há qualquer solução para o problema da dívida nem qualquer programa de investimento. A conclusão necessária é que essas “medidas” virão depois, talvez depois de “ampla” negociação sobre o limbo fiscal em que o país está.

Para onde essa estrada leva?

Algumas conclusões evidentes estão aí, sobre para onde estamos andando.

Não há qualquer base para a ideia de que haveria sérias diferenças entre os credores, que poderiam ser usadas a favor dos gregos. A elite europeia tem bons modos e fala com polidez, mas ali não há ninguém que possamos considerar amigo dos gregos. Quando chega a hora de puxar o nó no pescoço do enforcado, aqueles polidos negociadores viram duros, intransigentes e cínicos. Assim se construíram todos os impérios passados.

Não há “política de negociação” no sentido em que se diz na Grécia – quer dizer, com acorde pessoal entre os líderes. No contexto político europeu as posições são mediadas por instituições e mecanismos – num sentido mais amplo, aplica-se também ao setor público – que têm lógica própria. E a mediação tem quase sempre caráter tecnocrático.

Por exemplo, não há muita diferença entre as metas do governo grego e as metas dos credores no que tenha a ver com superávit primário, mas as posições sobre as medidas a serem tomadas são muito diferentes. A mediação tecnocrática das posições políticas dos credores é rígida. Daí brota a lógica do FMI e, igualmente, as demandas por medidas draconianas.

Não haverá proposta dos credores que não implique alto custo político para o Syriza e suas lideranças, porque o partido ameaça o status quo na Europa. Os credores querem demonstrar que o Syriza foi derrotado.

Não haverá proposta dos credores que permita ao Syriza implementar o Thessaloniki Program. O terreno para o qual os credores estão gradualmente arrastando o Syriza é cada vez mais distanciado de suas posições pré-eleições.

Certas conclusões prontamente se impõem:

Se algum acordo chegar a ser assinado nos termos impostos pelos credores, a Grécia estará de volta, na essência, ao regime dos Memorandos, o que significa que não haverá desenvolvimento sistemático, o desemprego continuará algo, a desigualdade aumentará, o país envelhecerá e a Grécia será transformada em insignificante pária no palco internacional. Se tal acordo for assinado, o tempo trabalhará contra o Syriza. Não haverá via que leve a algum “fim interno” aplicado à corrupção e à intriga, e nenhuma possibilidade de mudança social. Só haverá desgraça e desastre, para o país e para a Esquerda.

O desideratum nesse momento não é que se alcance algum espaço partilhado, entre as propostas dos credores e as do governo grego, pela óbvia razão de que tal acordo nos levaria para ainda mais longe do Programa de Thessaloniki. Se acontecer, os credores terão essencialmente vencido 

Há pouco espaço de manobra na sequência das negociações. A prolongada falta de liquidez e de fundos foi arquitetada pelos credores e levou a economia a uma recessão. O estado está suspendendo pagamentos e já não consegue funcionar como o esperado.

O saque de recursos já assumiu proporções elefantinas: o sistema bancário está à beira do colapso. Dívidas não saldadas acumulam-se. O crédito comercial está congelado. Nos últimos quatro meses, o governo do Syriza administrou a economia melhor do que governos anteriores do Nova Democracia ou do Pasok, mas a torquês viciosa aplicada pelos credores só faz aprofundar as rachaduras.

A estratégia de mudança radical na Grécia, sem afastar-se do contexto da União Europeia já deu o que tivesse para dar. Essa é a mensagem mais básica e mais importante que se pode extrair das táticas de rolo compressor aplicadas pelos credores.

Se o Syriza quer realmente mudar a sociedade, evitar a ruína da nação, pôr a economia de volta a uma rota de desenvolvimento, garantir uma nova posição dinâmica para a Grécia no esquema internacional de coisas, é absolutamente necessário que se examinem outras vias à frente, para avançar.

As análises e os conhecimentos estão aí. Vontade política e determinação são o que ainda devem ser trazidos para a equação.

10 de junho de 2015

A austeridade não é irracional

Aplicada na Grécia e em outros lugares, a austeridade não é nada mais do que a imposição dos interesses de classe dos capitalistas.

John Milios


O primeiro-ministro grego, Alexis Tsipras, encontra-se com o presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker. Olivier Gouallec / Demotix / Corbis

Tradução / Após a eclosão da crise econômica mundial de 2008, as políticas de extrema austeridade prevaleceram em muitas partes do mundo capitalista desenvolvido, especialmente na União Europeia (UE) e na zona do Euro. A austeridade tem sido criticada como uma política irracional que aprofunda ainda mais a crise econômica, criando um ciclo vicioso de queda da demanda efetiva, recessão e endividamento excessivo. No entanto, essas críticas dificilmente podem explicar por que essa política “irracional” ou “errada” persiste, apesar de suas “falhas”. 

Na realidade, as crises econômicas expressam não só na falta de demanda efetiva, mas, sobretudo, uma redução da rentabilidade obtida pela classe capitalista. A austeridade constitui-se em uma estratégia para aumentar a taxa de lucro do capital. 

A austeridade é a pedra angular das políticas neoliberais. Na superfície, ela funciona como uma estratégia para reduzir os custos das empresas. A austeridade reduz os custos do trabalho no setor privado, aumenta o lucro em relação ao custo unitário do trabalho e, assim, eleva a taxa de lucro. 

É complementada pela economia no uso de “capital material” (epa! Eis aí outra estratégia para cortar a demanda), assim como, também, por mudanças institucionais que, por um lado, aumentam a mobilidade do capital e a concorrência e, por outro, reforçam o poder dos gerentes nas empresas e dos investidores em ações e títulos na sociedade. No que se refere à consolidação orçamentária, a austeridade dá prioridade aos cortes nas receitas públicas por meio da redução dos impostos sobre o capital e sobre os rendimentos elevados, assim como por meio da redução dos gastos como o bem-estar social. 

No entanto, o que é custo para a classe capitalista é padrão de vida para a maioria trabalhadora da sociedade. E essa divergência vale também para as ações do estado-providência, pois os seus serviços podem ser vistos como uma forma de salário social. 

É claro, portanto, que a austeridade é principalmente uma política de classe. Ela promove constantemente os interesses do capital contra os interesses dos trabalhadores, profissionais, pensionistas, desempregados e grupos economicamente vulneráveis. No longo prazo, ela visa a criação de um modelo de sociedade em que os trabalhadores assalariados têm menos direitos e menos proteção social, recebem salários mais baixos e flexíveis e estão destituídos de qualquer poder de barganha substantivo. 

A austeridade leva, obviamente, à recessão. Eis que a recessão coloca pressão sobre cada empresário individual, seja ele da classe capitalista ou da média burguesia, para reduzir todas as formas de custos, para buscar mais intensamente o caminho do aumento do mais-valor relativo. Ela força cada um deles a consolidar as suas margens de lucro seja por meio de cortes salariais seja pela intensificação do processo de trabalho, da violação das normas trabalhistas e dos direitos dos trabalhadores, de maciça redundância, etc. 

Do ponto de vista dos interesses do grande capital, a recessão dá assim origem a um processo de destruição criativa. Com ela, ocorre uma redistribuição da renda e do poder em benefício do capital, eleva-se a concentração da riqueza em poucas mãos conforme as pequenas e médias empresas, especialmente aquelas de varejo de rua, são substituídas por grandes empresas e por centros comerciais. 

Esta estratégia tem a sua própria racionalidade e esta não é completamente óbvia à primeira vista. Não se percebe que a crise é uma oportunidade para uma mudança histórica na correlação de forças em favor da classe capitalista. 

Ela sujeita as sociedades europeias às condições de funcionamento sem restrições dos mercados financeiros. Ela busca colocar todas as consequências da crise sistêmica do capitalismo sobre os ombros dos trabalhadores. 

Esta é a razão pela qual, numa situação como a atual em que há intensificação dos antagonismos sociais, um governo que se pensa como estando ao lado dos trabalhadores e da maioria social não pode sequer imaginar sucumbir às pressões para continuar implementando políticas de austeridade. 

Capital versus Trabalhadores 

O neoliberalismo é uma forma de governança capitalista que visa organizar o poder do capital sobre as classes trabalhadoras e sobre a maioria da sociedade. Baseia-se, por um lado, tal como já se argumentou, na austeridade; funda-se, por outro, no papel regulador crucial dos mercados financeiros globalizados. A esfera financeira não é simplesmente o reino da especulação, não é um casino – ela consiste muito mais em um mecanismo de supervisão. 

Em análise feita no volume III de O Capital, Marx mostrou que o capital social se sustenta sempre por meio de dois “sujeitos”: o “capitalista monetário” e o “capitalista funcionante”. No curso de um processo de empréstimo, o capitalista monetário se torna recebedor e proprietário de uma garantia, isto é, de uma promessa escrita de pagamento emitida pelo capitalista funcionante, pelo gerente. 

Nas próprias palavras de Marx: "No processo de produção, o capitalista funcionante representa o capital, enquanto propriedade de outros, contra os trabalhadores assalariados; assim, o capitalista monetário participa da exploração dos trabalhadores por meio do capitalista funcionante que o representa." Contradições secundárias entre os gestores e os grandes investidores financeiros certamente existem, mas elas são menores em comparação com as contradições que existem entre o capital e o trabalho. 

Toda empresa possui uma face de Janus – a qual compreende, por um lado, a cara de seu aparato de produção per se e, por outro, a sua cara financeira, as suas ações e as suas obrigações, as quais são negociadas nos mercados financeiros globais. 

A produção de mais-valor é um campo de batalha em que resistências estão sendo sempre levantadas, de tal modo que o resultado final nunca pode ser tomado como garantido. Técnicas de gestão de risco, implementadas no âmbito do próprio modo de funcionamento de um mercado de dinheiro desregulamentado, são um ponto crítico no manejo da resistência efetuada pelos trabalhadores. São elas é que promovem e estabilizam a austeridade. 

Os mercados financeiros formam uma estrutura de supervisão da eficácia dos capitais individuais, isto é, um sistema de avaliação das inversões de capitais. A busca por manter alto o ganho financeiro coloca pressão sobre os capitais individuais (empresas), o que exige uma exploração mais intensiva e mais eficaz do trabalho e, assim, uma maior rentabilidade. Esta pressão é transmitida por meio de vários canais diferentes. 

Para dar um exemplo, seja o caso de uma grande empresa que é dependente do financiamento obtido nos mercados financeiros: quando se suspeita que a sua lucratividade se encontra em nível inadequado, ela passa a enfrentar um aumento do custo do financiamento, uma redução da disponibilidade de financiamento, uma queda dos preços de suas ações e de seus títulos. 

Confrontado com essa situação, as forças de trabalho dentro do ambiente politizado da empresa enfrentam o dilema de decidir se aceitam as condições desfavoráveis propostas pelas entidades patronais, o que implica na perda de sua própria posição de barganha, ou se enfrentam a possibilidade da perda do emprego: isto é, ou elas aceitam as “leis do capital” ou passam a conviver com a insegurança e com o desemprego. 

Esta pressão afeta toda a organização do processo de produção. Por conseguinte, não implica apenas em aumento do despotismo dos gestores sobre os trabalhadores, mas também em mais flexibilidade no mercado de trabalho, assim como desemprego elevado. Eis que a disciplina do mercado deve ser vista como sinônimo da disciplina do capital. 

O esboço teórico acima apresentado apreende o fenômeno da globalização capitalista e da financeirização como uma complexa tecnologia de poder. O seu principal caráter é permitir a organização das relações do poder capitalista. Trata-se de uma tecnologia de controle que é formada por diferentes instituições, procedimentos, análises e reflexões, cálculos, assim como táticas. Tais padrões reificados permitem o exercício desta específica, embora muito complexa, função de organizar a eficiência das relações de poder capitalistas por meio do funcionamento de mercados financeiros. 

A maioria que trabalha em praticamente todos os países capitalistas se oporá sempre à redução dos salários, ao emprego precário, à degeneração e à redução dos serviços públicos, à elevação do custo da educação e da saúde, ao enfraquecimento das instituições democráticas, ao reforço da repressão. Ela sempre conceberá a “crise do 4 trabalho” (ou seja, o desemprego, a precariedade e o trabalho mal remunerado, etc.) como uma doença social que deve ser enfrentada por si mesma, não como um efeito colateral da recuperação dos lucros. 

A continuação da austeridade implica, portanto, numa questão de relação social de poder. Eis como Marx comentou a questão dos limites da jornada de trabalho: 

"O capitalista mantém os seus direitos como comprador quando ele tenta prolongar a jornada de trabalho o mais possível... por outro lado... o trabalhador mantém o seu direito como vendedor quando pretende reduzir a jornada de trabalho para uma duração normal definida. Há aqui, portanto, uma antinomia, de direito contra direito, ambos igualmente válidos segundo a lei da troca. Frente a igualdade de direitos, decide a força."

Além de certos limites, a sujeição de todas as partes da vida social ao funcionamento irrestrito dos mercados e ao ditame da rentabilidade pode funcionar como um “risco político” para o status quo neoliberal, uma vez que pode facilmente desencadear surtos descontrolados de revoltas sociais. É bem característico que Franklin D. Roosevelt, em seu discurso no Madison Square Garden, Nova York, em 31 de outubro de 1936, tenha apresentado as suas políticas de New Deal como o meio termo entre o “dinheiro organizado” e a “massa organizada”. 

Na zona do euro, o risco político está supostamente sendo minimizado por meio da manutenção de um quadro institucional em que a austeridade se afigura como a única maneira de lidar com a instabilidade econômica e financeira. No modo de ser usual do Estado-nação, uma única autoridade fiscal nacional está por trás de um único banco central nacional. Como se sabe, este não é o caso da zona do Euro: não há uma autoridade fiscal singular e sólida por trás do Banco Central Europeu (BCE). Os estados-membros emitem dívidas expressas em dinheiro de um banco central que eles não controlam (eis que não podem “imprimir” euros ou qualquer outro tipo de dinheiro, pelo menos por um período de tempo consideravelmente longo). 

Assim, os estados-membros nem sempre terão a liquidez necessária para pagar os seus credores. E isso faz do enxugamento do estado-providência uma condição prévia para a solvência financeira. 

As elites dominantes europeias se submeteram, voluntariamente, a um alto grau de risco de default nas dívidas soberanas com a finalidade de consolidar as estratégias neoliberais. Em outras palavras, eles decidiram, em conjunto, explorar a crise como um meio para tornar “pró-mercado” a governança estatal. Assim, os estados-membros passam a ser confrontados com um dilema: austeridade, cortes e privatizações ou risco de default. De um modo geral, estas são escolhas comensuráveis. No primeiro cenário, os estados-membros aceitam um pacote de resgate, cujo conteúdo está formado sempre por novos cortes, novas privatizações, mais austeridade. 

Esta perspectiva conservadora reconhece como um “risco moral” qualquer política que defenda os interesses da classe trabalhadora, que expanda o espaço público, que dê suporte ao estado de bem-estar, que organize a reprodução da sociedade para além e fora do âmbito dos mercados. 

Neste contexto, a questão estratégica para o neoliberalismo na União Europeia vem a ser definir o nível de austeridade que realiza um equilíbrio ótimo entre o risco político e risco moral. De um modo geral, estes dois riscos, o “moral” e o “político”, se movem em direções opostas devido às suas consequências na conjuntura política. Quando aumenta o risco moral, diminui o risco político e vice-versa. Portanto, um certo nível de tensão entre eles (quando encontram um ao outro) é definido como um equilíbrio adequado. 

As “autoridades independentes”, estando elas imunizadas contra qualquer controle democrático, especialmente em questões relacionadas com a economia (o exemplo principal aqui é o BCE), criaram um mecanismo para detectar o equilíbrio entre estes dois “riscos”. Entretanto, este mecanismo permanecerá sempre incompleto. Eis que a luta de classes criará sempre eventos contingentes.

O SYRIZA pode desafiar o neoliberalismo?
Depois de cinco anos de políticas de austeridade na Grécia e de mudanças no sistema político que conhecíamos (principalmente depois da derrubada do Partido Socialista, Pasok, que permaneceu no poder por mais de vinte anos nas últimas três décadas), as eleições nacionais de 25 de janeiro de 2015 levaram à vitória da Esquerda. A coligação, depois partido SYRIZA, tendo conquistado 149 dos 300 assentos com voto no Parlamento Grego, formou um governo de coalizão com o partido ANEL (“Gregos Independentes”), pequeno partido anti-austeridade, do campo político conservador.

O mandato que os eleitores deram ao novo governo tem duas linhas claras: (a) pôr fim às políticas de “austeridade” arrocho; e (b) obter acordo com os credores oficiais do país (União Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional, chamados inicialmente “a troika” e atualmente referidos como “as instituições”) para cobrir as necessidades de financiamento do setor público da Grécia. O “buraco financeiro” do setor público grego é efeito hoje, principalmente, de políticas temerárias impostas pelas instituições como parte dos programas de “resgate” dos governos anteriores.

Em 20 de fevereiro de 2015, o governo grego chegou a um acordo intermediário com os credores, que incluiu prorrogação por quatro meses do acordo então vigente [“Master Financial Assistance Facility Agreement” (MFFA)], assinado pelo governo anterior, baseado numa série de compromissos. Ao fim desse período de transição, um novo acordo será assinado entre Grécia e as instituições, o qual segundo o programa de governo incluirá novos limites fiscais para os próximos três ou quatro anos e um novo plano nacional para reformas.

O acordo de 20 de fevereiro de 2015 foi uma trégua – mas trégua não é, de modo algum, empate. Dado o fato de que as instituições decidem se os compromissos que a Grécia assumiu foram ou não alcançados, esse acordo comprovou ser nada além de mais um passo em terreno escorregadio. Como todas as decisões têm de ser aprovadas pelas instituições, até parcelas previstas de novos empréstimos para a Grécia, como apareciam no programa prévio, estão ainda pendentes, sujeitos a uma avaliação positiva pelas instituições.

O acordo não é inteiramente fechado a demandas que aumentam o “perigo moral” [moral hazard] como o veem as instituições, isto é, que visam a promover arranjos que beneficiem o estado de bem-estar e os interesses do trabalho. Mas o ponto chave dos acordos é que as instituições avaliarão, supervisionarão e denunciarão qualquer específica reforma que não crie problemas para as finanças públicas e que não ameace o futuro crescimento econômico e a estabilidade e funcionamento sem sobressaltos do sistema financeiro.

Essa avaliação-vigilância é sério impedimento, antes de qualquer outra coisa, à implementação do programa político do SYRIZA e das transformações que o partido busca.

Quanto a como o governo conseguirá atender às próprias necessidades de financiamento, é questão ainda aberta; e declarações do Banco Central Europeu e do FMI são provas eloquentes de que persiste a avaliação de que as novas reformas buscadas estão sendo interpretadas como substitutas dos mesmos compromissos assumidos pelo governo anterior, no acordo anterior.

Toda a análise que desenvolvemos até aqui leva-nos à conclusão de que temos uma relação internacional de forças que restringe significativamente a liberdade de ação sobre as finanças públicas mas, também, sobre outras áreas. Mesmo assim, o resultado final da negociação não será determinado nem por movimentos táticos, nem no “front externo”, mas no front constituído dentro da sociedade grega. A atual situação deixa o governo e o SYRIZA com uma única saída para escapar do curral neoliberal europeu: “avançar empurrando à frente” [“storming forward”].

Avançar empurrando adiante, com o governo trazendo para a frente da luta os compromissos programáticos da agenda do SYRIZA, para distribuir renda e poder a favor do trabalho, para refundar o estado de bem-estar, a democracia e a participação popular na tomada de decisões. Avançar empurrando adiante, com o governo lançando uma reforma radical no sistema de impostos e tributos (de modo que o capital e o estrato mais rico da sociedade afinal tenham de pagar correspondentemente pela própria riqueza desigual); e avançando também na luta contra a corrupção de parte da elite econômica grega.

Para construir sobre bases novas as alianças sociais com as classes subordinadas, é urgentemente necessária uma nova onda de mudanças institucionais radicais domésticas. O que falta é um “memorando contra os ricos” doméstico, que trabalhe para melhorar as condições de vida do povo trabalhador. O slogan tantas vezes repetido como objetivo da esquerda, de que “o capital tem de pagar pela crise”, nunca antes foi mais diretamente ao ponto.

Essa dinâmica interna aumentará a efetividade das negociações com os emprestadores de dinheiro. A questão é política. É possível quebrar e nos livrar da armadilha neoliberal, se o governo grego deixar claro que, se for pressionado, e para não trair o mandato que recebeu dos eleitores, ousará suspender os pagamentos devidos até que se alcance acordo satisfatório com as instituições.

Para ser bem-sucedido nessa dinâmica interna, o governo grego deve manter-se fiel às preconcepções de classe que se leem no programa do SYRIZA: proteger os interesses da maioria da sociedade, contra os interesses da oligarquia capitalista.

Essa necessária tomada de posição e de lado seguidamente caracteriza os discursos e as declarações do Primeiro-Ministro Alexis Tsipras. Mas não aparece sempre na agenda do Ministro grego de Finanças, Yanis Varoufakis.

Logo depois da eleição, Varoufakis sugeriu publicamente que 70% do Memorando seria bom para a Grécia. O governo do SYRIZA não foi eleito por apoiar 70% do Memorando. Se o SYRIZA tivesse declarado tal coisa, provavelmente não estaria hoje no mapa do Parlamento, com papel decisivamente importante. Essas noções redefinem o mandato do SYRIZA e reduzem-se, na prática, a uma tentativa para mudar as alianças sociais que até agora vêm apoiando a experiência histórica de um governo de esquerda na Grécia.

Uma nova tentativa similar foi apesentada por Varoufakis com a seguinte declaração no 20º Fórum sobre Banking da União de Banqueiros Gregos, em 22 de abril de 2015:

"No ano de 2015, depois de cinco anos de recessão catastrófica, na qual, de fato, todos são vítimas, só uns poucos espertos lucraram com a crise. A era em que governo de esquerda era por definição contrário ao empresariado já passou. Se alcançarmos um ponto em que haja crescimento, podemos voltar a falar de conflito de interesses entre trabalho e capital. Hoje estamos do mesmo lado."

Além do mais, é característico que no Memorando o crescimento econômico depende de exportações e qualquer aumento de salários é automaticamente considerado ‘inimigo’ da competitividade. Não importa o quanto todos os dados empíricos mostrem o quanto é errada essa perspectiva, ela ainda reflete o ponto de vista das instituições e, infelizmente, também do ministro das Finanças da Grécia.

A abordagem dominante que apresentamos não reflete só as posições do Ministro das Finanças. Parte considerável dos quadros do SYRIZA veem a austeridade e o Memorando como um simples “erro econômico”, meramente no sentido de que constitui receita para mais recessão e não consegue estimular o crescimento.

Numa sociedade na qual a perda de 25% do PIB e o empobrecimento de grande parte da população é apenas a parte visível da rápida intensificação das desigualdades sociais; numa sociedade na qual o desemprego em massa é complemento numérico de severa deterioração das condições de trabalho; numa sociedade de múltiplas contradições e expectativas, a política do governo do SYRIZA só se tornará hegemônica se o partido apoiar clara e decididamente os interesses da maioria trabalhadora em sua luta contra o capital.

Não há lugar para política que apenas defenda – e sempre frouxamente – qualquer coisa que seja declarada “grega” ou “europeia”. Tal abordagem nunca foi, e nunca vai representar a perspectiva da esquerda.

Estamos diante de um desafio histórico, e devemos responder sem hesitações e vacilações.

COLABORADOR

John Milios é professor de economia política na Universidade Técnica Nacional de Atenas e membro do comitê central do Syriza.

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