12 de março de 2017

Antes de fevereiro

A Revolução de Fevereiro estourou há 100 anos atrás e varreu uma monarquia empapada de sangue.

Todd Chretien

Jacobin

Trabalhadores reunidos no Palácio Tauride, em São Petersburgo, na Rússia, em 1917.

Tradução / “Nós da geração mais velha talvez não vivamos para ver as batalhas decisivas da vindoura revolução”, avisou Lênin em uma apresentação para um grupo de jovens suíços no décimo segundo aniversário da derrotada Revolução de 1905. A justaposição de suas observações e a queda do tsar Nicolau II, apenas seis semanas depois, criou a atmosfera para a piada clássica do movimento marxista: “Não se atrase para o protesto, porque a revolução pode começar!”

Mas era claro que, naquele tempo, a obra de Lênin indicava que ele sabia que a situação política em sua pátria-mãe poderia explodir a qualquer momento. Por trezentos anos, a dinastia dos Romanov governou a Rússia, na época um império a espraiar-se, no qual os falantes de russo eram minoria, com mão de ferro.

Longe de agonizarem isolados, os tsares queimaram sua marca reacionária na Europa Ocidental, providenciando vastos exércitos camponeses para apoiar a monarquia e a reação frente aos movimentos democráticos e nacionalistas da Revolução Francesa de 1789 em diante. Os Románov até conseguiram atingir o topo da lista dos inimigos mortais na linha de abertura do Manifesto Comunista. Ainda assim, na aurora do século XX as fundações do Império estavam abaladas.

Em sua História da Revolução Russa, Leon Trótski explica a volatilidade da sociedade russa, apontando que o desenvolvimento econômico global acontece necessariamente em descompasso. Nicolau sentou-se sobre uma miríade de territórios e povos – um pequeno exemplo disso estava no seu próprio título oficial: “Imperador e Autocrata de todas as Rússias, de Moscou, Kíev, Vladímir, Nóvgorod, Tsar de Kazan, Tsar de Astracã, Tsar da Polônia, Tsar da Sibéria… e Grão-duque de Smoliénski, Lituânia... e mais, e mais, e mais”.

Em primeiro lugar, e mais importante, o tsar era o maior latifundiário dentre a classe dos barões de terras, que sobreviveram a contraparte feudal da Europa Ocidental em um século ou mais – a servidão só foi abolida em 1861. Essa classe de trinta mil aristocratas possuía, aproximadamente, 765 milhões de quilômetros quadrados (as propriedades tinham, em média, 21,85 quilômetros quadrados), o que somando era mais terra do que tinham cinquenta milhões de camponeses pobres e médios.

Além de serem “um programa pronto para a revolta agrária”, os números também indicavam o descolamento entre a força de trabalho da Europa Ocidental em processo de industrialização e a Rússia agrária. Preocupado que seu atraso tecnológico poderia dar cabo de seu poder militar, o tsar apoiou-se nos bancos franceses e ingleses para financiar o moderno, e altamente centralizado, exército e uma indústria metalúrgica, centrada em São Petersburgo e muitos outros lugares. Algumas das maiores fábricas do mundo saíram do solo russo, concentrando nelas uma nova classe de pessoas que não tinham nada para vender, senão sua força de trabalho. No Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia, de Lênin, 1899, ele estimava que em 1890 já houvesse dez milhões de trabalhadores assalariados no país.

O tsar buscou constituir essa “amálgama” com a chibata. As gangues antissemitas, conhecidas como as Centenas Negras, rondavam a zona rural aterrorizando judeus, o nacionalismo da Grande Rússia impedia o ensino em línguas locais e as greves eram resolvidas com a força militar. E, na esperança de conseguir um porto na costa oeste, ao mesmo tempo em que atiçava o fogo do patriotismo, a coroa declarou guerra contra o Japão em 1904, mas os superiores equipamentos e estratégia dos japoneses logo despertou o ímpeto da oposição interna.

Em nove de janeiro de 1905, centenas de milhares de trabalhadores, estudantes, e pobres marcharam atrás do eclesiástico, Padre Gapón, implorando que o tsar diminuísse o seu fardo. Eles foram recebidos com baionetas e munição real, deixando centenas sangrando até a morte nas ruas.

O Ensaio Geral de 1905, como ficou conhecido, expôs uma indignação social multifacetada: campesinato contra latifundiários, trabalhadores contra patrões, e virtualmente o país inteiro (incluindo alguns segmentos da classe média, e até alguns capitalistas) contra a monarquia.

Quando tudo isso tinha acabado, os marinheiros amotinaram-se no Encouraçado Potiómkin, camponeses incendiaram mansões em um sétimo das províncias, e uma nova frase entrou para a consciência da esquerda internacional, como Lênin definiu, “formou-se uma peculiar organização de massa, o famoso Soviéte de Deputados Operários, reunindo delegados de todas as fábricas”.

Rosa Luxemburgo – ela mesma uma das fundadoras da Social Democracia do Reino da Polônia e Lituânia – generalizava além das condições russas, tornando-se a arauta da “greve geral [como] a primeira forma impulsiva, natural de toda a luta revolucionária do proletariado”.

Em meio à revolução, a esquerda socialista desabrochou. No ano anterior ao famoso Congresso do Partido Operário Social-Democrata Russo, em que os Bolchevíques e Menchevíques, pela primeira vez, uniram-se e depois se separaram – em conjunto com complicadas negociações com organizações significativas de outras organizações de cunho socialista de judeus, poloneses, finlandeses e de outras nacionalidades – havia, talvez, cerca de dez mil partidários afiliados nas diversas facções. Até o chamado Congresso da Unidade, na primavera de 1906, mais dezenas de milhares juntaram-se, e até o Congresso do Partido Operário Social-Democrata Russo (incluindo suas ramificações nacionais) de 1907, os membros subiram para quase 150.000, apesar da repressão brutal.

De tão aterrorizado que estava, o tsar cedeu à revolução uma concessão, uma espécie de parlamento-fantoche chamado Dúma. Primeiramente, os trabalhadores urbanos sequer tinham o direito a voto, embora o corpo depois tenha sido alterado para que se elegesse um delegado para cada dois mil latifundiários, frente à razão de noventa mil trabalhadores. Essa migalha oferecida era ao mesmo tempo mais do que o desejado por Nicolau e sequer próximo do suficiente para aplacar a revolução, então o Estado transformou a Rússia em um cemitério – quinze mil foram executados, vinte mil feridos, quarenta e cinco mil exilados. O sangue abafou o fogo, por um tempo.

No começo de 1912, as greves estavam em alta novamente até que a tampa estourou em uma cidade siberiana de mineração de ouro chamada Léna, onde tropas tsaristas alvejaram centenas de grevistas. A classe trabalhadora ressurgiu como uma fênix das cinzas, os partidos socialistas expandiram-se novamente, e as greves proliferaram. Em 1914, o jornal socialista Právda tinha uma circulação diária de trinta a quarenta mil – em um país predominantemente analfabeto.

O verão de 1914 testemunhou a Rússia tensionada a ponto de estourar – o status quo tornou-se insustentável. Nicolau declarou guerra à Alemanha em 19 de julho de 1914. Só que dessa vez, mais do que um conflito contido com o Japão na sua fronteira oriental, a guerra com a Alemanha e o Império Austro-Húngaro trouxe a fome e a pestilência às portas da monarquia.

No entanto, nos primeiros dias da guerra, uma onda de entusiasmo patriótico sustentou o posicionamento do tsar. Centenas de milhares de garotos e jovens camponeses correram para juntar-se ao exército e os grupos nacionalistas polvilhavam as praças das cidades e das vilas.

Mas todos os conflitos que conduziram a 1905 voltaram a efervescer. A Guerra Mundial entregava “túmulos compactos” para as massas russas em uma escala quase impossível de imaginar. A Primeira Guerra Mundial apresentou o espetáculo do mais atrasado e subdesenvolvido sistema social em nível continental enfiado até a cabeça em uma luta de vida ou morte com a mais avançada economia industrial do mundo. Os resultados foram aterradores.

Três milhões de soldados do exército imperial do tsar morreram, outros quatro milhões foram feridos, e algo em torno de três milhões de civis morreram por causas relacionadas à guerra, de uma população aproximada de 175 milhões. Frente à tecnologia militar alemã, o tsar mandou centenas de milhares de soldados precariamente armados e mal equipados para a morte certa. Ao longo dos invernos de 1915, 1916, e 1917, dezenas de milhares de soldados simplesmente morreram congelados em suas trincheiras.

Enquanto isso, a corte real afundava em novos níveis de devassidão. Um eclesiástico místico chamado Grigori Rasputin tinha o controle sobre a tsarina Alexandra, exigindo que seu marido punisse todos os sinais de deslealdade, como Ivan, o Terrível, havia feito. A influência dele era tamanha que os aristocratas russos assassinaram-no, na esperança de reconquistar a influência sobre Nicolau e sua política de guerra. Tendo, por alguns séculos bebido do poço real, os barões agora tinham medo que seriam todos envenenados pelo corpo político putrefato. Como Tsuyoshi Hasegawa relata, o casal real “recusava-se a entender o mundo exterior”.

Os levantes camponeses aumentavam conforme a guerra se arrastava, assim como em 1905, mas agora eles já se concentravam em uma nova forma; a dizer, o conflito entre os oficiais da aristocracia e os soldados camponeses nas trincheiras. Cada vez que um oficial ordenava um avanço suicida no fogo alemão, não só eram as vidas desses soldados do campo que estavam em jogo, mas também o próprio futuro da família que dependia do retorno dos filhos à casa para o cuidado e trabalho. Além disso, alimentar o exército tirava o sustento das famílias rurais e as sementes para as colheitas do ano seguinte.

Talvez Nicolau, ou pelo menos a monarquia, tivessem sobrevivido à crescente raiva do campesinato, às catastróficas perdas militares, e ao descontentamento dentro de sua própria classe. Porém, um inimigo ainda mais potente estava se erguendo. Pois assim como a guerra encheu as trincheiras de sangue, ela encheu São Petersburgo de proletários. A mesma classe trabalhadora que tinha lutado contra o regime até o impasse de 1905 e que sofria terrivelmente por seus esforços, agora dependia de produzir e distribuir cada rifle, cada projétil, cada estojo, cada vagão, dos quais dependia a guerra do tsar. Pior, Nicolau não tinha escolha, senão fortalecer esse adversário.

Hasegawa relata que, entre 1914 e 1917, o número de trabalhadores em São Petersburgo cresceu de 242.600 para 392.000, ou algo próximo de 62 por cento, sendo as mulheres um quarto de todos os trabalhadores. As greves esfriaram no começo patriótico da guerra – por exemplo, enquanto aproximadamente 110.000 trabalhadores entraram em greve antes da guerra, em 1914, em homenagem ao Domingo Sangrento, apenas 2.600 pararam em nove de janeiro de 1915. Mas conforme os esforços de guerra colapsavam, as greves proliferavam-se. No período de seis meses, entre setembro de 1916 e fevereiro de 1917, cerca de 589.351 trabalhadores pararam e cerca de 80% deles participavam de greves políticas.

Mais do que isso, em meio a esse movimento de massas, as obstinadas organizações socialistas construíram uma longa luta para implantarem-se entre os trabalhadores. Milhares de revolucionários perderam suas vidas em 1905, ou em decorrência da repressão, e outros milhares foram recrutados e enviados para o front em uma tentativa de expurgar o movimento operário de organizadores forjados no calor da batalha. A polícia tsarista realmente chegou perigosamente perto de erradicar a esquerda socialista organizada em diversos momentos; no entanto, as sementes de mais de uma dúzia de anos de confrontos, organização de partidos clandestinos e educação socialista tinham firmado raízes.

Ao contrário da Alemanha e da França, nas quais as lideranças das organizações socialistas mais importantes apoiavam suas próprias classes dominantes na Primeira Guerra Mundial, a maior parte do movimento socialista russo adotou princípios internacionalistas contrárias à guerra. Como um todo, São Petersburgo estava repleta de socialistas revolucionários, organizados em grupos operacionais em diversos estados de competição e cooperação, incluindo Bolcheviques, Mencheviques, Internacionalistas, Socialistas Revolucionários, e até anarquistas.

É claro que dentre eles havia alguns patriotas sociais famosos, sendo o mais notável o líder menchevique direitista Gueorgui Plekhanov, o “pai do marxismo russo”, que tanto Lênin quanto o Menchevique-Internacionalista Julius Martov um dia consideraram como mentor.

Tudo dito, as primeiras semanas de 1917 chegaram perto de encontrar o que Lênin sugeriu serem as premissas para a “lei fundamental da revolução”, ou seja:

“Somente quando as ‘classes baixas’ não quiserem viver da maneira antiga e as ‘classes altas’ não conseguirem sustentar a velha forma é que a revolução poderá triunfar”.

No Império Russo, a classe trabalhadora não estava sozinha na resistência contra as condições surgidas da guerra. Karl Liebknecth rompeu com a liderança pró-guerra do Partido Social-Democrata Alemão e votou contra os financiamentos à guerra no parlamento; na cadeia, Rosa Luxemburgo escreveu o Panfleto Junius; soldados franceses e alemães declararam uma trégua unilateral de Natal, e a esquerda do Partido Socialista Americano e a Trabalhadores Industriais do Mundo opôs-se veementemente à vontade bélica de Woodrow Wilson.

Mas a profundidade da crise social, econômica e militar na Rússia, somada à consciência política e organização da classe trabalhadora (em conjunto com as crescentes revoltas entre os soldados, camponeses, estudantes, e nacionalidades oprimidas), estavam muito à frente de qualquer outro lugar do mundo no inverno de 1916-17.

Acima de tudo isso, havia a bela ilusão (se não universalmente difundida, ao menos suficientemente comum) que mantinha unido o amplo movimento anti-tsarista. Isto é: decepar a cabeça da monarquia e a paz, a democracia e a prosperidade poderiam vir à Rússia.

Não demorou muito para o movimento revolucionário russo colocar sua teoria à prova. Fevereiro foi apenas o começo.

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