11 de setembro de 2018

Os americanos querem acreditar que os empregos são a solução para a pobreza. Eles não são.

O desemprego nos EUA está em baixa e os empregos não são preenchidos. Mas para pessoas sem muita educação, a verdadeira questão é: esses empregos pagam o suficiente para sobreviver?

Matthew Desmond

The New York Times Magazine

Devin Yalkin para o New York Times

Tradução / Vanessa Solivan e seus três filhos abandonaram sua última residência em junho de 2015, depois que um rapaz foi alvejado e morto na esquina. Eles encontraram um teto sob o qual podem dormir na casa dos pais de Vanessa, na Avenida North Clinton, em East Trenton [Nova Jersey, EUA]. Não era um bairro mais seguro mas pelo menos era um lugar conhecido. Vanessa juntou tudo o que podia colocar em seu carro, um Chrysler Pacifica 2004, e deixou pra trás as camas infestadas por ácaros.

Na casa onde passou a infância, Vanessa passou a cuidar do pai adoentado. Ele foi um viciado em crack funcional durante a maior parte da vida, trabalhando como paisagista durante a primavera-verão e vivendo de seguro-desemprego quando os negócios entravam em baixa. “Era algo que você se acostumava a ver”, disse Vanessa sobre a drogadicção do pai. “Meu pai era um junkie, mas nunca nos abandonou.” Aos 33 anos, Vanessa tem o hábito de prender seu cabelo preto num coque e um par de óculos com cordinha que está sempre escorregando pelo nariz. Quando sente-se orgulhosa de si mesma, deixa escapar um sorriso tímido.

O pai de Vanessa faleceu um ano depois da mudança. A família montou um pequeno altar em sua memória na sala da casa: uma grande foto esmaecida de uma versão mais jovem dele, cercada por flores de papel e balões meio murchos. Tal como o marido, a mãe de Vanessa, Zaida, tem 62 anos e veio do Porto Rico. Ela usa um andador para se locomover. A morte do marido reduziu suas rendas e a própria Vanessa vivia quebrada. Com a saúde piorando, Zaida não podia cuidar direito dos filhos de Vanessa — Taliya, de 17 anos; Shamal, 14 e Tatiyana, 12. Quando as coisas ficavam agitadas demais ou as crianças davam trabalho demais, ela pedia que Vanessa levasse os filhos para outro lugar.

Se Vanessa tivesse dinheiro ou o apoio de uma ONG local, ela reservava um quarto de motel [N. do T.: motel, nos EUA, é geralmente um hotel barato de beira de estrada e não um ponto de encontros sexuais]. Ela gostava do Red Roof Inn, que considerava “mais civilizado” do que muitos outros motéis onde havia estado. A aparência era a de um motel rodoviário qualquer: dois andares com portas que se abrem para fora. Na última vez que a família ficou ali, as crianças levavam seu dever de casa até o quarto no andar de cima enquanto Vanessa as seguia com algumas sacolas com itens tirados da despensa. No caminho, dois homens bebendo cerveja pediam desculpas pela música alta.

Dentro do quarto Vanessa colocava sua insulina no frigobar enquanto as crianças escolhiam suas camas — que seriam divididas dois a dois. Depois, ela se largava numa pequena cadeira e dizia: “Ocêis não sabem como mamãe tá cansada”. Depois de um momento de silêncio, Vanessa se esticava e massageava as coistas de Shamal, dizendo que gostaria “que tivéssemos um lugar decente como esse.” Só então ela percebeu que uma barata zanzava pela parede de gesso. “Opa! Nem tão decente”, disse Vanessa. Com um peteleco, mandou o bicho voando na direção de Taliya, que soltou um gritinho e se remexeu. O quarto explodiu em risadas.

Quando Vanessa não podia bancar um motel, a família passava a noite no Chrysler. A traseira da perua guardava o essencial: travesseiros e lençóis, pentes e escovas de dentes, mudas de roupas, jaquetas e alimentos não-perecíveis. Também ficavam ali fotos amassadas das crianças. Uma mostrava Taliya na formatura da 8ª. série, com um vestido cor de creme e flores nas mãos. Outra registrava as três crianças numa quinceañera — Shamal na frente, ajoelhado, com uma gravata azul com elástico emoldurando sua carinha de criança e Tatiyana atrás com um sorrisão e covinhas à mostra.

Para que as crianças não fugissem por raiva ou vergonha, Vanessa aprendeu a estacionar ao lado da Route 1, em áreas tão vazias e abandonadas que ninguém ousaria abrir a porta antes do amanhecer. De manhã, Vanessa dirigia até a casa da mãe, onde as crianças se aprontavam para a escola e ela se arrumava para o trabalho.

Em Maio, Vanessa finalmente conseguiu uma vaga num programa de moradia popular. Mas durante quase três anos ela fez parte dos “trabalhadores sem-teto”, uma expressão indispensável na atual sociedade de baixos salários e altos aluguéis. Ela é uma assistente de saúde doméstica, o mesmo trabalho que sua mãe fazia antes de seus joelhos e costas ficarem fracos demais. Seu uniforme de trabalho é um jaleco com a Betty Boop, um par de tênis e um crachá da Bayada Home Healthcare pendurado num cordão vermelho.

Vanessa trabalha em horário fixo e gosta do que faz, mesmo das coisas difíceis como dar banho nos enfermos ou levantar alguém da cama. “Eu posso ajudar as pessoas”, diz, “e ficar cercada de gente mais velha e aprender muita coisa com eles.” Seu pagamento varia: 10 dólares por hora para um cliente, 14 para outro [N. do T.: nos EUA, é comum o pagamento de salário com base na carga horária em vez de um valor fixo; o salário-mínimo federal atualmente vale US$ 7,25 a hora]. Essa variação não tem nada a ver com a natureza do trabalho — “Às vezes os mais difíceis são os que pagam menos”, confessou Vanessa — mas com as taxas de reembolso, que são diferentes de acordo com o plano de saúde de cada cliente. Após se desdobrar para cuidar das crianças e controlar seu diabetes, Vanessa é capaz de trabalhar de 20 a 30 horas semanais, que lhe rende cerca de US$ 1 200 por mês — e isso quando as coisas vão bem.


Hoje em dia, ouvimos que a economia americana está forte. Desemprego em baixa, índice industrial da [bolsa de valores eletrônica] Dow Jones acima dos 25 000 [pontos] e milhões de vagas não-preenchidas. Mas para pessoas como Vanessa a pergunta não é “Posso arranjar um emprego?” (a resposta, quase certamente, é “sim”). Em vez disso, a pergunta é “Que tipo de trabalho está disponível para pessoas de educação escassa?” A resposta geralmente é “trabalhos que não pagam o bastante para viver.”

Nas últimas décadas, o tremendo crescimento econômico [dos EUA] não se refletiu numa elevação social coletiva. Os economistas chamam isso de “discrepância da produtividade e pagamento” — o fato de que, nos últimos 40 anos, a economia se expandiu e os lucros corporativos cresceram mas os salários reais permaneceram estagnados para pessoas sem educação superior. Desde 1973, a produtividade americana cresceu 77%, enquanto o pagamento por hora subiu apenas 12%. Se o salário-mínimo acompanhasse a produtividade, seria de mais de 20 dólares/hora e não o valor miserável de hoje, US$ 7,25.

Os trabalhadores americanos estão sendo excluídos dos lucros que eles ajudam a gerar. O declínio dos sindicatos é o principal motivo. Durante o século XX, a desigualdade diminuiu quado o sindicalismo cresceu, mas as transformações econômicas e os ataques políticos minaram as organizações trabalhistas, fortalecendo interesses corporativos e enfraquecendo os operários. Essa economia desequilibrada explica porque a taxa de pobreza nos EUA permaneceu constante nas últimas décadas mesmo que o investimento em programas sociais tenha aumentado. Não é que os programas de seguridade social não ajudem: ao contrário, eles tiram milhões de famílias da pobreza todo ano. Mas uma das soluções mais eficazes para a pobreza é um trabalho com salário decente, o que se tornou raro para pessoas como Vanessa. Hoje, 41,7 milhões de trabalhadores — quase um terço da força de trabalho norte-americana — ganha menos de 12 dólares/hora e quase nenhum de seus empregadores oferece seguro-saúde.

O Departamento de Estatísticas do Trabalho define “trabalhador pobre” como a pessoa abaixo da linha de pobreza que passou pelo menos um semestre trabalhado ou procurando emprego. Em 2016, cerca de 7,6 milhões de americanos se encaixavam nessa categoria. A maioria dos trabalhadores pobres tem mais de 35 anos, sendo que menos de 5% tem entre 16 e 19. Em outras palavras, o trabalhador pobre não é o adolescente que empacota as compras num supermercado ou vende casquinhas de sorvete. Eles são adultos — e geralmente pais de família — que limpam banheiros de hoteis, anotam pedidos e servem pratos em restaurantes, desossam frangos em frigoríficos, cuidam de crianças em creches 24 horas, colhem frutas, esvaziam lixeiras, repõem os produtos nas prateleiras de supermercados durante a madrugada, dirigem táxis e Ubers, tiram dúvidas em serviços de atendimento ao consumidor, aplicam asfalto fervente em rodovias, dão aulas em faculdades comunitárias como professores-assistentes e, também, empacotam compras e vendem sorvetes.

Os Estados Unidos se orgulham de ser o país da mobilidade econômica, um lugar onde seu status na vida só é limitado pela sua ambição e força de vontade. Mas as mudanças no mercado de trabalho diminuíram ainda mais as magras chances de passar da lavanderia no subsolo à suíte na cobertura. Para começar, o mercado de trabalho se dividiu, com uma diferença cada vez maior entre empregos bons e ruins. Trabalhar mais duro e por mais tempo não vai se traduzir em uma promoção se o empregador cortar os degraus da escada e oferecer posições de supervisão apenas para pessoas com diploma universitário. Como grandes empresas agora terceirizam muitos cargos para outras companhias, o pessoal que varre o chão na Microsoft ou lava os lençóis no [hotel] Sheraton normalmente não são empregados da Microsoft ou do Sheraton, o que impede qualquer esperança de avançar dentro da empresa.

Além disso, trabalhar mais e com mais esforço não é nem uma opção disponível para aqueles que estão à mercê de um cronograma imprevisível. Quase 40% dos trabalhadores em tempo integral pagos por hora só são informados de suas escalas de trabalho com uma semana ou menos de antecedência. E se você der tudo por um trabalho que pode conseguir com um diploma do Ensino Médio (ou menos), essa vaga pode não existir por muito tempo — metade das novas vagas abertas são eliminadas dentro de um ano. De acordo com o sociólogo do trabalho Arne Kalleberg, as demissões permanentes se tornaram “um componente básico da estratégia de reestruturação dos empregadores.”

Um exemplo desse tipo de trabalho novo e com baixo salário é o serviço de saúde doméstico. A demanda por cuidados de saúde em casa aumentou com o envelhecimento da população, mas segundo os dados mais recentes do Departamento de Estatísticas do Trabalho, a renda média anual para assistentes de saúde domésticos nos EUA em 2017 era de apenas US$ 23 130. Metade desses trabalhadores depende de recursos públicos para fechar as contas.

Vanessa criou afinidade com alguns de seus clientes, confessando que estava sem-teto. Um disse que gostaria de poder fazer algo por ela. Ao falar sobre sua situação com o supervisor, ele perguntou se ela precisava de folga, o que ela negou veementemente. Ela precisava é de dinheiro e passou a cobrir folgas e turnos extras. O supervisor estava preparado, pois já havia passado por aquilo. Ele abriu a gaveta e entregou a Vanessa um vale-combustível de 50 dólares e um vale-refeição de 100 dólares. Vanessa ficou grata pela ajuda e considerava Bayada um empregador simpático e generoso. No entanto, seu salário não melhorou nos três anos em que ela trabalhou lá. No total, Vanessa recebeu US$ 9 915,75 em 2015, US$ 12 763,94 em 2016 e US$ 10 446,81 no ano passado.

Para cobrir suas necessidades básicas, o governo federal estima que a família de Vanessa precisaria receber US$ 29 420 por ano. Vanessa não está nem perto disso — e ela ainda é uma sortuda entre os pobres. Atualmente, o sistema de seguridade social do país favorece mais o empregador, com benefícios como um crédito tributário de renda, uma isenção que se aplica apenas a pessoas que trabalham. No ano passado, Vanessa teve uma restituição de cerca de 5 mil dólares, o que inclui esse crédito tributário e isenções por ter filhos. Eles ajudaram a complementar sua renda, mas não a tiraram da linha de pobreza. Se os trabalhadores pobres estão se dando melhor do que os pobres que não trabalham não é tanto pelo trabalho em si, mas pelo fato de seu status como empregado lhes dá acesso aos programas governamentais de que tanto precisam. Isso causou uma crescente desigualdade abaixo da linha de pobreza, com o trabalhador pobre recebendo muito mais auxílio social do que o pobre que não trabalha ou está precariamente empregado, que mergulha num estado de destituição.

Quando a vida fica especialmente difícil, Vanessa costuma telefonar para Sheri Sprouse, sua melhor amiga desde os tempos da escola. “Ela é como eu, ela também é forte”, conta Vanessa. Sheri tem sido uma reserva de apoio emocional e incentivo, constantemente encorajando a amiga a ser paciente e grata pelo que tem. Mas a própria Sheri também precisa se virar para criar duas filhas com uma pensão fixa por invalidez. Como a moradia de Sheri é subsidiada federalmente, tem limites rígidos. “De acordo com a Seção 8 [do contrato], você não pode ter outras pessoas morando em sua casa”, explica Vanessa. Assim, quando Vanessa estava sem-teto, Sheri não podia lhe oferecer nada além de amor.

No ano passado, Vanessa recebeu alguma ajuda quando a filha mais nova, Tatiyana, foi aprovada para receber um Suplemento de Renda por apresentar dificuldades de aprendizagem. Vanessa começou a receber um cheque mensal de 766 dólares. Mas quando o Comitê de Serviço Social do Condado de Mercer soube desse adicional, Vanessa foi informada por carta que seu Supplemental Nutrition Assistance Program [Programa de Assistência à Nutrição Suplementar ou SNAP, espécie de bolsa-alimentação dos EUA] seria cortado de 544 dólares para 234. A alimentação era uma luta constante e a novidade não ajudou. Um estudo de 2013, feito pela Oxfam America, descobriu que 2/3 dos trabalhadores pobres preocupam-se com sua capacidade de pagar por comida suficiente. Quando Vanessa fica num hotel, suas opções de alimentação limitavam-se ao que ela podia aquecer num micro-ondas. Quando dormia no carro, a família tinha que optar por serviços de drive-through, que tendem a ser mais caros. Às vezes, Vanessa parava num bar e pedia quatro pratos de frango com arroz por 15 dólares. Outras vezes, as crianças iam à escola famintas. “Eu simplesmente não tinha nada”, disse-me ela numa manhã. Para o jantar, ela planejava passar num armazém, esperando que ainda tivessem o X-burguer que Shamal adora.


“Nos Estados Unidos, se você se trabalhar duro, será bem-sucedido. Portanto, os que não são bem-sucedidos não trabalharam duro”. Essa ideia está cravada na medula do país. William Byrd, latifundiário da Virginia no século XVIII, escreveu que os homens pobres seriam “intoleravelmente acomodados” e “preguiçosos em tudo menos em fazer filhos.” Thomas Jefferson defendia o confinamento de vagabundos que “desperdiçam seu tempo em ócio e caminhos dissolutos”. No século XX, Barry Goldwater dizia que os americanos com menos educação apresentavam “menor inteligência ou menor ambição” e Ronald Reagan reclamava das “welfare queens [rainhas do bem-estar social]”. “É preciso olhar alguém nos olhos e dizer-lhe que ele é irresponsável e preguiçoso”, disse Bill O’Reilly a respeito dos pobres em 2004. “Porque é isso que é a pobreza, senhoras e senhores.”

Os americanos costumam supor que os pobres não trabalham. Segundo uma pesquisa conduzida em 2016 pelo American Enterprise Institute, quase dois em cada três respondentes não pensava que os mais pobres mantêm um emprego. Na realidade, naquele ano, a maioria dos adultos em idade de trabalhar estava na população economicamente ativa. Cerca de 1/3 dos participantes dessa pesquisa acreditava que os beneficiários preferiam continuar a receber seus benefícios em vez de ganhar a vida com seu trabalho. Esse tipo de suposição sobre os pobres é um fenômeno americano [N. do T.: nem tanto, já que existe um preconceito parecido no Brasil em relação a quem recebe o Bolsa-Família]. Um estudo feito em 2013 pelo sociólogo Ofer Sharone descobriu que os trabalhadores desempregados nos EUA culpam a si mesmos enquanto os desempregados em Israel culpam o sistema de contratação. Quando os americanos veem um sem-teto enrolado num cobertor, eles se perguntam como ele falhou. Quando um francês vê um homem na mesma situação, se pergunta como ele foi abandonado pelo Estado.

Se você acredita que as pessoas são pobres porque não trabalham, então a solução não é fazer com que o trabalho tenha bons salários mas que os pobres trabalhem — forçando-os a aceitar qualquer coisa que aparecer, em qualquer lugar, cumprindo o máximo de horas possível. Mas lembre-se da Vanessa, cuja história é exemplo de um problema muito maior: o fato de que milhões de americanos trabalham com poucas esperanças de encontrar uma vida segura e confortável. Nas últimas décadas, os EUA viram a ascensão de trabalhos ruins, que oferecem baixos salários, nenhum benefício e pouca certeza. Quando se trata de pobreza, o problema não é a disposição para trabalhar e sim que o próprio trabalho já não é mais a única solução.

Até o fim do século XVIII, a pobreza era vista no Ocidente não apenas como algo durável mas desejável para o crescimento econômico. O mercantilismo, a teoria econômica predominante nessa alvorada do período moderno, pregava que a fome incentivava as pessoas a trabalhar e mantinha os salários em baixa. Quem dependia da caridade do público era preso e obrigado a trabalhar para se alimentar. Em tempos mais recentes, políticos e seus eleitores continuam exigindo sangue e suor dos mais pobres. Nos anos 1980, os conservadores queriam impor vínculo empregatício como exigência para os food stamps [espécie de vale-refeição público]. Nos anos 1990, eles queriam a mesma exigência para programas de moradia popular subsidiadas. Ambas as propostas não passaram, mas o impulso continuou vivo.

Os advogados das exigência de emprego marcaram um golaço com a reforma do sistema social em meados dos anos 1990. Proposta pelos deputados republicanos, liderados pelo [então] Presidente da Câmara, Newt Gingrich, e sancionada pelo presidente Bill Clinton, a lei de reforma do sistema social fixou exigências de emprego e limitações de tempo para a assistência em dinheiro. O número de benefícios caiu de 12,3 milhões (1996) para 4,6 milhões (2011).

Mas o modelo “do auxílio-para-o-trabalho” realmente funcionou? Houve algum grande sucesso na redução da pobreza e disseminação da prosperidade? Dificilmente, como demonstram Kathryn Edin e Laura Lein no livro Making Ends Meet [Apertando os Cintos]: empurradas para um mercado de trabalho com baixos salários, as mães solteiras ganhavam mais do que com os programas sociais. Ao mesmo tempo, também ganharam novas despesas, como transportes e creches, o que anulou seus ganhos modestos. Mais preocupante é o fato de que, sem garantia de assistência em espécie para os mais necessitados, a pobreza extrema nos EUA explodiu. O número de americanos que vivem com apenas 2 dólares ou menos por dia mais que dobrou desde a reforma do sistema social. Cerca de 3 milhões de crianças — mais do que a população de Chicago — agora sofrem sob essas condições. A maioria delas vive com um adulto que teve trabalho durante alguma parte do ano.

A prioridade número 1 do governo Trump é expandir a exigência de emprego para alguns dos principais programas de seguridade social. Em janeiro, o governo federal anunciou que permitiria aos Estados exigir que os beneficiários do Medicaid trabalhem [o Medicaid é o seguro-saúde público obrigatório para os mais pobres]. Dezenas de Estados já pediram autorização federal para aplicar exigências de trabalho em seus programas Medicaid. Quatro foram aprovados. Em junho, o Arkansas tornou-se o primeiro Estado a implementar as exigências recém-aprovadas. Se todos os Estados aplicassem exigências similares às do Arkansas, até 4 milhões de americanos perderiam sua cobertura de saúde.

Em abril, o presidente Trump assinou um decreto mandando que as agências federais façam uma revisão dos programas sociais, do SNAP aos subsídios à moradia, propondo novos padrões. Embora o SNAP já tenha exigência de trabalho, em junho a Câmara dos Deputados passou um projeto que negaria o SNAP a adultos em plenas condições físicas por um ano se eles não trabalhassem nem fizessem atividades relacionadas ao trabalho (como treinamentos) durante pelo menos 20 horas por semana por um mês. Quem receber uma negação pela segunda vez seria barrado do programa por três anos. No Senado, um esforço bipartidário removeu essas regras e penalidades rígidas, criando um desentendimento com a Câmara, cuja versão havia sido endossada por Trump. O Comitê Orçamentário do Congresso estima que essas exigências de emprego negariam a 1,2 milhão de pessoas um benefício que elas usam para se alimentar.

Exigências de emprego atreladas a outros programas criaram pressões semelhantes. No Kentucky, a proposta de exigência só seria cumprida após 80 horas mensais de trabalho ou atividade similar de treinamento. Num mercado de trabalho com baixos salários e caracterizado pelas jornadas flutuantes, empregos precarizados e trabalhos de meio-período involuntário, boa parcela dos trabalhadores vulneráveis jamais cumpriria as exigências. Dados nacionais colhidos pela Survey of Income and Program Participation mostram que quase 50% dos trabalhadores qualificados para o Medicaid cumpriam menos de 80 horas em pelo menos um mês do ano.

Em julho, o Conselho Econômico da Casa Branca lançou um relatório apoiando entusiasticamente as exigências de trabalho para os principais programas sociais do país. O conselho favorecia “incentivos negativos”, ligando a ajuda ao esforço do mercado de trabalho, e desprezava “incentivos positivos”, como isenções tributárias para trabalhadores de baixa renda, porque aquele seria mais barato. O conselho também afirmou que as políticas de bem-estar social dos EUA levaram a um “declínio em auto-suficiência.”

Será que isso é verdade? Pesquisadores começaram a estudar a dependência de programas sociais nos anos 1980 e 1990, quando esse assunto dominava o debate público. Eles não encontraram muita evidência disso. A maioria das pessoas começava a usar o auxílio em dinheiro após um divórcio ou separação e não ficavam muito tempo pendurados, mesmo que voltassem ao programa periodicamente. Um estudo descobriu que 90% das mulheres jovens beneficiadas pararam de depender do programa após um ou dois anos, ainda que muitas retornassem ao auxílio em algum momento posterior. Mesmo em seu auge, os programas de bem-estar social nunca funcionaram como uma armadilha de dependência para a maioria dos beneficiários. Ao contrário, era algo a que eles recorriam entre um emprego e outro ou após uma crise familiar. Um estudo de revisão publicado na Science em 1988 concluiu que “o sistema de bem-estar social não cria uma relação de dependência, mas age principalmente como um seguro contra um infortúnio temporário.”

Hoje como ontem, o adulto fisicamente capaz, pobre e ocioso continua sendo uma criatura rara. Em 2016, segundo o Brookings Institution, 1/3 dos que viviam na pobreza eram crianças, 11% eram idosos e 24% eram adultos na idade de trabalhar (dos 18 aos 64) e na força de trabalho, trabalhando ou procurando emprego. A maioria das pessoas pobres na faixa etária economicamente ativa estava ligada ao mercado como trabalhadores temporários. Muitos não podiam cumprir muitas horas ou por causa de cuidados com a família, como no caso de Vanessa, ou porque seus empregadores não lhes ofereciam essa opção, tornando-os trabalhadores de meio-período involuntários. Entre os adultos economicamente ativos restantes, 12% estavam fora do mercado por causa de uma deficiência (inclusive alguns inscritos em programas federais que limitam o trabalho), 15% eram estudantes ou trabalhadores domésticos e 3% haviam sido aposentados precocemente. Com isso, sobram apenas 2% de pessoas pobres que não se encaixam em nenhuma dessas categorias. Isso significa que, entre os pobres, 2 em cada 100 adultos em idade de trabalhar estão desconectados do mercado de trabalho por razões desconhecidas. O pobre que não trabalha e ganha algo a troco de nada é parecido com eleitor envolvido em fraude: um pária que assombra a imaginação americana com uma imagem muito maior do que tem na vida real.


Quando Vanessa não estava trabalhando para a Bayada, estava correndo atrás dos filhos. O que mais a preocupava era Shamal. Com mais de 1,80 m de altura, seu tamanho fazia dele tanto uma ferramenta quanto um alvo na vizinhança. Os moleques menores queriam fazer dele um guarda-costas ou um encrenqueiro. Outras crianças o viam como uma ameaça. No ano passado, Shamal foi suspenso da escola duas vezes por se meter em brigas. Como castigo, Vanessa o obrigou a raspar o cabelo afro que ele tanto preza. Mas ela também coloca as explosões das crianças num cenário mais amplo: “Como deveria ser o comportamento deles quando eles ficam por aí largados nessas ruas?”, perguntou-me uma Vanessa cheia de frustração.

Shamal me contou que os desconhecidos “devem achar que eu estou vendendo drogas. Mas não estou. Sou só um cara legal que gosta de sair e fazer as pessoas dar risada.” Ele sonha em se tornar chefe de cozinha. Vanessa, por sua vez, gostaria de dar a Shamal uma tornozeleira eletrônica, para rastrear os movimentos dele. Claro que isso é impossível, mas Shamal gostou da ideia. “Isso poderia me ajudar quando meus amigos quisessem me arrastar para algum lugar”, explicou. A tornozeleira lhe daria uma boa desculpa para ele se recusar sempre que seus amigos o tentam levar para o mau caminho.

O pai de Tatiyana e Shamal voltou a se mudar para Trenton, “carregando uma trouxa feito um mendigo”, segundo Vanessa. Além de um ou outro pagamento de pensão alimentícia e uma única vez no Chuck E. Cheese’s [uma franquia de pizzarias], ele não esteve muito presente na vida das crianças. O pai de Taliya foi preso quando ele tinha um ano. Libertado quando ela tinha 8, foi morto algumas semanas depois com um tiro no peito. Às vezes os filhos de Vanessa tiram sarro entre si por causa dos pais. “Seu pai tá morto”, diria Tatiyana. “É? E o seu que tá por aí mas não dá a mínima pra você”, rebateria Taliya.

Em outros momentos, porém, os irmãos se apoiam dizendo que a ausência dos pais não é problema deles. “Eu nem tenho tempo pra ele”, disse Tatiyana, como se fosse algo à sua escolha. “Só tenho tempo para os meus amigos de verdade.” Taliya olhava para a irmã mais nova e completava: “Cuidado, quando você estiver indo bem ele vai voltar a aparecer.”

Se Vanessa fizesse uma jornada mais longa, seria difícil manter a maneira como ela cuida da família: lava as roupas, marca consultas em dentistas, aconselha as crianças sobre sexo, estuda seus profundos mistérios para tirá-los de encrencas ou dar presentes. Apesar disso, nossos líderes políticos costumam se recusar a considerar esse tipo de cuidado como trabalho. Durante os primórdios da reforma do sistema social, algumas autoridades locais criavam trabalhos inúteis para que mães solteiras recebessem o benefício. Num caso escandaloso, os beneficiários tinham que separar pequenos brinquedos de plástico pela cor. No fim do dia, o supervisor misturava tudo de novo para que elas começassem a trabalhar novamente na manhã seguinte. Isso era considerado mais importante que manter as crianças com a mãe, seguras e bem-alimentadas.

O trabalho de cuidar de um parente adoentado ou moribundo também não conta. Vanessa dava arroz con gandules de colher, na boca do pai doente, administrava seus medicamentos e trocava suas fraldas. Mas só quando ela faz a mesma coisa para completos estranhos, como empregada da Bayada, é que ela “trabalha” e assim se torna digna de atenção. Como Evelyn Nakano Glenn argumenta em seu livro Forced to Care [Cuidados Forçados, 2010], a industrialização levou as famílias americanas a ficar cada vez mais dependentes de salários, o que teve o efeito de reduzir as tarefas normalmente deixadas para as mulheres (trabalho doméstico, cozinhar, cuidar de crianças) a “vocações morais e espirituais”. Diferente do trabalho assalariado dos homens, escreve Glenn, “os serviços de cuidados não-pagos pelas mulheres são simultaneamente sem preço e sem valor — isto é, não-monetizados. Para piorar, como nunca puderam cumprir o ideal da maternidade em tempo integral, as mulheres pobres de cor eram vistas como mães e mulheres deficientes.”

Vanessa atribui seus próprios atrasos educacionais — ela era boa estudante no fim do ensino fundamental, mas começou a matar aulas e se meter em encrencas no colegial — ao fato de que seus pais eram ausentes. Num momento crítico em que Vanessa precisava de orientação e disciplina, seu pai estava usando drogas e a mãe estava sempre fora, trabalhando. Ela não quer cometer o mesmo erro com seus filhos. A vida de Vanessa gira ao redor de uma pequena rotina: deixar as crianças na escola; trabalhar; tentar achar um apartamento com aluguel abaixo de mil dólares por mês; pegar as crianças; alimentá-las e dormir. Ela não gasta seu dinheiro em coisas supérfluas como álcool e cigarro. Contou que estava tentando guardar “o dinheirinho que ganho para que, quando pudermos ter uma casa, eu possa dar às crianças roupas de cama e de banho.”


Podemos pensar que a existência de milhões de trabalhadores americanos pobres como Vanessa nos levaria a questionar a noção de que indolência e pobreza andam de mãos dadas. Mas não. Embora outros mitos justificadores da desigualdade tenham perdido força diante da refutação coletiva, nós nos agarramos com força a essa fórmula devastadora. A maioria de nós não tem uma explicação confiável para a crescente polarização política, o abuso de drogas prescritas, a urbanização descontrolada ou qualquer um dos inúmeros males sociais. Mas quando nos perguntam porque os pobres são pobres, temos uma resposta na ponta da língua — só que ela é um projeto de explicação. Ou nos contentamos com isso ou temos que enfrentar uma vergonha nacional pesada demais para suportar. Como pode um país com uma taxa de pobreza tão elevada — maior do que a de lugares como Letônia, Grécia, Polônia, Irlanda e todos os outros membros da OCDE — alegar ser o melhor lugar do mundo? A presença de Vanessa é um julgamento. Mas em vez de assumir suas responsabilidades, os EUA invertem os papéis e jogam nos pobres a culpa por suas misérias.

O projeto é simples. Primeiro, valorize o trabalho como passaporte para sair da pobreza e desconsidere os cuidados domésticos como trabalho. Olhe para uma mãe solteira sem emprego formal e diga que ela não está trabalhando. Veja outra que trabalha em meio-período e exija que ela trabalhe ainda mais. Transforme amor em preguiça. Depois, force os pobres a acumular horas num mercado de trabalho que os trata como itens descartáveis. Garanta que eles recebam pouco e negue a eles licenças-saúde e seguros-saúde porque o contribuinte americano vai aparecer para subsidiar programas como descontos tributários e food stamps dos quais sua força de trabalho vai depender. Veja os gastos sociais subir enquanto a taxa de pobreza não diminui porque, bem, você está acumulando lucros. Quando isso acontecer, tire o seu da reta e bote a culpa na própria rede de seguridade social. Daí, faça os políticos inventar novas maneiras de negar alívio às famílias, como impor exigências irrealistas de trabalho para ajudar os mais pobres.

Os Democratas podem desprezar as exigências de trabalho dos Republicanos, mas eles ainda precisam desafiar a concepção predominante de pobreza por trás dessas políticas. Em vez de oferecer uma contra-narrativa ao lugar-comum moral americano de merecimento, os liberais normalmente se submetem a ele, abraçam-no, pensando que o público não vai apoiar auxílios que não exigem que os pobres se submetam aos empregos miseráveis abertos para eles. Até os campeões do movimento progressista parecem reservar a prosperidade econômica apenas para quem trabalha em tempo integral. Seguindo uma linhagem de Democratas que vieram antes e depois dele, o senador Bernie Sanders declarou em certa ocasião que “ninguém que trabalha 40 horas por semana deveria estar vivendo na pobreza.” Claro, mas e aqueles que trabalham 20 ou 30 horas semanais, como Vanessa?

Como os liberais permitiram que os conservadores definissem os termos do debate em torno da pobreza, eles se encontram discutindo soluções radicais onde imaginam ou uma nação de pleno emprego (como se trabalho pudesse ser garantido) ou uma sociedade pós-trabalho (com uma renda básica universal). Nenhum plano tem a menor esperança de ser implantado nacionalmente tão cedo, o que significa que nenhum deles é bom para Vanessa e milhões como ela.

Quando se dá muita atenção a soluções extraordinárias e utópicas, esquecemos a importância de trabalhar com as ferramentas que já temos. Programas de seguridade social, que ajudam as famílias a enfrentar períodos de insegurança alimentar, habitações impagáveis e ondas de desemprego, tiram milhões de pessoas da linha da pobreza todos os anos. Por si só, o SNAP tira 8 milhões da pobreza. Segundo um estudo de 2015, sem os benefícios tributários e transferências de renda federais, o número de americanos vivendo em pobreza extrema (abaixo da metade da linha de pobreza) saltaria de 5% para quase 19%. Programas de mobilidade social eficazes deveriam ser defendidos, expandidos e despidos de suas exigências de trabalho draconianas.

Embora Washington continue exigindo mais dos trabalhadores vulneráveis, cobra pouco dos empregadores na forma de salários dignos ou estabilidade no emprego, o que cria um mercado de trabalho onde o maior desincentivo a trabalhar não é a seguridade social e sim a má qualidade das vagas disponíveis. Ao observar o estado atual do debate nacional sobre pobreza, parece que a maioria das pessoas que criam políticas públicas federais e estaduais não conhecem gente como Vanessa. “Metade do pessoal da Prefeitura nem sequer vive em Trenton”, disse Vanessa em certa ocasião, frustrada. “Eles nem sabem o que acontece por aqui.”

Ao mesmo tempo, temos o Congresso mais rico de todos os tempos, com 13 membros que fazem parte do 1% mais rico. Do alto de seus gabinetes, a pobreza parece ser um problema menor e menos urgente e o trabalho uma solução maior e mais gratificante. Mas quando minimizamos o problema também minimizamos as soluções. Quando aplicamos pequenas soluções para um problema enorme, elas não vão funcionar. Daí, quando as iniciativas anti-pobreza não funcionam, muita gente lava as mãos e diz que deveríamos parar de colocar dinheiro nesse problema de uma vez por todas. Soluções baratas só encarecem o problema.

Esse mês, participei de um jantar de honra com calouros de uma universidade em Massachussetts. Alguns tinham inclinações esquerdistas, outros eram direitistas. Mas todos estavam juntos em sua incapacidade de explicar a pobreza de um modo que não responsabilize, de algum modo, os pobres pela própria desgraça. Pessoas pobres não têm ética de trabalho, diziam-me, ou então falta-lhes um comprometimento com melhorar de vida. Comecei a me arrepender a da falta de bebidas alcoólicas no evento quando um estudante mencionou o filme À procura da felicidade, onde o personagem de Will Smith tem um desempenho sobre-humano em seu trabalho para sair da miséria para a vida plena. O estudante não era nenhum filho de senador: ele nos falou que os tempos foram duros quando seus pais se separaram. Enquanto via esse rapaz se identificando com o personagem de Smith, me dei conta daquilo que seus pais, seus pastores, seus treinadores e conselheiros haviam dito para motivá-lo — “estude bastante, mantenha-se firme, tenha um grande sonho e será bem-sucedido” — havia sido internalizado por ele como uma teoria para a vida.

Nós precisamos de uma nova linguagem ao falar sobre pobreza. Dizemos “ninguém que trabalha deveria ser pobre” mas isso não é bom o bastante. Ninguém nos EUA deveria ser pobre. Ponto. Nenhuma mãe solteira deveria se desdobrar para criar os filhos sozinha; nenhum ex-presidiário que cumpriu sua pena; nenhum jovem usuário de heroína lutando contra a dor e o vício; nenhum motorista de ônibus aposentado cuja pensão foi achatada; ninguém. Se respeitamos o trabalho duro, deveríamos recompensá-lo decentemente em vez de usar esse valor para humilhar os pobres e justificar nossa desigualdade crescente e indefensável. Você pode dizer que trabalhou duro para chegar onde está. Muito bem. Só que a Vanessa também trabalhou duro para chegar onde ela está.

Sobre o autor

Matthew Desmond é colaborador da revista The New York Times Magazine e autor de "Evicted" [Despejado], que ganhou o Prêmio Pulitzer de 2017 na categoria de não-ficção.

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