31 de março de 2019

Seria o populismo de esquerda a solução?

O populismo de esquerda é o novo idioma da política radical ao redor do mundo. Ele emergiu como resposta ao problema de uma classe trabalhadora fraca e desorganizada. Mas, a despeito de seus sucessos eleitorais, essa classe continua fraca e desorganizada.

Anton Jäger e Arthur Borriello


O líder do Unidos Podemos, Pablo Iglesias, cumprimenta seus apoiadores depois de saber o resultado das eleições gerais em 26 de junho de 2016 em Madri, Espanha. Pablo Blazquez Dominguez / Getty

Tradução / Em 1984, o músico inglês Robert Wyatt lançou um som em defesa da greve dos mineiros britânicos. A canção teve uma longa trajetória. Tendo alcançado renome com a banda cult The Soft Machine, Wyatt atravessou uma radicalização pública no final da década de 1970, evidenciada por sua filiação ao Partido Comunista da Grã-Bretanha e aparições em vários piquetes organizados por sindicatos. Um radicalismo similar era detectável em seu EP com quatro faixas, de 1984, chamado The Age of Self, lançado e co-produzido com a Grimethorpe Colliery Brass Band e os combativos sindicalistas da unidade de inteligência do Government Communications Headquarters. A faixa de Wyatt era uma brava denúncia do thatcherismo e sua pregação egoísta, junto a uma crítica sensível aos tópicos recentes no pensamento à esquerda. A música começa com os seguintes versos:

Eles dizem que a classe trabalhadora está morta, somos todos consumidores agora
Eles dizem que seguimos adiante, somos todos apenas pessoas agora
Eles dizem que precisamos de novas imagens para ajudar nosso movimento a crescer
Eles dizem que a vida é feita de uma coalizão mais ampla, como se não soubéssemos.

Os alvos das reclamações de Wyatt eram claros o bastante. Palavras codificadas tais como “consumidores”, “povo” e “imagens” se destacaram como respostas agressivas a pedidos de dentro do Partido Trabalhista para remodelá-lo como uma coalizão ampla, “popular”, capaz de enfrentar o campo thatcherista. Após os thatcheristas alcançarem sua primeira vitória na eleição geral, em 1979, figuras tais como Neil Kinnock e Peter Mandelson expressaram a esperança de que os trabalhistas se reorientassem ao redor de uma ampla base de classe média e buscassem as pessoas “comuns” ao invés das pessoas “trabalhadoras”. Uma sensibilidade populista estava no ar.

O teórico culturalista Stuart Hall talvez tenha sido o adepto mais sutil da virada de Kinnock. O trabalho de Hall em Marxism Today sobre “O Show da Grande Virada à Direita” no final da década de 1970 avançou a tese de um “populismo democrático” oposto à variante “autoritária” de Thatcher. Apesar de ser um socialista convicto, Hall tinha um relacionamento difícil com o mainstream do movimento trabalhista. Para Hall, a greve dos mineiros estava “condenada a ser lutada e perdida como uma forma antiga, ao invés de uma forma nova de política”. Apesar de seu objetivo “instintivamente de se alinhar com a política do novo” – o que ficava visível nas alianças dos mineiros com grupos feministas e de direitos de gays – a greve foi “lutada e perdida” precisamente por conta do “aprisionamento nas categorias e estratégias do passado” por parte do Partido Trabalhista.

O início dos anos 1990 pareceu trazer um necessário respiro. No começo da década, Hall notou uma abertura na ascensão de Tony Blair, que estava determinado a enterrar a “esquerda radical” do partido. Seu entusiasmo esfriou marcadamente ao longo dos anos. Ele veio a enxergar o Blairismo como “O Show do Grande Turno a Lugar Nenhum”. O populismo de Blair, Hall compreendeu, havia meramente servido como um dispositivo para a renovação neoliberal da Inglaterra – a privatização do serviço ferroviário, a liberação do Banco Central de pressão política e a remodelação dos serviços sociais em direção a um modelo baseado no consumo. Como notou Hall, a remodelação neoliberal estava apenas adocicada com uma cobertura multicultural.

Do pós-marxismo ao populismo

O que sobrou para o populismo contemporâneo, então, vinte anos após a desilusão de Hall?

Muita coisa, aparentemente. Diante de cinquenta indivíduos que, juntos, são donos de metade da riqueza mundial e de programas de austeridade que dizimaram economias nacionais inteiras, não é difícil de notar a atração do populismo. Como observou Gavin Jacobson na New Statesman, a “crescente ‘oligarquização’ das sociedades europeias ocidentais”, combinada com a “ausência de qualquer disputa política significativa entre ideias concorrentes sobre uma vida melhor”, ajuda muito a “explicar a atual onda populista”.

Poucas intervenções contribuíram mais para aumentar a saliência do debate sobre o populismo do que o livro Por um populismo de esquerda (Verso, 2018), de Chantal Mouffe. Mouffe não é nenhuma novata no debate sobre o populismo “de esquerda”. Seu primeiro impacto como uma proponente de uma esquerda “pós-marxista” foi no início dos anos 1980, junto de seu antigo parceiro, Ernesto Laclau. Crescido na argentina, Laclau havia migrado ao Reino Unido no final da década de 1960, sob a supervisão do historiador marxista Eric Hobsbawm. Ele se juntou à Mouffe no final da década de 1970 após conseguir um cargo na Universidade de Essex.

Laclau e Mouffe estavam na linha de frente do que é hoje chamado “pós-marxismo”. Ambos pensaram que socialistas europeus deveriam dispensar seu foco unilateral em “classe” e se organizarem ao redor de outros marcadores – gênero, raça, nacionalidade. Dessa forma a esquerda poderia revindicar um projeto de “democracia radical” contra a ortodoxia stalinista e se equiparar com os novos e crescentes movimentos sociais, tais como as ativistas feministas ou os ativistas pelos direitos LGBTs. A versão de Hall e Mouffe da Rainbow Coalition perturbou o consenso pós 1989, segundo o qual a tomada de decisões havia se tornado um assunto tecnocrático. Hall e Mouffe alegaram que Tony Blair, Bill Clinton e Gerhard Schröder degradaram a política ocidental de tal forma que a transformaram em uma escolha entre “Pespsi e Coca Cola”.

Havia sinais de alerta, é claro. A Frente Nacional francesa alcançou seu primeiro avanço eleitoral em 1984 e o magnata Silvio Berlusconi varreu as eleições italianas de 1994. Na Holanda, o partido Pim Fortuyn teve avanços em 2002.

Discurso popular

No entanto, o populismo de Mouffe e Laclau seria diferente daquele dos europeus. De seu ponto de vista, ele seria mais próximo ao “Socialismo do Século XXI” do ex-presidente venezuelano Hugo Chávez, que havia contestado o Consenso de Washington e reorientado sua economia em direção ao consumo popular. O populismo chavista era sobre a construção de inimigos, é claro, e algumas vezes irritou sensibilidades liberais. E era, sobretudo, preocupado com a identidade, principalmente em um cenário nacional. Mas se preocupou com “identidade” de um jeito diferente do que fazia a extrema direita posterior ou os ativistas à esquerda. O “povo” de Laclau e Mouffe tinha que ser universal e inclusivo, e não excludente e sectário. “Longe de ser uma perversão da democracia”, notou Mouffe, recentemente, o populismo, concebido como a “construção de identidades populares”, “constitui a força política mais adequada para recuperar e reconstituir a própria democracia”.

O populismo de esquerda de Mouffe não passou sem críticas. Alguns afirmaram que sua estratégia centrada na identidade – e na mídia – na verdade reproduz tendências que já são prevalentes no mundo contemporâneo, representando uma rendição, ao invés de um desafio, ao dogma neoliberal atual. Em uma resenha do livro de Mouffe publicada no The Guardian, William Davies argumentou que a autora “não oferece orientação alguma sobre como o populismo de esquerda pode lutar e vencer, tampouco qualquer reafirmação de que o fará”, já que “nada na política é real, até que tenha sido construído mediante a luta”.

Principalmente, Davies acusa os populistas de falta de consciência histórica. Para ele, Mouffe falha em reconhecer os reais fundamentos do “momento populista” atual e como ele interage com outras tendências nas democracias ocidentais. O populismo prospera em uma Era de declínio democrático precisamente porque toma uma longa lista de parâmetros como já dados: insatisfação geral e alienação da política partidária, com uma lista decrescente de filiados e um grau de participação baixíssimo.

Acima de tudo, o populismo de esquerda abraça a obsessão que prevalece com o “discurso”, uma tendência que compartilha com a política atual centrada na mídia. Na ausência de quaisquer órgãos que conectem a sociedade civil ao Estado, políticos tiveram que olhar para diferentes dispositivos de comunicação para avaliar os anseios de seus cidadãos. Certa vez, o escritor húngaro Peter Csigo comparou essa situação de contemplar sinais de fumaça de um continente muito distante, sem jamais empreender àquele continente. Se os políticos de fato empreenderem a viagem, os resultados são universalmente incriminadores. Eles apenas expõem ainda mais a separação dessa pessoa de uma base social.

Para muitos na esquerda, isso desnudou uma verdade inconveniente. Como escreveu Chris Bickerton na New Statesman ano passado, “os partidos atuais da esquerda tendem a ser” tão “desnatados socialmente” que eles dificilmente têm ideia sobre “o que as pessoas realmente querem”. Sem bases dentro dos partidos, políticos estão, portanto, condenados a uma forma de especulação sem fim a respeito da vontade popular. Os resultados que isso induz tornaram-se visíveis naquilo que o acadêmico Joe Kennedy chamou de a política da “autentocracia”.

Os autentocratas de Kennedy professam um “conservadorismo imputado a uma imaginária ‘classe trabalhadora esquecida’” e obcecado com uma oposição de classe trabalhadora à imigração. Seu protótipo é o parlamentar do Partido Trabalhista britânico Owen Smith. Quando Smith decidiu concorrer à liderança do Partido Trabalhista, em 2016, fingiu não saber o que era “latte”, chamando a bebida de “café espumoso”. Ele também exibiu constantemente suas credenciais do típico homem tradicional britânico, utilizando palavras como “moças” e “rapazes” no Twitter. Os autentocratas de Kennedy oferecem uma aparência de autenticidade em uma época em que a própria autenticidade se tornou um produto midiático – uma aglomeração de caricaturas competitivas.

Tapar as brechas

É difícil entender a grife de populismo de Smith sem olhar para o amplo declínio de democracia partidária na Europa. Nos últimos trinta anos, os antes potentes partidos europeus experimentaram um declínio ininterrupto: o Partido Social Democrata Alemão foi de um milhão de membros em 1986 para 660.000 em 2003; o Partido Trabalhista britânico foi de 675.905 para 200.000; os Socialistas Escoceses (Dutch Socialists) foram de 90.000 para 57.000.

O resultado desse esvaziamento da política partidária europeia foi habilidosamente descrito pelo cientista político irlandês Peter Mair como “governando o vazio”. Políticos europeus agora tem tão pouca noção do que está em jogo com suas populações – tanto que eles precisam especular sobre o que pode constituir um programa de sucesso. Já que os próprios partidos não podem mais colher esse tipo de informação, outros canais precisam ser explorados, sua maioria situada na crescente indústria das relações públicas. Ao invés de ouvir uma base ou obedecer a máquina de seus partidos, os políticos ficam ainda mais enredados por um exército de assessores de imprensa, que providenciam relatórios periódicos sobre o estado da opinião pública – uma tática avançada por gurus da mídia tais como Peter Mandelson e Lynton Crosby, que ajudaram David Cameron a chegar ao posto de Primeiro Ministro britânico em 2010.

Essa história tem também um lado mais profundo e institucional. Desde a década de 1990, sociedades ocidentais vem experimentando uma ruptura profunda entre duas atividades que eram conjuntas na Era do pós-guerra: “política” e “política pública”. Podemos pensar na última como os métodos pelos quais estados ordenam suas sociedades e intervém em suas economias. A primeira compreende o processo que os teóricos da política chamam de “formação de vontade”: competição entre partidos, construção de campanha e a costura de coalizões.

A década de 1990 viu uma mudança drástica no modo como esses dois momentos interagem. A “política pública” se tornou o terreno do “poder não eleito” – órgãos como o Eurogroup, a EU Comission e o Bank of England. A “política”, por sua vez, foi relegada a uma esfera midiática eternamente viciada em novidades. Ambas foram elencadas como a emanação da sociedade civil “emancipada” dos anos 1990, após as revoluções sem derramamento de sangue na Europa oriental.

As coisas acabaram acontecendo de forma depressivamente diferente. Ao invés de criar espaço, a destruição das instituições coletivas nos anos 1980 – a destruição do movimento sindical britânico por Thatcher, o esvaziamento do Partido Comunista Francês pelo presidente socialista François Mitterrand, mas também o envelhecimento dos membros dos partidos conservadores – lançaram as bases para formas mais elusivas de coletividade. Enquanto políticos estavam começando a se tornar mais alienados dos cidadãos e presos no gerenciamento tecnocrático, uma nova forma de mídia pareceu oferecer um atalho para a popularidade.

Do populismo ao tecno-populismo

A inovação ideológica mais potente da década de 1990 foi, portanto, uma nova marca do que Chris Bickerton chama de “tecno-populismo”. Esse novo jeito de fazer política foi encabeçado por figuras como Tony Blair, Pim Fortuyn e o francês Nicolas Sarkozy. Sarkozy ofereceu o melhor exemplo de como o populismo e a tecnocracia poderiam facilmente ser combinados – o primeiro, uma “política sem política pública”, o segundo, “uma política pública sem política”. Ao mesmo tempo em que lançou um “debate” sobre “identidade nacional” na França, ele comprometeu a zona do euro a uma nova rodada de austeridade e aumento rampante do poder do Banco Central Europeu.

Comentaristas franceses descreveram o comportamento de Sarzoky como “Sarko-Berlusconista”. A conexão não é de se surpreender. O império midiático de Berlusconi o permitiu controlar a opinião pública na Itália na década de 1990 e estendeu sua carreira anos 2000 adentro. Como tecno-populistas, Sarkozy e Berlusconi combinaram uma obsessão com normas e valores com uma preferência pela governança tecnocrática.

Essa governança empoderou os órgãos mais antidemocráticos, mas também levou a um desequilíbrio precário no coração dos estados europeus. Por um lado, a soberania “externa” desses estados apenas aumentou. Agora eles lideram poderosos sistemas prisionais, empreendem ambiciosos programas de controle de fronteiras e regeneram setores bancários com novas ondas de flexibilização quantitativa. Por outro lado, os últimos trinta anos também testemunharam um enfraquecimento profundo da soberania interna dos estados – os laços que ligavam estados a instituições como sindicatos, igrejas e partidos, e os permitia exercer poder sobre ele. Governos agora enfrentam amplas restrições quando estruturam sua vida econômica ou redistribuem recursos, cercados por uma longa lista de restrições constitucionais. Dito de forma breve, estados europeus são “duros mas ocos”, como salientou o cientista político italiano Vincent Della Sala – poderosos e espaçosos, principalmente no âmbito do poder executivo, mas insulados de qualquer pressão vinda de baixo.

Soberania nacional e popular

Os populistas buscaram responder à soberania desse estado erodido de várias maneiras. Populistas de direita se focaram na recalibração da soberania nacional: pense em Donald Trump contestando os programas do NAFTA, ou a promessa de populistas de direita europeus (Matteo Salvini, Viktor Orban, Marine Le Pen) de endurecer as fronteiras europeias.

Os populistas de esquerda, por outro lado, priorizaram a defesa da soberania popular ao invés da nacional, procurando restaurar partes da herança perdida na década neoliberal de 1990. É aqui que o projeto de Mouffe e Laclau calhou de ser útil – inspirando movimentos como o Podemos espanhol e a France Insoumise.

No entanto, essa busca por uma soberania popular renovada não veio sem suas dificuldade. Paradoxalmente, um dos maiores problemas do populismo de esquerda tem sido a morte parcial do mundo descrito por Peter Mair. Ao invés de um vazio, tem havido apenas uma erosão relativa do sistema partidário clássico. As pessoas continuam a votar com base em classe e sindicatos não desapareceram todos de uma vez. Em alguns países eles vêm resistindo de forma teimosa ao declínio e continuam a cumprir um papel importante na vida política – como os socialistas espanhóis ou os movimentos sindicalistas belgas. Mesmo nos casos em que seu declínio foi espetacular (como os socialistas gregos e franceses), nem todos os seus órgãos desapareceram simultaneamente. Para populistas de esquerda, o “vazio” nunca foi vazio o bastante.

Um vácuo incompleto também significa que conquistas dos populistas de esquerda tendem a ser mais retóricas do que reais. Uma vez que tenham sua chance de formar uma maioria – como o fracassado “sorpasso” (correr atrás) do Podemos em relação aos socialistas espanhóis, ou a inabilidade de Jean-Luc Mélenchon de alcançar o segundo turno das eleições presidenciais francesas – eles usualmente buscam fazer as pazes com os partidos convencionais. Isso implica se posicionar em um eixo direita-esquerda, ou costurar alianças com políticos tradicionais.

Normalização

No entanto, o mais doloroso é que os populistas de esquerda tiveram que se “institucionalizar”. Isso significa deixar para trás slogans como “para além de esquerda e direita” e abrir mão de sua reivindicação de representar “os 99%”, se restringindo a uma base social mais estreita. Mas depois que o “momento populista” passar, os populistas de esquerda tenderão a enfrentar divisões partidárias internas e tetos eleitorais inquebráveis. Essa dinâmica se tornou dolorosamente visível no caso do Podemos. Após seu primeiro revés eleitoral em 2015, o partido adentrou um período de turbulência interna. Esse período acabou em uma disputa entre os líderes Pablo Iglesias e Iñigo Errejón, seguida de uma “normalização” através de uma aliança com a esquerda radical Izquierda Unida. O processo se completou com apoio do Podemos ao governo socialista de Pedro Sánchez.

Os problemas do Podemos estão longe de acabar. No começo do ano, novas disputas surgiram entre Errejón e Iglesias, levando à renúncia do primeiro. Na base da disputa estava uma discordância sobre estratégia. Por um lado, “errejonistas” querem evitar qualquer aliança com a esquerda radical e minimizar seu tom agressivo. Por outro, “pablistas” querem preencher o espaço vazio deixado pela social democracia espanhola e juntar forças com a esquerda radical existente. Enquanto a segunda estratégia se mostrou incapaz de deter a derrocada eleitoral do Podemos, não fica claro se a primeira teria tido um impacto diferente, dada a recente ressurgência dos socialistas espanhóis.

A France Insoumise tem enfrentado problemas parecidos desde a eleição presidencial de 2017. Eles ocuparam um lugar delicado em uma oposição difusa anti-Macron, foram bem sucedidos na construção de um fronte comum com as forças à esquerda na corrida para as eleições europeias e tem experimentado controvérsias recorrentes a respeito de democracia partidária.

Esses contratempos podem muito bem render uma lição crucial. A menos que o momento populista ocorra em um contexto de completo desmantelamento do sistema partidário e uma dissolução do eixo direita-esquerda, qualquer partido populista de esquerda terá que repensar sua estratégia.
Descontentes desorganizados

Todavia, os partidos europeus da esquerda não estão todos em declínio. Jeremy Corbyn e John McDonnell agora lideram o partido de massas de maior base de membros da Europa ocidental, dando origem a um movimento sindicalista que, em linhas gerais, foi marginalizado pela geração blairista. Sob a liderança de Corbyn, o Partido Trabalhista atingiu na eleição de 2017 o maior aumento em sua parcela dos votos desde 1945. Com mais de 500 mil membros, os trabalhistas são agora um dos maiores atores na política partidária europeia.

Ao mesmo tempo, a base sindicalista que apoia Corbyn permanece dolorosamente pequena, confinada a trabalhadores de setores públicos e a uma antiga aristocracia trabalhista. O mesmo pode ser dito dos membros atuais do partido, que ainda carece da base de massas de social-democratas do pós-guerra. Tentativas de reconstruir essa cultura trabalhista – por exemplo, plataformas como a Novara Media ou mesmo o festival World Transformed – apareceram, mas ainda não estão isentos da ausência de conexão entre o eleitorado e os membros do partido que vem atormentando populistas mundo afora. A Novara permanece sendo uma plataforma totalmente baseada em Londres e sua audiência faz lembrar o status do Podemos como o “partido de professores”. Corbyn teve que manter um equilíbrio entre os eleitores de Northern Leave que não permitem vacilação em relação ao Brexit e o apoio vocal ao Voto Popular sobre a própria adesão (o relacionamento difícil entre os Coletes Amarelas e o partido de Mélenchon, por sua vez, oferece um novo estudo de caso francês sobre essa desconexão).

Nesse momento, é difícil emitir um julgamento final sobre o projeto populista como um todo. A despeito de seus óbvios feitos, permanece a possibilidade de que o sucesso do populismo de Mouffe é mais um sintoma do que a cura. O populismo de esquerda calhou de prosperar em um ambiente modelado por aqueles outros fenômenos tão característicos de nosso tempo: tecnocracia, neoliberalismo, desconexão entre “políticas públicas” e “política” e uma sensação anti-política generalizada.

No entanto, uma coisa é inegável: o populismo de esquerda fez um balanço de um cenário partidário e de uma situação totalmente novos, completamente transformados por trinta anos de investida neoliberal. Em contraste com uma velha esquerda moribunda, apegada a remédios antiquados diante da aniquilação, o populismo de esquerda aparou suas velas ao vento. Ele surgiu em uma época que o ator social mais poderoso do século XX, a classe trabalhadora organizada, permanece completamente desorganizada. Foi contra essa mesma desorganização que Wyatt alertou em 1984, no final de sua música:

Me parece que se esquecermos
Nossas raízes e nossas posições
O movimento irá se desintegrar
Como castelos construídos na areia

Colaboradores

Anton Jäger é doutorando na Universidade de Cambridge, trabalhando na história do populismo nos Estados Unidos. Junto com Daniel Zamora, ele está atualmente trabalhando em uma história intelectual da renda básica.

Arthur Borriello é pesquisador de pós-doutorado do Fonds de la Recherche Scientifique (F.R.S.-FNRS) afiliado à Université Libre de Bruxelles (ULB Cevipol). A sua investigação centra-se na gestão política da crise econômica na zona euro e no surgimento e transformação dos movimentos populistas no sul da Europa.

Pintando Budapeste de vermelho

Em março de 1919, a Hungria viu a criação de um estado revolucionário que durou pouco tempo. Analisamos a importância da República Soviética Húngara e sua tentativa de transformação da arte e da cultura.

Entrevista com
Bob Dent

Automóvel carregado de comunistas correndo pelas ruas de Budapeste, 5 de março de 1919. Administração Nacional de Arquivos e Registros dos EUA / Wikimedia

Entrevistado por
David Broder

Em março de 1919, a Hungria viu a primeira tentativa de criar um estado no estilo bolchevique fora do antigo Império Russo. Os social-democratas e os comunistas se uniram para formar uma República do Conselho (ou “Soviética”) inspirada no exemplo bolchevique. Promovendo estatizações amplas, aumentando os salários e cortando os aluguéis, o estado foi, no entanto, imediatamente envolvido no caos pós-Primeira Guerra Mundial. Em agosto do mesmo ano, ele foi derrubado por tropas romenas em conjunto com os paramilitares de extrema direita de Miklós Horthy. Sua derrota logo levou a pogroms contra judeus e pessoas de esquerda.

Apesar de sua curta duração, a República do Conselho foi conhecida por uma revolução no campo cultural. Além dos esforços para socializar a economia, um Comissariado do Povo para a Educação e Cultura buscou abrir as artes ao grande público. Como Bob Dent explica em seu recente livro, Painting the Town Red: Politics and the Arts During the 1919 Hungarian Soviet Republic, os concertos dos trabalhadores, os desfiles do Primeiro de Maio e as novas ideias sobre cinema e literatura buscavam elevar o nível cultural da população e, ao mesmo tempo, quebrar a hegemonia das elites tradicionais e da Igreja.

David Broder, da Jacobin, conversou com Bob sobre a importância do experimento na Hungria, a revolução no mundo da arte e seu legado para o socialismo pós-Segunda Guerra Mundial.

David Broder

Por que escrever sobre arte na República Húngara do Conselho - e o que você quer dizer com “pintar a cidade de vermelho”?

Bob Dent

Morando na Hungria há mais de trinta anos, sempre me deparei com menções em livros de que este ou aquele indivíduo no mundo das artes da época estava do lado da República do Conselho, incluindo alguns que mais tarde se tornaram conhecidos como tipos bastante conservadores, como o escritor Sándor Márai. Mas isso foi tudo - apenas uma menção, sem explicação ou mais detalhes.

Quando comecei a investigar o assunto, descobri que muitas figuras proeminentes do mundo das artes – escritores, pintores, cineastas, músicos e trabalhadores de teatro – apoiavam o novo regime, pelo menos nos estágios iniciais. Meu livro é o resultado dessa pesquisa e, essencialmente, uma introdução a essa questão.

Depois de uma visão geral do contexto histórico após a Primeira Guerra Mundial, concentro-me nas comemorações do 1º de maio de 1919. O Conselho de Governo Revolucionário, que estava no poder há pouco mais de um mês, encomendou a artistas que literalmente pintassem a cidade de vermelho para as comemorações do que foi anunciado como o “primeiro Primeiro Dia de Maio livre” do país. Havia bandeiras vermelhas, cortinas vermelhas, pôsteres vermelhos e slogans vermelhos por toda parte.

Eu também estava interessado em me aprofundar nos debates políticos sobre cultura e o papel da arte na sociedade e como isso poderia mudar, por exemplo, com a promoção de escolas gratuitas para artistas proletários em ascensão.

David Broder

Você dá a impressão de que os fundadores do Conselho da República tinham um otimismo ilimitado quanto à possibilidade de criar uma nova sociedade, inclusive em termos de cultura. Você cita o jornal Vörös Ujság, do Partido Socialista, que descreve: “No fogo purificador da revolução proletária, as artes estão renascendo e despertando para uma nova vida”. Mas quem foram os protagonistas desse movimento? Foi um caso de intelectuais progressistas que buscavam elevar o nível cultural das massas ou essas massas estavam assumindo o controle da produção musical e teatral por conta própria?

Bob Dent

Analisando os políticos por trás do Conselho da República, não acho que o que eles fizeram foi muito mais do que uma questão de abrir a “alta cultura” para um público mais proletário. As intenções eram sinceras e positivas, mas onde estava o novo material, a nova literatura, as novas peças? Havia pouco tempo para que eles aparecessem, então, enquanto isso, o material clássico com um conteúdo percebido como positivo era promovido.

Os verdadeiros protagonistas eram as pessoas do Comissariado de Educação e Cultura do novo regime e muitos intelectuais em geral, alguns dos quais haviam defendido novas abordagens para as artes por algum tempo, geralmente em nome do “modernismo”.

Por outro lado, a historiadora de arte Nóra Aradi observou certa vez, de forma interessante, que a maioria dos escultores que participaram da decoração de Budapeste para o Primeiro de Maio optou por seguir as tradições de monumentos ou retratos heróicos, e esse estilo também foi empregado para as figuras dos revolucionários. Entretanto, em contraste, grande parte das imagens visuais dos posters era mais vanguardista.

David Broder

No seu livro, temos a sensação de que, mesmo apesar dos perigos que enfrentava, a jovem República Soviética via a criação de uma nova cultura como algo central para sua missão - não algo que pudesse ser dispensado em prol de necessidades econômicas ou militares mais elevadas. Mas até que ponto o Comissariado de Educação e Cultura via seu trabalho como uma missão mobilizadora e que limites isso impunha?

Bob Dent

É difícil determinar até que ponto o regime, em termos gerais, via a criação de uma nova cultura como algo central, em vez de simplesmente permitir que aqueles que estavam entusiasmados continuassem com ela, por assim dizer. Suspeito que tenha havido uma grande dose dessa última opção.

Em geral, a “linha” oficial, conforme promovida por György Lukács, por exemplo, era que tudo – literatura, teatro, cinema, pintura etc. - deveria ser permitido, até mesmo incentivado, exceto tudo o que fosse contra revolucionário. No entanto, até onde sei, Lukács nunca chegou a definir claramente o que “contrarrevolucionário” de fato significava, nem quem tomaria a decisão – questões bastante importantes! Não é preciso dizer que, talvez, a resposta implícita fosse que o partido no poder (ou talvez o próprio Lukács) decidisse.

Quanto às limitações, certamente havia censura, às vezes encoberta pelo argumento da falta de papel (que era verdadeira). Os posters eram censurados e os jornais estavam sujeitos à censura. Muitas publicações foram fechadas, embora algumas vezes tenham sido feitas mudanças com a instalação de um novo editor. Quanto a livros importantes e outros trabalhos longos, não houve tempo suficiente para que muitos fossem escritos e publicados. Afinal de contas, a República do Conselho durou pouco mais de quatro meses.

David Broder

Com base na história da República Soviética Húngara, é fácil ter a impressão de que houve uma agitação repentina seguida de muita improvisação na formação do novo Estado. O que explica a força do apoio ao novo regime no mundo das artes — a organização comunista anterior nesses círculos ou o fato de se juntar ao movimento de um poder aparentemente vitorioso?

Bob Dent

Não havia uma organização comunista anterior, de longo prazo, que se transformou ao longo dos anos em várias organizações e instituições. O Partido Comunista Húngaro foi formado somente em novembro de 1918 e era bem pequeno. No entanto, havia antecedentes que antecipavam os desenvolvimentos gerais. O regime liberal anterior, sob o comando de Mihály Károlyi, que governou do final da Primeira Guerra Mundial até a formação da República do Conselho em março de 1919, foi progressista em sua política cultural.

Seu ministro da cultura era o social-democrata Zsigmond Kunfi, que se tornou o Comissário do Povo para a Cultura e a Educação depois de março de 1919, indicando fortemente um senso de continuidade, o que era adequado ao mundo das artes. (A propósito, György Lukács, que havia se filiado ao Partido Comunista pouco tempo antes, foi inicialmente o vice de Kunfi, embora depois de algum tempo o título de “vice-comissário” tenha sido abolido em todos os comissariados).

Havia outros motivos pelos quais o novo regime era apoiado no mundo das artes. Alguns eram bastante banais, mas compreensíveis. Por exemplo, ser membro de uma das novas organizações para escritores garantia uma certa renda. De forma mais positiva, as pessoas no mundo das artes eram atraídas pelas transformações na cultura, no sentido amplo do termo.

Por exemplo, pensou-se seriamente em modernizar o mundo acadêmico e houve algumas “estreias” interessantes durante a República do Conselho. Por exemplo, Irén Götz foi nomeada professora de química, tornando-se assim a primeira mulher na Hungria a ocupar esse cargo. O que, em comparação internacional, era ainda mais inovador foi o fato de o primeiro departamento acadêmico de psicanálise do mundo ter sido estabelecido em Budapeste em 1919, sob a direção do discípulo húngaro de Freud, Sándor Ferenczi.

Outras pessoas ativas durante a Comuna que mais tarde se tornaram nacional e/ou internacionalmente renomadas foram o sociólogo Karl Mannheim, o historiador de arte Arnold Hauser, que em 1919 trabalhou na reforma do sistema de educação artística, o historiador literário Marcell Benedek e György Hevesi, que em 1943 receberia o Prêmio Nobel de Química. Tendo dito tudo isso, é preciso reconhecer que também houve um forte elemento de adesão ao movimento. Isso resultou em um entusiasmo inicial, que diminuiu com o passar das semanas e alguns dos aspectos mais negativos da nova situação vieram à tona.

David Broder

Você cita o caso específico do famoso ator Bela Lugosi. Qual era a ligação dele com a República Soviética?

Bob Dent

Após a Primeira Guerra Mundial, o desmembramento do império Habsburgo e a revolta do outono de 1918 na Hungria, Lugosi se dedicou às causas sociais. Em 2 de dezembro, foi criada a Free Organization of Theatre Employees (Organização Livre de Trabalhadores do Teatro), com Lugosi encabeçando os nomes dos membros do comitê. Depois, durante o período da República Soviética, ele foi um ativista proeminente como secretário do National Trade Union of Actors (Sindicato Nacional dos Atores), fundado em 7 de abril. Ele era um grande divulgador e frequentemente escrevia artigos polêmicos. Em um artigo publicado em meados de maio de 1919, por exemplo, Lugosi contestou veementemente a opinião de que os atores não eram proletários.

Não foram muitos os húngaros ativos em 1919 que se tornaram figuras internacionais notáveis. Entretanto, há alguns outros. Michael Curtiz, o diretor de Casablanca, já foi mencionado. Da mesma forma, o produtor de cinema Sándor (Alexander) Korda estava fazendo filmes em 1919. E ainda havia os notáveis compositores e musicólogos Zoltán Kodály e Béla Bartók, que, em 1919, eram ambos membros do Diretório de Música, um órgão que operava sob a tutela do comissariado cultural.

David Broder

O Conselho da República Húngara foi parcialmente formado em resposta à incapacidade do governo anterior de defender o território nacional em resposta às invasões tchecas, sérvias e romenas. Isso significa que o novo regime buscou mobilizar sentimentos nacionais e patrióticos? Como ele poderia estabelecer sua própria conexão com a história popular húngara? Isso foi simplesmente uma capitulação ao chauvinismo que estava se espalhando na Europa Central após a Primeira Guerra Mundial?

Bob Dent

Essa foi uma área complicada para as novas autoridades. O governo precisava e queria mobilizar a população para defender o país contra a intervenção militar. A propaganda não era especificamente nacionalista, mas as campanhas de pôsteres, por exemplo, bem como as campanhas de recrutamento, tinham como objetivo implícito promover o sentimento patriótico. Isso pode ajudar a explicar por que muitas pessoas, inclusive membros do corpo de oficiais, normalmente conservador, estavam dispostos a participar. O regime às vezes falava sobre a disseminação do socialismo - até mesmo da revolução mundial - em conexão com suas campanhas, mas é difícil dizer o quão eficaz era essa abordagem e até que ponto isso estava na mente da maioria das pessoas. É verdade que a situação era bastante paradoxal nesse aspecto.

David Broder

Uma figura que ligou a revolução de 1919 e a Hungria socialista pós-Segunda Guerra Mundial foi György Lukács. Se ele entrou em conflito com os dogmas culturais do período de Stalin, isso, no entanto, assumiu a forma de um recuo da atividade política direta em vez de uma discordância aberta. Que continuidades podemos ver em sua compreensão da cultura revolucionária e em que sentido ele foi capaz de trazer o espírito da República Soviética Húngara para a “democracia popular” pós-1945?

Bob Dent

Não sou um especialista em Lukács, mas tenho a impressão de que havia uma certa semelhança entre suas visões de literatura e política pós-1945 e as de 1919. Por exemplo, em 1949, Lukács foi fortemente criticado em uma campanha centrada no dogmatismo cultural. De acordo com a nova linha, o problema com Lukács girava em torno de sua visão do realismo na literatura, que incluía a ideia de que alguns escritores politicamente reacionários da literatura clássica européia havia, no entanto, produzido obras que, em vista de seu estilo, percepção e conteúdo, poderiam ser consideradas progressistas. Indiscutivelmente, isso foi um reflexo de sua atitude relativamente ampla em 1919.

Entretanto, deve-se observar que, após 1945, os comunistas húngaros tiveram problemas para dar destaque à experiência de 1919. Do ponto de vista psicológico, foi de certa importância o fato de que a maioria dos comissários do povo comunista de 1919, que, em vários estágios, emigraram para Moscou, foi vítima dos expurgos stalinistas do final da década de 1930.

Quando os comunistas húngaros voltaram ao poder logo após a Segunda Guerra Mundial, como poderiam exaltar as conquistas de 1919 quando muitas de suas figuras proeminentes, incluindo Béla Kun (geralmente considerado o principal líder político), haviam perdido a vida sob o comando de Stalin, que continuou governando em Moscou até sua morte em 1953?

Foi somente nas décadas seguintes ao levante de 1956, cujo elemento central envolveu a ruptura com o modelo stalinista, que houve uma mudança significativa na quantidade de atenção dada na Hungria aos eventos de 1919. A partir do quadragésimo aniversário, em 1959, houve uma explosão de publicações, principalmente em revistas especializadas, sobre o que havia acontecido em 1919. A partir de então, a cada aniversário, surgiam novos livros e estudos sobre o período.

David Broder

Você cita o social-democrata Jenö Landler dizendo, em 1919, que “a importância de Budapeste em termos mundiais é mais ou menos a mesma que tinha anteriormente para Moscou”. Qual foi a real importância da Revolução Húngara - ela se baseou na perspectiva de espalhar regimes no estilo bolchevique por toda a Europa ou ofereceu um modelo diferente de governo socialista?

Bob Dent

Considero a declaração de Landler um pouco exagerada, e não muito mais do que isso! Suponho que, em teoria, havia a possibilidade de espalhar regimes de estilo bolchevique em toda a Europa, mas não vejo muitas evidências de que isso tenha acontecido a partir da Hungria. Além das considerações políticas, a Hungria estava (e ainda está, até certo ponto) isolada em termos de seu idioma, que era desconhecido e não tinha relação com quase todos os outros idiomas europeus. Portanto, era difícil saber e entender o que estava acontecendo na Hungria em 1919.

Por outro lado, eu realmente não acho que havia muita oferta de um novo modelo. Isso pode parecer grosseiro. Mas o Conselho Húngaro ou a República Soviética não surgiu essencialmente como resultado de uma revolução. Em vez disso, era um regime de cima para baixo, até mesmo autoritário. Em termos mais concretos, será que os eventos de março de 1919 e a proclamação da República do Conselho Húngaro representaram, como muitas vezes se afirmou na época e mais tarde, uma revolução proletária genuína e o estabelecimento de uma ditadura proletária que agia para libertar os oprimidos? Ou foi uma tomada de poder em nome do proletariado húngaro e o estabelecimento de um regime que governou o proletariado? Há claramente uma diferença, embora elas tenham sido frequentemente confundidas - em relação à Hungria de 1919 e em outros lugares.

Quando os líderes social-democratas e comunistas negociaram na Prisão de Trânsito de Budapeste, em 21 de março de 1919, e concordaram em unir forças em um recém-nomeado Partido Socialista, eles emitiram uma uma declaração afirmando a unidade de seus dois partidos e o estabelecimento de um novo regime. O texto curto contém a seguinte frase bem reveladora: “Em nome do proletariado, o partido assume imediatamente todo o poder”. Isso está bem claro – foi uma tomada de poder pelos líderes de um partido recém-criado, e não a conquista do poder resultante de algum tipo de revolução.

Tanto o Conselho de Soldados quanto o Conselho de Trabalhadores de Budapeste rapidamente endossaram o novo regime em 21 de março e, formalmente, os conselhos eram considerados supremos. Mas, na prática, era sempre o Conselho de Governo Revolucionário, ou seja, os Comissários do Povo, que incluíam os principais membros do partido, que detinham o poder real. Isso, mesmo que eles certamente precisassem do apoio de grandes setores da população.

Essa distinção entre o partido e o proletariado poderia ter algumas consequências sérias, principalmente quando havia conflitos de interesses entre o regime no poder e as pessoas em nome das quais ele alegava estar exercendo o poder. Em seu extremo, poderia haver um certo fanatismo intolerante, expresso até mesmo contra o proletariado.

Por exemplo, em um decreto de 6 de junho de 1919, um dos principais comunistas da linha dura, Tibor Szamuely, anunciou que a greve, que sempre foi uma arma legítima usada em um estado capitalista contra o capital deveria agora, no novo sistema socialista, ser considerada a mais “infame traição contra os interesses da classe trabalhadora”. Assim, ele afirmou que a defesa de uma greve contra o estado proletário era contra revolucionária. “Vamos sufocar todo movimento de contra revolução desde o início”, anunciou ele. “Quem quer que participe da contrarrevolução ou defenda a contra revolução, que a apoie ou fique calado, pagará por isso com a própria vida.”

Tibor Szamuely e seus notórios “Lenin Boys” revestidos de couro percorreram o país em um “Trem da Morte” em resposta a relatos (verdadeiros ou não) de atividades da oposição. Enforcamentos públicos e sumários das pessoas que se acreditava estarem envolvidas aconteciam no local e requisições forçadas de gado, milho e outros bens eram impostas à localidade. Em seguida, o trem seguia em frente, mais tarde para reprimir mais uma “rebelião” em outra área.

Embora a abordagem de Szamuely não fosse representativa de todos os líderes da época, ela certamente teve um grande impacto. Ela confirmou a opinião de que o novo partido estava exercendo o poder apenas “em nome do proletariado”.

David Broder

A República, que teve vida curta, foi derrotada em agosto de 1919. O que isso significou para a ideia de uma cultura emancipada?

Bob Dent

Primeiro, houve a reação daqueles que haviam participado de forma destacada das atividades culturais durante a República Soviética e a reação das novas autoridades políticas. Um grande número de pessoas envolvidas na atividade sentiu-se obrigado a deixar a Hungria, pois temia represálias do novo regime ou simplesmente previa uma situação negativa, seja política ou culturalmente, ou talvez ambas. Isso se aplicava tanto a políticos quanto a artistas de vários tipos, embora houvesse diferenças no destino dos dois grupos.

Praticamente todos os líderes políticos da República Soviética Húngara fugiram do país logo após sua queda. Alguns permaneceram em Viena por algum tempo, outros foram para Berlim e, em geral, aqueles que eram membros ou simpatizantes do Partido Comunista acabaram em Moscou. Quanto aos artistas de todos os gêneros, o historiador da arte Éva Forgács afirmou que, entre as muitas ondas de exílio ao longo da história da Hungria, provavelmente a que se seguiu à derrota da República do Conselho em 1919 foi a que mais prejudicou a arte e a cultura húngaras.

A maioria dos militantes da cultura que fugiram da Hungria após a queda da República do Conselho não foi para a União Soviética, preferindo permanecer na Europa Ocidental, em Viena, Berlim ou Paris, mas muitos deles retornaram à Hungria nos anos entre guerras, especialmente após meados da década de 1920, quando uma anistia de fato estava em vigor. Entre os que permaneceram na Hungria, alguns foram detidos e presos e/ou demitidos de seus cargos.

O historiador do cinema John Cunningham afirma que a maior parte da comunidade cinematográfica húngara fugiu para evitar represálias, acrescentando que até mesmo alguns que não estavam envolvidos com a República do Conselho também foram embora, devido às poucas oportunidades de trabalho. O resultado, segundo ele, foi que a indústria cinematográfica húngara foi praticamente desprovida de todos os seus principais talentos.

Na frente política, a queda da República do Conselho foi rapidamente seguida por uma onda de “terror branco”. Comunistas, social-democratas, judeus, sindicalistas e outros que “não se encaixavam” foram massacrados em grande número. O regime ultraconservador que finalmente surgiu após os eventos de 1919, liderado por Miklós Horthy, queria, compreensivelmente, apagar toda a memória positiva do que havia acontecido. E isso também significava voltar a tendências mais conservadoras nas artes.

Colaboradores

David Broder é historiador do comunismo francês e italiano. Ele está atualmente escrevendo um livro sobre a crise da democracia italiana no período pós-Guerra Fria.

Bob Dent é autor de Painting the Town Red: Politics and the Arts during the 1919 Hungarian Soviet Republic (Pluto Press, 2018).

Reformas fiscais só serão viáveis se acompanhadas de flexibilização fiscal no curto prazo

Nos últimos anos, falhamos em todas as tentativas de fazer ajustes radicais e rápidos

Nelson Barbosa

Folha de S.Paulo

O ministro Paulo Guedes (Economia) durante audiência na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado. Lucio Tavora/Xinhua

O governo passa por mais uma semana turbulenta, com ruídos entre Executivo e Legislativo, além das bizarrices dos ministros de sempre e, agora, também do próprio presidente (1964 foi golpe, e o que veio depois, ditadura).

Apesar desse contexto caótico, hoje volto à questão da Previdência para falar de um risco real e imediato: a fadiga de reforma, isto é, o risco de que a perspectiva de reformas fiscais em série sem nenhum benefício palpável e imediato para a população inviabilize as mudanças necessárias na economia.

Todos os economistas sabem que a reforma das aposentadorias é necessária, mas não suficiente, para resolver nosso desequilíbrio orçamentário.

Também será preciso fazer mudanças graduais em outros gastos, como a remuneração de servidores, e, mais importante, recuperar a arrecadação com ações que cobrem mais tributos dos ricos e menos dos pobres.

A maioria dos economistas também sabe que a reforma da Previdência tem impacto gradual sobre a economia e, provavelmente, seu efeito imediato será recessivo. Por quê? Porque haverá redução do consumo em face do aumento de contribuições e da perspectiva de que é preciso poupar mais para garantir a mesma aposentadoria no futuro.

Teoricamente, a expectativa de melhora das contas públicas trazida pelas mudanças na Previdência pode atenuar seu impacto negativo sobre o consumo via redução da taxa de juros e aumento do investimento.

Na prática, esse efeito demora a se materializar, sobretudo no contexto atual de lento crescimento, ruídos em série vindos do Planalto e do Banco Central relutante em corrigir a política monetária que herdou do governo anterior.

Mas vamos em frente. Mesmo diante dos impactos provavelmente recessivos da reforma da Previdência no curto prazo, é necessário fazê-la para garantir a sustentabilidade de nosso sistema de aposentadorias no futuro.

Porém, como convencer as pessoas disso?

Do ponto de vista econômico e político, o ideal seria que as mudanças das regras de aposentadoria fossem acompanhadas de medidas compensatórias para acelerar a recuperação da economia.

Por exemplo, a aprovação da reforma da Previdência poderia ser acompanhada de aumento do investimento público, sobretudo em desenvolvimento urbano (transporte, saneamento e habitação), para acelerar o crescimento da renda e emprego de modo sustentável.

Infelizmente, devido ao teto de gastos e às metas de resultado primário vigentes, o governo foi na direção oposta.

Na semana passada, o Executivo anunciou mais um contingenciamento de gastos discricionários, em aproximadamente R$ 30 bilhões (0,4% do PIB), o que deve reduzir ainda mais o investimento público.

Combinar arrocho fiscal permanente com reformas impopulares em série contribui para diminuir a viabilidade da estratégia de ajuste fiscal em uma democracia.

No jargão popular, se esticar demais, a corda arrebenta.

Pouco adianta que nós, economistas, apontemos os benefícios de longo prazo das reformas, que existem, quando a maioria da população está insegura sobre emprego e renda.

Adaptando o que disse um político dos EUA recentemente: primeiro temos que tirar a bota do pescoço da população, pois é difícil pedir que alguém pense no longo prazo quando a pessoa tem dificuldade para fechar as contas no curto prazo.

Reformas fiscais são necessárias, mas elas só serão viáveis se forem acompanhadas de flexibilização fiscal no curto prazo.

Nos últimos anos temos tentado fazer ajustes radicais e rápidos, falhando em todas as tentativas. Melhor tentar algo diferente.

Sobre o autor

Professor da FGV e da UnB, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016). É doutor em economia pela New School for Social Research.

Golpe de 1964 teve quartelada e discurso que só ficou no papel

Castelo Branco prometeu defender Constituição e entregar cargo em 1965, mas não cumpriu nada do que falou

Heloisa Murgel Starling

Folha de S.Paulo

Castello Branco: articulador da queda de Jango, o então chefe do Estado-Maior do Exército foi eleito presidente pelo Congresso em 11.abr.64, tomando posse em 15.abr (na foto). Governou até mar.67. Acervo UH/Folhapress


Na madrugada de 31 de março de 1964, o general Olympio Mourão Filho, comandante da 4ª Região Militar, em Juiz de Fora, atropelou a conspiração que pretendia derrubar o governo de João Goulart. Desceu sua tropa em direção ao Rio de Janeiro para tomar de assalto o Ministério da Guerra e destituir o presidente da República.

Era uma quartelada: o general Mourão estava próximo da compulsória e procurava um atalho capaz de potencializar seu papel na chefia da conspiração. Magalhães Pinto, governador de Minas, sustentou a quartelada apostando aumentar o próprio cacife político para disputar as eleições de 1965. Planejava declarar Minas em secessão, negociou em segredo o reconhecimento do governo norte-americano e pretendia oferecer aos conspiradores o terreno para uma campanha militar fulminante.

Deu tudo errado. Mourão acabou neutralizado pelas lideranças militares que, de fato, ocuparam o poder e rapidamente absorveram a quartelada em um golpe de Estado bem-sucedido.

Na base de Norfolk, na Virgínia, uma força-tarefa aguardava autorização para se movimentar em direção ao Brasil. Agrupava um porta-aviões de ataque pesado, um porta-helicópteros, um posto de comando aerotransportado, seis contratorpedeiros equipados com mísseis teleguiados, 110 toneladas de armas e de munição, quatro navios petroleiros bélicos carregados com 550.000 barris de combustível. Era a Operação Brother Sam, preparada secretamente em Washington com a cumplicidade de militares brasileiros para zarpar em 1º de abril e garantir apoio logístico aos golpistas.

Na madrugada de 2 de abril, o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, promoveu uma sessão conjunta secreta do Congresso Nacional e declarou vaga a presidência da República. A declaração não tinha sustentação legal. João Goulart permanecia em Porto Alegre, no pleno exercício de seus poderes.

Diante dos protestos de diversos parlamentares, inclusive Tancredo Neves, que avançou para a mesa aos gritos de “canalha’, “canalha” –e, ao que tudo indica disposto a esbofetear o presidente do Senado–, Moura Andrade não titubeou: cortou o som, desligou as luzes do Congresso e consumou o golpe. Logo depois, um Tancredo esbaforido informou aos jornalistas: “Estão entregando o Brasil a vinte anos de governos militares”.

Na tarde de 11 de abril, o Congresso Nacional se reuniu para eleger o presidente da República. Os deputados do campo das esquerdas não estavam mais lá: seus direitos políticos foram extintos por um período de dez anos. Era uma eleição indireta em que só havia um candidato: o general Humberto de Alencar Castelo Branco. O voto era nominal e de viva voz –apenas 72 deputados tiveram a coragem de se abster, entre eles, Tancredo Neves e San Tiago Dantas.

No final da tarde, o general foi eleito para completar o mandato de Jango. Em menos de uma semana depois, Castelo Branco tomou posse no plenário do Congresso Nacional. Ele jurou defender a Constituição de 1946, prometeu entregar o cargo ao seu sucessor em 1965 e garantiu que as cassações estavam encerradas.

O discurso do general disse o que todo mundo queria ouvir, mas não cumpriu nada do que prometeu. A posse de Castelo Branco era o prelúdio de uma completa mudança no sistema político sustentada por um formato francamente ditatorial –vale dizer, por um governo que não é limitado constitucionalmente.

O primeiro Ato Institucional foi redigido em segredo e promulgado oito dias após o golpe. Vinha assinado pelo autoproclamado “Comando Supremo da Revolução” –formado pelo general Costa e Silva, almirante Rademaker e brigadeiro Correia de Mello–, e trazia 11 artigos: transferia parte dos poderes do Legislativo para o Executivo, limitava o Judiciário, suspendia as garantias individuais e permitia ao presidente da República cassar mandatos, cancelar os direitos políticos do cidadão pelo prazo de dez anos e demitir funcionários públicos civis e militares.

O Ato Institucional forneceu ao general Castello Branco o instrumento de exceção que permitiu ao seu governo encarcerar milhares de pessoas, além de improvisar áreas de detenção em estádios de futebol –como o Caio Martins, em Niterói. Também transformou embarcações da Marinha Mercante e da Marinha de Guerra em prisões: os casos dos navios Raul Soares, Canopus e Custódio de Mello.

O Ato liberou a execução de manobras policial-militares de detenção em massa, com bloqueio de ruas, busca de casa em casa e checagem individual, que ocorreram durante o ano de 1964, em Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, São Paulo e Pernambuco –cerca de 50 mil pessoas acabaram detidas nessas manobras, conhecidas como Operação Limpeza.

Era só o começo. Em 1964, a experiência democrática da Segunda República (1946-1964) foi feita em pedaços e o Brasil acabava de ingressar numa longa ditadura que durou 21 anos.

Sobre a autora

Heloisa Murgel Starling é professora de história da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), autora de "Os Senhores das Gerais - os Novos Inconfidentes e o Golpe de 1964" e co-autora de "Brasil, uma Biografia"

Do golpe de 1964 à ditadura

Regime cometeu crimes contra a humanidade

José Carlos Dias, Maria Rita Kehl, Paulo Sérgio Pinheiro, Pedro Dallari e Rosa Cardoso

Folha de S.Paulo

Tanques do Exército na avenida Presidente Vargas, no centro do Rio de Janeiro, em 31 de março de 1964. Divulgação/Arquivo Nacional

golpe militar de 1964 que depôs o presidente João Goulart, foi violação deliberada e ilegal das regras constitucionais, apoderando-se dos órgãos e do poder político.

Apesar de se revestir de discurso dissimulador em defesa da democracia, o regime que emergiu do golpe de estado foi seu maior violador.

O novo poder nem esperou sua formalização pelo Congresso Nacional para iniciar onda repressiva depuradora. Eliminadas as garantias constitucionais, mandatos políticos foram cassados, direitos políticos foram suspensos.

Logo no dia 1º de abril, os diversos comandos militares procederam a centenas de prisões. Perseguição violenta se abateu sobre indivíduos e organizações identificados com o governo anterior. Sete em cada dez confederações de trabalhadores e sindicatos tiveram suas diretorias depostas. Nos dias seguintes ao golpe, prenderam-se milhares de cidadãos, e a ocorrência de brutalidades e torturas foi comum.

Durante 21 anos os brasileiros estiveram submetidos a governos militares autoritários, sob cinco presidentes generais escolhidos pelo Alto Comando das Forças Armadas. Em seguida indiretamente “eleitos” por um Congresso manietado por cassações e obrigado sempre a escolher o general de Exército indicado. Nunca na República o país tivera tanto poder discricionário concentrado nas mãos de um chefe no vértice do Estado.

Criou-se um ordenamento legal que permitia o controle da atividade política tolerada. Aperfeiçoou-se um sistema repressor complexo, que permeava as estruturas administrativas do poder público e exercia uma vigilância permanente sobre sindicatos, organizações profissionais, igrejas, partidos. Burocratas censuravam, intimidavam ou proibiam manifestações de opiniões e expressões culturais percebidas como hostis ao governo.

A repressão, eliminação de opositores políticos e graves violações de direitos humanos perpetradas durante 21 anos pelo regime instaurado pelo golpe de 1964 foram resultado de uma ação generalizada e sistemática do Estado brasileiro.

Converteram-se em política de Estado, concebida e implementada a partir de decisões emanadas da Presidência da República e dos ministérios militares. Operacionalizada através de cadeias de comando, mobilizou agentes públicos em um contexto generalizado e sistemático de ataque do Estado contra a população civil. A tortura, sistematicamente empregada pelo Estado brasileiro desde o golpe de 1964, constituía peça fundamental do aparelho de repressão montado pelo regime. Tornou-se instrumento de poder e de preservação do governo, com destinação de recursos, ocupação de espaços e uso de pessoal próprio.

É fato documentado que entre o golpe de 1964 e 1985 prevaleceu no Brasil regime de exceção que torturou, matou e “fez desaparecer”milhares de pessoas —dentre elas, estudantes, militantes políticos e sindicalistas. Embora o número não seja definitivo, foram plenamente identificados 434 casos de mortes e desaparecimentos sob responsabilidade do Estado brasileiro, reconhecida por lei em 1985.

Essa prática sistemática de detenções ilegais e arbitrárias e tortura, desaparecimentos forçados, execuções e ocultação de cadáveres que se abateu sobre milhares de brasileiros caracterizam o cometimento de crimes contra a humanidade.

Por essas razões, exaustivamente documentadas pela Comissão Nacional da Verdade, instituída por lei e cujo relatório é a versão oficial do Estado brasileiro sobre o regime militar, o golpe de estado de 1964 e o regime que instaurou, são incompatíveis com os princípios da Constituição de 1988 que regem hoje o Estado democrático de direito.

Comemorar o golpe de 1964 significa celebrar as graves violações de direitos humanos e crimes contra a humanidade a partir deles perpetrados, e até hoje impunes, implicando intolerável apologia da violência.

Sobre os autores

Ex-integrantes da Comissão Nacional da Verdade (CNV)

Historiador rebate mitos sobre o golpe de 1964

À esquerda e à direita, Daniel Aarão Reis revê fantasmas que cercam a ditadura

Daniel Aarão Reis


Cortejo com 50 mil pessoas pelas ruas do RJ após velório do estudante Edson Luís, morto em confronto de estudantes e polícia (sic) no restaurante Calabouço. Arquivo

A orientação do presidente Jair Bolsonaro para que unidades militares comemorem neste domingo o golpe de 31 de março de 1964, que iniciou a ditadura no país, suscitou polêmicas que merecem análise mais equilibrada, evitando-se “histórias oficiais” à direita e à esquerda.

Vamos por partes. Em fins de março de 1964 instaurou-se no país uma ditadura através de um golpe de Estado. Trata-se de um fato objetivo. Um presidente legítimo, João Goulart, foi deposto pelas armas, ao que se seguiu um regime de exceção, em que o direito da força prima sobre a força do direito. Em outras palavras: em que a vontade do poder se sobrepõe, ou nega, à existência das leis, (re)criando legislações a seu bel-prazer.

Entretanto, a ditadura não se tornou vitoriosa apenas pela ação militar. Foi um golpe civil-militar. Houve apoio social, que se exprimiu nas Marchas da Família com Deus e pela Liberdade no país, na força das tradições conservadoras e autoritárias.

Naquele momento encontramos as raízes que explicam, ao menos em parte, a ascensão atual da extrema direita no país. Além disso, dirigentes civis, políticos, empresários e religiosos participaram do golpe, além instituições, como a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e as principais mídias.

A simpatia suscitada pelo golpe era consequência do medo de uma ditadura comunista. A chamada Guerra Fria, entre os EUA e a União Soviética, estava no auge. Na América Latina, a Revolução Cubana acontecera. No Brasil, um amplo movimento reformista propunha mudanças estruturais, visando a “democratização da democracia”.

Aparentemente, havia ali um equilíbrio de forças, contribuindo para o acirramento das contradições.

Assim, a vitória fulminante do golpe de 1964 foi uma surpresa, mesmo para os golpistas mais otimistas.

Como compreender a derrota das esquerdas? Seria resultado de vacilações de suas lideranças mais importantes, que temeriam enfrentamentos imprevisíveis? De organizações populares muito dependentes do Estado e de suas iniciativas? De dúvidas de militantes acerca de engajar-se ou não numa luta decisiva para defender aquela República? Um pouco de tudo isto? O fato é que, até hoje, a derrota das esquerdas carece de melhor compreensão.

Muitos que apoiaram a instauração da ditadura a desejavam de curta duração. Ela eliminaria as forças de esquerda e as eleições do ano seguinte se realizariam. Aí houve uma surpresa. Os chefes militares apropriaram-se do poder por longo tempo, afirmando a preeminência indisputada das corporações (Exército, Marinha e Aeronáutica). Daí ser exato conceituar o regime como uma ditadura militar.

O primeiro governo ditatorial, chefiado pelo general Castelo Branco, apostou numa orientação liberal. A ideia era enterrar as heranças varguistas e a cultura política nacional-estatista. A aposta foi perdida. A propósito deste governo, brotou a formulação de que teria sido uma ditadura branda, uma “ditabranda”. 

Como então classificar, entre outras arbitrariedades, as prisões e cassações de direitos políticos e civis, as torturas acobertadas, a dissolução dos partidos políticos, o fechamento do Congresso e a alteração arbitrária da legislação eleitoral? Recusar evidências não é rever a história, mas negá-la. É negacionismo, a eliminação da história.

Os governos ditatoriais seguintes, principalmente no período Médici-Geisel (1969-1979), retomaram o parâmetro nacional-estatista, mas excluindo o povo. Isso não os impediu de conservar e ampliar apoios civis.

Daí ter surgido a ideia de uma ditadura civil-militar, para aprofundar a reflexão sobre as complexas relações entre a ditadura e a sociedade, e evidenciar as cumplicidades de segmentos civis, inclusive de camadas populares. Muito já se fez para desvendar essas cumplicidades, muito ainda há que se fazer para compreender como se comportaram os cidadãos comuns sob a ditadura. Mais pistas poderão daí advir para entender o “mito Bolsonaro”.

A ditadura, porém, sempre suscitou oposições, moderadas e radicais. No grupo dos moderados estavam muitos apoiadores iniciais do golpe, depois decepcionados com os militares, e os que nunca aceitaram a ditadura, mas também não acreditavam em enfrentamentos violentos. Entre os radicais encontravam-se as correntes revolucionárias, armadas, que tentaram derrotar os militares, destruir o capitalismo e construir uma sociedade alternativa. Almejavam uma ditadura revolucionária que asseguraria a transição nos moldes do socialismo autoritário plasmado pela Revolução Russa e confirmado pelo exemplo cubano.

A ditadura massacrou os radicais —com o uso e o abuso da tortura como política de Estado— e neutralizou os moderados, alguns dos quais também presos e torturados. Mais tarde, muitos destes últimos contribuiriam no processo de transição rumo à restauração democrática. 

Entre os críticos da ditadura houve um triplo equívoco. Imaginaram-na destinada à estagnação econômica, à subserviência aos EUA e à pura e simples repressão violenta, exercida por boçais. Não foi o que aconteceu. O capitalismo mudou de patamar, embora à custa de desigualdades sociais e regionais. Recuperou-se o nacional-estatismo como programa. E a própria repressão, sempre impiedosa, combinou-se com políticas de conciliação e de acomodação. Anos de chumbo, certamente. Mas também de ouro, e para não poucos.

A transição começou no início do governo Geisel, em 1974, e foi até a aprovação da Constituição de 1988. Foi transicional, estendendo-se no tempo, e transacional, baseada na negociação. A primeira fase terminou com a extinção dos atos institucionais, em 1979. Estendeu-se, a partir daí, outra etapa, em que já não havia ditadura, mas ainda não surgira um Estado democrático de Direito. A tese, ainda dominante, de que a ditadura terminou com a posse de José Sarney, em 1985, tende a privilegiar a preeminência militar e ocultar a participação civil no processo ditatorial.

É certo que o último general presidente, João Figueiredo, tomou posse ainda nos marcos da ditadura, mas governou sem o apoio dos atos institucionais. Sua gestão se conciliava com os aparelhos repressivos e com atentados terroristas de extrema direita, mas os tribunais agiam com autonomia. Não havia presos políticos. A imprensa não era mais censurada. Os partidos políticos e os sindicatos funcionavam em liberdade.

Nas eleições de 1982, elegeram-se candidatos das oposições, e os resultados não foram questionados. Houve ainda greves parciais e gerais, além do gigantesco movimento pelas eleições diretas para a Presidência da República em 1983 e 1984. Tudo isso aconteceu às claras, nas ruas, sem repressão sangrenta. Como falar, então, em ditadura? Trata-se de uma impropriedade.

Em outubro de 1988, a nova Constituição encerrou a transição, mas não agradou a todos. Conservando a cultura nacional-estatista, irritou os liberais. Desagradou também as esquerdas, ao não priorizar a reforma agrária e reivindicações históricas, como a estabilidade no emprego e a semana de trabalho de 40 horas.

Por outro lado, junto a inovações concernentes aos direitos civis, políticos e sociais, nela permaneceram as marcas da transição longa e negociada, os legados da ditadura. Entre outros, a hegemonia do Poder Executivo e da União, o modelo econômico, o monopólio dos meios de comunicação e da terra, a hegemonia do capital financeiro e a tutela —mal disfarçada— das Forças Armadas. Uma Constituição híbrida. Chamá-la de “cidadã”, como quis Ulysses Guimarães, foi uma licença poética.

De 1988 a 2018, 30 anos se passaram. O que se fez em relação à memória da ditadura? Infelizmente, muito pouco. Como em relação à ditadura do Estado Novo (1937-1945), prevaleceu a ideia de que “olhar pelo retrovisor” revolveria “feridas abertas”. É verdade que pesquisas foram empreendidas nas universidades e que a mídia divulgou controvérsias.

Nada capaz, todavia, de fazer a sociedade ver que a ditadura não era um passado que passara, mas algo que permanecia, através de seus legados. Não se convocaram as Forças Armadas para um debate sobre suas funções numa sociedade democrática. Ao contrário, só foram chamadas para assegurar a ordem pública, cumprindo papel de polícia, o que só fez aumentar seu prestígio. É certo que uma Comissão Nacional da Verdade funcionou, mas suas resoluções cedo caíram no esquecimento.

Enquanto isso políticos e partidos, de esquerda e de direita, compraziam-se em dizer, por motivos variados, que a democracia no país estava consolidada. Seus erros geraram consequências, com o ressurgimento, à luz do dia, das tradições conservadoras e autoritárias que permaneciam subterrâneas, mas vivas.

Compreendê-las e superá-las, através do debate e das lutas políticas, é um desafio e tanto. Esconder evidências históricas ou distorcê-las não será um bom caminho para a sempre necessária “democratização da democracia” brasileira.

Gostaria agora de explicitar de que ponto de vista falo, pois ninguém pensa sem premissas ou princípios. Depois de uma longa trajetória, identifiquei-me com o socialismo democrático, ainda por nascer, a ser alcançado pela persuasão, pela participação e pelo voto, distante do capitalismo, sempre desigual e injusto, e também do socialismo autoritário. Essas referências não devem incidir sobre o que é essencial no ofício do historiador —a busca da evidência e da verdade.

Atento a isto, Nikita Kruschev, secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética entre 1953 e 1964, advertiu que a “história era muito séria para ser deixada nas mãos de historiadores”. Exprimiu a ambição do Estado de controlar a historiografia e fazê-la serva das “histórias oficiais”.

Aos historiadores cabe resistir, afirmando, para além de interpretações que podem e devem variar, os compromissos éticos com as evidências e as verdades —por mais fugazes e provisórias que essas sejam, apenas entrevistas como ruínas sob os relâmpagos das tempestades, na bela metáfora de Walter Benjamin.

Sobre o autor

Daniel Aarão Reis, professor de história contemporânea da Universidade Federal Fluminense, é autor de “A Revolução que Mudou o Mundo” e “Ditadura e Democracia no Brasil”.

30 de março de 2019

Pequeno ou nada

A ignorância e arrogância de Donald Trump estão minando qualquer possibilidade de um acordo de desnuclearização com a Coréia do Norte.

John Carl Baker


Traffic passes a large LED screen as it shows a handshake between US President Donald Trump and North Korean leader Kim Jong-un, on the second day of the US-DPRK summit on February 28, 2019 in Hanoi, Vietnam. Carl Court / Getty

Tradução / Apenas quando você pensou que tinha ido embora, o maximalismo está de volta – e com isso, o horrível perigo da ação militar dos EUA contra a Coréia do Norte. A recente cúpula de Hanói e os eventos subsequentes demonstraram que os Estados Unidos ainda acreditam que podem desarmar unilateralmente a Coréia do Norte.

Depois de semanas de otimismo cauteloso, incluindo pistas tentadoras de uma abordagem diplomática mais inteligente dos EUA, a cúpula de Hanói entrou em colapso no mês passado sob o peso da ignorância e arrogância do governo Trump. Uma administração diferente pode ver uma cúpula fracassada como um motivo para reavaliar sua estratégia. Mas os EUA reafirmaram sua crença ilusória de que a Coréia do Norte pode ser pressionada para a capitulação total. Esta fantasia ameaça atrapalhar a reconciliação inter-coreana e desfazer as relações dramaticamente melhoradas entre os EUA e a RPDC. Se não for controlada, poderia até mesmo levar de volta às ameaçadoras ameaças de 2017, quando uma nova Guerra da Coréia parecia muito próxima para sua comodidade.

O fracasso da cúpula de Hanói foi particularmente chocante porque nas últimas semanas, o governo parecia estar se movendo em direção a uma posição de negociação mais construtiva. O representante especial dos EUA, Stephen Biegun, fez um discurso na Universidade de Stanford que parecia sinalizar uma nova flexibilidade por parte dos EUA. O discurso de Biegun também ressaltou a importância de mudar as relações para a desnuclearização e enfatizou o desejo de Trump de finalmente acabar com a Guerra da Coréia.

Uma reportagem de 26 de fevereiro da Vox sobre os esboços de um acordo prospectivo ofereceu mais evidências de que o governo estava mudando de rumo. O acordo pedia o fechamento da instalação de Yongbyon (onde a RPDC produz plutônio) em troca de uma declaração de fim de guerra dos EUA, a abertura de escritórios de ligação em Washington e Pyongyang, operações conjuntas de recuperação na RPDC e sanções para facilitar projetos econômicos inter-coreanos. O potencial acordo foi surpreendentemente medido, justo e poderia facilmente ter serviria como um trampolim para um acordo maior. Infelizmente, desapareceu sem deixar vestígios.

Detalhes sobre as discussões fracassadas da cúpula ainda estão vazando. O que parece claro, porém, é que a afirmação inicial de Trump de que os norte-coreanos pediram que todas as sanções fossem removidas era completamente falsa. Foi tão falso, de fato, que a Coréia do Norte tomou a decisão incomum de convocar uma conferência de imprensa na qual o ministro das Relações Exteriores Ri Yong Ho expôs explicitamente sua posição: o Norte propôs o fechamento de Yongbyon em troca da flexibilização das cinco sanções impostas pelo Conselho de Segurança da ONU. 2016, particularmente as cláusulas que afetam a economia civil da Coréia do Norte. Os EUA provavelmente viram isso como um pedido íngreme, já que essas cinco sanções formam a espinha dorsal da campanha de “pressão máxima” – que, segundo o governo, levou os norte-coreanos à mesa de negociações.

Houve discussões acaloradas em Hanói sobre o que o fechamento de Yongbyon realmente implicava. O assunto ficou tão tenso que aparentemente ameaçou minar a cúpula. Quando os EUA perguntaram se o fechamento significava desmantelar toda a instalação de Yongbyon, o vice-ministro das Relações Exteriores, Choe Son-hui, concorreu ao líder norte-coreano Kim Jong Un para determinar se isso estava correto. Kim confirmou que era, o que deveria ter permitido que a conversa continuasse. Mas em vez de responder com uma contra-oferta razoável (reduzindo menos sanções do UNSC, por exemplo, ou renúncias de iluminação verde para projetos inter-coreanos), Trump e Pompeo voltaram ao modo maximalista. Eles concordaram em aliviar as sanções somente se a Coréia do Norte se livrasse de todo o seu programa de armas nucleares (e provavelmente seus programas químicos e biológicos também), um acordo que essencialmente todos os especialistas em Coréia do Norte concordam que não se pode iniciar.

É verdade que a Coréia do Norte pode ser um parceiro de negociação teimoso e às vezes injusto. A resistência da RPDC a conversas em nível de trabalho – onde diplomatas experientes revelam detalhes de acordos complexos – é um exemplo óbvio. Mas o informe de Hanói que temos sugere que, quer a oferta do Norte para Yongbyon fosse ou não simétrica, a administração Trump nem tentou negociar a instalação. Pompeo e Trump, em vez disso, voltaram para a fantasia de má-fé de John Bolton sobre a desnuclearização total – e a cúpula, sem surpresa, desmoronou.

Em vez de aprender sua lição, a administração Trump duplicou o maximalismo na esteira do fiasco da cúpula. Biegun, uma vez considerada uma voz pragmática, declarou ante grande parte do mundo da política nuclear de D. C. na semana passada que o governo nunca abandonaria as sanções antes do completo desmantelamento. Quando um membro da audiência perguntou o que o governo poderia oferecer em vez do alívio das sanções, Biegun fez um gesto em direção a incentivos econômicos, mas em grande parte se esquivou da pergunta. Sua posição durante toda a aparição era de uma linha-dura e basicamente indistinguível da de John Bolton, sugerindo que o governo tinha criticado Biegun (se seu discurso em Stanford na verdade representava um afastamento do antigo maximalismo).

A Coréia do Norte já expressou sua desaprovação da posição de tudo ou nada dos EUA – e pode estar flertando com os preparativos para o lançamento de satélites para telegrafar sua abertura para se afastar das negociações. Se a janela diplomática fechar, seja por intransigência dos EUA ou provocação norte-coreana, o risco de conflito retornará. O colapso das negociações nucleares provavelmente também atrapalhará as conversações inter-coreanas em andamento, que poderiam se desintegrar por sua vez. Os projetos de desenvolvimento conjunto da Lua Jae-in não serão capazes de avançar sem concessões de sanções que os EUA serão aversos a aprovar se as tensões aumentarem. A disposição expressa da Coréia do Sul de mais uma vez desempenhar um “papel de mediador” é encorajadora, mas, a menos que Moon seja capaz de convencer os EUA a recuar de sua posição linha-dura, um acordo parece incrivelmente improvável.

As implicações das conversas colapsadas são extremamente preocupantes, que é o que torna a relativa aprovação da comunidade de política externa do desempenho de Trump em Hanói tão perturbadora. Recitando o mantra de que “nenhum acordo é melhor que um mau acordo”, membros do Congresso e grande parte da comunidade de política externa dos EUA deixaram de lado sua aversão por Trump para elogiar sua postura dura. As esperanças e os temores da Coréia do Sul, supostamente um parceiro igual na região, parecem nunca figurar no consenso jingoísta de que os EUA podem simplesmente ditar os termos de um acordo. Essa ilusão imperial é autodestrutiva e perigosa.

Uma dissidência proeminente desse ponto de vista veio do especialista em armas nucleares Jeffrey Lewis, que argumentou no início deste mês que a proposta norte-coreana em Hanói era a melhor que os EUA poderiam esperar – e que Trump deveria ter aceitado. Olhando para trás, para a história das negociações EUA-RPDC, Lewis escreve: “Cada vez que os Estados Unidos caminhavam, muita gente em Washington prometia que paciência e pressão produziriam um negócio melhor do que o desperdiçado. E cada vez mais estavam errados”. O establishment da política externa, conclui Lewis, simplesmente não consegue lidar com uma Coréia do Norte com armas nucleares porque isso significaria admitir que suas políticas foram totalmente mal-sucedidas.

Lewis está certo. A Coreia do Norte tem a bomba há mais de doze anos. Tem um extenso programa de mísseis balísticos e, em 2017, demonstrou uma capacidade plausível de atacar os Estados Unidos. Reconhecer essa realidade não significa aceitá-la. Mas isso requer a revisão de metas de curto prazo e a adoção de uma abordagem mais realista das negociações. Não fazer isso é uma receita para o desastre.

O caminho mais inteligente, como especialistas e ativistas vêm dizendo há meses, é focar em objetivos mais gerenciáveis. Os dois lados devem rever suas negociações de Yongbyon, preferencialmente no nível de trabalho. O desmantelamento de Yongbyon não acabaria com o programa nuclear norte-coreano, mas constituiria um progresso significativo no sentido de congelá-lo no lugar. Um acordo provisório sobre Yongbyon poderia formar uma base para futuras negociações e permitiria que a reconciliação inter-coreana prosseguisse. Isso também manteria as tensões tão baixas quanto elas (felizmente) desde o início de 2018.

No entanto, isso requer desistir do sonho de desarmamento unilateral. Significa enfrentar escolhas difíceis, como a perspectiva levantada por Lewis de que a proposta norte-coreana poderia ser o melhor negócio que os EUA terão.

Com o ascendente do boltonismo, porém, as chances de um processo pragmático gradual parecem cada vez mais fracas. Os defensores da paz devem continuar defendendo um acordo em menor escala, um relacionamento melhorado com a Coréia do Norte e a demissão sem cerimônia de John Bolton. Caso contrário, podemos nos encontrar em uma reprise de 2017 – sem o final feliz surpresa.

Sobre o autor

John Carl Baker is a senior program officer at Ploughshares Fund. His writing has appeared in the Bulletin of the Atomic Scientists, the New Republic, Defense One, and elsewhere.

Parlamentarismo vai ressurgir como carta na manga

Regime voltará a ganhar força na próxima rodada de dificuldades presidenciais

André Singer

Folha de S.Paulo


Jair Bolsonaro participa de cerimônia de aniversário da Justiça Militar, em Brasília. Marcos Corrêa/Presidência da República.

Com a pacificação arranjada entre Jair Bolsonaro e Rodrigo Maia pôs-se fim, aparente, à crise. Mas voltou a circular uma hipótese que vai crescer na próxima rodada de dificuldades presidenciais. Trata-se da perene proposta de implantar o regime parlamentarista no Brasil.

Por enquanto, o sobe e desce da bolsa prejudica uns, mas favorece outros. Por exemplo, os que compraram ações na baixa para vender na alta. Se o bate-boca entre Executivo e Legislativo faz o dólar ficar mais caro, quem tem a moeda americana ganha (exportadores).

Em outras palavras, o despreparo do atual ocupante do Planalto ainda não ocasionou uma perda generalizada para os detentores de capital. Porém os sinais de que o eleito começa a ficar sem governabilidade se avolumam, causando preocupação de médio prazo entre os donos do dinheiro.

1. Em três meses, o capitão reformado perdeu quase um terço do eleitorado que o apoiava, sobretudo na área popular. A sua aprovação caiu de 49% em janeiro para 34% em março. Em lugar de ocupar-se com uma estratégia que pudesse estancar a sangria de suporte entre o povo, o presidente dedica-se a postar tuítes doidos que só interessam à sua própria bolha ideológica.

2. Ao comprar briga com o único brasileiro que pode dar curso a um eventual pedido de impeachment (Maia), Bolsonaro mostrou não ter lido o manual básico do cargo que ocupa. Dilma Rousseff fez isso com o atual presidiário Eduardo Cunha e os dois caíram fora da Praça dos Três Poderes. Fernando Collor de Mello já tinha demonstrado, um quarto de século antes, que, na Constituição de 1988, o deputado que chefia a Câmara precisa ser tratado a pão de ló.

3. Em menos de cem dias, o vice-presidente Hamilton Mourão projetou a imagem de que, comparativamente, tem a cabeça no lugar, o que, convenhamos, foi fácil. Ter um vice, apoiado pelas Forças Armadas, que tenta e consegue se mostrar melhor que o chefe é receita certa para o esvaziamento do poder presidencial.

O projeto parlamentarista tinha estado na origem da confabulação que acabou por levar Michel Temer ao Alvorada. Agora, renasce sob o signo do general da reserva que reside temporariamente no Jaburu. Comenta-se que o militar estaria disposto a encaminhar o assunto.

Tal como em 1960, a direita elegeu um populista autoritário e pouco confiável para impedir que o campo popular voltasse ao poder. Assim como naquela época, o parlamentarismo será a saída cogitada para contornar as crises que o Messias de turno provoca. Retirando, de passo, para sempre, o fantasma de uma Presidência popular e reformista do horizonte nacional.

Sobre o autor

Professor de ciência política da USP, ex-secretário de Imprensa da Presidência (2003-2007). É autor de “O Lulismo em Crise”.

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A Jacobin tem divulgado conteúdo socialista em ritmo acelerado desde 2010. Eis aqui um guia prático para algumas das obras mais importantes ...