Um aumento no ativismo empresarial se juntou aos libertários e conservadores para inaugurar o domínio do neoliberalismo na eleição de Ronald Reagan na década de 1980. Uma peça-chave desse domínio: a filosofia de crueldade otimista de Ayn Rand, quase perfeita em sua imoralidade.
Lisa Duggan
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Ayn Rand (Wikimedia Commons) |
Segue abaixo um trecho de
Mean Girl: Ayn Rand and the Culture of Greed (“Menina Malvada: Ayn Rand e a Cultura da Ganância”), de Lisa Duggan (University of California Press, 2019).
Tradução / “ARevolta de Atlas” (“Atlas Shrugged”) é a obra máxima de Ayn Rand. Publicado em 1957, depois de treze anos de esforços – às vezes torturantes, e muitas vezes movidos a anfetamina – o enorme romance de mais de mil páginas provocou respostas polarizadas que iluminavam os conflitos que moldaram o mundo político do pós-guerra.
Insultado pelos críticos tradicionais, adorado por um séquito que lhe reverencia e com um crescente público leitor em massa, o livro se tornou uma pedra de toque que continua a moldar a cultura política e popular até os dias atuais. No entanto, durante os anos de sua criação, a própria Rand era uma figura cada vez mais isolada às margens da vida intelectual nos EUA.
Nas décadas de 1930 e 40 na Califórnia e em Nova York, Rand se juntou à minoria relativamente pequena de defensores do capitalismo não-regulado na direita linha dura. Ela se opôs ativamente ao New Deal, especialmente por meio da campanha de Wendell Willkie à presidência dos EUA. Ela se uniu às atividades anti-sindicais em Hollywood e alimentou o fervor anticomunista em torno de seu testemunho perante o Comitê de Atividades Antiamericanas. Ela apresentava ataques de direita ao consenso político emergente do pós-guerra em favor de uma chamada economia mista – empresas capitalistas restringidas por regulação governamental, trabalhadores organizados e uma rede de segurança em expansão de apoio público aos necessitados.
O desconjuntado bando de agitadores pró capitalismo de “livre-mercado” de Ayn Rand obteve alguns sucessos. Eles apoiaram a Lei Taft-Hartley de 1947 que limitava os direitos sindicais e erodia as proteções que os trabalhadores organizados haviam conquistado sob a Lei Wagner de 1935. Eles promoveram investigações e listas negras. Porém, os proponentes do capitalismo de laissez-faire sentiam-se profundamente em apuros durante as décadas de 1950 e 1960.
O apoio à regulação do governo sobre as empresas, trabalhadores organizados e programas de bem-estar social, como a Previdência Social, já estava profundamente enraizado na época da vitória em 1952 do “moderado” Dwight Eisenhower sobre o senador de direita linha-dura Robert Taft (co-responsável pela Lei Taft-Hartley) para a nomeação presidencial republicana. Todavia, embora o capitalismo regulado decididamente ainda fosse capitalismo e o estado de bem-estar social não fosse um Estado socialista, Rand e seus colegas fanáticos se recusavam a fazer essa distinção.
Os “radicais pelo capitalismo” permaneceram uma distinta minoria durante os anos 1950, e constituíam um grupelho intratável. Os proprietários de empresas começaram a se organizar contra a regulação estatal e a sindicalização na década de 1930, estabelecendo instituições como a Fundação para Educação Econômica de Leonard Read e a reorganização do Fundo Volker por Harold Luhnow na década de 1940. Essas instituições forneceram apoio e espalharam as ideias dos economistas de livre-mercado da Escola Austríaca Ludwig von Mises e Friedrich Hayek.
O nascente movimento ‘libertário’ de direita acabou reivindicando esses economistas como fundadores, juntamente de três romancistas populares que publicaram textos-chave de não-ficção em 1943: Isabel Patterson, com seu “O Deus da Máquina”; Rose Wilder Lane, com “A Descoberta da Liberdade”; e Ayn Rand, com “A Nascente” (“The Fountainhead”). Porém, suas fileiras estavam repletas de rixas políticas em evolução e rixas pessoais – entre livre-mercadistas anti-Estado e soldados da Guerra Fria aliados ao Estado, entre ateus e tradicionalistas religiosos, entre defensores de um Estado mínimo e “anarquistas”.
Quando William F. Buckley fundou a revista National Review em 1955, ele almejava traçar um caminho para o poder para seus respeitáveis conservadores religiosos preferidos, contra os apoiadores do New Deal e os republicanos “moderados” como Eisenhower, mas também contra outros colegas da direita política mais linha dura – os anticomunistas fanáticos e defensores puristas do laissez-faire. Olhando para trás em seu “romance” parcialmente baseado em fatos reais, Getting It Right (“Entendendo Direito”), de 2003, ele pintou uma imagem presunçosa e triunfalista das principais vitórias da ala conservadora dominante, incluindo contra a direita marginal da John Birch Society e o grupo de Rand de verdadeiros fiéis do livre-mercado. Porém, esse resultado não poderia ter parecido inevitável durante os anos 1950.
No mínimo tão intratável quanto seus colegas ativistas pró-capitalismo, Ayn Rand progressivamente se retirou das disputas entre colegas na vida social intelectual durante os anos 1950. Enquanto trabalhava por longas horas em seu romance, ela se tornou cada vez mais dependente de um mundo social, cultural e intelectual construído para ela por seu principal acólito, Nathan Blumenthal. Filho de judeus canadenses russos, Blumenthal era 25 anos mais novo que Rand. Ele começou a ler e reler A Nascente com a idade de quatorze anos, memorizando seções inteiras.
Depois de se matricular na UCLA junto de sua namorada Barbara Weidman, ele recebeu uma resposta às suas cartas de fã e um convite para visitar Rand em sua mansão na Califórnia. Todos eles se mudaram para Nova York em 1951 – Ayn e Frank, Nathan e Barbara – e juntos criaram o pequeno círculo que se tornou a base para o movimento filosófico de Rand, o Objetivismo.
O pequeno e estranho grupo de seguidores de Rand tornou-se conhecido, com deliberada ironia, como “o Coletivo”, ou como “a Classe de 43” (ano de publicação de A Nascente). Dedicado a uma filosofia que enfatizava o ateísmo e que reduzia o valor dos laços puramente biológicos ou “étnicos” em favor de associações mais “racionais”, o Coletivo era composto quase inteiramente de parentes judeus russos e amigos de infância (e seus parceiros e cônjuges) de Blumenthal e Weidman .
Como os magnatas hollywoodianos que Rand deixou para trás na Califórnia, esses acólitos de Rand estavam em conflito de várias maneiras com suas famílias de origem, mas, mesmo assim, compartilhavam afinidades de formação e experiência que os atraíram para uma associação escolhida. Também como com o grupo de Hollywood, suas experiências e exclusão como “forasteiros” aguçaram suas idealizações da história e do comércio estadunidense.
No entanto, esses defensores de uma feroz independência individual se reuniam semanalmente para ler e elogiar o romance de Rand, capítulo por capítulo. Sua líder, que criou figuras heróicas de realizações masculinas e se descrevia como uma “adoradora de homens”, sustentava financeiramente um marido charmoso, passivo e elegantemente vestido que raramente falava nas reuniões do Coletivo e que trabalhava intermitentemente como florista e, posteriormente, como pintor. A feroz crente na integridade, honestidade e na inegável realidade objetiva que guiava e julgava os membros do Coletivo mantinha um segredo corrosivo que acabou destruindo o grupo: ela começou um caso com Nathan Blumenthal, que mudou seu nome para Nathaniel Branden e se casou com Barbara Weidman em 1953.
Quando A Revolta de Atlas fez sua aparição incendiária em 1957, rompeu o aparente consenso político em favor do Estado de Bem-Estar Social, revelando campos intensamente beligerantes. A imprensa tradicional, os principais acadêmicos e figuras literárias proeminentes não apenas repudiaram o tomo; eles o acharam abominável. A própria Rand indicou a Nathaniel Branden a sua previsão de que seu romance “será o livro mais controverso deste século; serei odiada, vilipendiada, caluniada, difamada de todas as maneiras possíveis.” Apesar de sua característica grandiosidade, ela foi presciente.
A Revolta de Atlas foi descrito como uma “palhaçada execrável”, “excentricidade grotesca” e uma “diatribe estridente” comparável em sua crueldade exagerada, sem Deus e sem coração, ao fascismo de flexão nietzschiana. Granville Hicks, um crítico literário e ex-comunista, mas ainda de esquerda, opinou no New York Times: “o livro uiva no ouvido do leitor e espanca sua cabeça para prender sua atenção. E então, quando o tem dominado, arenga com ele por páginas e mais páginas. Possui apenas dois climas, o melodramático e o didático, e em ambos o livro não conhece limites. ”
Mas a resenha mais notoriamente devastadora veio da National Review de William Buckley. Ecoando as opiniões de muitos conservadores religiosos, outro ex-comunista criticou Rand por seu ateísmo e sua falta de caridade e compaixão. Em “A Grande Irmã Está te Observando”, Whittaker Chambers escreveu que A Revolta de Atlas coloca “o Sinal do Dólar, no lugar do Sinal da Cruz”, apresentando o “Homem Randiano” que, como o “Homem Marxiano”, está no “o centro de um mundo sem Deus.”
Continuava Chambers: “em uma vida inteira de leitura, não consigo me recordar de nenhum outro livro em que um tom de arrogância dominante tenha sido sustentado de forma tão implacável. Sua estridência é ininterrupta; seu dogmatismo, inapelável [...] De quase qualquer página de A Revolta de Atlas, pode-se ouvir uma voz em dolorosa necessidade, ordenando: ‘Para uma câmara de gás – vai!’ ”
Essas críticas excessivamente negativas combinavam uma amarga rejeição à filosofia de Ayn Rand, tanto pela direita quanto pela esquerda, com ataques à crueza do estilo de escrita e ao tom ou à pura maldade do romance. De encontro a elas veio um número muito menor de críticas positivas e avaliações privadas igualmente exageradas, considerando A Revolta de Atlas “vibrante e poderoso” e Rand uma escritora de um “virtuosismo deslumbrante”.
A economista Ruth Alexander, amiga de Rand, previu que “Ayn Rand está destinada a ser considerada pela História como a romancista notável e a mais profunda filósofa do século XX”. Uma nota particular para a autora enviada pelo famoso economista de direita Ludwig von Mises elogiou o livro como uma realização política:
A Revolta de Atlas não é apenas um romance [...] É também – ou posso dizer: antes de tudo – uma análise convincente dos males que assolam nossa sociedade, uma bem-fundamentada rejeição da ideologia de nossos autodenominados “intelectuais” e um impiedoso desmascaramento da falta de sinceridade das políticas adotadas por nossos governos e partidos políticos. É uma exposição devastadora dos “canibais morais”, dos “gigolôs da ciência” e da “tagarelice acadêmica” dos criadores da “revolução anti-industrial”.
A revista Time resumiu a recepção geral do livro perguntando: “É um romance? É um pesadelo?”
Apesar das críticas esmagadoramente negativas na grande imprensa, A Revolta de Atlas rapidamente se tornou um campeão de vendas no boca a boca, gerando milhares de cartas de fãs que transbordavam seu entusiasmo. Embora nunca tenha sido considerado sério pelos guardiões culturais, o romance tornou-se inegavelmente importante, social e politicamente, às vezes sendo comparado a A Cabana do Tio Tom, E o Vento Levou e 1984.
Como pode um romance de mais de mil páginas, apresentando personagens cartunescos movendo-se por uma trama melodramática salpicada de longos discursos didáticos, atrair tantos leitores e tanta atenção? Claramente, as fantasias que animam o romance tocaram em algo profundo, ressoando de maneira ampla, iluminando e dando forma a fissuras culturais a partir de um emergente ponto de vista capitalista secular ou “libertário” de direita linha dura.
O enredo de A Revolta de Atlas é basicamente uma fábula moral que inverte as premissas morais do socialismo do início do século XX e do liberalismo de Estado de Bem-Estar Social de meados do século. O romance representa os “produtores”, que são os proprietários e dirigem o capitalismo industrial, como heróis sensuais, lindos, brilhantes e totalmente admiráveis, em contraste com os sanguessugas, parasitas e bandidos apoiados pelo Estado, todos burocráticos, flácidos, pouco atraentes, incompetentes e improdutivos.
Originalmente intitulado “The Strike” (“A Greve”), o romance descreve o impacto sobre o mundo quando os produtores – os criadores e inovadores da indústria, ciência e vida intelectual – ao invés dos trabalhadores sindicalizados – decidem cruzar os braços. O “motor do mundo” progressivamente entra em colapso, até que as luzes literalmente se apagam na cidade de Nova York, em uma cena de caos desesperador. Os produtores se retiraram para a “Ravina” (“Gulch”), o enclave secreto do herói John Galt, planejando retornar assim que o mundo desmoronasse sem eles.
Esta quadro geral para o enredo é estruturada no tempo e no espaço com referência a noções de progresso civilizacional, excepcionalismo americano, uma versão do século XIX de capitalismo industrial idealizado, uma hierarquia de habilidades e capacidades, e uma narrativa do impacto destrutivo e regressivo de “coletivismo”, tanto social quanto familiar.
O tema civilizacional ecoa aquele que dava forma a Anthem, um romance anterior de Rand. O mundo contemporâneo dos EUA, o cenário de A Revolta de Atlas, havia caído fortemente sob a influência da regulação governamental coletivista. O resultado fora uma regressão civilizacional, um retrocesso para modos de vida mais “selvagens”, “tribais”, “primitivos” ou “asiáticos”.
Isso era especialmente trágico para os EUA, o único país nascido em verdadeira liberdade, a partir da visão dos Pais Fundadores à apoteose do capitalismo existente até então – a forma do século XIX de crescimento industrial dinâmico supostamente individualista, empresarial e relativamente desregulado. A queda desse período de graça política e econômica começa com os primeiros sucessos do socialismo, na revolução bolchevique, e gera a estagnação e regressão civilizacional por meio da economia mista do Estado de Bem-Estar Social.
A utopia nos bastidores à espera de seu momento de subir ao palco, a Ravina de Galt, é apresentada como uma estranha dobra do espaço-tempo. A vida na Ravina, que está localizada no Colorado, aparece principalmente como uma versão idealizada do oeste americano. Os produtores ganham a vida como fazendeiros, padeiros, mecânicos e assim por diante – proprietários de pequenos negócios com valores simples de honestidade e autossuficiência – sem escritórios corporativos ou times de advogados corporativos à vista. Mas invenções de alta tecnologia também estão em operação por lá, como indicadores das inovações criativas com as quais os produtores contribuem.
Enquanto isso, não há sinal de uma população indígena. A pureza e a nobreza do cenário do Oeste estadunidense dependem do apagamento das histórias de violência de império, escravidão e do colonialismo colonizador que trouxeram esses europeus a esse cenário. O capitalismo praticado na Ravina também está livre de qualquer exploração de mão de obra que possa ser detectável e quase livre de qualquer traço de trabalho reprodutivo ou de vida familiar. Pouquíssimas mulheres sequer estão presentes lá. Uma padeira sem nome é descrita como mãe por opção, e apenas uma mulher possui um nome – Kay Ludlow, uma atriz glamorosa.
Os personagens, nitidamente divididos entre bem e mal, servem para ilustrar várias dimensões de impotência e declínio, e as possibilidades de regeneração, à espera na Ravina de Galt. A bela e brilhante Dagny Taggart, a heroína central da história, dirige a Taggart Transcontinental sob a autoridade incompetente de seu irmão James, que entra em conluios e conspirações com funcionários do governo para compensar suas próprias inadequações.
O enredo do romance gira em torno dos três casos dela: com o elegante Francisco d’Anconia, um magnata do cobre; com o robusto inovador Henry (Hank) Rearden, um fabricante de aço; e com sua visão da perfeição masculina, John Galt, o misterioso engenheiro que lidera a greve do título original. A maior parte da trama segue a educação de Dagny e Hank enquanto eles aprendem as lições morais da razão e do individualismo e a necessidade de rejeitar de maneira decisiva os desvios do altruísmo e do coletivismo.
Seguindo com a narrativa, o leitor torna-se testemunha de destruição e miséria em grande escala, com colisões, explosões e fracassos técnicos e econômicos se empilhando, enquanto os produtores abandonam seus papéis no mundo.
Atravessados por desastres, os Estados Unidos se assemelham à visão de Rand sobre a Rússia durante a década de 1920, da Crimeia a Petrogrado: os bolcheviques e seus colaboradores em “Nós, os Vivos” e os burocratas e vendidos de A Revolta de Atlas são parentes próximos. À medida que Dagny e Hank aprendem que eles só vão contribuir para o mal do coletivismo se não se retirarem para a Ravina, o leitor é levado a acolher a destruição como merecida.
Os produtores são criados pela autora como veículos de admiração e aspiração, a partir de uma identificação exaltada com a perfeição moral, mental e física. Os sanguessugas e saqueadores são oferecidos como alvos de desprezo, ressentimento e, finalmente, indiferença ao seu merecido destino.
Rand apimenta o romance com discursos verborrágicos, introduções didáticas à sua filosofia. Os momentos pedagógicos centrais incluem discursos sobre o significado do dinheiro, o impacto desastroso da economia coletivista, 60 páginas do roteiro para um discurso de John Galt no rádio delineando sua filosofia e um surpreendente discurso sobre a moralidade do sexo – tudo planejado para colocar de cabeça para baixo as compreensões comuns.
O discurso de Francisco d’Anconia sobre o dinheiro inverte a máxima comum de que “o dinheiro é a raiz de todo o mal” para defender que o dinheiro é a raiz de todo o bem. O dinheiro, quando devidamente alinhado com o padrão ouro, é o meio de armazenar “valor” negociável em um mundo de livre comércio e livres mercados. Sem ele, há apenas uma arma com o tambor vazio.
Outro discurso ataca a máxima marxista “de cada um conforme sua capacidade, a cada um conforme sua necessidade”. O narrador, contando a história da ascensão e queda da Twentieth Century Motor Company, descreve os incentivos perversos que destroem por completo a companhia quando ela se torna uma empresa cooperativa – os trabalhadores minimizam suas habilidades e maximizam suas necessidades declaradas, com todos se tornando fingidores coniventes, e tudo desmorona:
Os indolentes e irresponsáveis tiveram um dia de campo. Eles alimentaram bebês, criaram problemas para as meninas, trouxeram cada parentes inútil que tinham de todo o país, todas as irmãs solteiras e grávidas, para receberem um “subsídio de invalidez” extra, eles pegaram mais doenças do que qualquer médico poderia desaprovar, eles arruinaram seus roupas, móveis, casas – que diabos, “a família” estava pagando por isso!
Rand levou quase dois anos para escrever as 60 páginas do roteiro de rádio de John Galt. Em um tom de autoridade e suprema confiança, repleto de detalhes repetitivos aparentemente intermináveis, apresenta suas elaborações lógicas desde sua interpretação da filosofia de Aristóteles, passando pelo valor supremo da razão, a moralidade do individualismo e a superioridade do capitalismo.
As lições para o aluno/leitor são: a razão é superior ao misticismo/religião; o egoísmo é uma moralidade mais verdadeira do que o altruísmo; e o individualismo leva para cima e para frente via capitalismo, enquanto o coletivismo leva para baixo e de volta à barbárie socialista.
Quando seu editor na Random House, Bennett Cerf, pediu que ela cortasse o discurso, ela respondeu notoriamente: “Você podaria a Bíblia?”
Como apontaram as resenhas, A Revolta de Atlas não é sutil. É pesado, intimidante, implacável, mas também é iconoclasta, às vezes surpreendente e ocasionalmente até engraçado.
Enquanto que a maioria dos pontos políticos repetidamente martelados sobre os leitores ao longo do romance são variações em torno de temas familiares na política de “livre mercado” de direita do século XX, Rand de fato se desvia de forma dramática do caminho seguro nas questões de Deus e sexo. Seu ateísmo inflexível acabou alienando muitos fãs entusiastas conservadores. Seu tratamento do sexo foi surpreendente e confuso para muitos leitores, embora sem dúvida agradável e encorajador para alguns outros.
O discurso de Francisco d’Anconia sobre a moralidade do sexo, proferido em conversa com Hank Rearden, defende o valor positivo da alegria sexual (presumivelmente heterosexual). O desejo sexual, insiste ele, reflete os valores humanos mais elevados. D’Anconia ilumina Rearden, que é casado com uma mulher que o espanca com culpa e obrigações, expondo a visão de que seu desejo adúltero por Dagny, o tipo “mais elevado” de mulher, reflete a regra adequada da razão nas questões sexuais.
Os sucessivos casos amorosos de Dagny com d’Anconia, Rearden e Galt são apresentados como nobres e emocionantes. E no modo fantasia do romance, nenhum desses homens fica ressentido ou antagônico enquanto ela passa de um para o outro. As relações entre eles, todos produtores, são impregnadas de uma homoerótica admiração mútua, enaunto todos entendem perfeitamente que os outros irão, é claro, desejar Dagny.
A ficção de Rand está repleta de triângulos e quadriláteros românticos, com adultério e divórcio, com laços homoeróticos entre os múltiplos amantes de uma heroína (embora o homoerotismo entre mulheres seja inimaginável no universo ficcional randiano). Não há controle de natalidade ou aborto; há poucas crianças e virtualmente nenhum trabalho doméstico. As cenas de sexo apresentam conquistas e lutas físicas erotizadas enquanto mulheres poderosas se submetem a homens dominadores.
Mas eles não se apegam, não sentem dependência e nem importunam uns aos outros – apenas os fracos e as esposas fazem isso. E os romances enfaticamente não terminam em casamento. São fantasias para a Nova Mulher, que mantém o olhar em várias direções. A liberdade criativa e profissional em torno de suas aspirações, circunscrita no interior de um contexto de submissão sexual extática e consensual a homens heróicos está disponível para a produtora solteira e superior. Todas as outras mulheres são parasitas irritantes ou primitivas famintas e incompetentes.
Como A Nascente reflete a opinião de Rand sobre a Hollywood das décadas de 1920 e 30, A Revolta de Atlas constitui sua declaração contra o New Deal e o Estado de Bem-Estar Social emergente dos anos 40 e 50. Suas habilidades satíricas e lampejos de humor aparecem principalmente em seus retratos de burocratas estatais com nomes como Wesley Mouch (em inglês, próximo de “Wesley Vadio”, “Wesley Desonesto” e “Wesley Glutão”), que promovem leis ridículas como a Lei Anti-Cachorro-Que-Come-Cachorro (“Anti-Dog-Eat-Dog Bill”), enquanto conspiram pelo poder como clássicos vilões de histórias em quadrinhos.
Os executivos das corporações que colaboram com os burocratas são igualmente maus – incompetentes e ressentidos com as capacidades dos outros. Incluídos entre estes estão as famílias de titãs heróicos como Hank Rearden e Dagny Taggart; mães, irmãos e esposas funcionam como fardos e barreiras.
Junto de estudos acadêmicos como “A Multidão Solitária” (1950) de David Riesman, Nathan Glazer e Reuel Denney e “O Homem Organizacional” (1956) de William Whyte, e ficções como o romance de Sloan Wilson “O homem no Terno de Flanela Cinza” (1955), A Revolta de Atlas criticava os gerentes “orientados aos outros” do capitalismo corporativo de meados do século XX e do Estado de Bem-Estar Social regulatório. Entretanto, ao invés de uma descrição e análise complexas, o romance fornece uma paisagem dramaticamente moralizada que valoriza o individualismo inflexível acima de todos os valores cooperativos ou colaborativos, no trabalho ou em casa.
Esse cenário repeliu muitos críticos, mas, com a alternância entre representações amargas e outras hilárias, também expressava frustrações amplamente compartilhadas sobre a entorpecente e restritiva cultura burocrática corporativa e os paralelos nas restrições familiares.
No geral, A Revolta de Atlas conclamava as tropas do capitalismo de laissez-faire contra os socialistas, liberais e conservadores religiosos. Contudo, de maneiras complicadas e contraditórias, também possuía um apelo que atravessava muitas outras linhas de batalha.
Como observou Judith Wilt, a devoção altruísta às necessidades dos outros e as obrigações vinculantes para com a família, que Rand atacava e satirizava de maneira tão vigorosa, eram valores aplicados com uma força especial nas vidas das mulheres. Colocando todos os outros principais temas entre parênteses, o romance pode ser lido como um ataque furioso à feminilidade normativa.
As relações homoeróticas entre os heróis geraram numerosas apropriações lgbtq+ no estilo “fanfic” que muitas vezes ignoram ou revisam o quadro político mais amplo do romance. E como argumenta Melissa Jane Hardie, as caracterizações fortemente dramáticas, altamente estilizadas e de um moralismo melodramático se oferecem a leituras de campo que invertem os significados preferidos de Rand.
Após a publicação do romance em 1957, as expectativas estelares de Rand foram esmagadas. Para uma filósofa que valorizava a independência em relação à aprovação dos outros, ela reagiu horrivelmente à escassez de defensores proeminentes.
“John Galt não se sentiria assim”, queixou-se ela aos Branden enquanto sua depressão se aprofundava – provavelmente também alimentada pela abstinência das anfetaminas. Por anos ela permaneceu reclusa e amarga enquanto Nathaniel e Barbara Branden assumiam a propagação da sua fé.
Baseando-se nas correspondências de fãs de Rand para obter endereços, Nathaniel Branden montou uma lista de correspondência para anunciar uma nova série de palestras, “Os Princípios Básicos do Objetivismo”, em 1958. Essa primeira série teve sucesso o suficiente para ser repetida duas vezes ao ano, enquanto novas séries eram acrescentadas: Barbara Branden, sobre os princípios do pensamento eficiente; o economista e membro d’O Coletivo Alan Greenspan, sobre a economia de uma sociedade livre; a própria Ayn Rand sobre a escrita de ficção realista e romântica; e uma segunda série da qual Nathaniel Branden logo se arrependeria, “O Princípios do Amor Romântico.”
Essa série de palestras acabou gerando o Instituto Nathaniel Branden em 1961, um empreendimento educacional completo que oferecia fitas das palestras, com postos avançados nas principais cidades estadunidenses, da Filadélfia a Chicago, passando por Los Angeles. Enquanto isso, o centro de Nova York se expandia para um mundo social variegado que oferecia times esportivos, clubes de cinema e de leituras e um baile anual.
O Boletim Objetivista (“Objectivist Newsletter”) começou a circular em 1962, mesmo ano em que Nathaniel e Barbara Branden publicaram um pequeno volume biográfico e filosófico projetado para espalhar a palavra, “Quem é Ayn Rand?” Durante os anos de reclusão deprimida de Rand, os Brandens transformaram a agora muito famosa romancista na nascente de um movimento organizado que contava com 3.500 alunos registrados em 50 cidades em seu pico, em 1967.
As palestras e o Boletim Objetivista inicialmente impulsionaram a reputação de Rand, mas logo começaram a circular rumores sobre um rígido e autoritário culto à personalidade no Instituto e no Coletivo, o centro do Objetivismo organizado.
Em 1961, a revista Newsweek comparou Rand à evangelista Aimee Semple McPherson em seu poder de “hipnotizar uma audiência ao vivo”, e a revista Saturday Evening Post publicou um perfil intitulado “O Curioso Culto de Ayn Rand“. Essas notícias relatavam como os alunos do Instituto eram obrigados não só a ler A Revolta de Atlas, mas também a afirmar sua concordância com o discurso de John Galt.
O autoproclamado libertário (de direita) e anarquista Murray Rothbard se aproximou e se afastou de Rand mais de uma vez, mais tarde descreveu “o culto de Ayn Rand” em seu estilo de prosa floreada usual como sendo comparável aos cultos de Hitler, Mussolini, Trotsky e Mao. O psicólogo Albert Ellis, fundador da terapia racional-emotiva-comportamental, chamou o Objetivismo de religião e diagnosticou Rand como uma narcisista maníaco-depressiva e um “bebezão do caralho”. Rand parecia ser capaz de trazer à tona o cabeça quente no interior desses devotos da razão.
Nathaniel Branden mais tarde admitiu seu papel central na criação de uma atmosfera de julgamento em que a aderência aos pontos de vista de Rand era forçada por meio de inquisições e expurgos. Em seu livro de memórias lançado em 1986, Judgment Day: My Years with Ayn Rand (“Dia do Julgamento: Meus Anos com Ayn Rand”), ele listou as premissas transmitidas aos alunos do Instituto durante a década de 1960:
- Ayn Rand é o maior ser humano que já viveu.
- A Revolta de Atlas é a maior realização humana na história mundial.
- Ayn Rand, em virtude da sua genialidade filosófica, é o árbitro supremo em qualquer questão relativa ao que é racional, moral ou apropriado para a vida do homem na terra.
- Uma vez que alguém conheça Ayn Rand e sua obra, a medida de sua virtude está intrinsecamente ligada à posição quea pessoa assume em relação a ela e sua obra.
- Ninguém que não admire aquilo que Ayn Rand admira e não condene aquilo que Ayn Rand condena pode ser um bom Objetivista. Ninguém que discorde de Ayn Rand em qualquer questão fundamental pode ser um indivíduo totalmente consistente.
- Como Ayn Rand designou Nathaniel Branden como seu “herdeiro intelectual” e repetidamente o proclamou um expoente ideal de sua filosofia, ele deve receber apenas um pouco menos de reverência do que a própria Ayn Rand.
- É melhor não dizer a maioria dessas coisas explicitamente (exceto, talvez, os dois primeiros itens). Deve-se sempre sustentar que se chega às próprias crenças unicamente por meio da razão.
No entanto, conforme ela emergia das profundezas de sua depressão pós-Atlas, Rand também começou a desenvolver um papel público para além dos círculos do Coletivo, do Instituto e dos Objetivistas. Ela deu a palestra “Fé e Força: Os Destruidores do Mundo Moderno” em Yale, Princeton, Columbia e Brooklyn College durante 1960 e começou a aparecer anualmente no Ford Hall Forum na Northeastern University em Boston – um evento em abril frequentemente chamado de “A Páscoa Objetivista.”
O primeiro de muitos clubes universitários Ayn Rand foi formado no Brooklyn College quando ela desenvolveu uma reputação como uma oradora provocativa e um ícone de direita, trajando uma capa, um alfinete de cifrão e portando sua piteira. Suas palestras nos campi universitários eram populares e lotadas, mas ela ganhou seu maior público por meio de uma entrevista com Mike Wallace transmitida em 1959 e três aparições no The Tonight Show com Johnny Carson em 1967 – diante de uma audiência de 50 milhões de telespectadores.
As aparições de Rand na televisão eram seguidas de recordes em correspondência, quase todas positivas. Isso surpreendeu pelo menos um produtor do programa de Mike Wallace, que observou que outras mídias a tratavam como uma “leprosa” e “o Anticristo”. A respeitosa entrevista de 1964 feita por Alvin Toffler para a revista Playboy também expôs Rand e sua filosofia para um público mainstream, contribuindo para sua reputação altamente polarizada como sábia ou maluca.
Rand atraia o público nas faculdades e na televisão com seus ataques incisivos ao altruísmo e à religião e com suas defesas apaixonadas do capitalismo não regulamentado, ambos os quais iam contra a opinião popular durante o início dos anos 1960. Mas ela também tinha apelo para muitos com sua oposição à Guerra do Vietnã, e ao projeto de lei de proibição do aborto – posições que muitas vezes surpreendiam seus interlocutores.
Ela se desviava substancialmente não só do liberalismo de consenso e da política da Nova Esquerda emergente, mas também do conservadorismo dominante com as tendências menos familiares do libertarismo de direita em seus argumentos.
Conforme Ayn Rand lentamente se movia das margens em direção ao centro da visibilidade na mídia dominante, ela era carregada junto da maré crescente da defesa do capitalismo de laissez-faire.
A campanha de Barry Goldwater para a presidência dos EUA em 1964 contra Lyndon Baines Johnson serviu como uma espécie de teste. Seu livro de 1960, “A Consciência de um Conservador”, introduziu a um público conservador mais amplo o pensamento dos economistas de laissez-faire Ludwig von Mises e Friedrich Hayek e, em 1963 ele já atraíra o apoio de um grupo de forasteiros em relação à política eleitoral – incluindo os conselheiros Milton Friedman e William F. Buckley -, o que o elevou à indicação pelo Partido Republicano.
Ayn Rand, que havia criticado John F. Kennedy como um “beatnik de classe alta ”, teve o prazer de declarar seu apoio a Goldwater e manteve correspondência com ele, embora no final tenha ficado desapontada com suas inconsistências, especialmente, por sua abordagem religiosa. Sua derrota esmagadora expôs os limites das incursões dos ativistas empresariais anti-sindicatos e anti-Estado de Bem-Estar Social, que eram seus principais apoiadores. Contudo, sua campanha lançou as bases para décadas de avanços de maior sucesso, à medida que os apoiadores do liberalismo militante ganharam terreno significativo nas duas décadas seguintes.
A contraditória reputação pública de Rand, baseada em sua imagem tanto como líder de uma seita quanto como oradora pública popular, explodiu e desabou em 1968. Ela nunca se recuperou de verdade, pessoal ou publicamente.
As razões foram mantidas em segredo. Os círculos Objetivistas e o público em geral sabiam apenas que Rand cortou seus laços com os Brandens, que o Instituto se dissolveu e que o objetivismo se fragmentou e entrou em declínio. Em maio de 1968, Rand publicou um vago ataque a seus associados no Boletim Objetivista intitulado “A Quem Possa Interessar” (“To Whom It May Concern”), alegando imoralidades pessoais não especificadas e impropriedades financeiras (totalmente inventadas).
Os Brandens se apossaram da lista de endereços e enviaram uma resposta igualmente vaga em uma carta aos assinantes, “Em Resposta a Ayn Rand”. A confusão reinava, mas uma coisa parecia clara: a emoção havia derrubado a casa da razão.
Os detalhes surgiram com os livros escritos por cada um dos Branden, um em 1986 – “The Passion of Ayn Rand” (“A Paixão de Ayn Rand”), de Barbara Branden (transformado em filme em 1999, estrelado por Helen Mirren no papel-título) – e o outro em 1989 – “Judgment Day: My Years with Ayn Rand” (“O Dia do Julgamento: Meus Anos Com Ayn Rand”), de Nathaniel Branden. Os Brandens forneceram versões um tanto diferentes da sórdida história sobre o caso de Rand com Nathaniel, levado a cabo com a permissão de ambos os cônjuges, e seu final, diante da revelação do relacionamento secreto de quatro anos de Nathaniel com uma terceira mulher, a atriz e estudante Objetivista Patrecia Scott (nascida Gullison, e que adotou o nome profissional Wynand).
Embora Rand tivesse se mantido celibatária durante sua depressão, e Branden tivesse resistido por anos a reiniciar seu caso após o seu renascimento, a revelação do caso dele com Scott fez Rand passar de uma fúria capaz de incendiar a terra para a desolação pessoal. Para ela, Nathaniel provou ser uma fraude e um fracasso como Objetivista, não apenas por causa de suas mentiras, mas por causa de sua escolha de um “valor inferior” em sua vida sexual.
Todo o edifício da filosofia sexual romântica idealizada de Ayn Rand desabou quando o homem que ela chamara de gênio e herói, seu herdeiro ungido, a rejeitou e mentiu para ela sobre sua vida sexual. Não havia espaço para tal fraqueza e falha em sua filosofia. Ela acusou Branden de ter lhe tomado “esta Terra”. Barbara Branden resumiu de maneira simples: “Ayn quer você morto”.
Embora devastada e diminuída, Ayn Rand não desapareceu das vistas do público. Durante a década de 1960, ela desenvolveu quatro vozes distintas que levaram sua influência adiante.
A primeira era encontrada em seus romances extremamente populares, que faziam circular fantasias culturais sobre titãs americanos individualistas que lutam e triunfam sobre os fardos e barreiras impostos por fracos e corruptos tribalistas e coletivistas que desejam apenas confiscar sua riqueza e minar sua força. Essa reescrita das histórias de Horatio Alger sobre realizações impossíveis por protagonistas que as fazem sozinhos era composta por meio da narrativa do progresso civilizacional europeu contra as tribos selvagens e primitivas das Américas, Ásia e África.
O excepcionalismo americano é evidente nas narrativas ficcionais de Rand; o triunfo civilizacional fornece um enquadramento básico. Avaliações morais estão embutidas em hierarquias de habilidades, capacidades e beleza. As rígidas hierarquias raciais dessas estruturas são obscurecidas pelo fato de que todos os personagens principais são brancos.
Os mundos de fantasia de A Nascente e A Revolta de Atlas reproduzem narrativas culturais compartilhadas de maneira ampla e profunda. Que essas narrativas reflitam a visão dominante de estadunidenses de ascendência europeia relativamente privilegiados é visto no fato de que a base de fãs da ficção de Ayn Rand, mesmo que com certa mistura de identidades de gênero e sexualidade, é predominantemente composta por membros brancos em profissões de aspiração gerencial, criativa e de negócios, de classe média e alta.
A segunda voz pública de Ayn Rand durante a década de 1960 era representada por suas palestras nos campi universitários e sua persona na mídia. Essa Rand era provocativa, mas pessoal, pedagógica e às vezes até engraçada. As palestras publicadas abordavam um “você” confuso e questionador em uma prosa transparente e professoral.
A entrevista na Playboy e as aparições na televisão apresentam respostas de Rand a perguntas desafiadoras em uma linguagem nítida, confiante, comedida, mas direta.
Mike Wallace: E então se um homem é fraco, ou uma mulher é fraca, então eles estão aquém do amor, não devem ser amados?
Ayn Rand: Ele certamente não merece, ele certamente está aquém do amor. Ele sempre pode corrigir isso, o homem possui o livre arbítrio. Se um homem deseja o amor, ele deve corrigir suas fraquezas ou defeitos, e então ele pode merecê-lo. Mas ele não pode esperar aquilo que não merece, nem no amor, nem no dinheiro, nem na matéria, nem no espírito.
Esta presença pública provocativa, mas envolvente, contrastava fortemente com a terceira voz de Rand, como líder de um culto autoritário. Essa voz circulava de segunda mão, através de uma pilha que se acumulava em notícias e memórias críticas e satíricas, coroada por descrições como a de Jerome Tuccille em seu conto cômico sobre a vida no Objetivismo, publicado em 1971, ”It Usually Begins with Ayn Rand” (“Normalmente Começa com Ayn Rand”):
[...] Curiosamente, para uma mulher que começou como uma defensora da mente independente, ela passou a considerar suas próprias ideias como corolários naturais de verdade e objetividade.
“Realidade objetiva” era o que Rand dizia que era realidade objetiva.
“Moralidade” era a conformidade com a ética de Ayn Rand.
“Racionalidade” era sinônimo do pensamento de Ayn Rand [...]
[...] A Revolta de Atlas [...] rapidamente se tornou uma espécie de Novo Marxismo de Direita.
Essa voz severa era ecoada na escrita do Boletim Objetivista (1962-1965, mais tarde na revista Objetivista, 1966-1971, e depois na Carta de Ayn Rand, 1971-1976). Ensaios selecionados desses boletins foram reproduzidos em uma série de livros durante os anos 1960 e início dos anos 1970. O primeiro deles, “For the New Intellectual” (“Para o Novo Intelectual”), reimprimiu trechos de seus romances prefaciados por um ensaio extenso, com um escopo de tirar o fôlego.
O ensaio expunha a teoria da História e da Filosofia que dá sustentação aos seus romances: De um início promissor entre os gregos, representado por Aristóteles em vez de Platão, o potencial do homem para a razão e realizações deu um mergulho profundo durante a Era das Trevas, quando o Doutor Bruxo (os místicos religiosos) e Átila (homens fortes que governam pela força) mantinham as rédeas sobre as hordas bárbaras primitivas e selvagens, cujas práticas tribais incluíam o sacrifício humano. O Renascimento trouxera de volta Aristóteles e a ascensão da razão européia.
Na América, a moralidade racional impulsionou a ascensão do capitalismo, que no século XIX atingira sua forma mais pura (mas ainda não realmente pura). No século XX, a ascensão do coletivismo socialista e a influência de Immanuel Kant teria arruinado com tudo. Os intelectuais seriam os principais culpados pelas ideias que davam suporte para a “economia mista”, que por sua vez seria responsável pelos males políticos e econômicos do século XX.
Soa cartunesco – e é mesmo. Esse tom de dedo na cara e o relato absurdamente reducionista da História e da Filosofia entravam em conflito com a persona muito mais cuidadosa e atraente de Rand quando falava em público. Como Gore Vidal comentou em sua resenha de 1961 de “For the New Intellectual”,
A Srta. Rand agora nos diz que aquilo que pensamos ser certo na verdade está errado. A lição deveria ser: Um por um e nenhum por todos [...] A filosofia de Ayn Rand é quase perfeita em sua imoralidade, o que torna o tamanho de seu público ainda mais sinistro e sistemático à medida que entramos em uma curiosa nova fase em nossa sociedade. Os valores morais estão em fluxo. As profundezas lamacentas estão sendo agitadas por novos monstros e bruxas das profundezas. Trolls caminham pela noite americana.
Volumes subsequentes, incluindo “The Virtue of Selfishness” (“A Virtude do Egoísmo”, de 1961) e “Capitalism: The Unknown Ideal” (“Capitalismo: O Ideal Desconhecido”, de 1966), foram compostos por ensaios de Rand, Nathaniel Branden, Alan Greenspan e Robert Hessen primariamente dedicados à defesa dos direitos de propriedade, o pilar central da plataforma política desses “radicais em nome do capitalismo”. Mas cada um também incluia um ensaio um pouco fora dessa linha.
Em “Racismo”, Rand critica o racismo como a “forma mais baixa e brutalmente primitiva de coletivismo” e expressa seu apoio à agenda do Movimento pelos Direitos Civis nos EUA, na medida em que se opõe à discriminação apoiada pelo governo. Ela continua, atacando a Lei dos Direitos Civis de 1964 nos mesmos termos que Barry Goldwater o fez, como uma violação dos direitos de propriedade.
Argumentando que a discriminação “privada” seria um crime moral, não legal, ela passa a defender políticas governamentais “daltônicas”, ao invés de qualquer movimento em direção a direitos coletivos ou “cotas” – que ela associa aos tetos de cotas anti-semitas da Rússia czarista.
Quando combinada com seu discurso de abertura em Para o Novo Intelectual, essa exposição de políticas raciais “daltônicas” ilumina as maneiras como as hierarquias raciais persistiam, mesmo enquanto as leis americanas de apartheid eram desmanteladas. Para Rand, o apagamento dos povos indígenas, as restrições à imigração de partes mais “primitivas” do mundo e a persistência de uma acentuada desigualdade racial nas esferas econômicas e sociais “privadas” eram parte integrante de seu sistema de moralidade racional, mesmo que ela se opusesse à discriminação racial (e sexual) imposta pelo Estado.
Em “Os Destroços do Consenso”, proferido como uma palestra em 1967 e adicionado à edição de bolso revisada de Capitalismo: O Ideal Desconhecido (1967), Rand começa a rastrear o colapso do consenso do Estado de Bem-Estar Social do período pós-guerra. Ela se pergunta sobre que alternativa poderia surgir e aponta para o famoso discurso do então governador da Califórnia, Ronald Reagan, nomeando Barry Goldwater em 1964 como uma nova direção promissora para a política eleitoral – uma nova direção que sua própria influência ajudou a moldar.
Os dois últimos volumes da escritos de Rand publicados durante sua vida contrastavam de maneira nítida entre si. O Manifesto Romântico (1971) incluiu sua defesa do romantismo, seus ataques ao naturalismo e ao modernismo e sua definição ampliada da noção de “sentido da vida”. “The New Left: The Anti-Industrial Revolution” (“A Nova Esquerda: A Revolução Anti-Industrial”, de 1971 – mais tarde renomeado como “Retorno do Primitivo”) parece uma série de arengas sobre questões contemporâneas rabiscadas por um recluso rabugento cujas únicas fontes de informação são revistas de notícias populares e reportagens de televisão.
Os ensaios são unificados por sua crítica da Nova Esquerda como uma manifestação de regressão primitiva. Incluem reclamações sobre “hippies” e “beatniks”, especialmente em Woodstock em 1969 – sujos descendentes de Dionísio, em comparação com os apolônicos (incluindo ela mesma) presentes no lançamento da Apollo 11 naquele mesmo ano.
Em “Libertação das Mulheres”, ela bate no movimento como sendo um bando de mulheres pouco atraentes (como sua personagem em Nós, os Vivos, a Camarada Sônia) que estariam exigindo “direitos especiais” em vez de legítimos “direitos iguais”. Ela se concentra especialmente no movimento pela ecologia, que ela descreve como o centro de uma revolução anti-industrial.
Em “A Era da Inveja”, ela resume sua visão das ameaças à civilização ocidental, representadas pelos primitivos, os deficientes e os estúpidos:
Por que a civilização ocidental é admoestada a admirar as culturas primitivas? Porque eles não são admiráveis. Por que o homem primitivo é exortado a ignorar as realizações ocidentais? Porque elas são. Por que a autoexpressão de um adolescente retardado deveria ser nutrida e aclamada? Porque ele não tem nada a expressar. Por que a auto-expressão de um gênio deve ser impedida e ignorada? Porque ele tem o que expressar.
A quarta voz pública de Ayn Rand ficava abafada. De vez em quando, durante as décadas de 1960 e 70, ela publicava explicações sobre sua filosofia em sua prosa mais acadêmica, incluindo seções de Introdução à Epistemologia Objetivista no Boletim Objetivista; o livro apareceu em 1979.
Durante a década de 1970, à medida que o consenso do pós-guerra continuava a se desfazer, a nascente e fratricida direita política dos EUA se transformou. Os velhos defensores do livre-mercado, ativistas anticomunistas e conservadores tradicionais receberam a companhia e, finalmente, foram substituídos por um jovem movimento conservador emergente, um movimento libertário de direita em expansão, uma direita religiosa mobilizadora e uma forma linha dura de populismo de lei-e-ordem refletida pelo eleição de Richard Nixon em 1968.
Uma onda de ativismo empresarial se juntou aos elementos dessas tendências libertárias e conservadoras para inaugurar a ascensão e o domínio do neoliberalismo na eleição de Ronald Reagan para a presidência dos Estados Unidos na década de 1980. A influência de Menina Malvada de Ayn Rand, sua promoção de uma crueldade otimista, foi um elemento vital dessa nova hegemonia.
Sobre a autora
Lisa Duggan é historiadora, jornalista, militante e professora de análise social e cultural na Universidade de Nova York.