29 de agosto de 2019

Do populismo ao socialismo e vice-versa

Socialistas e populistas encontraram muitas coisas sobre as quais discordar ao longo dos anos, desde a propriedade privada até a destruição de trustes. Mas o compromisso comum de lutar contra o poder corporativo muitas vezes os unia - e deveria hoje também.

Anton Jäger


Eugene V. Debs discursando de um palco, data desconhecida entre julho de 1912 e setembro de 1918. (Biblioteca do Congresso)

Os populistas e socialistas podem ser amigos? Daniel De Leon, líder do Partido Socialista Trabalhista e antigo porta-voz da esquerda americana, certamente não pensava assim. Em uma publicação de 1910 para sua revista (ironicamente chamada) The People, ele viu uma lacuna intransponível entre os dois grupos em uma série de questões, variando de legislação salarial à nacionalização ferroviária. O populismo, para De Leon, foi um “falso movimento” que “procedeu sobre linhas de ignorância”. Como ele escreveu após a derrota do movimento em 1898:

Adeus, populismo, adeus, tu eras uma exalação do passado morto. A presente luta da Civilização não é entre O QUE É e O QUE ERA; está entre O QUE É e O QUE SERÁ.

No entanto, a severidade de De Leon pode ser enganos. No final dos anos 1890 e 1900, os populistas e socialistas americanos encontraram muitas coisas em que concordar. O primeiro Partido Socialista da América (SP) foi fundado por um grupo de populistas desiludidos com a fusão do Partido do Povo com os democratas (miseravelmente derrotados na eleição presidencial de 1896). Como candidato à presidência, o socialista Eugene V. Debs consistentemente recebeu sua maior votação nas áreas rurais. Estados como Minnesota e Virgínia orgulhavam-se de suas alianças trabalhadoras-agricultoras vigorosas na década de 1920. Em 1924, o Partido Socialista endossou a candidatura presidencial do populista de Wisconsin Robert La Follette.

O jornalista bolchevique John Reed até admitiu os méritos do populismo. Em 1912, afirmou que “sempre esteve do lado da democracia”, principalmente na defesa de políticas como a “destruição do monopólio privado e o referendo”.

Não havia como negar que populismo e socialismo compartilhavam uma linhagem ideológica. Ao contrário da social-democracia europeia, o populismo não nasceu na cidade ou na cidade-empresa. Ele surgiu nas Grandes Planícies e no sul rural, em uma economia pós-plantation arrastada para o turbilhão do mercado global de algodão. Preços em queda, altas taxas ferroviárias, dívida rural e prevaricação corporativa alimentaram seu crescimento, juntamente com a extensão do sufrágio precoce e grandes redes de igrejas. O socialismo americano se baseou nessa herança rural, embora tenha deslocado o centro de gravidade para elementos mais proletários e urbanos.

A relativa simbiose entre populismo e socialismo não passou despercebida na Europa. Karl Kautsky, o "papa do marxismo" da Europa, celebrou a atitude rebelde dos camponeses americanos e ansiava pelo dia em que "os fazendeiros e trabalhadores assalariados americanos seriam unidos em um só partido". Tudo isso falava em favor de uma reaproximação populista-socialista.

Entretanto, o grau de concordância nunca foi claro. As tentativas de coalizão populistas-socialistas muitas vezes naufragaram em questões de ideologia e organização, ou política pessoal. No entanto, populistas e socialistas também permaneceram aliados nas lutas pela democracia e contra o poder corporativo. Com o populismo e o socialismo novamente no ar, a questão de como essas alianças falharam e tiveram sucesso é instrutivo para pensar sobre a política de esquerda hoje.

Propriedade privada

O primeiro ponto de desacordo entre populistas e socialistas se estendeu pela velha e controversa questão da propriedade privada. Os populistas sempre foram assumidamente pró. Em dívida com uma tradição jeffersoniana mais antiga, os “Pops” viam um pequeno pedaço de terra e ferramentas agrícolas como a pedra angular de qualquer ordem republicana.

Mesmo na década de 1890, havia um forte cheiro de nostalgia nisso. Em 1898, após várias décadas de expansão industrial, o jornal Populist the Arena ainda afirmava que a única solução para a crise de desemprego nos Estados Unidos era o povo americano "se dedicar à agricultura", "ocupação original e mais natural do homem". A população excedente dos Estados Unidos tinha que novamente "se estabelecer na terra" com "indústria comum e capital moderado", tornando possível a "vida mais independente que qualquer homem pode levar". Afinal, na agricultura, “o monopólio não poderia existir”. Que isso exigia a expansão da fronteira e a expulsão dos povos indígenas não foi mencionado - nem estava claro quais meios legais deveriam ser usados.

Havia outro lado perturbador desse amor pela propriedade privada. Os populistas celebravam o pequeno fazendeiro e o camponês, mas muitas vezes afastavam os trabalhadores que haviam sido totalmente despojados de suas propriedades: meeiros negros, inquilinos menores, condenados e trabalhadores assalariados (o último grupo ainda era pequeno na década de 1890, mas mesmo assim politicamente portentoso). Eles negligenciaram as condições para a existência anterior dos agricultores independentes, que exigiam um Estado americano forte que pudesse conduzir a guerra dos colonos. Afinal, era por essa razão que De Leon via o Partido do Povo como um "partido do passado".

A corporação

Um segundo ponto de discordância dizia respeito a uma das principais inovações jurídicas do capitalismo do final do século XIX: a corporação. Como unidades organizacionais, as corporações datavam do início da República, formadas por iniciativa do governo e despachadas para tarefas que o setor privado estava mal equipado para realizar. Corporações "fretadas", por exemplo, foram criadas para construir pedágios, canais, pontes, balsas e bancos estatais. Embora entidades poderosas, raramente se moviam sem a supervisão do estado e deviam suas doações aos governos.

A década de 1850 alterou drasticamente essa relação. Tribunais e legislaturas diminuíram constantemente as restrições à formação de empresas, promovendo uma proliferação de entidades corporativas - o início do chamado "regime de livre incorporação". As corporações agora podiam contar como "pessoas" sem a iniciativa do estado. Isso se mostrou particularmente incômodo para os pequenos agricultores: formas corporativas eram favorecidas por ferrovias, armazéns de grãos e bancos, que muitas vezes controlavam os fluxos de commodities rurais. "Na tremenda opressão de nosso sistema", declarou o político populista Thomas E. Watson em um discurso de campanha de 1891, "o principal fator de crueldade, ganância, corrupção e roubo é a corporação".

A resposta populista foi agressiva contra a confiança e a regulamentação, expressa em leis históricas como o Sherman Antitrust Act de 1890, o Interestadual Commerce Act de 1888 e a Clayton Antitrust Law de 1914. Muckrakers como Henry D. Lloyd, Louis Brandeis e William Jennings Bryan se tornaram os principais evangelistas da causa, todos vendo o antitruste como parte da luta contra o “muro do dinheiro” erguido na Era Dourada.

A oposição dos populistas à corporação não era apenas econômica — eles também se opunham à separação de “propriedade” e “controle” das corporações. As corporações eram propriedade de um grupo de acionistas que detinha o estoque. Ao contrário das empresas familiares, no entanto, esses acionistas não administravam a empresa — essa tarefa era deixada para um novo grupo de supervisores que “controlavam” a empresa.

Essa separação entre “propriedade” e “controle” perturbou os populistas. Por um lado, implicava que os homens sem ligação com a terra estariam encarregados da produção — um arranjo que eles simplesmente não podiam tolerar. Por trás das reclamações sobre a “artificialidade” e a “falta de alma” da corporação também havia o medo do declínio da pequena propriedade na América. A América deveria ser uma nação de fazendeiros ou mercenários? Seria a “escravidão assalariada” ou a independência o seu futuro? Sua produção deveria permanecer regional ou transnacional, global ou local?

Os socialistas europeus tinham uma visão completamente diferente. Logo após a derrota do populismo americano na corrida presidencial de 1896, teóricos afiliados aos principais partidos socialistas lançaram o chamado “debate sobre a socialização”, que levantou questões sobre o estado do capitalismo na virada do século. Rudolf Hilferding e Eduard Bernstein observaram os primeiros sinais de um “capitalismo monopolista”, com um pequeno grupo de empresas começando a controlar a economia como um todo.

Isso não era um desvio das normas do capitalismo, eles insistiam. Pelo contrário: o surgimento da corporação marcou a intensificação das tendências inerentes à economia de mercado, onde a apropriação privada tornou-se cada vez mais atrelada à produção “social”. A disseminação da compra de títulos pela população testemunhou esse processo.

Mesmo os populistas tiveram que reconhecer as vantagens logísticas da corporação. Uma divisão de trabalho entre diretores, gerentes, acionistas e funcionários permitiu que esses novos negócios levantassem fundos maciços e coordenassem tarefas extremamente complexas (a construção da rede ferroviária da América tanto chocou quanto surpreendeu os teóricos populistas).

Os socialistas estavam mais abertamente entusiasmados com esse processo. Como Lênin argumentaria mais tarde, em 1916, o capitalismo corporativo simplesmente transformou “a competição em monopólio”, provocando “a socialização da produção”. Novos lucros agora eram “capturados por gigantescas associações monopolistas”, arrastando velhos “capitalistas, contra sua vontade e consciência, para algum tipo de nova ordem social”.

Os gigantes corporativos, por sua vez, não só podiam arcar com departamentos de marketing e escritórios de planejamento, mas também tinham novos meios legais à sua disposição para integrar massas maiores de trabalhadores. Consequentemente, universalizou o risco. Isso tornou mais fácil para os socialistas assumir economias de escala complexas. Contra o populismo do “pequeno é bonito”, os leninistas esperavam que a corporação criasse uma força de trabalho verdadeiramente massificada. Eugene Debs, embora mais inclinado a lamentar a destruição do pequeno produtor, insistiu na necessidade de uma “comunidade cooperativa”, onde os frutos do capitalismo industrial seriam distribuídos aos trabalhadores e não aos capitalistas. A solução, segundo Debs, era a democracia industrial, não o capitalismo de pequenos produtores.

A posição populista tinha suas vantagens. Além de fornecer combustível para a luta anticorporativa mais ampla, a rica tradição antitruste dos Estados Unidos protegeu sua pequena burguesia de uma mudança para o monopólio na década de 1920, possivelmente enfraquecendo sua atração pelo fascismo. (A Alemanha nunca teve um movimento antimonopólio coerente, condenando sua classe média baixa à pauperização na década de 1920.)

Mas também reduziu consideravelmente o escopo da reforma social. Como apontaram críticos como De Leon, não havia garantia de que um mercado não monopolista implicasse um acordo melhor para os trabalhadores. A inflação que os populistas desejavam provavelmente significaria aumentos de preços para as cidades. Custos de transporte mais baixos para os agricultores traziam o risco de deprimir os salários dos funcionários ferroviários. E mercados competitivos e fortes direitos de propriedade privada colocaram os interesses dos capitalistas à frente dos trabalhadores. Em suma, não havia garantia de que as prescrições populistas beneficiariam um projeto de esquerda.

Um conto de advertência

As linhas divisórias entre populismo e socialismo tornaram-se cada vez mais visíveis após a derrota do populismo em 1896. Nos anos 1900, o mais conhecido dos oponentes populistas do socialismo era o político da Geórgia, Tom Watson. Após uma série de campanhas presidenciais fracassadas na década de 1890, Watson rebatizou-se de historiador popular e proprietário de terras (em 1905, ele era considerado um dos maiores da Geórgia). Embora Watson compartilhasse a repulsa dos socialistas pela “servidão industrial” dos Estados Unidos, ele discordava veementemente dos objetivos de seu programa, chamando-o de “receita para o desastre”. Denunciando os “parasitas” que enganavam os “produtores”, ele defendeu a derrubada de pequenas oligarquias e a promoção da regeneração moral. Ele combinou isso com soluções legalistas: plebiscitos, petições, reforma constitucional. Watson pode ter odiado a grande corporação, mas não estava disposto a ceder em sua linha pró-direitos de propriedade privada.

O producionismo de Watson também tinha algumas deficiências técnicas: faltava qualquer explicação convincente da fronteira entre “produtor” e “parasita”. Deveria incluir o proprietário rural, a pequena nobreza empreendedora, o trabalhador assalariado, o gerente ou todos eles? Os desempregados se qualificaram para o rótulo?

Ainda mais perniciosa foi a inclinação de Watson para usar o populismo para fins reacionários. A oposição de Watson às reformas socialistas ocorreu no contexto de mudanças nas relações de propriedade no Sul, onde um número crescente de trabalhadores estava passando de inquilinos para trabalho assalariado supervisionado. Uma oposição fácil entre “produtores” e “parasitas” permitiu que Watson, o proprietário de terras, coagisse sua força de trabalho negra e induzisse os trabalhadores brancos a pensar que Jim Crow era para seu benefício (ao mesmo tempo em que os privava de direitos por meio de impostos eleitorais). Na ausência de uma crítica à economia política, o ex-populista tornou-se um revanchista do sul.

Watson é um exemplo extremo. Mas o perigo de o populismo anticorporativo ser usado para fins não progressistas vale para os atuais esforços de quebra de confiança. Como observa Seth Ackerman, a retórica anticorporativa pode ser facilmente apropriada por gerentes ambiciosos que desejam usar a indignação de cidadãos preocupados para fortalecer sua posição contra os acionistas. Mas a alternativa para um mundo onde o “valor para o acionista” é o único objetivo do negócio não é aumentar a discrição gerencial. A alternativa é mais direitos para trabalhadores e consumidores.

Populismo versus socialismo hoje

People's Republic of Walmart (2018) de Leigh Phillips e Michal Rozworski espera que o planejamento ambicioso feito dentro das multinacionais de hoje possa prefigurar uma nova forma de política socialista. Herdeiros do "soviete dos engenheiros" de Lenin, eles veem as cadeias de suprimentos do Walmart como uma libertação dos mercados irracionais. Fully Automated Luxury Communism (2019), de Aaron Bastani, imagina um mundo semelhante de hiperabundância, onde toda a humanidade atinge o nível de um funcionário californiano do Google.

Outros abominam essas visões modernistas. Populistas modernos como Christopher Lasch, David Goodhart e Alasdair MacIntyre defendem uma redução da tomada de decisões para níveis regionais e o retorno à produção em pequena escala. A senadora de Massachusetts, Elizabeth Warren, também reviveu parte da tradição antitruste da era da Amazon e do Google, valendo-se das propostas antimonopólio da Primeira Era Dourada como parte de seu ambicioso esforço para reescrever as regras da economia americana.

Populismo e socialismo ainda têm bases sociais diferentes. Enquanto os apoiadores de Sanders são geralmente jovens e de renda mais baixa, Warren “vende populismo para profissionais”: seus apoiadores tendem a ser mais velhos e ricos. O apoio de Sanders também é notavelmente maior entre os afro-americanos; a classificação de Warren gira em torno de 9%.

No entanto, a possibilidade de construção de coalizões - mantendo a crítica ao capitalismo - permanece. Como observa Kevin Olson, o desafio “é navegar entre duas tendências opostas que vemos em ação na história do socialismo: evitar a nostalgia de momentos perdidos de unidade populista e, ao mesmo tempo, encontrar uma maneira genuinamente populista de articular esses ideais dentro de sistemas eleitorais complexos e economias capitalistas”.

Os céticos socialistas de dar as mãos aos populistas precisam apenas olhar para o próprio Marx. O Velho viveu em uma época em que se acreditava que as revoluções populares de 1789 e 1830 estavam se estendendo por toda a Europa “até que finalmente conseguiu arrancar o controle da sociedade de regimes estreitos e antidemocráticos”. Como observa Chris Meckstroth, Marx se apresentou como um “teórico dessa revolução popular em andamento”, esperando que seus escritos sobre economia política alimentassem uma emancipação mais completa do que se imaginava anteriormente. Não por acaso, a primeira vez que Marx foi preso pela polícia belga, ele foi marcado com um rótulo específico. Esse homem, afirmaram os censores, era “um democrata perigoso”.

Os socialistas da virada do século também nunca hesitaram em cooperar com os populistas quando necessário. Embora De Leon persuadisse seus membros do SLP a não cooperar com os populistas, eles nem sempre concordavam. Na década de 1890, o SLP e os populistas ajudaram um ao outro a ganhar eleições para cargos locais, enquanto as fusões entre os dois partidos ocorreram em Chicago e Cleveland. O próprio Eugene V. Debs visitou a vigília de Thomas Watson em 1922, chamando-o de “guerreiro das pessoas comuns”.

As revoltas socialistas mais bem-sucedidas sempre enfrentaram esse dilema populista. Lenin foi claro sobre sua aliança com o campesinato, mais tarde reconhecendo suas dívidas aos populistas russos (Narodniki) pela questão rural da Rússia. A Escandinávia deve seus robustos estados de bem-estar social a um pacto entre pequenos proprietários rurais e trabalhadores urbanos. Os fracassos mais amargos da esquerda - a Revolução Alemã de 1918-1919, a França de 1848 - muitas vezes resultaram do fracasso de tentativas de unir as classes trabalhadoras e o campesinato. Estes fracassaram na tarefa de transformar “massas” em “classes” e “classes” em “massas”, perdendo seu compromisso com a história.

E a questão populista não vai deaparecer agora. A questão da soberania popular e da democracia continua a assombrar o capitalismo, com a agência coletiva ainda mais pulverizada pela marcha do mercado. Enquanto isso acontecer, os populistas permanecerão populares. E, como acontece com o capitalismo, a única saída do populismo parece através dele, muito antes de De Leon falar de sua “estupidez de tirar o fôlego”.

Colaborador

Anton Jäger é doutorando na Universidade de Cambridge, trabalhando com a história do populismo nos Estados Unidos. Junto com Daniel Zamora, ele trabalha atualmente em uma história intelectual da renda básica.

28 de agosto de 2019

Boris Johnson está fechando o Parlamento para forçar o Brexit

A política britânica virou em caos com a notícia de que a rainha suspenderia o Parlamento a pedido de primeiro-ministro de extrema direita. A medida visa evitar que os parlamentares impeçam um Brexit sem um acordo com a UE - sinal de que o país caminha para mais uma dramática eleição geral.

Dawn Foster

Jacobin

Protesters against Brexit and the government's request to prorogue Parliaments gather on College Green on August 28, 2019 in London, England. JORAS / Getty

Tradução / O burburinho desde que Boris Johnson foi nomeado primeiro-ministro sugeria que os conservadores estavam considerando suspender o parlamento: ou seja, fechá-lo para impedir que os parlamentares frustrem qualquer tentativa de Johnson de forçar um Brexit sem acordo com a União Européia. Esse boato foi confirmado hoje, quando uma trupe, incluindo Jacob Rees-Mogg (da ala à direita do Partido Conservador), saiu para visitar a rainha em um de seus muitos castelos, de Balmoral, e solicitar que ela que suspendesse o parlamento.

Com o anúncio, a política britânica rapidamente entrou em parafuso. Um grupo de campanha anti-Brexit, “Melhor para Grã-Bretanha”, emitiu uma declaração para lá de esquisita, lembrando a rainha da tradição de regicídios na Inglaterra: “Não faria sentido para a rainha apoiar essa manobra profundamente política, anti-democrática e inconstitucional do governo. Se a rainha for convidada [pelo primeiro-ministro] a ajudar, ela faria bem em lembrar que a história não é muito gentil com membros da família real que ajudam e favorecem a suspensão da democracia”. Há poucas dúvidas de que o Reino Unido, coletivamente, não esteja mais com a cabeça no lugar desde o resultado do referendo de 2016. Mas, até ontem, ameaçar cortar a cabeça da monarca teria sido visto como um passo longe demais para os centristas.

Por que, afinal, os conservadores estão fazendo isso? Nos últimos dias, os partidos da oposição têm conversado sobre possíveis soluções para escapar do que parece ser uma guinada quase certa rumo a um Brexit sem acordo. Depois que os Liberais Democratas e os Remainers [partidários da permanência do Reino Unido na União Européia] perceberam que suas constantes acusações de que Jeremy Corbyn era, na verdade, um Brexiter [partidário do saída do Reino Unido da União Européia], pareceu mais provável a possibilidade de uma coalizão frágil montada com o único objetivo: bloquear um Brexit. A suspensão do parlamento bloqueia qualquer tentativa da oposição de impedir a saída da União Européia sem um acordo prévio e o pesadelo logístico que se seguiria inevitavelmente a essa saída.

Pela a Lei dos Parlamentos com Termo Fixo, aprovada no governo de coalizão Conservador-Liberal Democrata em 2011, apenas o governo pode dissolver o parlamento para convocar uma nova eleição geral, mas a suspensão permanece sendo uma prerrogativa da rainha. Assim, os Liberais Democratas, apesar de se reivindicarem o único partido que se posiciona contra o Brexit – uma alegação que todos os demais partidos da oposição apontariam como absurdo – deveriam admitir seu papel em permitir que situações como essa aconteçam, ao aprovarem a lei em troca de umas migalhas no poder da coalizão Conservadores-Liberais Democratas de 2010.

Nos últimos dias, os conservadores têm se inspirado pesadamente no roteiro da campanha bem-sucedida, e linha dura, do Leave.EU [a favor da saída da União Européia, durante o referendo de 2016], comandada pelo então milionário Aaron Banks e pelo atual chefe do novo partido Brexit, Richard Tice. O Partido Conservador está claramente tentando retomar os votos que vazaram para o seu rival na direita, o novo partido Brexit, imitando suas táticas. E estão se preparando para repetir essas táticas nas eleições gerais que, provavelmente, se aproximam.

Para a esquerda, isso também significa que os conservadores tentarão fazer com que qualquer eleição seja disputada exclusivamente no terreno do Brexit, acusando de “traição”, para os eleitores que votaram pela saída no referendo, os políticos “desconectados do povo” em Westminster, que seria indiferentes aos desejos do pequeno grupo que votou pela saída. Essa é a grande aposta dos conservadores. Enquanto isso, os trabalhistas terão que reforçar seus pontos fortes: propor um programa que não fique preso ao Brexit e ao passado, mas que, em vez disso, apresente uma visão de como o futuro pode ser diferente, como a vida dos eleitores, a vida de seus filhos, as vidas em suas comunidades, e a economia poderiam ser diferentes.

As vozes mais barulhentas ainda continuam a ser a de um grupo minoritário de eleitores obcecados em encaixar o país inteiro na escolha binária entre “Permanecer” ou “Sair”, enquadrando todo esse psicodrama como uma guerra cultural. Mas a maioria dos britânicos não é tão extremada quanto sugere a visão da mídia e da classe política sobre o Brexit. Eles se preocupam profundamente com suas próprias vidas, com vivem e como pode ser o futuro do país. Os conservadores farão uma campanha extraordinariamente negativa, centrada exclusivamente no Brexit; mas o Partido Trabalhista e a esquerda podem contar uma história maior e atrair eleitores de ambos os lados da divisão.

Sobre o autor

Dawn Foster é escritora da equipe jacobina, colunista do The Guardian e autora do livro "Lean Out".

Consequências econômicas da Operação Lava-Jato

Em artigo publicado originalmente no Valor, Luiz Fernando de Paula e Rafael Moura apontam os impactos da operação no desmonte da engenharia e infraestrutura do país

Luiz Fernando de Paula e Rafael Moura


Helmut Otto/Agência Petrobras

No dia 1º de janeiro de 2011, quando o então presidente Lula entregou a faixa presidencial para Dilma Rousseff, o ambiente envolvendo o Brasil era de enorme otimismo. Tamanho otimismo parecia corroborado por bons indicadores até então: no plano econômico, o país acabava de registrar uma impressionante taxa de crescimento do PIB na ordem de 7,5% ao ano, uma das maiores vistas na Nova República. Concomitantemente, em plena crise financeira global, o governo adotara um conjunto de medidas anticíclicas a partir do final de 2008 que permitiram uma rápida recuperação econômica e contínua queda dos níveis de desemprego. Na esfera política, Dilma herdava uma enorme popularidade e base congressual relativamente confortável para a implementação de sua agenda.

Anos depois, o quadro se reverteu dramaticamente. No plano econômico, o crescimento marcante na década de 2000 deu lugar a uma desaceleração gradual seguida de forte recessão em 2015 e 2016, acompanhada de agudo aumento do desemprego (de 4,9% em fins de 2014 para 11,2% em maio de 2016 quando a presidente deixa o cargo). Já na esfera política, o cenário das eleições altamente polarizadas de 2014 se deteriorou e assistiu a mobilizações contra Dilma Rousseff e o PT, para além da relação cada vez mais conflituosa entre o Poder Executivo e o Legislativo, capitaneado por Eduardo Cunha. O desfecho desse quadro foi a deposição da mandatária via um contestado processo de impeachment, tendo como alegação o discutível argumento de "pedaladas fiscais".

Intimamente imbricada a toda essa turbulência econômica e política do país esteve a Operação Lava-Jato, formalizada a partir de 2014 e com forte impacto tanto para a crise política quanto econômica. A Operação se mostrou nevrálgica para o desfecho visto em duas cadeias produtivas até então pujantes e interligadas da economia: a de petróleo e gás e a de construção civil.

Não é tarefa fácil estimar o impacto agregado da Operação Lava-Jato sobre a economia. Consultorias tais como GO Associados e Tendências, por exemplo, calculam algo em torno de 2 a 2,5% de contribuição nas retrações do PIB de 2015 e 2016 respectivamente, em função dos impactos nos setores metalomecânico, naval, construção civil e engenharia pesada cujas perdas podem totalizar até R$ 142 bilhões.

Os principais efeitos da crise se concentraram na indústria de construção civil, sofrendo com a paralisia resultante da retração aguda dos investimentos estatais pelos efeitos da Lava-Jato. Os indicadores são impressionantes: entre 2014 e 2017, o setor registrou saldo negativo entre contratações e demissões de 991.734 vagas formais (com preponderância na região Sudeste); entre 2014 e 2016, representou 1.115.223 dos 5.110.284 (ou 21,8%) da perda total de postos da população ocupada no período.

Quando analisamos as maiores empreiteiras, seu desmonte e descapitalização também são notórios. Os dados levantados pelo jornal “O Empreiteiro” mostram que somente entre 2015 e 2016, por exemplo, Queiroz Galvão, Andrade Gutierrez e Camargo Corrêa tiveram queda em suas receitas brutas de, respectivamente, 37%, 31% e 39%. A Odebrecht é o caso mais emblemático: a maior construtora nacional tinha, em 2014, um faturamento bruto de R$ 107 bilhões, com 168 mil funcionários e operações em 27 países. Já em 2017 – quase quatro anos após a eclosão do escândalo e seu presidente/herdeiro preso – seu faturamento era de R$ 82 bilhões, com 58 mil funcionários e atividades apenas em 14 países.

Outros gigantes do setor – Queiroz Galvão, OAS, Andrade Gutierrez e Camargo Corrêa – também tiveram um derretimento de seus ativos financeiros consolidados de uma ordem de R$ 25,77 bilhões em 2014 para aproximadamente R$ 8,041 bilhões em 2017 (perda de 68,6%).

Muitas empreiteiras, obrigadas a executarem planos de desinvestimentos para adequar-se ao novo cenário de menos projetos e obras, além de arcar com pesados acordos de leniência junto às autoridades, também se desfizeram de muitos ativos para grupos estrangeiros: Odebrecht inicia processo de venda da subsidiária Braskem, até então a maior firma petroquímica da América Latina produtora de biopolímeros com participação expressiva da Petrobras, ao grupo holandês LyondellBasell; Andrade Gutierrez vende seu controle sobre a Oi para acionistas holandeses e portugueses; Camargo Corrêa vende a CPFL para a chinesa State Grid.

No que tange ao setor de petróleo, o escândalo envolvendo o cartel montado entre a estatal e demais empresas se dá em meio a uma forte queda no preço da commodity afetando os resultados financeiros da Petrobrás, que apresentam prejuízos líquidos de R$ 26,6 bilhões no último trimestre de 2014 e de R$ 36,9 bilhões no último trimestre de 2015. A crise fez a empresa arrefecer seu volume de investimentos do montante aproximado de US$ 48,8 bilhões em 2013 para US$ 15,1 bilhões em 2017: uma retração de quase 70%.

As inversões da estatal caem de 1,97% do PIB em 2013 para 0,73% do PIB em 2017 e de 9,44% do volume total de investimentos para 4,69% no mesmo recorte. Dentro do próprio conjunto de investimentos públicos, o volume responsável pela Petrobras também caiu de 49,3% em 2013 para 36,5% em 2017. Essa retração aguda da atuação da empresa contribuiu para uma redução dos trabalhadores empregados formalmente no Sistema Petrobras de 86.108 para 68.829 entre 2013 e 2016, e de 360.180 para 117.555 entre os terceirizados no período equivalente. Ou seja, num intervalo de quatro anos a cadeia produtiva direta da empresa teve perda de quase 260 mil postos de trabalho formais e informais.

A crise no setor de petróleo em função do escândalo da Petrobras, somada à nova inclinação programática liberalizante do governo Temer, levou a uma reversão radical da política para o setor e venda maciça de refinarias e ativos da estatal. A Petrobras se desfez de 90% de seus ativos relativos a uma rede de dutos do Sudeste – Nova Transportadora Sudeste (NTS) – para o grupo canadense Brookfield e da rede de gasodutos e transportes nas regiões Norte e Nordeste – TAG – para o grupo francês Engie.

Em síntese, o segmento de petróleo e gás foi a ponta de lança do processo de desestruturação econômica e desmonte da engenharia e infraestrutura do Brasil, acentuando inclusive uma tendência grave de desnacionalização das atividades produtivas do país em curso desde o pós-Plano Real. A desestruturação desses dois setores – construção civil e petróleo e gás – contribuiu sobremaneira, por um lado, para o aprofundamento da crise econômica a partir de 2015, ao qual não nos recuperamos até momento; de outro, para a desestruturação de alguns dos poucos setores em que o capital nacional era forte e competitivo a nível internacional. Não é pouca coisa.

Sobre os autores

Luiz Fernando de Paula é professor do IE/UFRJ e Coordenador do Geep/Iesp/UERJ.

Rafael Moura é doutorando de Ciências Políticas do Iesp/UERJ.

27 de agosto de 2019

Copo vazio

Nem os maiores pessimistas conseguiriam prever o que estava por vir

Laura Carvalho

Folha de S.Paulo

A atividade econômica do Brasil iniciou o segundo trimestre com recuo em abril depois de terminar os três primeiros meses do ano com contração, pressionada principalmente pelas vendas varejistas e ratificando as preocupações com o crescimento, segundo o Banco Central. (Avener Prado/Folhapress)

Em dezembro de 2017, afirmei nesta Folha que a recuperação da economia brasileira seria a mais lenta de nossa história. Em um dos cenários que construí na ocasião —à época considerado demasiado pessimista—, o PIB (Produto Interno Bruto) que vigorava no primeiro trimestre de 2014 só voltaria a ser atingido em dezembro de 2021 –20 trimestres depois do fim da recessão.

Tal ritmo de recuperação já destoava muito do observado, por exemplo, na profunda recessão de 1981-83, quando o PIB pré-crise foi atingido em apenas sete trimestres, mesmo diante do grave quadro de descontrole inflacionário e crise da dívida externa. Destoava mais ainda do discurso assumido naquela época pela equipe econômica do governo Temer.

No livro "Valsa Brasileira: do Boom ao Caos Econômico" (ed. Todavia), que publiquei em maio de 2018, repeti a previsão. Com base na falta de motores de crescimento da demanda em um cenário marcado pelos altos níveis de desemprego, capacidade ociosa e endividamento privado, bem como por um teto cada vez mais restritivo de gastos públicos e uma já perceptível desaceleração global, concluí que estávamos mesmo diante de uma década perdida, de estagnação da renda per capita.

Mais de um ano depois, cabe um mea-culpa: tal como na esfera política, nem os maiores pessimistas conseguiriam prever o que estava por vir. Errei ao achar que o copo estava só meio vazio.

Para que seja uma década perdida em termos de PIB per capita, o que exige levar em conta as projeções de crescimento populacional, a economia brasileira teria que crescer 2,6% ao ano nos próximos cinco anos. Só assim recuperaríamos em dez anos, ou seja, no primeiro trimestre de 2024, a renda média do primeiro trimestre de 2014 —o início da recessão datado pelo Codace (Comitê de Datação de Ciclos Econômicos).

Para que seja uma década perdida em termos absolutos, ou seja, para que o nível pré-crise do PIB real seja atingido somente no primeiro trimestre de 2024, precisaríamos crescer 1,1% ao ano até lá. Parece pouco, mas, pelo andar da carruagem, não é. Afinal, se continuarmos crescendo ao ritmo observado desde 2017, o PIB real do primeiro trimestre de 2014 só será atingido em 2026. E o PIB per capita, só em 2040 e olhe lá.

Nenhum país deve conformar-se com esse tipo de trajetória, que dirá uma economia cuja renda per capita é 25,8% da norte americana. E o que é ainda mais grave para a maioria dos brasileiros: o baixíssimo crescimento observado no Brasil desde o início da crise tem sido apropriado pelo topo da distribuição de renda, como mostrou reportagem desta Folha baseada nos dados do World Inequality Database, e à custa de danos ambientais crescentes.

Estamos finalmente caminhando para um consenso de que a lentidão da atual recuperação deve-se a um problema de insuficiência de demanda, que vem sendo agravado pelo caráter pró-cíclico de nossas regras fiscais e pelas restrições crescentes impostas pelo "teto de gastos". Mas isso não basta.

Enquanto o governo continuar dobrando a aposta no diagnóstico de que os maiores entraves ao crescimento econômico são os custos com a mão de obra, os direitos do cidadão, a Constituição de 1988, as florestas, os índios ou, essencialmente, a democracia, as sucessivas frustrações com os números do PIB tornam-se um mal menor.

Sobre a autora

Professora da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP, autora de "Valsa Brasileira: do Boom ao Caos Econômico".

25 de agosto de 2019

Não há honra no fracasso

O falecido escritor socialista Mark Fisher sobre as maneiras pelas quais o neoliberalismo empoderou os trabalhadores, o fracasso da resposta da esquerda e o desafio de reconstruir a política de classe.

Mark Fisher

Tribune


Tradução / O realismo capitalista, resumindo brevemente, pode ser visto tanto como uma crença como uma atitude. É uma crença que o capitalismo seja o único sistema político ou econômico viável, e uma simples reafirmação da antiga máxima thatcherista: “Não há alternativa”.

Não se tratava necessariamente da ideia de que o capitalismo é um sistema particularmente bom: se tratava de persuadir as pessoas a acreditarem que ele o único sistema viável e a construção de uma alternativa é impossível. O descontentamento ser praticamente universal não muda o fato de que não parece haver alternativa viável ao capitalismo. Não muda a crença de que o capitalismo ainda possui todas as cartas na mesa e que não há nada que possamos fazer sobre isso.

O declínio dos sindicatos é provavelmente o maior fator na ascensão do realismo capitalista para os cidadãos comuns. Hoje nos encontramos em uma situação em que todos desprezam os banqueiros e o capitalismo financeiro, assim como o nível de controle que eles detêm sobre as nossas vidas. Todos estão horrorizados com a pilhagem, a evasão fiscal e assim por diante, mas ao mesmo tempo há esse sentimento de que não podemos fazer nada a respeito. E por que esse sentimento cresceu tão intensamente? É porque não há um agente mediador entre os sentimentos das pessoas e a capacidade de organização das mesmas. Consequentemente, mesmo que o descontentamento seja generalizado, sem esse agente ele permanecerá restrito ao nível individual.

Isso se converte facilmente em depressão, que é uma das histórias que tento contar no meu livro, Capitalismo Realista. Trato da associação entre pós-política, pós-ideologia, a ascensão do neoliberalismo e a ascensão conjunta da depressão, particularmente entre os jovens. Eu chamo esse processo de “privatização do estresse”.

Não quero pendurar tudo no declínio sindical — os sindicatos são apenas um exemplo de algo que foi retirado da infraestrutura psíquica e política da vida das pessoas nos últimos quarenta anos. No passado, se seu salário e condições de trabalho piorassem, você poderia ir a um sindicato e se organizar, enquanto que agora, se o estresse no trabalho aumentar, somos encorajados a enxergá-lo como um problema unicamente nosso, e a lidar com ele individualmente.

Temos que lidar com isso através de automedicação, antidepressivos, cada vez mais amplamente prescritos ou, se tivermos sorte, através de terapia. Mas essas preocupações — experienciadas agora como patologias psíquicas individuais — não têm raízes na química cerebral: residem no campo social mais amplo. Mas, como não há mais um agente, um mediador, para uma ação de classe coletiva, não há como abordar esse campo social mais amplo.

Outra maneira de chegar a essa história é através da reestruturação do capital no final dos anos 70 e início dos anos 80, com a chegada do pós-fordismo. Isso significava o uso crescente de condições precárias no trabalho, produção just-in-time e a temida palavra “flexibilidade”: precisamos nos curvar ao capital, não importa o que o capital queira; somos obrigados a nos curvar a ele. Por um lado, havia esse tipo de punição, mas também houve o aparecimento de incentivos nos anos 80: o neoliberalismo não apenas martelava os trabalhadores; também encorajou as pessoas a não se identificarem mais como trabalhadoras. Seu sucesso foi conseguir seduzir as pessoas para fora dessa identificação e para fora da consciência de classe.

A genialidade no cerne do thatcherismo pode ser encontrada na venda de moradias sociais no Reino Unido, porque, junto ao simples incentivo de possuir uma casa própria, havia a narrativa sobre o tempo e a história, na qual Margaret Thatcher e pessoas como ela estavam dispostas a tornar sua vida mais livre. Eles se opunham aos burocratas centralizadores e reacionários, que queriam controlar sua vida por você. Isso envolveu uma exploração muito bem-sucedida dos desejos que haviam crescido, principalmente desde os anos sessenta.

Parte do problema aqui foi a ausência de uma resposta de esquerda ao pós-fordismo — em vez disso, houve um apego ao conforto de velhos antagonismos, por assim dizer. Tínhamos internalizado a história de que havia um forte movimento trabalhista que dependia da unidade. Quais foram as condições para isso? Bem, tínhamos mão de obra fordista, a concentração de trabalhadores em espaços confinados, o domínio da força de trabalho industrial por trabalhadores do sexo masculino e etc.. O fim dessas condições ameaçou o movimento dos trabalhadores. Houve o surgimento de uma pluralidade de outras lutas, desmanchando o comprometimento do propósito comum que o movimento dos trabalhadores já possuía. Mas esse tipo de nostalgia pelo fordismo era na verdade perigoso — o fracasso não foi causado pelo fim do fordismo, mas pelo fato de não termos uma visão alternativa da modernidade para competir com o relato neoliberal.

Paralelamente às lutas trabalhistas dos anos oitenta, também havia lutas culturais. Ambas foram derrotadas, mas na época não era, de forma alguma, tão claro que seriam. Os anos oitenta foram uma época de pânico moral sobre os comitês da “esquerda lunática” e o Channel 4 (canal da TV aberta britânica) com seus esquerdistas politicamente corretos, que estavam assumindo, supostamente, a transmissão do canal.

Isso faz parte do que chamo de modernidade alternativa — uma alternativa à “modernidade” neoliberal, que na verdade é apenas um retorno ao século XIX de várias maneiras. A ideia difundida de que a cultura corrente é inerentemente cooptada e que nos afastarmos dela é tudo o que podemos fazer é profundamente falha. O mesmo se aplica à política parlamentar. Você não deve depositar todas as suas esperanças na política parlamentar, mas, ao mesmo tempo, se ela fosse inútil, você deveria perguntar por que o empresariado se esforça tanto para subjugar o legislativo aos seus interesses.

Não é que a política parlamentar alcance muito por si só — a lição objetiva do que acontece se você acredita nisso é o New Labour (Partido Trabalhista do Reino Unido sob Tony Blair). Poder sem hegemonia — efetivamente o que era o New Labour. Você não pode esperar conseguir qualquer coisa exclusivamente através da urna eleitoral. Mas é difícil enxergar como as lutas podem ter sucesso sem fazer parte de um conjunto. Temos que recuperar a ideia de que é necessário vencer a luta hegemônica na sociedade em diferentes frentes ao mesmo tempo.

Há muita tolerância ao fracasso no nosso lado. Se eu tiver que ouvir a citação de Samuel Beckett: “Tente de novo, erre de novo, erre melhor”, vou enlouquecer. Por que pensamos assim? Não há honra no fracasso, embora não haja vergonha se você tentou ter sucesso. Em vez desse slogan estúpido, devemos tentar aprender com nossos erros para ter sucesso na próxima vez. As probabilidades podem ser acumuladas de tal maneira que continuamos perdendo, mas o objetivo é aumentar nossa inteligência coletiva. Isso requer, se não uma estrutura de partidos do tipo antigo, pelo menos algum tipo de sistema de coordenação e algum sistema de memória. O capital já tem isso. Precisamos também dessa tática para podermos revidar.

K-Punk: The Collected and Unpublished Writings of Mark Fisher 2004-2016 foi publicado recentemente pela Repeater Books.

Sobre o autor

Mark Fisher escrevia o blog k-punk e escreveu Capitalist Realism (Zero, 2009), Ghosts of My Life (Zero, 2014) e The Weird and the Eerie (Repeater, 2017).

24 de agosto de 2019

O transporte público pode ser gratuito

Não colocamos moedas para acender as lâmpadas dos postes ou pagamos por minutos que passamos em parques públicos. Aqui vão algumas razões pelas quais nós podemos tornar tarifas de metrô e ônibus coisas do passado.

Wojciech Kębłowski

Kiyoshi Hijik / Getty Images

Tradução / Se fossemos acreditar nos peritos e profissionais do transporte, abolir tarifas para todos os passageiros é a última coisa que os operadores do transporte públicos deveriam fazer. Para Alan Flausch, um ex-CEO de uma empresa de transporte público de Bruxelas e atualmente Secretário Geral da Associação Internacional de Transporte Público, “em termos de mobilidade, o transporte público gratuito é absurdo”.

De acordo com Vicent Kauffmann, um professor da Universidade de Lausanne e uma das figuras chave em mobilidade sustentável, “transporte público gratuito não faz nenhum sentido”. Abandonar tickets nos transportes de massa é julgado “irracional”, “antieconômico” e “insustentável”.

Entretanto, se nos voltarmos para estudiosos de fora do campo dos transportes, a perspectiva da abolição da tarifa muda radicalmente. Cientistas sociais, ativistas, jornalistas e oficiais públicos – sempre falando a partir de cidades em que a abolição da tarifa tem sido de fato posta à prova – defendem fervorosamente a medida.

Para Judith Dellheim, pesquisadora da Fundação Rosa Luxemburgo em Berlim, promover acesso sem custos ao transporte público é o “primeiro passo em direção à transformação sócio-ecológica”. Para Michiel Van Hulten, um dos primeiros proponentes do transporte grátis na Europa, “trata-se de um retorno ao comum”. Já, de acordo com Naomi Klein, isso é precisamente o que as cidades ao redor do mundo deveriam estar fazendo – “para responder de verdade à urgência da mudança climática, o transporte público deveria se tornar gratuito”.

Experimentos em Tarifa Zero

Apesar da controvérsia que é aparentemente criada, o número de cidades realizando experimentos com transportes públicos com tarifa grátis (TPTG – fare-free public transport, FFPT, em inglês) cresce. Em 1980, havia apenas seis. Por volta dos anos 2000, o número cresceu para 56. Hoje, os TPTG existem em sua forma “plena” em no mínimo 98 cidades e municípios ao redor do mundo. A abolição total das tarifas significa que viagens a custo zero estão disponíveis para a grande maioria das rotas e serviços dos transportes públicos locais, para a maioria dos usuários, e na maior parte do tempo. Em outras centenas de cidades, tarifas são suspensas parcialmente – seja especificamente em áreas da cidade ou nos modos de transporte, ou em períodos específicos do dia ou do ano.

Nos Estados Unidos é onde o primeiro caso reportado de um sistema pleno de TPTG que ocorreu em 1992 na cidade de Commerce, nos subúrbios de Los Angeles e também onde a maioria dos programas TPTG pode ser encontrada ao longo dos anos 1970, 1980 e 1990. Naquela época, os proponentes da abolição da tarifa na América do Norte se basearam em argumentos políticos e sociais, apontando para os benefícios sociais previstos a partir das abolições de tarifas, reivindicando que zerar-las poderia ajudar a aumentar o uso do transporte público e conter o alto investimento em infraestrutura automobilística.

Os casos mais expressivos daquela época – hoje descontinuados – deram-se em Mercer County (Nova Jersey) e Denver (Colorado). Hoje, TPTG existem em 27 localidades dos Estados Unidos: pequenas áreas urbanas/rurais (por exemplo Edmund, Oklahoma; Kootenai Conty, Idaho); campus universitários (Chapel Hill, Carolina do Norte; Macomb, Illinois) e parques naturais e resorts turísticos (Crested Butte e Estes Park, ambos no Colorado).

O primeiro experimento europeu com abolição de tarifas começou em 1971 em Colomiers, nos subúrbios de Toulouse (França), e logo foi seguido por Roma e Bolonha. Provavelmente a caso histórico mais renomado de abolição de tarifas seja o de Hasselt, na Bélgica. Enfrentado problemas de intensa congestionamento, seu prefeito chegou a declarar que “não precisamos de novas estradas, precisamos de novas ideias”. Hasselt declinou de planos para a construção de um novo anel viário e, ao invés disso, aboliu as tarifas e reformou a rede de transporte coletivo, dando clara prioridade no transporte público. Aumentos em custos operacionais e mudanças no governo local levaram, em 2014, ao cancelamento da política de tarifa zero em Hasselt.

Desde os anos 2000, um enorme volume de sistemas de tarifa grátis emergiu na Europa, onde a grande parcela (56) dos casos mundiais de TPTG são encontrados. Um número particularmente alto delas encontram-se na Polônia (21, todas surgiram a partir de 2010) e França (20). Muitos municípios europeus justificam o TPTG como uma estratégia para reduzir o uso de carros (Avesta, Suécia, Belchatów, Polônia, por exemplo) e problema relacionados com a poluição e barulho de veículos (Tórshavn, Faroe Islands). Em muitas cidades, argumentos sócio-políticos são mobilizados: TPTG é concebido explicitamente como uma política social que busca ajudar grupos em desvantagem (como em Lubin, Polônia; Colomiers e Compiège, França), ou como uma tentativa de redefinir o transporte coletivo como um bem comum (Aubagne, França; Mlawa, Polônia).

A geografia da abolição de tarifas abarca, portanto, cidades de pequeno ou médio porte com menos de cem mil habitantes. A maioria raramente vira notícia – você alguma vez já ouviu sobre Kościerzyna ou Vitré, Hallstahammar ou Lugoj, Velenje ou Akureyri? Uma importante exceção é Tallinn, a capital da Estônia, que atualmente é a maior cidade (440 mil habitantes) a abrigar um programa de tickets grátis, provento um forte argumento de que TPTG podem funcionar em áreas urbanas amplas.

Contudo, peritos dos transportes ainda parecem convencidos de que a abolição de tarifas é irracional, sem sentido e irresponsável. Como entender o fato de que ainda assim exista em centenas de cidades ao redor do mundo? A seguir mostro o debate e ilustro alguns dos argumentos com exemplos de programas de TPTG que realmente existem em Tallinn (Estônia) e Aubagne (França). A escolha por essas cidades não é acidental; cada uma delas é importante no estudo dos TPTG. Aubagne, localizada nos subúrbios de Marseille, está entre os casos mais discutidos de abolição de tarifa na França e um importante centro de TPTG. Tallin, por sua vez, intitula-se como “a capital do transporte público gratuito”, e está ativamente fomentando essa política tanto doméstica quanto externamente.

Danoso e irracional?

Muitos acadêmicos e operadores de transporte discutem TPTG em termos de utilidade, eficiência e contribuição para o crescimento econômico (ou a falta dele). A ideia de abolir tarifas é criticada por ameaçar a estabilidade financeira da rede de transporte público. O acesso gratuito aos ônibus e bondes elimina a receita proveniente dos tickets ao passo que aumenta o custo de manutenção da segurança e passa a responder a uma demanda maior de passageiros. Como um funcionário do setor de transporte de Montpellier (França) explica, zerar as tarifas é uma política que “priva o transporte público das fontes essenciais para o seu desenvolvimento”. Além disso, de acordo com muitos engenheiros e economistas do transporte, o transporte público deveria funcionar como um agente auto-financiado ou agência voltada para o lucro sujeitado aos mecanismos de mercado.

Dessa forma, os TPTG são uma “falsa boa ideia” baseada na ilusão de que “existem bens ou serviços que não possuem custo”. Em outras palavras, reduzir o preço a zero supostamente desvaloriza o serviço tanto para os operadores quantos para os passageiros. Aparentemente, tarifas não são apenas uma fonte de receita econômica, mas também um mecanismo que controla o comportamento dos passageiros. Sem bilhetes, os passageiros fariam viagens que os engenheiros julgam marginais, “não produtivas” ou mesmo “inúteis”. Ou seja, a existência dos bilhetes é o que mantém a sanidade dos passageiros.

Contudo, alguns analistas apontam que a abolição de tarifas pode ajudar a diminuir os custos com equipamento e pessoas. Se livrar dos vários dispositivos e máquinas usados para vender, validar e controlar bilhetes, economiza dinheiro. Dinheiro algum precisa ser gasto com sistemas de gerenciamento seguro de dinheiro que incluem guichês, câmeras, retirada de dinheiro em carros fortes e serviços de depósito. Nenhuma comissão é paga pela venda de bilhetes a terceiros, bilhetes eletrônicos ou de papel, nem serviços de contabilidade.

Ao mesmo tempo, a perda de receita da venda de bilhetes geralmente constitui apenas uma parte do orçamento do transporte público. Isso significa que o custo real de manutenção e investimento em um sistema de transporte público de qualidade nunca é totalmente coberto por seus passageiros – o subsídio público possui um papel muito mais importante neste quesito.

Esses argumentos apoiam-se nas evidências a partir de Tallinn e Aubagne. Antes de Tallinn mudar para um sistema de tarifa grátis, apenas um terço do orçamento operacional de sua rede de transporte público era coberta por receitas das tarifas, enquanto os outros dois terços restantes eram providos por um subsídio municipal direto. Tarifas grátis são oferecidas apenas para residentes registrados da cidade.

Como resultado, entre maio de 2012 (sete meses antes da implementação do TPTG) e maio de 2016 o número de residentes de Tallinn aumentou de 415 mil para 440 mil, visivelmente atraídos pelo acesso a viagens gratuitas. Uma vez que os municípios estonianos tem o direito de coletar parte dos tributos das rendas pessoais de seus residentes, ganhar vinte e cinco mil novos residentes significou a geração de 40 milhões de euros de receita adicional por ano. Isso cobria amplamente o dinheiro perdido das tarifas (12,2 milhões) e investimentos feitos para responder ao aumento da demanda (11,7 milhões). Como resultado, ao invés de perder dinheiro, Tallinn ganhou 16,3 milhões de euros por ano.

Em Aubagne, a receita das tarifas era ainda menor (8,6% do orçamento operacional) e era comum que pessoas burlassem o pagamento (pulando a roleta). A mudança para o TPTG em parte habilitou as autoridades locais a aumentar o tributo dos transporte – uma taxa que os municípios franceses podem coletar de empresas locais com mais de 11 empregados. Seguindo a lei francesa, a taxa poderia ser aumentada de 1,05% para 1,8% uma vez que Aubagne estabelecesse o compromisso de construir uma linha exclusiva de bonde – um projeto que deveria ser visto como pré-requisito para a mudança para uma rede de tarifa zero, a qual, além de zerar as tarifas, destinaria-se a uma minuciosa redefinição e aprimoramento dos serviços de transporte público. A elevação dos tributos dos transportes aumentou a receita em 5,7 milhões de euros, que juntamente com a economia operacional (160 mil euros) cobria amplamente o custo da abolição da tarifa (1,57 milhões de euros).

Insustentável?

Outro argumento que diz respeito aos TPTG gira em torno da questão da sua capacidade de contribuir com uma mobilidade “sustentável”. Nessa perspectiva, o transporte é visto como um componente chave da “boa cidade”, que não é apenas economicamente forte, mas também socialmente coesa e diversa, amiga do meio ambiente, saudável e participativa. Para aumentar a “qualidade de vida” e “habitabilidade”, os proponentes da mobilidade sustentável focam no desafio de facilitar uma mudança de carros para transportes públicos e modelos “suaves” tais como andar de bicicleta e andar pelas ruas.

A partir dessa perspectiva, pesquisadores do transporte sustentável julgam que desincentivar o uso de carros – através de políticas de estacionamento, cobrança por congestionamento ou aumentando as taxas dos combustíveis – é mais efetivo em termos de regular a mobilidade dos carros do que abolir tarifas do transporte públicos. Entretanto, assume-se que os novos passageiros atraídos pelos TPTG são pedestres e ciclistas, mais do que motoristas de carro. Consequentemente, para muitos operadores do transporte público, reduzir o preço dos bilhetes a zero vai no sentido contrário dos esforços de aumentar a qualidade de seus serviços.

Nenhum dessas reivindicações parece válida quando olhamos os dados dos casos reais de TPTG. Primeiramente, a cada programa de abolição de tarifa parece gerar um aumento significativo no número de passageiros. Em Tallinn, ao longo de três anos de abolição da tarifa o número de passageiros aumento em 14%. No mesmo intervalo de tempo em Aubagne, cuja rede de transporte público vinha sendo claramente subutilizada, o número de passageiros subiu em incríveis 135,8%. Como pode tal aumento de passageiros – quer eles anteriormente usassem carros, bicicletas ou fossem pedestres – ser considerado um fenômeno negativo?

Apesar de não ser um dos objetivos nucleares dessa política, TPTG não obstante atraiu alguns usuários de carros para o transporte público. Em Tallinn, a parcela do transporte público aumentou 9% e o de carros diminuiu 3%. Em Aubagne, embora não existam informações precisas disponíveis, uma pequena mudança do transporte público tem sido observada nas pesquisas com passageiros: 20% dos novos passageiros que costumavam dirigir declaram ter abandonado seus carros justamente por causa das viagens grátis. Finalmente, enquanto em Tallinn, bem como em Aubagne, a qualidade do transporte público aumentou significativamente antes da abolição das tarifas, ela continuou a aumentar não apenas a despeito, mas precisamente por causa dos TPTG. Dispor viagens grátis para passageiros gerou um apoio político ainda mais forte para o desenvolvimento do transporte público, que em ambas as cidades coloca-se como o centro da agenda política.

Socialmente justo, politicamente transformador

O terceiro conjunto de argumentos no debate sobre os TPTG enxerga essa política não em termos de sua viabilidade econômica ou contribuição para um desenvolvimento sustentável, mas em termos de seu potencial para facilitar uma transformação política e social profunda e de longo prazo. O valor fundamental da abolição das tarifas repousa na simplificação da forma com que o transporte público é utilizado: qualquer um pode utilizar, a qualquer momento, independentemente da necessidade que alguém possa ter. O transporte público é, então, imaginado não como uma mercadoria, mas um “bem comum” – similar a tantos outros serviços públicos como assistência médica, educação, parques, estradas, calçadas, ciclovias, iluminação urbana, livrarias, escolas, creches, ou playgrounds.

Assim como no caso desses serviços, poderíamos imaginar o transporte público incorporando continuamente a gratuidade de cobranças, não importando se é necessário ou não em dado momento. Afinal de contas, você não tem que inserir moedas para acender individualmente um poste de luz no caminho de casa à noite, tampouco pagar por cada minuto em um estacionamento ou livraria.

Nesse sentido, os TPTG introduz uma lógica diferente na questão do transporte. Desloca o foco em lucro e gerenciamento de demanda, orientado pelo mercado. Desafiam diretamente o dogma do livre-mercado que “continua a vislumbrar o pagamento como forma de assegurar que a infraestrutura seja respeitada”.

Para algumas autoridades municipais, isso se encaixa em uma visão socialista de transporte como serviço público, acessível e barato. Para outros, isso expressa um princípio radical, anticapitalista de desmercantilização de bens comuns e serviços, e sinaliza uma transição de “clientes-passageiros” para “cidadãos”. Abolir as tarifas pode ser visto como uma maneira de desafiar o controle biopolítico sobre os passageiros exercido através de bilheteria e vigilância, as quais são frequentemente acompanhadas de estratégias de policiamento que focam especialmente em usuários sem documentos.

Finalmente, prover acesso incondicional ao transporte público tem sido celebrado por lidar diretamente com a questão da exclusão social, desigualdade e pobreza de transporte. Aumentar acessibilidade para passageiros com baixa renda significa criar um sistema de transporte socialmente mais justo. Uma rede de tarifa grátis “demonstra solidariedade com os fracos, com aqueles que não podem pagar um carro e dependem de transporte público, que são particularmente afetados por suas desvantagens”.

Esse efeito é cristalino em Tallinn. Promover o acesso incondicional ao transporte público resultou em um aumento do uso entre os desempregados (32%) e grupos de baixa renda (26% entre os residentes com rendimentos de menos de 300 euros por mês). Ônibus e bondinhos são usados mais intensamente por residentes em licença parental (21%) e pensionistas/aposentados (17%). Esse fenômeno é visível nos grupos de idades: entre os jovens (21% entre 15-19 anos) e os mais velhos (19% entre residentes entre 60-74 anos).

O uso de transporte público aumentou em conjuntos habitacionais pós-soviéticos, onde uma maior parcela dos falantes de russo de Tallinn vive, facilitando a integração para aquele grupo étnico. Ao mesmo tempo, o uso também cresceu nas vizinhanças de classe média, demonstrando que viagens grátis não são atraentes apenas para os pobres.

Está claro, contudo, que os TPTG “não resolveriam todos nossos problemas; ao invés disso, no melhor do casos, representaria o primeiro passo” rumo a uma transformação mais ampla nas relações de poder que moldam o transporte. Contra os peritos da mobilidade que julgam que os passageiros estão mais preocupados com questões de segurança, frequência, confiabilidade e disponibilidade de transporte, uma variedade de organizações e movimentos têm feito campanhas pela abolição da tarifa.

Um dos muitos exemplos é o Movimento Passe Livre que surgiu no Brasil durante protestos contra o aumento das passagens dos transportes em vários lugares do país em Junho de 2013. A questão do aumento do valor do preço dos bilhetes dos transportes públicos foi importante não apenas enquanto um sinal de STARK desigualdade entre urbanidades altamente definidas pelos carros e os pobres urbanos que não tem escolha para além do transporte público. TPTG também constituiu um RALLYING CRY contra a contínua mercantilização dos serviços públicos e a imposição de considerações puramente econômicas, “racional” e sustentável.

E sobre os trabalhadores?

Para somar a esse debate, a questão dos TPTG reflete na posição dos trabalhadores dos transportes. Como uma mudança para a tarifa grátis os afeta? Em muitas cidades, incluindo Tallinn e Aubagne, os TPTG tem sido aplaudido por motoristas na medida em que melhora suas condições de trabalho. Ainda que a jornada de trabalho e os salários tenham permanecido os mesmos, os motoristas não tem mais que vender ou monitorar bilhetes, o que costumava ser uma fonte considerável de stress.

A mudança para os TPTG também significa que os motoristas não têm mais que contar dinheiro no final do dia de trabalho. Em Aubagne, um motorista me disse que o TPTG “veio dos céus. Não tem mais stress… sobre pessoas que se esquivam da tarifa (no sentido de pular roleta), conferir os bilhetes… Com (TPTG) o motorista pode se manter focado em dirigir e receber os passageiros, e é isso”. A política “transformou o trabalho do motorista de ônibus, que agora possui apenas uma questão em mente: dirigir bem o ônibus”.

A mudança não tem sido inteiramente positiva para todos os trabalhadores. Em Tallinn, algo em torno de 70 de 80 controladores de bilhetes tornaram-se redundantes. Em Aubagne, fiscais de bilhetes tornaram-se responsáveis por manter a segurança a bordo dos ônibus, pois, inicialmente haviam preocupações generalizadas de que a abolição resultaria em vandalismo. Tão logo as questões de segurança foram tidas como minoritárias, fiscais foram em seguida dirigidos a cargos de supervisão dos motoristas – ao invés de monitorar passageiros, eles agora monitoram outros trabalhadores.

A diminuição do escopo de obrigações sob o TPTG não alterou, ou mesmo enfraqueceu, a posição dos motoristas no interior de suas respectivas agências de transporte. Em Tallinn, embora os motoristas possam filiar-se a sindicatos ligados a empresas, sua real capacidade de engajamento em barganhas coletivas continua a ser severamente limitada por um sistema no qual os bônus individuais no salário não são recompensados para aqueles empregados que levantam objeções à política da empresa. Como um motorista me contou, “com ou sem tarifas, existe um bônus fixo todo mês: se você dirige no horário, o bônus vem, mas se você faz uma queixa então o bônus pode ser reduzido”.

Em Aubagne, TPTG foi introduzido no contexto de mudança de um sistema de negócio familiar para uma rede privada comandada por uma filial local da Veolia, uma companhia francesa transnacional. Para um sindicalista local, existe uma “enorme contradição entre abolir tarifas e deixar uma companhia privada… administrá-las”. Embora Veolia tenha aderido e se ajustado ao TPTG, ela simultaneamente implementou uma série de medidas “racionalizantes” para o transporte público. Por exemplo, a pontualidade individual dos motoristas começou a ser medida por um sistema de GPS e a responsabilidade deles em gerir a companhia gradualmente foi minada. A introdução do TPTG complicou a situação deles mais do que os empoderou em suas lutas por filiar-se a sindicatos de suas próprias categorias e em ter uma voz no debate sobre a política da companhia.

Transporte não é (apenas) sobre transporte

A controvérsia criada pela questão da abolição das tarifas revela um problema mais amplo que diz respeito em como o transporte urbano é concebido e analisado. O debate sobre transporte parece ser dominado por narrativas técnicas e econômicas, enquanto dimensões explicitamente sociais e políticas da mobilidade são frequentemente escanteadas. No caso particular dos TPTG, aproximar-se dessa política como um mecanismo de transporte gera uma série de mitos e incompreensões que não são substanciadas pelas evidências dos casos de programas de TPTG realmente existentes. Embora presuma-se que a abolição de tarifas quebre o caixa, na realidade ela pode ajudar a gerar novas receitas, ao atrair novos residentes pagadores de impostos (Tallinn), ou aumentando os impostos locais (Aubagne).

Enquanto é atacada como uma medida que falha em tornar cidades mais sustentáveis e habitáveis, existe evidência de que viagens grátis são em alguma medida atraente para motoristas de carros e portanto ajudam a aumentar o uso de transporte público, o que por sua vez significa menos poluição do ar e menos barulho. A qualidade dos serviços de transporte grátis não é necessariamente pior do que transportes pagos – os TPTG podem agir como uma poderosa declaração simbólica de apoio político ao transporte coletivo.

Em outras palavras, política de transporte não são (apenas) sobre transporte. É quando olhamos para os TPTG como uma política urbana, mais do que uma política de transporte, que começamos a entender completamente suas ambições e impactos. Isso requer que a vejamos não em um vácuo de previsões e modelos matemáticos ou análise de fluxos de tráfego, mas no contexto de um lugar específico no qual é planejado e posto em prática – atravessado por relações de poder e lutas políticas, interagindo com seu contexto espacial e social, afetando as condições de trabalho de seus profissionais. Isso significa que, enquanto a política de abolição de tarifa de transportes públicos está obviamente relacionada com o campo do transporte, ela não pode ser compreendida isoladamente como uma política de transporte.

Sobre o autor

Wojciech Kębłowski é pesquisador de pós-doutorado na Université Libre de Bruxelles (IGEAT) e na Vrije Universiteit Brussels (COSMOPOLIS). Sua tese de doutorado recentemente defendida apresenta uma perspectiva crítica sobre o transporte público gratuito.

23 de agosto de 2019

Quem é Ayn Rand?

Um aumento no ativismo empresarial se juntou aos libertários e conservadores para inaugurar o domínio do neoliberalismo na eleição de Ronald Reagan na década de 1980. Uma peça-chave desse domínio: a filosofia de crueldade otimista de Ayn Rand, quase perfeita em sua imoralidade.

Lisa Duggan


Ayn Rand (Wikimedia Commons)

Segue abaixo um trecho de Mean Girl: Ayn Rand and the Culture of Greed (“Menina Malvada: Ayn Rand e a Cultura da Ganância”), de Lisa Duggan (University of California Press, 2019).

Tradução / “ARevolta de Atlas” (“Atlas Shrugged”) é a obra máxima de Ayn Rand. Publicado em 1957, depois de treze anos de esforços – às vezes torturantes, e muitas vezes movidos a anfetamina – o enorme romance de mais de mil páginas provocou respostas polarizadas que iluminavam os conflitos que moldaram o mundo político do pós-guerra.

Insultado pelos críticos tradicionais, adorado por um séquito que lhe reverencia e com um crescente público leitor em massa, o livro se tornou uma pedra de toque que continua a moldar a cultura política e popular até os dias atuais. No entanto, durante os anos de sua criação, a própria Rand era uma figura cada vez mais isolada às margens da vida intelectual nos EUA.

Nas décadas de 1930 e 40 na Califórnia e em Nova York, Rand se juntou à minoria relativamente pequena de defensores do capitalismo não-regulado na direita linha dura. Ela se opôs ativamente ao New Deal, especialmente por meio da campanha de Wendell Willkie à presidência dos EUA. Ela se uniu às atividades anti-sindicais em Hollywood e alimentou o fervor anticomunista em torno de seu testemunho perante o Comitê de Atividades Antiamericanas. Ela apresentava ataques de direita ao consenso político emergente do pós-guerra em favor de uma chamada economia mista – empresas capitalistas restringidas por regulação governamental, trabalhadores organizados e uma rede de segurança em expansão de apoio público aos necessitados.

O desconjuntado bando de agitadores pró capitalismo de “livre-mercado” de Ayn Rand obteve alguns sucessos. Eles apoiaram a Lei Taft-Hartley de 1947 que limitava os direitos sindicais e erodia as proteções que os trabalhadores organizados haviam conquistado sob a Lei Wagner de 1935. Eles promoveram investigações e listas negras. Porém, os proponentes do capitalismo de laissez-faire sentiam-se profundamente em apuros durante as décadas de 1950 e 1960.

O apoio à regulação do governo sobre as empresas, trabalhadores organizados e programas de bem-estar social, como a Previdência Social, já estava profundamente enraizado na época da vitória em 1952 do “moderado” Dwight Eisenhower sobre o senador de direita linha-dura Robert Taft (co-responsável pela Lei Taft-Hartley) para a nomeação presidencial republicana. Todavia, embora o capitalismo regulado decididamente ainda fosse capitalismo e o estado de bem-estar social não fosse um Estado socialista, Rand e seus colegas fanáticos se recusavam a fazer essa distinção.

Os “radicais pelo capitalismo” permaneceram uma distinta minoria durante os anos 1950, e constituíam um grupelho intratável. Os proprietários de empresas começaram a se organizar contra a regulação estatal e a sindicalização na década de 1930, estabelecendo instituições como a Fundação para Educação Econômica de Leonard Read e a reorganização do Fundo Volker por Harold Luhnow na década de 1940. Essas instituições forneceram apoio e espalharam as ideias dos economistas de livre-mercado da Escola Austríaca Ludwig von Mises e Friedrich Hayek.

O nascente movimento ‘libertário’ de direita acabou reivindicando esses economistas como fundadores, juntamente de três romancistas populares que publicaram textos-chave de não-ficção em 1943: Isabel Patterson, com seu “O Deus da Máquina”; Rose Wilder Lane, com “A Descoberta da Liberdade”; e Ayn Rand, com “A Nascente” (“The Fountainhead”). Porém, suas fileiras estavam repletas de rixas políticas em evolução e rixas pessoais – entre livre-mercadistas anti-Estado e soldados da Guerra Fria aliados ao Estado, entre ateus e tradicionalistas religiosos, entre defensores de um Estado mínimo e “anarquistas”.

Quando William F. Buckley fundou a revista National Review em 1955, ele almejava traçar um caminho para o poder para seus respeitáveis conservadores religiosos preferidos, contra os apoiadores do New Deal e os republicanos “moderados” como Eisenhower, mas também contra outros colegas da direita política mais linha dura – os anticomunistas fanáticos e defensores puristas do laissez-faire. Olhando para trás em seu “romance” parcialmente baseado em fatos reais, Getting It Right (“Entendendo Direito”), de 2003, ele pintou uma imagem presunçosa e triunfalista das principais vitórias da ala conservadora dominante, incluindo contra a direita marginal da John Birch Society e o grupo de Rand de verdadeiros fiéis do livre-mercado. Porém, esse resultado não poderia ter parecido inevitável durante os anos 1950.

No mínimo tão intratável quanto seus colegas ativistas pró-capitalismo, Ayn Rand progressivamente se retirou das disputas entre colegas na vida social intelectual durante os anos 1950. Enquanto trabalhava por longas horas em seu romance, ela se tornou cada vez mais dependente de um mundo social, cultural e intelectual construído para ela por seu principal acólito, Nathan Blumenthal. Filho de judeus canadenses russos, Blumenthal era 25 anos mais novo que Rand. Ele começou a ler e reler A Nascente com a idade de quatorze anos, memorizando seções inteiras.

Depois de se matricular na UCLA junto de sua namorada Barbara Weidman, ele recebeu uma resposta às suas cartas de fã e um convite para visitar Rand em sua mansão na Califórnia. Todos eles se mudaram para Nova York em 1951 – Ayn e Frank, Nathan e Barbara – e juntos criaram o pequeno círculo que se tornou a base para o movimento filosófico de Rand, o Objetivismo.

O pequeno e estranho grupo de seguidores de Rand tornou-se conhecido, com deliberada ironia, como “o Coletivo”, ou como “a Classe de 43” (ano de publicação de A Nascente). Dedicado a uma filosofia que enfatizava o ateísmo e que reduzia o valor dos laços puramente biológicos ou “étnicos” em favor de associações mais “racionais”, o Coletivo era composto quase inteiramente de parentes judeus russos e amigos de infância (e seus parceiros e cônjuges) de Blumenthal e Weidman .

Como os magnatas hollywoodianos que Rand deixou para trás na Califórnia, esses acólitos de Rand estavam em conflito de várias maneiras com suas famílias de origem, mas, mesmo assim, compartilhavam afinidades de formação e experiência que os atraíram para uma associação escolhida. Também como com o grupo de Hollywood, suas experiências e exclusão como “forasteiros” aguçaram suas idealizações da história e do comércio estadunidense.

No entanto, esses defensores de uma feroz independência individual se reuniam semanalmente para ler e elogiar o romance de Rand, capítulo por capítulo. Sua líder, que criou figuras heróicas de realizações masculinas e se descrevia como uma “adoradora de homens”, sustentava financeiramente um marido charmoso, passivo e elegantemente vestido que raramente falava nas reuniões do Coletivo e que trabalhava intermitentemente como florista e, posteriormente, como pintor. A feroz crente na integridade, honestidade e na inegável realidade objetiva que guiava e julgava os membros do Coletivo mantinha um segredo corrosivo que acabou destruindo o grupo: ela começou um caso com Nathan Blumenthal, que mudou seu nome para Nathaniel Branden e se casou com Barbara Weidman em 1953.

Quando A Revolta de Atlas fez sua aparição incendiária em 1957, rompeu o aparente consenso político em favor do Estado de Bem-Estar Social, revelando campos intensamente beligerantes. A imprensa tradicional, os principais acadêmicos e figuras literárias proeminentes não apenas repudiaram o tomo; eles o acharam abominável. A própria Rand indicou a Nathaniel Branden a sua previsão de que seu romance “será o livro mais controverso deste século; serei odiada, vilipendiada, caluniada, difamada de todas as maneiras possíveis.” Apesar de sua característica grandiosidade, ela foi presciente.

A Revolta de Atlas foi descrito como uma “palhaçada execrável”, “excentricidade grotesca” e uma “diatribe estridente” comparável em sua crueldade exagerada, sem Deus e sem coração, ao fascismo de flexão nietzschiana. Granville Hicks, um crítico literário e ex-comunista, mas ainda de esquerda, opinou no New York Times: “o livro uiva no ouvido do leitor e espanca sua cabeça para prender sua atenção. E então, quando o tem dominado, arenga com ele por páginas e mais páginas. Possui apenas dois climas, o melodramático e o didático, e em ambos o livro não conhece limites. ”

Mas a resenha mais notoriamente devastadora veio da National Review de William Buckley. Ecoando as opiniões de muitos conservadores religiosos, outro ex-comunista criticou Rand por seu ateísmo e sua falta de caridade e compaixão. Em “A Grande Irmã Está te Observando”, Whittaker Chambers escreveu que A Revolta de Atlas coloca “o Sinal do Dólar, no lugar do Sinal da Cruz”, apresentando o “Homem Randiano” que, como o “Homem Marxiano”, está no “o centro de um mundo sem Deus.”

Continuava Chambers: “em uma vida inteira de leitura, não consigo me recordar de nenhum outro livro em que um tom de arrogância dominante tenha sido sustentado de forma tão implacável. Sua estridência é ininterrupta; seu dogmatismo, inapelável [...] De quase qualquer página de A Revolta de Atlas, pode-se ouvir uma voz em dolorosa necessidade, ordenando: ‘Para uma câmara de gás – vai!’ ”

Essas críticas excessivamente negativas combinavam uma amarga rejeição à filosofia de Ayn Rand, tanto pela direita quanto pela esquerda, com ataques à crueza do estilo de escrita e ao tom ou à pura maldade do romance. De encontro a elas veio um número muito menor de críticas positivas e avaliações privadas igualmente exageradas, considerando A Revolta de Atlas “vibrante e poderoso” e Rand uma escritora de um “virtuosismo deslumbrante”.

A economista Ruth Alexander, amiga de Rand, previu que “Ayn Rand está destinada a ser considerada pela História como a romancista notável e a mais profunda filósofa do século XX”. Uma nota particular para a autora enviada pelo famoso economista de direita Ludwig von Mises elogiou o livro como uma realização política:

A Revolta de Atlas não é apenas um romance [...] É também – ou posso dizer: antes de tudo – uma análise convincente dos males que assolam nossa sociedade, uma bem-fundamentada rejeição da ideologia de nossos autodenominados “intelectuais” e um impiedoso desmascaramento da falta de sinceridade das políticas adotadas por nossos governos e partidos políticos. É uma exposição devastadora dos “canibais morais”, dos “gigolôs da ciência” e da “tagarelice acadêmica” dos criadores da “revolução anti-industrial”.

A revista Time resumiu a recepção geral do livro perguntando: “É um romance? É um pesadelo?”

Apesar das críticas esmagadoramente negativas na grande imprensa, A Revolta de Atlas rapidamente se tornou um campeão de vendas no boca a boca, gerando milhares de cartas de fãs que transbordavam seu entusiasmo. Embora nunca tenha sido considerado sério pelos guardiões culturais, o romance tornou-se inegavelmente importante, social e politicamente, às vezes sendo comparado a A Cabana do Tio Tom, E o Vento Levou e 1984.

Como pode um romance de mais de mil páginas, apresentando personagens cartunescos movendo-se por uma trama melodramática salpicada de longos discursos didáticos, atrair tantos leitores e tanta atenção? Claramente, as fantasias que animam o romance tocaram em algo profundo, ressoando de maneira ampla, iluminando e dando forma a fissuras culturais a partir de um emergente ponto de vista capitalista secular ou “libertário” de direita linha dura.

O enredo de A Revolta de Atlas é basicamente uma fábula moral que inverte as premissas morais do socialismo do início do século XX e do liberalismo de Estado de Bem-Estar Social de meados do século. O romance representa os “produtores”, que são os proprietários e dirigem o capitalismo industrial, como heróis sensuais, lindos, brilhantes e totalmente admiráveis, em contraste com os sanguessugas, parasitas e bandidos apoiados pelo Estado, todos burocráticos, flácidos, pouco atraentes, incompetentes e improdutivos.

Originalmente intitulado “The Strike” (“A Greve”), o romance descreve o impacto sobre o mundo quando os produtores – os criadores e inovadores da indústria, ciência e vida intelectual – ao invés dos trabalhadores sindicalizados – decidem cruzar os braços. O “motor do mundo” progressivamente entra em colapso, até que as luzes literalmente se apagam na cidade de Nova York, em uma cena de caos desesperador. Os produtores se retiraram para a “Ravina” (“Gulch”), o enclave secreto do herói John Galt, planejando retornar assim que o mundo desmoronasse sem eles.

Esta quadro geral para o enredo é estruturada no tempo e no espaço com referência a noções de progresso civilizacional, excepcionalismo americano, uma versão do século XIX de capitalismo industrial idealizado, uma hierarquia de habilidades e capacidades, e uma narrativa do impacto destrutivo e regressivo de “coletivismo”, tanto social quanto familiar.

O tema civilizacional ecoa aquele que dava forma a Anthem, um romance anterior de Rand. O mundo contemporâneo dos EUA, o cenário de A Revolta de Atlas, havia caído fortemente sob a influência da regulação governamental coletivista. O resultado fora uma regressão civilizacional, um retrocesso para modos de vida mais “selvagens”, “tribais”, “primitivos” ou “asiáticos”.

Isso era especialmente trágico para os EUA, o único país nascido em verdadeira liberdade, a partir da visão dos Pais Fundadores à apoteose do capitalismo existente até então – a forma do século XIX de crescimento industrial dinâmico supostamente individualista, empresarial e relativamente desregulado. A queda desse período de graça política e econômica começa com os primeiros sucessos do socialismo, na revolução bolchevique, e gera a estagnação e regressão civilizacional por meio da economia mista do Estado de Bem-Estar Social.

A utopia nos bastidores à espera de seu momento de subir ao palco, a Ravina de Galt, é apresentada como uma estranha dobra do espaço-tempo. A vida na Ravina, que está localizada no Colorado, aparece principalmente como uma versão idealizada do oeste americano. Os produtores ganham a vida como fazendeiros, padeiros, mecânicos e assim por diante – proprietários de pequenos negócios com valores simples de honestidade e autossuficiência – sem escritórios corporativos ou times de advogados corporativos à vista. Mas invenções de alta tecnologia também estão em operação por lá, como indicadores das inovações criativas com as quais os produtores contribuem.

Enquanto isso, não há sinal de uma população indígena. A pureza e a nobreza do cenário do Oeste estadunidense dependem do apagamento das histórias de violência de império, escravidão e do colonialismo colonizador que trouxeram esses europeus a esse cenário. O capitalismo praticado na Ravina também está livre de qualquer exploração de mão de obra que possa ser detectável e quase livre de qualquer traço de trabalho reprodutivo ou de vida familiar. Pouquíssimas mulheres sequer estão presentes lá. Uma padeira sem nome é descrita como mãe por opção, e apenas uma mulher possui um nome – Kay Ludlow, uma atriz glamorosa.

Os personagens, nitidamente divididos entre bem e mal, servem para ilustrar várias dimensões de impotência e declínio, e as possibilidades de regeneração, à espera na Ravina de Galt. A bela e brilhante Dagny Taggart, a heroína central da história, dirige a Taggart Transcontinental sob a autoridade incompetente de seu irmão James, que entra em conluios e conspirações com funcionários do governo para compensar suas próprias inadequações.

O enredo do romance gira em torno dos três casos dela: com o elegante Francisco d’Anconia, um magnata do cobre; com o robusto inovador Henry (Hank) Rearden, um fabricante de aço; e com sua visão da perfeição masculina, John Galt, o misterioso engenheiro que lidera a greve do título original. A maior parte da trama segue a educação de Dagny e Hank enquanto eles aprendem as lições morais da razão e do individualismo e a necessidade de rejeitar de maneira decisiva os desvios do altruísmo e do coletivismo.

Seguindo com a narrativa, o leitor torna-se testemunha de destruição e miséria em grande escala, com colisões, explosões e fracassos técnicos e econômicos se empilhando, enquanto os produtores abandonam seus papéis no mundo.

Atravessados por desastres, os Estados Unidos se assemelham à visão de Rand sobre a Rússia durante a década de 1920, da Crimeia a Petrogrado: os bolcheviques e seus colaboradores em “Nós, os Vivos” e os burocratas e vendidos de A Revolta de Atlas são parentes próximos. À medida que Dagny e Hank aprendem que eles só vão contribuir para o mal do coletivismo se não se retirarem para a Ravina, o leitor é levado a acolher a destruição como merecida.

Os produtores são criados pela autora como veículos de admiração e aspiração, a partir de uma identificação exaltada com a perfeição moral, mental e física. Os sanguessugas e saqueadores são oferecidos como alvos de desprezo, ressentimento e, finalmente, indiferença ao seu merecido destino.

Rand apimenta o romance com discursos verborrágicos, introduções didáticas à sua filosofia. Os momentos pedagógicos centrais incluem discursos sobre o significado do dinheiro, o impacto desastroso da economia coletivista, 60 páginas do roteiro para um discurso de John Galt no rádio delineando sua filosofia e um surpreendente discurso sobre a moralidade do sexo – tudo planejado para colocar de cabeça para baixo as compreensões comuns.

O discurso de Francisco d’Anconia sobre o dinheiro inverte a máxima comum de que “o dinheiro é a raiz de todo o mal” para defender que o dinheiro é a raiz de todo o bem. O dinheiro, quando devidamente alinhado com o padrão ouro, é o meio de armazenar “valor” negociável em um mundo de livre comércio e livres mercados. Sem ele, há apenas uma arma com o tambor vazio.

Outro discurso ataca a máxima marxista “de cada um conforme sua capacidade, a cada um conforme sua necessidade”. O narrador, contando a história da ascensão e queda da Twentieth Century Motor Company, descreve os incentivos perversos que destroem por completo a companhia quando ela se torna uma empresa cooperativa – os trabalhadores minimizam suas habilidades e maximizam suas necessidades declaradas, com todos se tornando fingidores coniventes, e tudo desmorona:

Os indolentes e irresponsáveis tiveram um dia de campo. Eles alimentaram bebês, criaram problemas para as meninas, trouxeram cada parentes inútil que tinham de todo o país, todas as irmãs solteiras e grávidas, para receberem um “subsídio de invalidez” extra, eles pegaram mais doenças do que qualquer médico poderia desaprovar, eles arruinaram seus roupas, móveis, casas – que diabos, “a família” estava pagando por isso!

Rand levou quase dois anos para escrever as 60 páginas do roteiro de rádio de John Galt. Em um tom de autoridade e suprema confiança, repleto de detalhes repetitivos aparentemente intermináveis, apresenta suas elaborações lógicas desde sua interpretação da filosofia de Aristóteles, passando pelo valor supremo da razão, a moralidade do individualismo e a superioridade do capitalismo.

As lições para o aluno/leitor são: a razão é superior ao misticismo/religião; o egoísmo é uma moralidade mais verdadeira do que o altruísmo; e o individualismo leva para cima e para frente via capitalismo, enquanto o coletivismo leva para baixo e de volta à barbárie socialista.

Quando seu editor na Random House, Bennett Cerf, pediu que ela cortasse o discurso, ela respondeu notoriamente: “Você podaria a Bíblia?”

Como apontaram as resenhas, A Revolta de Atlas não é sutil. É pesado, intimidante, implacável, mas também é iconoclasta, às vezes surpreendente e ocasionalmente até engraçado.

Enquanto que a maioria dos pontos políticos repetidamente martelados sobre os leitores ao longo do romance são variações em torno de temas familiares na política de “livre mercado” de direita do século XX, Rand de fato se desvia de forma dramática do caminho seguro nas questões de Deus e sexo. Seu ateísmo inflexível acabou alienando muitos fãs entusiastas conservadores. Seu tratamento do sexo foi surpreendente e confuso para muitos leitores, embora sem dúvida agradável e encorajador para alguns outros.

O discurso de Francisco d’Anconia sobre a moralidade do sexo, proferido em conversa com Hank Rearden, defende o valor positivo da alegria sexual (presumivelmente heterosexual). O desejo sexual, insiste ele, reflete os valores humanos mais elevados. D’Anconia ilumina Rearden, que é casado com uma mulher que o espanca com culpa e obrigações, expondo a visão de que seu desejo adúltero por Dagny, o tipo “mais elevado” de mulher, reflete a regra adequada da razão nas questões sexuais.

Os sucessivos casos amorosos de Dagny com d’Anconia, Rearden e Galt são apresentados como nobres e emocionantes. E no modo fantasia do romance, nenhum desses homens fica ressentido ou antagônico enquanto ela passa de um para o outro. As relações entre eles, todos produtores, são impregnadas de uma homoerótica admiração mútua, enaunto todos entendem perfeitamente que os outros irão, é claro, desejar Dagny.

A ficção de Rand está repleta de triângulos e quadriláteros românticos, com adultério e divórcio, com laços homoeróticos entre os múltiplos amantes de uma heroína (embora o homoerotismo entre mulheres seja inimaginável no universo ficcional randiano). Não há controle de natalidade ou aborto; há poucas crianças e virtualmente nenhum trabalho doméstico. As cenas de sexo apresentam conquistas e lutas físicas erotizadas enquanto mulheres poderosas se submetem a homens dominadores.

Mas eles não se apegam, não sentem dependência e nem importunam uns aos outros – apenas os fracos e as esposas fazem isso. E os romances enfaticamente não terminam em casamento. São fantasias para a Nova Mulher, que mantém o olhar em várias direções. A liberdade criativa e profissional em torno de suas aspirações, circunscrita no interior de um contexto de submissão sexual extática e consensual a homens heróicos está disponível para a produtora solteira e superior. Todas as outras mulheres são parasitas irritantes ou primitivas famintas e incompetentes.

Como A Nascente reflete a opinião de Rand sobre a Hollywood das décadas de 1920 e 30, A Revolta de Atlas constitui sua declaração contra o New Deal e o Estado de Bem-Estar Social emergente dos anos 40 e 50. Suas habilidades satíricas e lampejos de humor aparecem principalmente em seus retratos de burocratas estatais com nomes como Wesley Mouch (em inglês, próximo de “Wesley Vadio”, “Wesley Desonesto” e “Wesley Glutão”), que promovem leis ridículas como a Lei Anti-Cachorro-Que-Come-Cachorro (“Anti-Dog-Eat-Dog Bill”), enquanto conspiram pelo poder como clássicos vilões de histórias em quadrinhos.

Os executivos das corporações que colaboram com os burocratas são igualmente maus – incompetentes e ressentidos com as capacidades dos outros. Incluídos entre estes estão as famílias de titãs heróicos como Hank Rearden e Dagny Taggart; mães, irmãos e esposas funcionam como fardos e barreiras.

Junto de estudos acadêmicos como “A Multidão Solitária” (1950) de David Riesman, Nathan Glazer e Reuel Denney e “O Homem Organizacional” (1956) de William Whyte, e ficções como o romance de Sloan Wilson “O homem no Terno de Flanela Cinza” (1955), A Revolta de Atlas criticava os gerentes “orientados aos outros” do capitalismo corporativo de meados do século XX e do Estado de Bem-Estar Social regulatório. Entretanto, ao invés de uma descrição e análise complexas, o romance fornece uma paisagem dramaticamente moralizada que valoriza o individualismo inflexível acima de todos os valores cooperativos ou colaborativos, no trabalho ou em casa.

Esse cenário repeliu muitos críticos, mas, com a alternância entre representações amargas e outras hilárias, também expressava frustrações amplamente compartilhadas sobre a entorpecente e restritiva cultura burocrática corporativa e os paralelos nas restrições familiares.

No geral, A Revolta de Atlas conclamava as tropas do capitalismo de laissez-faire contra os socialistas, liberais e conservadores religiosos. Contudo, de maneiras complicadas e contraditórias, também possuía um apelo que atravessava muitas outras linhas de batalha.

Como observou Judith Wilt, a devoção altruísta às necessidades dos outros e as obrigações vinculantes para com a família, que Rand atacava e satirizava de maneira tão vigorosa, eram valores aplicados com uma força especial nas vidas das mulheres. Colocando todos os outros principais temas entre parênteses, o romance pode ser lido como um ataque furioso à feminilidade normativa.

As relações homoeróticas entre os heróis geraram numerosas apropriações lgbtq+ no estilo “fanfic” que muitas vezes ignoram ou revisam o quadro político mais amplo do romance. E como argumenta Melissa Jane Hardie, as caracterizações fortemente dramáticas, altamente estilizadas e de um moralismo melodramático se oferecem a leituras de campo que invertem os significados preferidos de Rand.

Após a publicação do romance em 1957, as expectativas estelares de Rand foram esmagadas. Para uma filósofa que valorizava a independência em relação à aprovação dos outros, ela reagiu horrivelmente à escassez de defensores proeminentes.

“John Galt não se sentiria assim”, queixou-se ela aos Branden enquanto sua depressão se aprofundava – provavelmente também alimentada pela abstinência das anfetaminas. Por anos ela permaneceu reclusa e amarga enquanto Nathaniel e Barbara Branden assumiam a propagação da sua fé.

Baseando-se nas correspondências de fãs de Rand para obter endereços, Nathaniel Branden montou uma lista de correspondência para anunciar uma nova série de palestras, “Os Princípios Básicos do Objetivismo”, em 1958. Essa primeira série teve sucesso o suficiente para ser repetida duas vezes ao ano, enquanto novas séries eram acrescentadas: Barbara Branden, sobre os princípios do pensamento eficiente; o economista e membro d’O Coletivo Alan Greenspan, sobre a economia de uma sociedade livre; a própria Ayn Rand sobre a escrita de ficção realista e romântica; e uma segunda série da qual Nathaniel Branden logo se arrependeria, “O Princípios do Amor Romântico.”

Essa série de palestras acabou gerando o Instituto Nathaniel Branden em 1961, um empreendimento educacional completo que oferecia fitas das palestras, com postos avançados nas principais cidades estadunidenses, da Filadélfia a Chicago, passando por Los Angeles. Enquanto isso, o centro de Nova York se expandia para um mundo social variegado que oferecia times esportivos, clubes de cinema e de leituras e um baile anual.

O Boletim Objetivista (“Objectivist Newsletter”) começou a circular em 1962, mesmo ano em que Nathaniel e Barbara Branden publicaram um pequeno volume biográfico e filosófico projetado para espalhar a palavra, “Quem é Ayn Rand?” Durante os anos de reclusão deprimida de Rand, os Brandens transformaram a agora muito famosa romancista na nascente de um movimento organizado que contava com 3.500 alunos registrados em 50 cidades em seu pico, em 1967.

As palestras e o Boletim Objetivista inicialmente impulsionaram a reputação de Rand, mas logo começaram a circular rumores sobre um rígido e autoritário culto à personalidade no Instituto e no Coletivo, o centro do Objetivismo organizado.

Em 1961, a revista Newsweek comparou Rand à evangelista Aimee Semple McPherson em seu poder de “hipnotizar uma audiência ao vivo”, e a revista Saturday Evening Post publicou um perfil intitulado “O Curioso Culto de Ayn Rand“. Essas notícias relatavam como os alunos do Instituto eram obrigados não só a ler A Revolta de Atlas, mas também a afirmar sua concordância com o discurso de John Galt.

O autoproclamado libertário (de direita) e anarquista Murray Rothbard se aproximou e se afastou de Rand mais de uma vez, mais tarde descreveu “o culto de Ayn Rand” em seu estilo de prosa floreada usual como sendo comparável aos cultos de Hitler, Mussolini, Trotsky e Mao. O psicólogo Albert Ellis, fundador da terapia racional-emotiva-comportamental, chamou o Objetivismo de religião e diagnosticou Rand como uma narcisista maníaco-depressiva e um “bebezão do caralho”. Rand parecia ser capaz de trazer à tona o cabeça quente no interior desses devotos da razão.

Nathaniel Branden mais tarde admitiu seu papel central na criação de uma atmosfera de julgamento em que a aderência aos pontos de vista de Rand era forçada por meio de inquisições e expurgos. Em seu livro de memórias lançado em 1986, Judgment Day: My Years with Ayn Rand (“Dia do Julgamento: Meus Anos com Ayn Rand”), ele listou as premissas transmitidas aos alunos do Instituto durante a década de 1960:

  • Ayn Rand é o maior ser humano que já viveu.
  • A Revolta de Atlas é a maior realização humana na história mundial.
  • Ayn Rand, em virtude da sua genialidade filosófica, é o árbitro supremo em qualquer questão relativa ao que é racional, moral ou apropriado para a vida do homem na terra.
  • Uma vez que alguém conheça Ayn Rand e sua obra, a medida de sua virtude está intrinsecamente ligada à posição quea pessoa assume em relação a ela e sua obra.
  • Ninguém que não admire aquilo que Ayn Rand admira e não condene aquilo que Ayn Rand condena pode ser um bom Objetivista. Ninguém que discorde de Ayn Rand em qualquer questão fundamental pode ser um indivíduo totalmente consistente.
  • Como Ayn ​​Rand designou Nathaniel Branden como seu “herdeiro intelectual” e repetidamente o proclamou um expoente ideal de sua filosofia, ele deve receber apenas um pouco menos de reverência do que a própria Ayn Rand.
  • É melhor não dizer a maioria dessas coisas explicitamente (exceto, talvez, os dois primeiros itens). Deve-se sempre sustentar que se chega às próprias crenças unicamente por meio da razão.

No entanto, conforme ela emergia das profundezas de sua depressão pós-Atlas, Rand também começou a desenvolver um papel público para além dos círculos do Coletivo, do Instituto e dos Objetivistas. Ela deu a palestra “Fé e Força: Os Destruidores do Mundo Moderno” em Yale, Princeton, Columbia e Brooklyn College durante 1960 e começou a aparecer anualmente no Ford Hall Forum na Northeastern University em Boston – um evento em abril frequentemente chamado de “A Páscoa Objetivista.”

O primeiro de muitos clubes universitários Ayn Rand foi formado no Brooklyn College quando ela desenvolveu uma reputação como uma oradora provocativa e um ícone de direita, trajando uma capa, um alfinete de cifrão e portando sua piteira. Suas palestras nos campi universitários eram populares e lotadas, mas ela ganhou seu maior público por meio de uma entrevista com Mike Wallace transmitida em 1959 e três aparições no The Tonight Show com Johnny Carson em 1967 – diante de uma audiência de 50 milhões de telespectadores.

As aparições de Rand na televisão eram seguidas de recordes em correspondência, quase todas positivas. Isso surpreendeu pelo menos um produtor do programa de Mike Wallace, que observou que outras mídias a tratavam como uma “leprosa” e “o Anticristo”. A respeitosa entrevista de 1964 feita por Alvin Toffler para a revista Playboy também expôs Rand e sua filosofia para um público mainstream, contribuindo para sua reputação altamente polarizada como sábia ou maluca.

Rand atraia o público nas faculdades e na televisão com seus ataques incisivos ao altruísmo e à religião e com suas defesas apaixonadas do capitalismo não regulamentado, ambos os quais iam contra a opinião popular durante o início dos anos 1960. Mas ela também tinha apelo para muitos com sua oposição à Guerra do Vietnã, e ao projeto de lei de proibição do aborto – posições que muitas vezes surpreendiam seus interlocutores.

Ela se desviava substancialmente não só do liberalismo de consenso e da política da Nova Esquerda emergente, mas também do conservadorismo dominante com as tendências menos familiares do libertarismo de direita em seus argumentos.

Conforme Ayn Rand lentamente se movia das margens em direção ao centro da visibilidade na mídia dominante, ela era carregada junto da maré crescente da defesa do capitalismo de laissez-faire.

A campanha de Barry Goldwater para a presidência dos EUA em 1964 contra Lyndon Baines Johnson serviu como uma espécie de teste. Seu livro de 1960, “A Consciência de um Conservador”, introduziu a um público conservador mais amplo o pensamento dos economistas de laissez-faire Ludwig von Mises e Friedrich Hayek e, em 1963 ele já atraíra o apoio de um grupo de forasteiros em relação à política eleitoral – incluindo os conselheiros Milton Friedman e William F. Buckley -, o que o elevou à indicação pelo Partido Republicano.

Ayn Rand, que havia criticado John F. Kennedy como um “beatnik de classe alta ”, teve o prazer de declarar seu apoio a Goldwater e manteve correspondência com ele, embora no final tenha ficado desapontada com suas inconsistências, especialmente, por sua abordagem religiosa. Sua derrota esmagadora expôs os limites das incursões dos ativistas empresariais anti-sindicatos e anti-Estado de Bem-Estar Social, que eram seus principais apoiadores. Contudo, sua campanha lançou as bases para décadas de avanços de maior sucesso, à medida que os apoiadores do liberalismo militante ganharam terreno significativo nas duas décadas seguintes.

A contraditória reputação pública de Rand, baseada em sua imagem tanto como líder de uma seita quanto como oradora pública popular, explodiu e desabou em 1968. Ela nunca se recuperou de verdade, pessoal ou publicamente.

As razões foram mantidas em segredo. Os círculos Objetivistas e o público em geral sabiam apenas que Rand cortou seus laços com os Brandens, que o Instituto se dissolveu e que o objetivismo se fragmentou e entrou em declínio. Em maio de 1968, Rand publicou um vago ataque a seus associados no Boletim Objetivista intitulado “A Quem Possa Interessar” (“To Whom It May Concern”), alegando imoralidades pessoais não especificadas e impropriedades financeiras (totalmente inventadas).

Os Brandens se apossaram da lista de endereços e enviaram uma resposta igualmente vaga em uma carta aos assinantes, “Em Resposta a Ayn Rand”. A confusão reinava, mas uma coisa parecia clara: a emoção havia derrubado a casa da razão.

Os detalhes surgiram com os livros escritos por cada um dos Branden, um em 1986 – “The Passion of Ayn Rand” (“A Paixão de Ayn Rand”), de Barbara Branden (transformado em filme em 1999, estrelado por Helen Mirren no papel-título) – e o outro em 1989 – “Judgment Day: My Years with Ayn Rand” (“O Dia do Julgamento: Meus Anos Com Ayn Rand”), de Nathaniel Branden. Os Brandens forneceram versões um tanto diferentes da sórdida história sobre o caso de Rand com Nathaniel, levado a cabo com a permissão de ambos os cônjuges, e seu final, diante da revelação do relacionamento secreto de quatro anos de Nathaniel com uma terceira mulher, a atriz e estudante Objetivista Patrecia Scott (nascida Gullison, e que adotou o nome profissional Wynand).

Embora Rand tivesse se mantido celibatária durante sua depressão, e Branden tivesse resistido por anos a reiniciar seu caso após o seu renascimento, a revelação do caso dele com Scott fez Rand passar de uma fúria capaz de incendiar a terra para a desolação pessoal. Para ela, Nathaniel provou ser uma fraude e um fracasso como Objetivista, não apenas por causa de suas mentiras, mas por causa de sua escolha de um “valor inferior” em sua vida sexual.

Todo o edifício da filosofia sexual romântica idealizada de Ayn Rand desabou quando o homem que ela chamara de gênio e herói, seu herdeiro ungido, a rejeitou e mentiu para ela sobre sua vida sexual. Não havia espaço para tal fraqueza e falha em sua filosofia. Ela acusou Branden de ter lhe tomado “esta Terra”. Barbara Branden resumiu de maneira simples: “Ayn quer você morto”.

Embora devastada e diminuída, Ayn Rand não desapareceu das vistas do público. Durante a década de 1960, ela desenvolveu quatro vozes distintas que levaram sua influência adiante.

A primeira era encontrada em seus romances extremamente populares, que faziam circular fantasias culturais sobre titãs americanos individualistas que lutam e triunfam sobre os fardos e barreiras impostos por fracos e corruptos tribalistas e coletivistas que desejam apenas confiscar sua riqueza e minar sua força. Essa reescrita das histórias de Horatio Alger sobre realizações impossíveis por protagonistas que as fazem sozinhos era composta por meio da narrativa do progresso civilizacional europeu contra as tribos selvagens e primitivas das Américas, Ásia e África.

O excepcionalismo americano é evidente nas narrativas ficcionais de Rand; o triunfo civilizacional fornece um enquadramento básico. Avaliações morais estão embutidas em hierarquias de habilidades, capacidades e beleza. As rígidas hierarquias raciais dessas estruturas são obscurecidas pelo fato de que todos os personagens principais são brancos.

Os mundos de fantasia de A Nascente e A Revolta de Atlas reproduzem narrativas culturais compartilhadas de maneira ampla e profunda. Que essas narrativas reflitam a visão dominante de estadunidenses de ascendência europeia relativamente privilegiados é visto no fato de que a base de fãs da ficção de Ayn Rand, mesmo que com certa mistura de identidades de gênero e sexualidade, é predominantemente composta por membros brancos em profissões de aspiração gerencial, criativa e de negócios, de classe média e alta.

A segunda voz pública de Ayn Rand durante a década de 1960 era representada por suas palestras nos campi universitários e sua persona na mídia. Essa Rand era provocativa, mas pessoal, pedagógica e às vezes até engraçada. As palestras publicadas abordavam um “você” confuso e questionador em uma prosa transparente e professoral.

A entrevista na Playboy e as aparições na televisão apresentam respostas de Rand a perguntas desafiadoras em uma linguagem nítida, confiante, comedida, mas direta.

Mike Wallace: E então se um homem é fraco, ou uma mulher é fraca, então eles estão aquém do amor, não devem ser amados? 
Ayn Rand: Ele certamente não merece, ele certamente está aquém do amor. Ele sempre pode corrigir isso, o homem possui o livre arbítrio. Se um homem deseja o amor, ele deve corrigir suas fraquezas ou defeitos, e então ele pode merecê-lo. Mas ele não pode esperar aquilo que não merece, nem no amor, nem no dinheiro, nem na matéria, nem no espírito.

Esta presença pública provocativa, mas envolvente, contrastava fortemente com a terceira voz de Rand, como líder de um culto autoritário. Essa voz circulava de segunda mão, através de uma pilha que se acumulava em notícias e memórias críticas e satíricas, coroada por descrições como a de Jerome Tuccille em seu conto cômico sobre a vida no Objetivismo, publicado em 1971, ”It Usually Begins with Ayn Rand” (“Normalmente Começa com Ayn Rand”):

[...] Curiosamente, para uma mulher que começou como uma defensora da mente independente, ela passou a considerar suas próprias ideias como corolários naturais de verdade e objetividade. 
“Realidade objetiva” era o que Rand dizia que era realidade objetiva.

“Moralidade” era a conformidade com a ética de Ayn Rand.

“Racionalidade” era sinônimo do pensamento de Ayn Rand [...]

[...] A Revolta de Atlas [...] rapidamente se tornou uma espécie de Novo Marxismo de Direita.


Essa voz severa era ecoada na escrita do Boletim Objetivista (1962-1965, mais tarde na revista Objetivista, 1966-1971, e depois na Carta de Ayn Rand, 1971-1976). Ensaios selecionados desses boletins foram reproduzidos em uma série de livros durante os anos 1960 e início dos anos 1970. O primeiro deles, “For the New Intellectual” (“Para o Novo Intelectual”), reimprimiu trechos de seus romances prefaciados por um ensaio extenso, com um escopo de tirar o fôlego.

O ensaio expunha a teoria da História e da Filosofia que dá sustentação aos seus romances: De um início promissor entre os gregos, representado por Aristóteles em vez de Platão, o potencial do homem para a razão e realizações deu um mergulho profundo durante a Era das Trevas, quando o Doutor Bruxo (os místicos religiosos) e Átila (homens fortes que governam pela força) mantinham as rédeas sobre as hordas bárbaras primitivas e selvagens, cujas práticas tribais incluíam o sacrifício humano. O Renascimento trouxera de volta Aristóteles e a ascensão da razão européia.

Na América, a moralidade racional impulsionou a ascensão do capitalismo, que no século XIX atingira sua forma mais pura (mas ainda não realmente pura). No século XX, a ascensão do coletivismo socialista e a influência de Immanuel Kant teria arruinado com tudo. Os intelectuais seriam os principais culpados pelas ideias que davam suporte para a “economia mista”, que por sua vez seria responsável pelos males políticos e econômicos do século XX.

Soa cartunesco – e é mesmo. Esse tom de dedo na cara e o relato absurdamente reducionista da História e da Filosofia entravam em conflito com a persona muito mais cuidadosa e atraente de Rand quando falava em público. Como Gore Vidal comentou em sua resenha de 1961 de “For the New Intellectual”,

A Srta. Rand agora nos diz que aquilo que pensamos ser certo na verdade está errado. A lição deveria ser: Um por um e nenhum por todos [...] A filosofia de Ayn Rand é quase perfeita em sua imoralidade, o que torna o tamanho de seu público ainda mais sinistro e sistemático à medida que entramos em uma curiosa nova fase em nossa sociedade. Os valores morais estão em fluxo. As profundezas lamacentas estão sendo agitadas por novos monstros e bruxas das profundezas. Trolls caminham pela noite americana.

Volumes subsequentes, incluindo “The Virtue of Selfishness” (“A Virtude do Egoísmo”, de 1961) e “Capitalism: The Unknown Ideal” (“Capitalismo: O Ideal Desconhecido”, de 1966), foram compostos por ensaios de Rand, Nathaniel Branden, Alan Greenspan e Robert Hessen primariamente dedicados à defesa dos direitos de propriedade, o pilar central da plataforma política desses “radicais em nome do capitalismo”. Mas cada um também incluia um ensaio um pouco fora dessa linha.

Em “Racismo”, Rand critica o racismo como a “forma mais baixa e brutalmente primitiva de coletivismo” e expressa seu apoio à agenda do Movimento pelos Direitos Civis nos EUA, na medida em que se opõe à discriminação apoiada pelo governo. Ela continua, atacando a Lei dos Direitos Civis de 1964 nos mesmos termos que Barry Goldwater o fez, como uma violação dos direitos de propriedade.

Argumentando que a discriminação “privada” seria um crime moral, não legal, ela passa a defender políticas governamentais “daltônicas”, ao invés de qualquer movimento em direção a direitos coletivos ou “cotas” – que ela associa aos tetos de cotas anti-semitas da Rússia czarista.

Quando combinada com seu discurso de abertura em Para o Novo Intelectual, essa exposição de políticas raciais “daltônicas” ilumina as maneiras como as hierarquias raciais persistiam, mesmo enquanto as leis americanas de apartheid eram desmanteladas. Para Rand, o apagamento dos povos indígenas, as restrições à imigração de partes mais “primitivas” do mundo e a persistência de uma acentuada desigualdade racial nas esferas econômicas e sociais “privadas” eram parte integrante de seu sistema de moralidade racional, mesmo que ela se opusesse à discriminação racial (e sexual) imposta pelo Estado.

Em “Os Destroços do Consenso”, proferido como uma palestra em 1967 e adicionado à edição de bolso revisada de Capitalismo: O Ideal Desconhecido (1967), Rand começa a rastrear o colapso do consenso do Estado de Bem-Estar Social do período pós-guerra. Ela se pergunta sobre que alternativa poderia surgir e aponta para o famoso discurso do então governador da Califórnia, Ronald Reagan, nomeando Barry Goldwater em 1964 como uma nova direção promissora para a política eleitoral – uma nova direção que sua própria influência ajudou a moldar.

Os dois últimos volumes da escritos de Rand publicados durante sua vida contrastavam de maneira nítida entre si. O Manifesto Romântico (1971) incluiu sua defesa do romantismo, seus ataques ao naturalismo e ao modernismo e sua definição ampliada da noção de “sentido da vida”. “The New Left: The Anti-Industrial Revolution” (“A Nova Esquerda: A Revolução Anti-Industrial”, de 1971 – mais tarde renomeado como “Retorno do Primitivo”) parece uma série de arengas sobre questões contemporâneas rabiscadas por um recluso rabugento cujas únicas fontes de informação são revistas de notícias populares e reportagens de televisão.

Os ensaios são unificados por sua crítica da Nova Esquerda como uma manifestação de regressão primitiva. Incluem reclamações sobre “hippies” e “beatniks”, especialmente em Woodstock em 1969 – sujos descendentes de Dionísio, em comparação com os apolônicos (incluindo ela mesma) presentes no lançamento da Apollo 11 naquele mesmo ano.

Em “Libertação das Mulheres”, ela bate no movimento como sendo um bando de mulheres pouco atraentes (como sua personagem em Nós, os Vivos, a Camarada Sônia) que estariam exigindo “direitos especiais” em vez de legítimos “direitos iguais”. Ela se concentra especialmente no movimento pela ecologia, que ela descreve como o centro de uma revolução anti-industrial.

Em “A Era da Inveja”, ela resume sua visão das ameaças à civilização ocidental, representadas pelos primitivos, os deficientes e os estúpidos:

Por que a civilização ocidental é admoestada a admirar as culturas primitivas? Porque eles não são admiráveis. Por que o homem primitivo é exortado a ignorar as realizações ocidentais? Porque elas são. Por que a autoexpressão de um adolescente retardado deveria ser nutrida e aclamada? Porque ele não tem nada a expressar. Por que a auto-expressão de um gênio deve ser impedida e ignorada? Porque ele tem o que expressar.

A quarta voz pública de Ayn Rand ficava abafada. De vez em quando, durante as décadas de 1960 e 70, ela publicava explicações sobre sua filosofia em sua prosa mais acadêmica, incluindo seções de Introdução à Epistemologia Objetivista no Boletim Objetivista; o livro apareceu em 1979.

Durante a década de 1970, à medida que o consenso do pós-guerra continuava a se desfazer, a nascente e fratricida direita política dos EUA se transformou. Os velhos defensores do livre-mercado, ativistas anticomunistas e conservadores tradicionais receberam a companhia e, finalmente, foram substituídos por um jovem movimento conservador emergente, um movimento libertário de direita em expansão, uma direita religiosa mobilizadora e uma forma linha dura de populismo de lei-e-ordem refletida pelo eleição de Richard Nixon em 1968.

Uma onda de ativismo empresarial se juntou aos elementos dessas tendências libertárias e conservadoras para inaugurar a ascensão e o domínio do neoliberalismo na eleição de Ronald Reagan para a presidência dos Estados Unidos na década de 1980. A influência de Menina Malvada de Ayn Rand, sua promoção de uma crueldade otimista, foi um elemento vital dessa nova hegemonia.

Sobre a autora

Lisa Duggan é historiadora, jornalista, militante e professora de análise social e cultural na Universidade de Nova York.

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