27 de maio de 2004

Convicções filosóficas

Os filósofos recebem atenção apenas quando parecem estar fazendo algo sinistro - por exemplo, corrompendo a juventude, solapando os alicerces da civilização, desprezando tudo o que nos é caro.

Richard Rorty


Tradução / Os filósofos recebem atenção apenas quando parecem estar fazendo algo sinistro - por exemplo, corrompendo a juventude, solapando os alicerces da civilização, desprezando tudo o que nos é caro. Durante o resto do tempo, todo mundo supõe que eles estejam trabalhando duro em algum lugar do porão subterrâneo, cuidando da manutenção daqueles alicerces. E ninguém se preocupa muito em saber que marca de fita adesiva intelectual está sendo usada nos consertos. 

O público se inflama, porém, quando filósofos que não querem enquadrar-se às regras sobem para o térreo, chamam a atenção dos moradores e lhes dizem que, na realidade, não existem alicerces -que seus colegas tão diligentes estão apenas fornecendo "razões insatisfatórias para justificar aquilo em que acreditamos por instinto" (a descrição de metafísica feita por F.H. Bradley). Todo movimento "antialicercista" na filosofia gera uma onda de livros de não-filósofos criticando "a traição dos intelectuais" (título do ataque lançado por Julien Benda, em 1927, contra a influência perniciosa de pensadores como Henri Bergson e William James). 

Livros sobre esse tipo de traição vêm proliferando nos Estados Unidos e Reino Unido nos últimos dez anos. Isso acontece porque a filosofia européia pós-nietzschiana vem ganhando popularidade cada vez maior no mundo anglófono. Nenhum pós-graduando em literatura, história ou teoria política numa universidade americana ou britânica pode dar-se ao luxo de desconhecer Foucault. Durante algum tempo, desconstruir textos -ou seja, tentar soar o máximo possível como Derrida, mas, ao mesmo tempo, não tratar realmente de nenhuma questão filosófica- foi a moda vigente nos departamentos de literatura. A desconstrução saiu de moda, mas Derrida ainda é admirado -merecidamente, aliás.

Esses dois pensadores franceses originais e influentes concordam em que Nietzsche tinha razão em rejeitar a tentativa de Platão de demonstrar racionalmente que alguns valores morais e políticos são mais bem fundamentados na natureza das coisas do que outros. Quando Derrida e Foucault eram estudantes, eles assimilaram e aceitaram a teoria de Martin Heidegger sobre como a filosofia ocidental começou com Platão e terminou com Nietzsche. Os livros de Heidegger os convenceram de que devemos parar de tentar "alicerçar" as instituições ocidentais em algo mais imponente e não-histórico. Eles lamentaram tanto os trechos de Nietzsche relativos ao "super-homem" -aqueles dos quais os nazistas fizeram tão bom uso- quanto a admiração de Heidegger por Hitler. Mas esse sentimento não diminuiu a admiração que sentiam pelas realizações filosóficas de ambos.

Richard Wolin acha que não é tão fácil assim distinguir a conduta de um filósofo da utilidade de suas ideias nem seu caráter moral de seus ensinamentos. Historiador intelectual respeitado que leciona na City University, em Nova York, Wolin acredita que a preponderância do "relativismo pós-moderno frouxo" é muito perigosa. Seu livro procura demonstrar que "em determinado ponto, a hostilidade do pós-modernismo em relação à "razão" e à "verdade" se torna intelectualmente indefensável e politicamente enfraquecedor". Muitos dos ensaios que compõem o livro focalizam as posturas políticas dúbias -e, em alguns casos, assustadoras- adotadas por eminentes pensadores pós-nietzschianos. Wolin argumenta que suas atitudes políticas guardam relação estreita com suas visões filosóficas "antialicercistas". 

Wolin não tem dificuldade em mostrar que os fãs de Nietzsche e de Heidegger já disseram coisas estúpidas sobre a democracia. Mas ele não chega a provar que as estupidezes são decorrência de suas filosofias nem que estas sejam indefensáveis. To do the latter, he would have to argue in defense of specific philosophical claims–those that constitute what he thinks of as democracy’s “normative resources.” He leaves it pretty vague what a “normative resource” might be, and how such resources are put to use in political deliberation.

Postmodernism, Wolin says, is “the rejection of the intellectual and cultural assumptions of modernity in the name of ‘will to power’ (Nietzsche), ‘sovereignty’ (Bataille), an ‘other beginning’ (Heidegger), ‘différance’ (Derrida) or a ‘different economy of bodies and pleasures’ (Foucault).” So one expects him to enumerate “the intellectual and cultural assumptions of modernity” and show why they should not be rejected. But Wolin seems to assume that his readers already know what these assumptions are, and are disposed to take rejection of them as a reductio ad absurdum of a philosopher’s outlook.

Às vezes, porém, ele incorre em grave risco filosófico, como quando afirma que "a crítica da tradição moderna da lei natural -a base normativa das sociedades democráticas contemporâneas-" feita por Derrida nos deixa com um "existencialismo político", no qual, em vista da natureza "infundada" da opção moral e política, uma "decisão" política parece ser quase tão boa quanto outra". Em trechos assim, Wolin ratifica o velho argumento platônico segundo o qual, se não existe nada "aí fora" (as formas platônicas, a vontade de Deus, a lei natural) que torne verdadeiros nossos julgamentos morais, não há razão nem sequer para fazermos tais julgamentos. 

Platão argumentava que a verdade é questão de correspondência com a realidade. As proposições se tornam verdadeiras graças a coisas que são como são, independentemente dos desejos e decisões humanos. Isso vale para proposições como "a bondade é melhor do que a crueldade" tanto quanto vale para outras como "o Annapurna fica a oeste do Everest". A afirmação sobre a bondade é tão verdadeira quanto a declaração sobre o Annapurna; logo, deve existir algo aí fora (algo metafísico, algo sobre o qual os filósofos sabem mais do que a maioria das pessoas) que a faz ser verdadeira. Se você nega a existência de algo assim, diz o argumento platônico, está negando que exista algum modo racional de optar entre Atenas e Esparta (ou, como diríamos nós, modernos, entre social-democratas e nazistas). Concordar com Protágoras e Nietzsche, em que "o homem é a medida de todas as coisas", é, para Wolin, reduzir a opção pela democracia, em detrimento do fascismo, a uma questão de gosto. 

A premissa mais dúbia contida nesse argumento é a que afirma que a verdade é correspondência com a realidade. Como já sabe todo mundo que já teve uma aula de filosofia, é difícil especificar qual deve ser a relação de correspondência. A frase "não existem unicórnios", por exemplo, corresponde a quê? Que entidades tornam verdadeira a frase "existem infinitamente muitos números cardinais transfinitos"? Se você não acredita nas coisas misteriosas às quais Platão chamava "as formas", o que exatamente você acha que torna verdadeiras as verdades morais? E, de qualquer maneira, por que as afirmações sobre a existência de elementos criadores de verdades, tais como as "formas" ou a "lei natural", são vistas como sendo evidentemente mais verdadeiras do que os julgamentos morais intuitivos que, antigamente, elas fundamentavam? Será que poderíamos ficar mais convencidos da verdade de uma teoria metafísica do que já somos da verdade desses julgamentos?

A maioria dos estudantes sai dos cursos de filosofia em que se discutem questões como essa com seu platonismo instintivo intacto, assim como a maioria dos cristãos conserva suas convicções religiosas depois de ter lido os "Diálogos" de Hume sobre a religião natural. Mas aqueles que já mergulharam em dúvida freqüentemente se voltam para Nietzsche ou Heidegger, na esperança de descobrir como ficam as coisas quando se abre mão da teoria da correspondência da verdade. Eles poderiam conseguir o mesmo se se voltassem a William James ou a John Dewey. Mas falta verve aos pragmatistas americanos. Antiplatônicos desafiadores e cheios de desdém, como Nietzsche, atraem mais leitores do que outros que são joviais e simpáticos, como James. Os anúncios apocalípticos de Heidegger sobre "o fim da filosofia" soam mais impressionantes do que as sugestões suaves de Dewey de que a filosofia deveria ser menos ambiciosa e pretensiosa do que foi no passado.

Nietzsche e Heidegger pensavam que, uma vez que se rejeita a afirmação platônica dos fundamentos racionais da verdade moral, todas as coisas precisariam ser refeitas. A cultura teria que ser moldada novamente. Enquanto isso, James e Dewey não achavam que abrir mão da teoria da correspondência da verdade fosse algo tão grande assim. Eles queriam desmentir a teoria e ajudar a livrar o mundo do racionalismo platônico, mas não achavam que fazê-lo faria tanta diferença assim à nossa auto-imagem ou às nossas práticas sociais. A superestrutura continuaria em boa forma mesmo depois que parássemos de nos preocupar com o estado das fundações. A democracia poderia ser defendida a contento por argumentos empíricos, e não metafísicos, como aqueles que Churchill ofereceu quando disse que ela é "a pior forma de governo exceto todas aquelas outras formas que já foram experimentadas de tempos em tempos". Para eles, ela não precisava de "recursos normativos".

Wolin não discute se James e Dewey poderiam estar certos quando insistiram que a democracia e a modernidade poderiam se dar bem sem quaisquer fundamentos filosóficos, e o que tinha ver com a metafísica era ridicularizá-la, em vez de refazê-la ou refutá-la. Wolin vê a política do Iluminismo como inseparável do racionalismo iluminista, ao passo que James e Dewey fizeram o melhor que puderam para manter um enquanto descartavam o outro.

Wolin is at his best when he deals with the proponents of anti-foundationalist arguments rather than with the arguments themselves. He is more interested in what kinds of people they were, and in which political movements made use of them, than in what they said in defense of their paradoxical-sounding claims about reason and truth. Much of his book tell us of the bad behavior of such men as Carl Jung, Hans-Georg Gadamer, Maurice Blanchot and Georges Bataille. He frequently says such things as that “Gadamer’s wartime conduct cannot help but raise critical questions about his philosophy and its relationship to its times.” But he rarely follows through by explaining just why one cannot peel off a certain philosopher’s conduct from his opinions. He seems to think that any thinker who has displayed either hypocrisy or self-deception is unlikely to have any ideas worth adopting.

Wolin is very good at digging up the dirt on famous European thinkers. He does a fine job of describing how their doctrines were put to use by different bad guys at different times–how, for example, “a critique of reason, democracy and humanism that originated on the German Right during the 1920s was internalized by the French Left.” That is an admirable summary of one of the strangest turns in twentieth-century European intellectual life. But, though he protests that his book is “not an exercise in guilt-by-association,” that description is actually pretty close to the mark. Wolin neglects the question of why the figures he discusses held the views they did in favor of an account of the uses to which they were put.

Wolin thinks, rightly, that if you understand the sociopolitical contexts in which a philosophical view was formulated, and the factors that account for its reception, you will be in a better position to decide whether to adopt it. Still, the best sort of intellectual history is the kind that pays equal attention to the company a philosophical doctrine keeps and to the arguments deployed in its defense. One book that does just that, and that treats of the same figures as Wolin’s, is Jürgen Habermas’s magisterial The Philosophical Discourse of Modernity. Wolin’s polemic against postmodernism is spirited and informative, and his heart is in the right place. But though Habermas shares Wolin’s doubts about postmodernism and his sympathies with traditional rationalism, his book does something Wolin’s does not: It helps one understand why most of the important philosophers of the twentieth century grew skeptical about foundation-building and foundation-repairing projects. Readers who are stimulated, but puzzled, by Wolin’s account of the matter would do well to go on to Habermas’s.

* Richard Rorty, professor de literatura comparada e filosofia na Universidade de Stanford, é autor de vários livros, incluindo Filosofia e o Espelho da Natureza (Princeton); Contingência, Ironia e Solidariedade (Cambridge); e Filosofia e Esperança Social (Penguin).

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Guia essencial para a Jacobin

A Jacobin tem divulgado conteúdo socialista em ritmo acelerado desde 2010. Eis aqui um guia prático para algumas das obras mais importantes ...