Against the Current, No. 77, November/December 1998 |
Tradução / A presente crise pode bem vir a revelar-se a mais devastadora desde a Grande Depressão. Ela manifesta profundos e irresolvidos problemas da economia real, os quais têm sido, literalmente, embrulhados em papel de dívida ao longo das últimas décadas, bem como um aperto financeiro de curto prazo de uma profundidade que não era vista desde a II Grande Guerra. A combinação entre a fraqueza da acumulação capitalista subjacente e o desmoronamento do sistema bancário é o que torna este deslizamento para o fundo tão intratável para os desenhadores de política econômica e o seu potencial de desastre tão sério. A praga dos encerramentos e das casas abandonadas – frequentemente arrombadas e despojadas de tudo, inclusive dos fios de cobre – atinge em particular Detroit e outras cidades do Midwest norte-americano.
O desastre humano que isto representa para centenas de milhares de famílias e para as suas comunidades pode ser apenas o primeiro sinal do que esta crise capitalista realmente significa. Subidas históricas nos mercados financeiros nas décadas de 1980, 1990 e 2000 – com as suas transferências de rendimento e riqueza para o 1% dos mais ricos, que definiram toda uma época – distraíram a atenção para a real fraqueza a longo prazo das economias capitalistas mais desenvolvidas. O desempenho econômico nos Estados Unidos, na Europa e no Japão, medido por praticamente todos os indicadores padrão – o crescimento do produto, o investimento, o emprego e os salários - deteriorou-se década após década, ciclo econômico após ciclo econômico, desde 1973.
Os anos decorridos desde o início do presente ciclo, que teve origem nos inícios de 2001, têm sido os piores de todos. O crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) nos Estados Unidos tem sido o mais lento para qualquer intervalo de tempo comparável desde o final dos anos 1940. Incremento em novas fábricas ou equipamentos e criação de empregos têm estado, respectivamente, um terço e dois terços abaixo das médias anteriores à última Grande Guerra. Os salários reais por hora, para trabalhadores produtivos (que não de supervisão), que constituem 80% da força de trabalho, têm permanecido praticamente estagnados, arrastando-se aproximadamente ao mesmo nível desde 1979.
A expansão económica também não tem sido significativamente mais forte, quer na Europa, quer no Japão. O declínio no dinamismo económico do mundo capitalista avançado tem as suas raízes numa grande quebra na lucratividade, causada em primeiro lugar por uma tendência crónica para a sobre-capacidade no sector manufactureiro mundial, que remonta as suas origens até ao final dos anos 1960, início dos anos 1970. Por volta do ano 2000, nos Estados Unidos, Japão e Alemanha, a taxa de lucro na economia privada ainda não tinha completado uma retoma, não estando mais alta no ciclo dos anos 1990 do que o esteve no dos anos 1970.
Com uma mais baixa lucratividade, as empresas tiveram lucros reduzidos para acrescer as suas fábricas e equipamentos, bem como incentivos menores para se expandirem. A perpetuação de uma lucratividade reduzida desde os anos 1970 conduziu a um constante abaixamento do investimento, em proporção do PIB, em todas as economias capitalistas avançadas, bem como a reduções faseadas no crescimento do produto, dos meios de produção e do emprego.
A arrastada desaceleração na acumulação capitalista, bem como a compressão efectuada pelas empresas na sua massa salarial, de modo a restaurar as suas margens de lucro - para além dos cortes governamentais nos gastos sociais, feitos para escorar os lucros capitalistas – resultou num abrandamento do crescimento do investimento, assim como da procura governamental e privada e, portanto, num abrandamento do crescimento da procura como um todo. Esta fraqueza na procura agregada, resultado último da quebra de lucratividade, constitui há muito a principal barreira ao crescimento nas economias capitalistas avançadas.
Para contrariar a persistente fraqueza da procura agregada, os governos, dirigidos pelo dos Estados Unidos, não viram outra hipótese senão incorrer em cada vez maiores volumes de dívida, através de canais cada vez mais variados e barrocos, para manter a economia em funcionamento. Inicialmente, durante os anos 1970 e 1980, os Estados eram obrigados a incorrer em cada vez maiores défices públicos, para sustentar o crescimento. Todavia, embora mantendo a economia relativamente estável, estes défices também a tornaram cada vez mais estagnada: na linguagem da época, os governos obtinham cada vez menos impacto com a sua prodigalidade (“less bang for their buck”), menos crescimento do PIB por um dado incremento no endividamento.
Dos cortes orçamentais à economia das bolhas
Deste modo, no princípio da década de 1990, tanto nos Estados Unidos como na Europa, governos virados para a direita e guiados pelo pensamento neo-liberal (privatização e cortes nos programas sociais), sob a direcção de Bill Clinton, Robert Rubin e Alan Greenspan, procuraram superar a estagnação com uma tentativa de movimento em direcção a orçamentos equilibrados. Mas, embora esse facto não seja muito realçado pela maioria dos relatos sobre este período, esta mudança dramática teve um impacto radicalmente negativo.
Porque a lucratividade ainda não tinha recuperado, as reduções no défice, trazidas pelas tentativas de equilíbrio orçamental, resultaram num enorme golpe para a procura agregada, com o resultado de que, na primeira metade dos anos 1990, tanto a Europa como o Japão passaram por recessões devastadoras, as piores do período pós-guerra, enquanto a economia dos Estados Unidos experimentou a chamada retoma sem novos empregos (“job-less recovery”). Consequentemente, desde meados dos anos 1990, os Estados Unidos viram-se obrigados a recorrer a mais poderosas e arriscadas formas de estímulo, para contrariar a tendência à estagnação. Em particular, substituiu os défices públicos do keynesianismo tradicional pelos défices privados e a inflação dos activos, aquilo que poderíamos designar por keynesianismo dos preços dos activos ou, simplesmente, economia das bolhas (“bubblenomics”).
Na grande corrida ascensional das bolsas dos anos 1990, as grandes empresas e os lares abastados viram a sua riqueza em papel expandir-se de uma forma maciça. Deste modo, puderam embarcar num aumento sem precedentes do endividamento e, nessa base, sustentar um poderoso acréscimo do investimento e do consumo. A expansão da chamada “Nova Economia” foi o resultado directo da histórica bolha nos preços dos activos dos anos 1995-2000. Mas uma vez que os preços dos activos subiram em desafio às taxas de lucro declinantes, e uma vez que os novos investimentos vieram exacerbar a sobre-capacidade industrial já existente, seguiu-se rapidamente a quebra bolsista e a recessão de 2000-2001, deprimindo a lucratividade no sector não financeiro até ao seu nível mais baixo desde 1980.
Sem se deixar deter por isso, Greenspan e a Federal Reserve Board (Fed), com a ajuda de outros grandes bancos centrais, contrariaram o novo ciclo depressivo com uma nova ronda de inflação nos preços dos activos. Foi isso que, essencialmente, nos trouxe até onde estamos hoje. Reduzindo a zero as taxas de juro reais de curto prazo, durante três anos, eles facilitaram uma explosão historicamente sem precedentes do endividamento familiar, a qual contribuiu para o disparar dos preços imobiliários, alimentando-se dele também depois, por sua vez.
De acordo com a revista ‘The Economist’, a bolha imobiliária mundial entre 2000 e 2005 foi a maior de todos os tempos, ultrapassando mesmo a de 1929. Tornou possível um crescimento constante nas despesas de consumo e no investimento residencial, que conjuntamente conduziram a expansão. O consumo pessoal mais a construção de casas respondeu por 90 a 100 % do crescimento do PIB nos E.U.A. nos primeiros cinco anos do corrente ciclo económico. Durante este mesmo intervalo de tempo, segundo as contas do Moody’s Economy.com, o factor imobiliário, por si só, foi responsável por elevar o crescimento do PIB quase 50% acima do que o que teria ocorrido sem ele – 2,3% em vez de 1,6%.
Deste modo, conjuntamente com os défices orçamentais reaganianos de George W. Bush, os défices familiares sem precedentes contribuíram para obscurecer quão débil era de facto a recuperação económica subjacente. O crescimento da procura de consumo suportada pela dívida, bem como, de uma forma mais geral, do crédito super-barato, revigoraram mais do que apenas a economia norte-americana. Em especial por terem conduzido aí a um novo surto de importações e a um alargamento do défice de transacções correntes (balança de pagamentos e comercial) para níveis sem precedentes, promoveu também aquilo que apareceu como uma impressionante expansão da economia global.
Uma brutal ofensiva patronal
Mas se os consumidores fizeram a sua parte, o mesmo não pode ser dito dos negócios privados, apesar dos inauditos estímulos económicos. Greenspan e o Fed sopraram a bolha imobiliária de forma a dar tempo às grandes corporações para resolverem o seu problema de excesso de capital e retomarem o investimento. Mas em vez disso, concentrando-se na restauração das suas taxas de lucro, elas desencadearam uma brutal ofensiva contra os trabalhadores. Elas elevaram o crescimento da produtividade, não tanto com o aumento do investimento em fábricas e equipamentos avançados, mas cortando radicalmente nos empregos e compelindo os empregados que ficaram a preencher os vazios. Comprimindo os salários enquanto espremiam mais produto por pessoa, elas apropriaram-se, sob a forma de lucros, de uma percentagem historicamente sem precedentes no aumento que teve então lugar no PIB não financeiro.
As corporações não financeiras, durante esta expansão, elevaram significativamente as suas taxas de lucro, mas mesmo assim continuando sem atingir de novo os já reduzidos níveis dos anos 1990. Para além disso, tendo em vista o grau em que esta elevação dos lucros foi atingida simplesmente pela via do aumento das taxas de exploração – fazendo os operários trabalhar mais e pagando-lhes menos, por hora – há razões para duvidar por quanto tempo isto poderá continuar assim. Acima de tudo, porém, ao aumentar a lucratividade comprimindo a criação de empregos, o investimento e os salários, os patrões norte-americanos mantiveram em baixa o crescimento da procura agregada e, deste modo, cortaram no seu próprio incentivo para se expandirem.
Simultaneamente, em vez de aumentar o investimento, a produtividade e o emprego, de modo a aumentar os lucros, as empresas procuraram explorar os custos de empréstimo hiper-baixos para melhorar a sua posição (e a dos seus accionistas) por via da manipulação financeira – pagando as suas dívidas, distribuindo dividendos e comprando as suas próprias acção para fazer subir a sua cotação, particularmente sob a forma de uma enorme onda de fusões e aquisições. Nos Estados Unidos, ao longo dos últimos quatro ou cinco anos, tanto os dividendos como a recompra de acções, como percentagem dos ganhos retidos, explodiram para os seus mais elevados níveis na época pós-guerra. O mesmo género de coisas tem vindo a acontecer um pouco por toda a economia mundial – na Europa, no Japão, na Coreia.
O rebentamento das bolhas
No final de tudo, o facto é que, nos Estados Unidos e em todo o mundo capitalista avançado, desde 2000, temos assistido ao mais lento crescimento da economia real desde a II Grande Guerra. E assitimos também à maior expansão financeira e da economia de papel na história dos Estados Unidos. Não é preciso ser marxista para dizer que as coisas não poderão continuar assim.
É claro, da mesma forma que a bolha nos mercados bolsistas dos anos 1990 acabou por rebentar, também a bolha imobiliária se esvaziou. Em consequência disso, o filme da expansão apoiada no imobiliário, que vimos durante o ciclo ascendente, está agora a passar em reverso. O preço das casas já baixou 5% desde o seu pico de 2005, mas isto é apenas o começo. Está estimado pela Moody’s que, quando a bolha imobiliária tiver esvaziado por completo, nos começos de 2009, os preços das casas terão baixado 20% em termos nominais – e ainda mais em termos reais – o que é, de longe, o maior declíneo na história norte-americana pós-guerra.
Do mesmo modo que o efeito positivo de riqueza produzido pela bolha imobiliária conduziu a economia em frente, o efeito negativo do desastre está a guiá-la para trás. Com o valor das suas residências em declínio, as famílias não podem continuar a tratar as suas casas como terminais Multibanco. Os empréstimos de garantia imobiliária estão em declínio e, portanto, as famílias vêm-se obrigadas a consumir menos.
O perigo subjacente a isto é que, não sendo mais capazes de “aforrar” putativamente através dos seus valores imobiliários crescentes, as famílias norte-americanas comecem a aforrar deveras, levando a um aumento da taxa de poupança pessoal – que neste momento está ao seu nível histórico mais baixo de sempre – puxando assim o consumo para baixo. Compreendendo como o fim da bolha imobiliária iria afectar o poder de compra dos consumidores, as empresas cortaram na sua contratação, com o resultado de que o crescimento do emprego caiu significativamente, desde inícios de 2007.
Graças à crise imobiliária galopante e à desaceleração no emprego, logo no segundo quartel de 2007, os fluxos monetários totais que entraram para a disposição das famílias, em termos reais, que tinham crescido a uma taxa de 4,4% em 2005 e 2006, caíram para perto de zero. Por outras palavras, se adicionarmos o rendimento real disponível das famílias, mais os seus levantamentos em crédito de garantia imobiliária (“home equity”), mais os seus empréstimos para consumo, mais as suas realizações em ganhos de capital, ver-se-á que o dinheiro que as famílias tinham efectivamente para gastar tinha parado de crescer. Bem antes que a crise financeira batesse à porta, no Verão passado, a expansão já estava no seu estertor final.
Complicando enormemente esta recessão e tornando-a extremamente perigosa, está, é claro, o colapso dos créditos hipotecários de risco (“sub-prime”), que se verificou como extensão do rebentamento da bolha imobiliária. Os mecanismos que ligam os empréstimos hipotecários sem escrúpulos realizados a uma escala titânica, aos encerramentos de casas em massa, ao colapso do mercado de títulos (“securities”) sustentado pelas hipotecas de risco, à crise nos grandes bancos que detinham directamente tão grandes quantidades destes títulos, tudo isto requereria uma discussão em separado.
O que aqui podemos dizer, à laia de conclusão, é simplesmente que, porque as perdas bancárias são tão grandes, desde já enormes, e em vias de crescer cada vez mais à medida que a recessão se torna pior, a economia enfrenta a perspectiva, sem precedentes no período pós-guerra, de uma paralisação total do crédito no exacto momento em que entra em recessão. Os governos enfrentam, agora mesmo, problemas de dificuldade sem paralelo conhecido, para tentar evitar este resultado.
O desastre humano que isto representa para centenas de milhares de famílias e para as suas comunidades pode ser apenas o primeiro sinal do que esta crise capitalista realmente significa. Subidas históricas nos mercados financeiros nas décadas de 1980, 1990 e 2000 – com as suas transferências de rendimento e riqueza para o 1% dos mais ricos, que definiram toda uma época – distraíram a atenção para a real fraqueza a longo prazo das economias capitalistas mais desenvolvidas. O desempenho econômico nos Estados Unidos, na Europa e no Japão, medido por praticamente todos os indicadores padrão – o crescimento do produto, o investimento, o emprego e os salários - deteriorou-se década após década, ciclo econômico após ciclo econômico, desde 1973.
Os anos decorridos desde o início do presente ciclo, que teve origem nos inícios de 2001, têm sido os piores de todos. O crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) nos Estados Unidos tem sido o mais lento para qualquer intervalo de tempo comparável desde o final dos anos 1940. Incremento em novas fábricas ou equipamentos e criação de empregos têm estado, respectivamente, um terço e dois terços abaixo das médias anteriores à última Grande Guerra. Os salários reais por hora, para trabalhadores produtivos (que não de supervisão), que constituem 80% da força de trabalho, têm permanecido praticamente estagnados, arrastando-se aproximadamente ao mesmo nível desde 1979.
A expansão económica também não tem sido significativamente mais forte, quer na Europa, quer no Japão. O declínio no dinamismo económico do mundo capitalista avançado tem as suas raízes numa grande quebra na lucratividade, causada em primeiro lugar por uma tendência crónica para a sobre-capacidade no sector manufactureiro mundial, que remonta as suas origens até ao final dos anos 1960, início dos anos 1970. Por volta do ano 2000, nos Estados Unidos, Japão e Alemanha, a taxa de lucro na economia privada ainda não tinha completado uma retoma, não estando mais alta no ciclo dos anos 1990 do que o esteve no dos anos 1970.
Com uma mais baixa lucratividade, as empresas tiveram lucros reduzidos para acrescer as suas fábricas e equipamentos, bem como incentivos menores para se expandirem. A perpetuação de uma lucratividade reduzida desde os anos 1970 conduziu a um constante abaixamento do investimento, em proporção do PIB, em todas as economias capitalistas avançadas, bem como a reduções faseadas no crescimento do produto, dos meios de produção e do emprego.
A arrastada desaceleração na acumulação capitalista, bem como a compressão efectuada pelas empresas na sua massa salarial, de modo a restaurar as suas margens de lucro - para além dos cortes governamentais nos gastos sociais, feitos para escorar os lucros capitalistas – resultou num abrandamento do crescimento do investimento, assim como da procura governamental e privada e, portanto, num abrandamento do crescimento da procura como um todo. Esta fraqueza na procura agregada, resultado último da quebra de lucratividade, constitui há muito a principal barreira ao crescimento nas economias capitalistas avançadas.
Para contrariar a persistente fraqueza da procura agregada, os governos, dirigidos pelo dos Estados Unidos, não viram outra hipótese senão incorrer em cada vez maiores volumes de dívida, através de canais cada vez mais variados e barrocos, para manter a economia em funcionamento. Inicialmente, durante os anos 1970 e 1980, os Estados eram obrigados a incorrer em cada vez maiores défices públicos, para sustentar o crescimento. Todavia, embora mantendo a economia relativamente estável, estes défices também a tornaram cada vez mais estagnada: na linguagem da época, os governos obtinham cada vez menos impacto com a sua prodigalidade (“less bang for their buck”), menos crescimento do PIB por um dado incremento no endividamento.
Dos cortes orçamentais à economia das bolhas
Deste modo, no princípio da década de 1990, tanto nos Estados Unidos como na Europa, governos virados para a direita e guiados pelo pensamento neo-liberal (privatização e cortes nos programas sociais), sob a direcção de Bill Clinton, Robert Rubin e Alan Greenspan, procuraram superar a estagnação com uma tentativa de movimento em direcção a orçamentos equilibrados. Mas, embora esse facto não seja muito realçado pela maioria dos relatos sobre este período, esta mudança dramática teve um impacto radicalmente negativo.
Porque a lucratividade ainda não tinha recuperado, as reduções no défice, trazidas pelas tentativas de equilíbrio orçamental, resultaram num enorme golpe para a procura agregada, com o resultado de que, na primeira metade dos anos 1990, tanto a Europa como o Japão passaram por recessões devastadoras, as piores do período pós-guerra, enquanto a economia dos Estados Unidos experimentou a chamada retoma sem novos empregos (“job-less recovery”). Consequentemente, desde meados dos anos 1990, os Estados Unidos viram-se obrigados a recorrer a mais poderosas e arriscadas formas de estímulo, para contrariar a tendência à estagnação. Em particular, substituiu os défices públicos do keynesianismo tradicional pelos défices privados e a inflação dos activos, aquilo que poderíamos designar por keynesianismo dos preços dos activos ou, simplesmente, economia das bolhas (“bubblenomics”).
Na grande corrida ascensional das bolsas dos anos 1990, as grandes empresas e os lares abastados viram a sua riqueza em papel expandir-se de uma forma maciça. Deste modo, puderam embarcar num aumento sem precedentes do endividamento e, nessa base, sustentar um poderoso acréscimo do investimento e do consumo. A expansão da chamada “Nova Economia” foi o resultado directo da histórica bolha nos preços dos activos dos anos 1995-2000. Mas uma vez que os preços dos activos subiram em desafio às taxas de lucro declinantes, e uma vez que os novos investimentos vieram exacerbar a sobre-capacidade industrial já existente, seguiu-se rapidamente a quebra bolsista e a recessão de 2000-2001, deprimindo a lucratividade no sector não financeiro até ao seu nível mais baixo desde 1980.
Sem se deixar deter por isso, Greenspan e a Federal Reserve Board (Fed), com a ajuda de outros grandes bancos centrais, contrariaram o novo ciclo depressivo com uma nova ronda de inflação nos preços dos activos. Foi isso que, essencialmente, nos trouxe até onde estamos hoje. Reduzindo a zero as taxas de juro reais de curto prazo, durante três anos, eles facilitaram uma explosão historicamente sem precedentes do endividamento familiar, a qual contribuiu para o disparar dos preços imobiliários, alimentando-se dele também depois, por sua vez.
De acordo com a revista ‘The Economist’, a bolha imobiliária mundial entre 2000 e 2005 foi a maior de todos os tempos, ultrapassando mesmo a de 1929. Tornou possível um crescimento constante nas despesas de consumo e no investimento residencial, que conjuntamente conduziram a expansão. O consumo pessoal mais a construção de casas respondeu por 90 a 100 % do crescimento do PIB nos E.U.A. nos primeiros cinco anos do corrente ciclo económico. Durante este mesmo intervalo de tempo, segundo as contas do Moody’s Economy.com, o factor imobiliário, por si só, foi responsável por elevar o crescimento do PIB quase 50% acima do que o que teria ocorrido sem ele – 2,3% em vez de 1,6%.
Deste modo, conjuntamente com os défices orçamentais reaganianos de George W. Bush, os défices familiares sem precedentes contribuíram para obscurecer quão débil era de facto a recuperação económica subjacente. O crescimento da procura de consumo suportada pela dívida, bem como, de uma forma mais geral, do crédito super-barato, revigoraram mais do que apenas a economia norte-americana. Em especial por terem conduzido aí a um novo surto de importações e a um alargamento do défice de transacções correntes (balança de pagamentos e comercial) para níveis sem precedentes, promoveu também aquilo que apareceu como uma impressionante expansão da economia global.
Uma brutal ofensiva patronal
Mas se os consumidores fizeram a sua parte, o mesmo não pode ser dito dos negócios privados, apesar dos inauditos estímulos económicos. Greenspan e o Fed sopraram a bolha imobiliária de forma a dar tempo às grandes corporações para resolverem o seu problema de excesso de capital e retomarem o investimento. Mas em vez disso, concentrando-se na restauração das suas taxas de lucro, elas desencadearam uma brutal ofensiva contra os trabalhadores. Elas elevaram o crescimento da produtividade, não tanto com o aumento do investimento em fábricas e equipamentos avançados, mas cortando radicalmente nos empregos e compelindo os empregados que ficaram a preencher os vazios. Comprimindo os salários enquanto espremiam mais produto por pessoa, elas apropriaram-se, sob a forma de lucros, de uma percentagem historicamente sem precedentes no aumento que teve então lugar no PIB não financeiro.
As corporações não financeiras, durante esta expansão, elevaram significativamente as suas taxas de lucro, mas mesmo assim continuando sem atingir de novo os já reduzidos níveis dos anos 1990. Para além disso, tendo em vista o grau em que esta elevação dos lucros foi atingida simplesmente pela via do aumento das taxas de exploração – fazendo os operários trabalhar mais e pagando-lhes menos, por hora – há razões para duvidar por quanto tempo isto poderá continuar assim. Acima de tudo, porém, ao aumentar a lucratividade comprimindo a criação de empregos, o investimento e os salários, os patrões norte-americanos mantiveram em baixa o crescimento da procura agregada e, deste modo, cortaram no seu próprio incentivo para se expandirem.
Simultaneamente, em vez de aumentar o investimento, a produtividade e o emprego, de modo a aumentar os lucros, as empresas procuraram explorar os custos de empréstimo hiper-baixos para melhorar a sua posição (e a dos seus accionistas) por via da manipulação financeira – pagando as suas dívidas, distribuindo dividendos e comprando as suas próprias acção para fazer subir a sua cotação, particularmente sob a forma de uma enorme onda de fusões e aquisições. Nos Estados Unidos, ao longo dos últimos quatro ou cinco anos, tanto os dividendos como a recompra de acções, como percentagem dos ganhos retidos, explodiram para os seus mais elevados níveis na época pós-guerra. O mesmo género de coisas tem vindo a acontecer um pouco por toda a economia mundial – na Europa, no Japão, na Coreia.
O rebentamento das bolhas
No final de tudo, o facto é que, nos Estados Unidos e em todo o mundo capitalista avançado, desde 2000, temos assistido ao mais lento crescimento da economia real desde a II Grande Guerra. E assitimos também à maior expansão financeira e da economia de papel na história dos Estados Unidos. Não é preciso ser marxista para dizer que as coisas não poderão continuar assim.
É claro, da mesma forma que a bolha nos mercados bolsistas dos anos 1990 acabou por rebentar, também a bolha imobiliária se esvaziou. Em consequência disso, o filme da expansão apoiada no imobiliário, que vimos durante o ciclo ascendente, está agora a passar em reverso. O preço das casas já baixou 5% desde o seu pico de 2005, mas isto é apenas o começo. Está estimado pela Moody’s que, quando a bolha imobiliária tiver esvaziado por completo, nos começos de 2009, os preços das casas terão baixado 20% em termos nominais – e ainda mais em termos reais – o que é, de longe, o maior declíneo na história norte-americana pós-guerra.
Do mesmo modo que o efeito positivo de riqueza produzido pela bolha imobiliária conduziu a economia em frente, o efeito negativo do desastre está a guiá-la para trás. Com o valor das suas residências em declínio, as famílias não podem continuar a tratar as suas casas como terminais Multibanco. Os empréstimos de garantia imobiliária estão em declínio e, portanto, as famílias vêm-se obrigadas a consumir menos.
O perigo subjacente a isto é que, não sendo mais capazes de “aforrar” putativamente através dos seus valores imobiliários crescentes, as famílias norte-americanas comecem a aforrar deveras, levando a um aumento da taxa de poupança pessoal – que neste momento está ao seu nível histórico mais baixo de sempre – puxando assim o consumo para baixo. Compreendendo como o fim da bolha imobiliária iria afectar o poder de compra dos consumidores, as empresas cortaram na sua contratação, com o resultado de que o crescimento do emprego caiu significativamente, desde inícios de 2007.
Graças à crise imobiliária galopante e à desaceleração no emprego, logo no segundo quartel de 2007, os fluxos monetários totais que entraram para a disposição das famílias, em termos reais, que tinham crescido a uma taxa de 4,4% em 2005 e 2006, caíram para perto de zero. Por outras palavras, se adicionarmos o rendimento real disponível das famílias, mais os seus levantamentos em crédito de garantia imobiliária (“home equity”), mais os seus empréstimos para consumo, mais as suas realizações em ganhos de capital, ver-se-á que o dinheiro que as famílias tinham efectivamente para gastar tinha parado de crescer. Bem antes que a crise financeira batesse à porta, no Verão passado, a expansão já estava no seu estertor final.
Complicando enormemente esta recessão e tornando-a extremamente perigosa, está, é claro, o colapso dos créditos hipotecários de risco (“sub-prime”), que se verificou como extensão do rebentamento da bolha imobiliária. Os mecanismos que ligam os empréstimos hipotecários sem escrúpulos realizados a uma escala titânica, aos encerramentos de casas em massa, ao colapso do mercado de títulos (“securities”) sustentado pelas hipotecas de risco, à crise nos grandes bancos que detinham directamente tão grandes quantidades destes títulos, tudo isto requereria uma discussão em separado.
O que aqui podemos dizer, à laia de conclusão, é simplesmente que, porque as perdas bancárias são tão grandes, desde já enormes, e em vias de crescer cada vez mais à medida que a recessão se torna pior, a economia enfrenta a perspectiva, sem precedentes no período pós-guerra, de uma paralisação total do crédito no exacto momento em que entra em recessão. Os governos enfrentam, agora mesmo, problemas de dificuldade sem paralelo conhecido, para tentar evitar este resultado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário