O libertário lidera o quarto ensaio da intentona reacionária iniciada por Rafael Videla, retomada por Carlos Menem e recriada por Mauricio Macri. Tem muitos parentescos e diferenças com essa trajetória.
Começa com um apoio eleitoral significativo. Ganhou por 11 pontos no segundo turno, venceu em 21 províncias, quase empatou no reduto peronista de Buenos Aires e repintou o mapa nacional de roxo. Conseguiu estes números com um pequeno número de votos em branco. Essa contundência refletiu-se no reconhecimento antecipado da vitória por Sergio Massa. Mais uma vez, as previsões que apontavam para uma eleição renhida falharam.
A convergência com Mauricio Macri permitiu esta vitória esmagadora. O libertário manteve o apoio de seus seguidores e somou o grosso da direita convencional. A neutralidade promovida pela UCR e pela Coalizão Cívica não foi ouvida e o peronismo acrescentou pouquíssimos votos ao parco volume de suas últimas votações.
As eleições repetiram o que aconteceu recentemente no Equador, onde a vitória inicial da centro-esquerda no primeiro turno foi revertida pela unificação da direita no segundo.
Duas expectativas
Javier Milei tenta forjar uma força de extrema direita para sustentar sua agressão contra os trabalhadores. E 30% de eleitores fiéis são a base dessa construção. É um pilar diferenciado dos 26% que o PRO proporcionou à sua presidência.
As explicações mais comuns para o primeiro contingente destacam os ingredientes emocionais. Destacam o ódio, a falta de politização e o comportamento irracional que prevalecem neste setor. Estas características estão muito presentes e em sintonia com a liderança excêntrica do próximo presidente. Com Javier Milei, venceu a pior das opções oferecidas por um sistema político-social baseado na tirania dos poderosos.
Mas a avaliação da base eleitoral de Javier Milei em termos de mero fastio e de voto de protesto impede o registro das motivações deste apoio. O libertário transformou “a casta política” no bode expiatório de todas as desgraças do país. Com essa campanha, obteve uma atração transversal de eleitores e uma simpatia especial junto aos jovens empobrecidos.
Utilizou esta bandeira para esmagar Sergio Massa, depois de ter sofrido uma derrota no debate presidencial. Essa derrota, paradoxalmente, deu-lhe força, porque seu adversário confirmou a imagem rejeitada de um político profissional ardiloso, que concentra todas as baixezas da “casta”.
Javier Milei canalizou este repúdio porque procede de um meio diferente. É um outsider instalado pelos meios de comunicação para popularizar a agenda da direita. Difunde uma mensagem ultraliberal com a embalagem pouco habitual do anarcocapitalismo estadunidense. Os delírios dessa corrente incluem apelos bíblicos e mensagens apocalípticas de purificação. Nessa visão tresloucada, inpiram-se os apelos à compra e venda de armas, a criação de um mercado de órgãos humanos e a equiperação do casamento igualitário como um mal-estar semelhante ao causado pelos piolhos.
Em vez de provocar a rejeição esperada dos eleitores, estas extravagâncias garantiram a imagem de Javier Milei como um personagem fora da “casta”. Seu discurso associou-se ao ressurgimento do slogan “que se vayan todos”. Esta exigência reapareceu com o mesmo tom anti-institucional de 2001, mas com um conteúdo oposto a essa revolta. Em vez de impulsionar um protesto contra os poderosos, foi manipulada para preparar o ataque às conquistas sociais e democráticas.
Os seguidores do libertário esperam uma depuração drástica do sistema político. Esta é a ilusão que Javier Milei começou a escavar, com suas confabulações para repartir os cargos no novo governo.
A segunda expectativa que explica o êxito de Javier Milei foi sua promessa de erradicar a inflação por meio da dolarização da economia. O custo elevado é uma desgraça intolerável que a população anseia por extirpar por todos os meios. O cansaço com um flagelo que perturba a vida cotidiana levou à adesão às soluções mágico-expeditivas postuladas pelo libertário.
Javier Milei não apresentou um exemplo sequer da viabilidade de sua proposta, mas introduziu a ilusão de um funcionamento proveitoso da economia dolarizada. Retomou o mito da convertibilidade menemista, omitindo o desemprego e a regressão produtiva que se seguiram a uma estabilização monetária baseada no endividamento e nas privatizações. Recriou também a ilusão da potência argentina do final do século XIX, ocultando que essa prosperidade agroexportadora só enriqueceu a oligarquia, reforçando o perfil subdesenvolvido do país.
O libertário sempre apresentou seus paraísos imaginários como corolários de um duro ajuste. Mas seus eleitores pressupõem que a “casta” (e não eles) suportará os custos deste sacrifício. Esse devaneio será demolido com os sofrimentos que o novo presidente impulsiona.
Presidencialismo autoritário
Javier Milei anseia por um regime político baseado no predomínio fulminante do executivo. Não pretende anular o Congresso, nem erradicar o Poder Judiciário, mas aspira a neutralizar a centralidade de ambos os organismos. Em várias ocasiões, deu a entender sua intenção de recorrer a um plebiscito para contrapor o bloqueio de suas iniciativas.
O libertário estreará com um pequeno pelotão de legisladores e sem ligações sólidas com os tribunais. Sua meta de presidencialismo autoritário não está à vista, mas tem um plano para atingir um objetivo semelhante à trajetória de Fujimori.
Javier Milei tentará forjar sua própria base político-social com recursos públicos. Tentará transformar o conglomerado disperso de personagens que constitui La Libertad Avanza num aparato de peso territorial. Procurará também complementar essa construção com uma rede de pactos mais sólidos do que as alianças improvisadas com seu espectro heterogêneo de parceiros.
A principal aliança que articulou inicialmente foi com a direita militarista da vice-presidente Villarruel. Este acordo trouxe-lhe o apoio minoritário dos nostálgicos da ditadura e uma grande simpatia dos poderosos, que aprovam as bases repressivas do próximo ajuste. O atropelo que move o libertário exige gendarmes, paus, balas e detidos.
Villarruel tomou partido de Videla, pondo fim às ambiguidades do macrismo. Pretende transformar os genocidas em vítimas, através de um negacionismo reabastecido que recria os piores fantasmas do passado. Seu revisionismo atroz fornece justificações para a criminalização do protesto social. Macri tentou, sem sucesso, esse movimento, identificando a resistência popular com os privilégios dos corruptos.
Javier Milei repetirá essa fórmula, demonizando aqueles que “se opõem à mudança”. Procurará silenciar as vozes dissidentes com proibições e depurações culturais. O anunciado fechamento da Telam, Radio Nacional e TV Pública antecipa esta investida. Villarruel aposta no desmantelamento de todas as conquistas democráticas dos últimos quarenta anos, começando pela anulação dos julgamentos dos genocidas.
Um segundo acordo político entre o libertário e Mauricio Macri visava somar votos no segundo turno. As leituras desse acordo ressaltaram a habilidade do engenheiro para lidar com Javier Milei, moldando o estilo, o tom e a estética do candidato às pautas definidas pelas equipes do PRO.
Mas os acontecimentos posteriores confirmam que o novo presidente não é um personagem manipulável. Ele tem um plano próprio que já provocou fortes tensões com Mauricio Macri. As previsões de que o próximo governo será um segundo turno do Cambiemos são prematuras. As disputas pelo gabinete e pela liderança do bloco parlamentar contrapõem o perfil convencional de direita patrocinado por Mauricio Macri com a aventura plebiscitária que promove o novo presidente.
Javier Milei planeja uma terceira aliança com a direita peronista. Já sondou Pichetto, Randazzo, Toma e Scioli para cargos de alta responsabilidade, reforçando as negociações pré-eleitorais com Barrionuevo. Com o mesmo propósito, designou funcionários de Schiaretti para a ANSES [Administração Nacional da Seguridade Social] e para os Transportes.
Esta tentativa visa tirar proveito de uma crise do peronismo, que é estritamente proporcional ao triunfo de Javier Milei. Se o libertário tivesse ganhado por pouco, Sergio Massa teria podido preservar a liderança que tinha conquistado no PJ, tornando competitiva a candidatura de um oficialismo em desagregação. Mas a derrota esmagadora do justicialismo reabriu todas as feridas desse partido. Javier Milei atrai o setor antikirchnerista, que amadureceu um discurso que enaltece o capitalismo e é hostil aos desamparados.
A presidência do libertário traz também um inesperado troféu internacional ao trumpismo. Buenos Aires se tornará um local de presença frequente dos expoentes da onda marrom e já circulam convites para receber Trump, Bolsonaro, Orban, Kast e Abascal. A cerimônia de tomada de posse será uma cúpula da extrema direita mundial. As tensões geradas por este alinhamento na região vieram à tona e os elogios de Bukele contrastam com as palavras duras de Maduro e Petro.
Javier Milei aposta em concatenar essa rede internacional com a construção de seu próprio espaço no país. Ao contrário de seus pares, não conta com um partido de peso nem com forças religiosas e militares que o apoiem. Além disso, sua própria cosmovisão ideológica, baseada na escola austríaca de economia, no anarcocapitalismo e no paleolibertarismo de Rothbard, carece de nexos com as tradições da direita argentina. Sua promoção ativa de ligações internacionais visa contrapor esta situação.
Thatcherismo e bolsonarismo
O agrupamento forjado por Javier Milei inclui uma grande variedade de grupos fascistas, mas seu projeto não é fascista. Contém seitas violentas como a Revolución Federal, envolvida na tentativa de assassinato de Cristina, e patotas que fazem ameaças com o logotipo dos Falcões Verdes. Também considera a possibilidade de enviar provocadores contra manifestantes da oposição (“orcs”).
Mas o fascismo, como regime tirânico baseado no recurso ao terror contra as organizações populares para subjugar um perigo revolucionário, não está no horizonte imediato. Javier Milei tem um objetivo thatcherista de modificar as relações de força, quebrando as poderosas organizações populares do país.
Procurará certamente resolver algum conflito social emblemático a favor das classes dominantes, como foi a greve dos mineiros na Inglaterra (1984). De imediato, tentará sobressair-se no embate que seu mega-ajuste provocará. O resultado dessa primeira batalha será decisivo nas confrontações seguintes.
Jair Bolsonaro é o principal antecedente e referente de Javier Milei. Essa afinidade ficou explícita no convite acelerado que o ex-capitão recebeu para participar da posse de 10 de dezembro. Este convite afeta Lula e o consequente vínculo com o principal parceiro econômico da Argentina.
Javier Milei elogia o Ocidente, exalta os Estados Unidos e teatraliza seu fanatismo por Israel com homenagens a um rabino medieval. Também fala alto contra a China, que é o grande mercado para os produtos primários do país. Jair Bolsonaro usou a mesma retórica, mas acabou optando pelo pragmatismo com Pequim, sob pressão dos agroexportadores brasileiros.
O libertário estreia repetindo o tom inicial do militar brasileiro. Colocou indivíduos exóticos em posições-chave da gestão estatal, em conflito com os funcionários experientes sugeridos pelo establishment. Um clonador de cavalos à frente do Conicet e um advogado com credenciais emitidas pela mídia já emulam as nomeações escandalosas de Jair Bolsonaro. A tensão incipiente com figuras da direita tradicional e o ressentimento dos grandes meios de comunicação também aproximam os dois processos.
Mas Jair Bolsonaro é também o espelho ilustrativo de um autoritarismo frustrado. Tal como Donald Trump, sua ambição tirânica incluiu um golpe de Estado fracassado que afetou sua carreira. O libertário crioulo espera evitar derrotas desse tipo.
Explicações e comparações
Como explicar o sucesso eleitoral de um personagem tão nefasto como Javier Milei?
Muitas avaliações enumeram fatores sem hierarquizar as causas deste resultado. O desastre econômico provocado pelo governo de Fernández determinou a vitória do libertário. Os eleitores rejeitaram um oficialismo que tolerou uma inflação de 120% e aumentou a pobreza para mais de 40%. O discurso progressista disfarçou um ajuste que generalizou o status de trabalhador formal pobre. As promessas de Sergio Massa eram pouco críveis e seu adversário capitalizou essa desconfiança.
A maior parte do eleitorado atribuiu ao governo a responsabilidade pelo colapso econômico. A culpa poderia ter sido atribuída aos grupos capitalistas ou às pressões destituintes. O governo venezuelano e os dirigentes cubanos dobraram a oposição demonstrando esse tipo de intimidação, em condições econômicas comparáveis às da Argentina.
O que pulverizou o peronismo nas urnas foi a inação política face a uma grande deterioração econômica. Esta paralisia começou com a condescendência inicial no caso Vicentín e consolidou-se com a submissão ao FMI. A culpabilidade direta de Alberto Fernández é evidente, mas a responsabilidade de Cristina Kirchner não é menos relevante.
Cristina Kirchner desistiu de travar a batalha contra a degradação econômica e limitou-se a assinalar as adversidades com mensagens elípticas. A partir da vice-presidência, poderia ter introduzido uma mudança de rumo, após a advertência contundente que irrompeu nas eleições intermediárias. Nesse momento, Javier Milei era apenas uma pequena força em formação.
Cristina Kirchner também não impulsionou uma reação adequada à gravidade do atentado contra sua vida, e o toque final foi a renúncia à sua candidatura. Esta atitude de resignação contagiou a militância e desmoralizou seus apoiadores. Foi o oposto da postura adotada por Lula para enfrentar Jair Bolsonaro.
A batalha bem sucedida contra a extrema direita no Brasil, na Colômbia e no Chile demonstrou que é possível derrotar personagens como Javier Milei quando se articulam reações democráticas massivas.
Nos últimos meses, essas respostas surgiram no país, com iniciativas de estudantes, artistas e vizinhos. Mas esta micromilitância do progressismo não foi suficiente para conter a onda roxa, que coroou quatro anos de frustrações com o presidente escolhido por Cristina Kirchner. O veredito final foi antecipado pelo contraste dos atos de encerramento. Sergio Massa reuniu-se com um pequeno grupo de estudantes secundaristas, enquanto Javier Milei enchia as ruas de Córdoba.
O resultado da eleição argentina tem certas semelhanças com a vitória de Jair Bolsonaro em 2018. A mesma surpresa (e mal-estar) que gerou aquele resultado está sendo vivida atualmente no país. O medo despertado no Brasil por um capitão desvairado foi inferior ao cansaço encarnado na figura de Fernando Haddad. E as frustrações acumuladas com Dilma Rousseff foram semelhantes à desilusão com Alberto Fernández.
Mas também é verdade que o governo desastroso de Jair Bolsonaro favoreceu o ressurgimento posterior de Lula. Esse antecedente fornece um certo alerta contra as previsões do declínio inexorável do kirchnerismo e do ocaso definitivo do progressismo.
O principal pano de fundo comum em ambos os contextos foi a ausência de resistência social significativa. No Brasil, a onda de protestos de 2016 levou ao apoio ao bolsonarismo, e, na Argentina, a força tradicional do movimento sindical foi achatada nos últimos quatro anos.
Interpretações e justificações
A canalização pela extrema direita do descontentamento com os governos progressistas não é uma singularidade argentina. Javier Milei reproduz as mesmas tendências verificadas em outras latitudes. Ele se gaba de ser o “primeiro presidente liberal-libertário do mundo”, mas variantes do mesmo tipo já governam há algum tempo em vários países.
É verdade que a pandemia facilitou a avalanche de correntes reacionárias, mas os oficialismos desse signo foram igualmente castigados pelo impacto da infecção. Alberto Fernández recebeu o mesmo mal-estar que afetou Donald Trump e Jair Bolsonaro. Este repúdio eleitoral não se estendeu, ademais, a todos os progressismos. López Obrador, por exemplo, passou no teste com distinção.
Foram feitas muitas avaliações dos efeitos psicossociais da pandemia e da desestabilização emocional que gerou nas camadas jovens. Algumas interpretações acreditam que essa comoção potencializou os impulsos autodestrutivos que permeiam a sociedade. Mas é um abuso extrapolar estas avaliações para o campo político a fim de explicar a vitória de Javier Milei. As principais causas do sucesso da extrema direita encontram-se nos domínios visíveis da degradação econômica e da fraude política.
É evidente que Javier Milei navegou de vento em popa, que a reação ideológica neoliberal contra o progressismo propicia. A precarização do emprego e a erosão das prestações sociais do Estado deterioraram a imagem positiva da atividade pública.
Os libertários aproveitaram esse desgaste para propagar os mitos do indivíduo empreendedor e autossuficiente, sem dar um único exemplo da viabilidade dessas crenças. Seu enaltecimento do consumo também convergiu com estes pressupostos, porque no último biênio se tornou um refúgio inesperado para lidar com a inflação e a impossibilidade de poupar.
Javier Milei beneficiou-se de uma onda de reação conservadora. Com esse vendaval, atacou a “ideologia de gênero” e o “marxismo cultural”, antecipando atitudes inquisitoriais. Vai certamente deixar de lado suas odes à tolerância liberal, para implementar as perseguições promovidas pelos homens das cavernas de sua equipe. Benegas Lynch já lançou uma campanha para revogar o aborto e atacar o movimento feminista.
Salta à vista que os novos meios de comunicação tiveram um enorme impacto no sucesso de Javier Milei. Geriu as plataformas com grande habilidade e contou com a estreita colaboração de especialistas em redes sociais. Utilizou esta base – tal como seu padrinho Donald Trump – para espalhar notícias falsas. Inclusive tinha preparada uma denúncia fantasiosa de fraude para lidar com resultados eleitorais adversos.
O libertário também aproveitou o clima pós-moderno de dissolução da verdade e perda de confiança na razão, para expor propostas disparatadas, contradizer suas afirmações e sustentar incoerências sem ruborizar-se.
Diante do impacto gerado por seu inesperado triunfo, multiplicaram-se as explicações, que enunciam causas sem priorizar os determinantes econômicos e políticos da maré roxa. O peronismo, em particular, está em estado de choque e seus pensadores substituem a avaliação concreta do que ocorreu por descrições (inflação, dívida), generalidades (ascensão da direita) ou meras justificações (pandemia, guerra, seca).
Outros pedem para adiar o balanço (“é preciso pensar na derrota”) ou evitá-lo (“para evitar maiores danos”). Alguns optam pela crítica aos eleitores (“as pessoas cometem erros”), com uma visão paradoxalmente próxima da difamação da Argentina pela direita (“país de merda”). A avaliação política do kirchnerismo, que tentam eludir, é a única forma de esclarecer o complexo cenário criado por Javier Milei.
A estreia tormentosa com ajuste
Ninguém da extrema direitista teve que lidar com uma crise econômica comparável à da Argentina. Aqui reside a grande diferença em relação a Jair Bolsonaro, e essa singularidade levanta as principais questões sobre o libertário.
Sob um mar de improvisações, Javier Milei tem um plano de ajuste definido em várias etapas. Antes de tudo, ele acordará com o FMI o atropelo das conquistas populares. Poucas vezes houve tanta coincidência inicial com o Fundo.
Os cortes no déficit fiscal e as emissões exigidas pela agência – para acumular reservas e garantir o pagamento dos credores – convergem com Javier Milei. A tesoura exigida por Washington coincide com a motosserra do libertário. Sua hostilidade em relação à China também dilui os temores do FMI quanto às imprevisíveis manobras argentinas com o yuan, que sustentam as reservas cada vez mais reduzidas do Banco Central.
O pontapé inicial de Milei será a grande desvalorização que Sergio Massa adiou e Mauricio Macri não conseguiu forçar através de golpes de mercado fracassados. O dólar oficial saltaria 100% para começar a se aproximar do preço do paralelo. O libertário tentou, sem sucesso, que Fernández se despedisse com este choque e Alberto aceitou apenas aumentar parcialmente a taxa de câmbio para os exportadores e o turismo.
A megadesvalorização de Javier Milei provocará uma inflação altíssima. A remarcação brutal dos preços em curso e a retenção generalizada de mercadorias antecipam este impacto. Dado que o libertário já anunciou que anulará os acordos de preços, começa a pressentir-se um clima de hiperinflação.
A iminente cirurgia sem anestesia inclui uma redução drástica do gasto público que empobrecerá o grosso da população. O anúncio de uma eventual supressão da gratificação de Natal é um indicador da amplitude destes cortes. Uma machadada semelhante introduziria a suspensão das obras públicas e a amputação dos fundos transferidos para as províncias.
A implementação de tal ajuste será garantida pela redução abrupta da emissão. Os efeitos recessivos dessa restrição introduziriam a principal reviravolta na conjuntura econômica. O descalabro dos últimos anos foi gerido através da manutenção de um nível de atividade que agora tenderá a colapsar.
Nas próximas semanas verificaremos o impacto de uma guerra econômica contra o povo. Milei, Bullrich e Macri tentaram fazer com que o cenário caótico recaísse sobre o atual governo, mas tudo indica que esse contexto explodirá em dezembro. O novo governo terá que enfrentar as consequências de seu ajuste brutal.
Atropelo com endividamento
A segunda fase do Plano Milei envolve a aprovação legislativa de um reordenamento neoliberal, muito superior ao que se tentou no passado. Este pacote inclui o desmantelamento da Aerolíneas, a eliminação de 11 ministérios, a privatização dos meios de comunicação, a desregulamentação dos alugueis, cortes nas transferências para as províncias, novas diminuições nas pensões, alguma retoma do sistema privado de aposentadoria e uma reforma laboral que elimina as indenizações.
Esta monstruosidade legislativa já foi apresentada, mas seus promotores hesitam em introduzi-la em bloco (lei ônibus) ou de forma sequencial. Para evitar obstáculos nos tribunais, o novo ministro Cúneo Libarona negocia certa impunidade em troca de privilégios para a casta judicial (fim do juízo político aos supremos e ocupação das vagas pelos afilhados da Corte).
Mas a aprovação legislativa das contrarreformas neoliberais depende das alianças feitas por um presidente que não tem uma bancada própria significativa. Nas disputas sobre a nomeação de funcionários, Mauricio Macri faz chantagem com a retenção desse apoio legislativo.
A terceira etapa do plano em curso é a dolarização, que Javier Milei apresenta como um objetivo estratégico de improvável implementação imediata. Tem um significado semelhante ao da convertibilidade, como base da reorganização neoliberal de Menem. O libertário não renuncia a impor tal mudança no padrão monetário, mas não pode dolarizar sem divisas.
Essa mutação monetária também é impossível com a montanha de pesos em circulação e a bolha da dívida pública concentrada nas Leliqs. A dolarização exigiria a acumulação de divisas e a redução dessa massa de títulos, após um tsunami econômico que estabilize a moeda. Por esta razão, a dolarização paulatina (segundo o modelo do Equador ou de El Salvador) é concebida como o terceiro momento do programa libertário. Sua implementação imediata geraria não só uma explosão cambial e um colapso hiperinflacionário, mas também a ruína dos bancos.
As instituições concentram a montanha de Leliqs e funcionam renovando o crédito ao Estado, com muito poucos empréstimos ao setor privado. Uma dolarização sustentada na redução abrupta destes títulos (através de sua conversão numa outra obrigação) afetaria tanto os depositantes como os próprios bancos.
Javier Milei não precisa de divisas para o futuro plano de dolarização, mas para o início imediato de sua administração. Esta ajuda é imperativa. Com o dinheiro emprestado em troca das Leliqs, o Estado paga os salários, aposentadorias e compromissos com contratistas e credores. Se não conseguir algum oxigênio externo, terá que estrear com anúncios de paralisação do atual funcionamento da administração pública.
Só o setor mais extremista de sua equipe – que perdeu influência com a renúncia de Carlos Rodríguez – é a favor de iniciar o ajuste com um colapso de magnitude monumental. Javier Milei procura créditos no exterior para contornar essa aventura. Até agora, exibia os empréstimos negociados por Emilio Ocampo com algumas instituições (Bank of America) e fundos de investimento (Black Rock). Mas parece que optou pelo dinheiro que conseguiria Caputo, o artífice de todas as bicicletas da era Macri.
O “Messi das finanças” transformou primeiro o país no maior devedor privado do planeta e depois no principal prestatário do FMI. É um especialista nessa jogada a serviço do Deustche Bank e do JP Morgan, que reaparece emulando o retorno do segundo Cavallo diante de uma economia à beira do precipício.
Ninguém sabe quanto dinheiro obteria e que garantias seriam dadas aos credores, mas o protagonismo da YPF indica que os banqueiros ficaram tentados pelos ativos de Vaca Muerta. A produtividade dessa jazida é tão elevada que poderia transformar o atual déficit energético (4,5 bilhões de dólares) num enorme superávit (17 bilhões de dólares) até 2030. Javier Milei anunciou a privatização da empresa petrolífera (cujas ações explodiram em Wall Street) e colocou um homem do Grupo Techint para gerir a liberação dos preços e uma melhora adicional do balanço florescente da empresa.
O fundo abutre que reclama em Nova Iorque o pagamento de uma dívida inverossímil com a YPF já aceitou adquirir ações como garantia de pagamentos futuros. Há outras privatizações na agenda (AYSA, estradas de ferro) e foi desencadeada uma guerra pelas empresas mais rentáveis (ARSAT), mas Vaca Muerta (a segunda maior reserva de gás do mundo) é a joia que Javier Milei está leiloando para endividar o país pela enésima vez.
Se o libertário conseguir dar início a uma estabilização monetária semelhante à obtida com a convertibilidade, retomará o plano de dolarização após uma transição bimonetária (crescentes contratos setoriais denominados em divisas). A mistura de ambas as variantes resumiria a convergência de seu plano com os modelos propiciados pelos economistas de Mauricio Macri.
Mas o mais provável é um estouro prévio da bolha especulativa em gestação, no compasso da dança descontrolada dos nomes que disputam os cargos na esfera econômica. Javier Milei está cercado de financistas aventureiros que já demonstraram sua incalculável capacidade de causar danos. Sturzenegger foi o criador das Lebacs (que antecederam as Leliqs) e Caputo colocou um título incrível que hipoteca o país por 100 anos.
A disputa entre os financistas pelo reendividamento em curso gerou uma crise de potenciais ministros antes mesmo de sua posse. Com a queda de Ocampo, vários candidatos do rincão de Javier Milei ficaram de fora (Piparo para a ANSES, Villarruel para a Segurança). Ao mesmo tempo, com a ascensão de Caputo, os macristas ganharam espaço (Bullrich para a Defesa). O círculo vermelho prefere os funcionários mais confiáveis do PRO no início da administração. Mas as disputas virulentas no topo antecipam um perfil caótico para o novo governo.
Resistências e erosões
O principal limite que a escavadeira de Javier Milei enfrenta é a resistência popular. No passado, essa reação impediu várias tentativas de remodelação regressiva do país. O libertário tentará sair vitorioso da mesma confrontação que minou seus antecessores. Pretende alterar a relação de forças que seus mestres não conseguiram alterar.
Conta a seu favor a desmobilização social que impera há vários anos. Apenas os movimentos piqueteros se mantiveram nas ruas, diante da paralisação das organizações sindicais. Milei é favorecido também pela magnitude de seu sucesso eleitoral e pela memória recente dos fracassos de Alberto Fernández.
Mas as rebeliões populares têm irrompido periodicamente na Argentina com uma intensidade inesperada, e é muito instrutiva também a experiência recente do Equador. O neoliberal Lasso chegou confiando em sua capacidade de atropelo e enfrentou duas derrotas impressionantes, face a uma resposta a partir de baixo liderada pelas organizações indígenas.
O mega-ajuste de Javier Milei está ameaçado, em segundo lugar, pela dinâmica incontrolável de suas medidas. Ensaiará um ajuste sobre o ajuste que tem poucos precedentes. Tradicionalmente, as desvalorizações e os grandes cortes nos gastos públicos introduziam uma deterioração abrupta da renda popular em crescimento (ou ao menos estagnada). Agora, os salários de pobreza e os subsídios à indigência serão pulverizados.
As tarifas (e outros preços que o establishment considera “atrasados”) aumentarão num marco de inflação altíssima, adicionando combustível ao fogo. A motosserra amputará o gasto público, que tem permitido sustentar o nível de atividade através de um remendo em cima do outro.
A combinação iminente de maior inflação com desvalorizações e recessão prenuncia a mesma turbulência que derrubou outras investidas iniciais do neoliberalismo. Com base nessa experiência, os economistas do PRO conceberam vários programas (e ministros) substitutos da primeira investida. Não está claro se Javier Milei tem um Plano B, diante de uma sequência descontrolada de corridas cambiárias e bancárias.
Um terceiro limite para o atropelo está localizado na eventual ruptura da aliança com Macri. Os indícios dessa fratura surgiram na distribuição dos ministérios e na tradicional disputa entre o conglomerado de Mauricio e seus rivais da Techint. O resultado dessa luta ainda é desconhecido, mas o ímpeto inicial do libertário foi refreado pelas exigências do ex-presidente.
A colonização macrista do novo governo é uma possibilidade. Mas Javier Milei não é um personagem passivo, nem um fantoche do Cambiemos. Tem personalidade, defende os interesses econômicos de seus colaboradores e encarna um projeto de extrema direita diferente da direita convencional. Até agora, promoveu a abertura da economia e o corte dos subsídios às empresas ligadas ao Estado que propiciam os talibãs do capital financeiro. Pelo contrário, Mauricio Macri continua sendo um grande lobista da “patria contratista”. Uma escalada do conflito entre ambos os setores poderia erodir as duas vertentes do andaime neoliberal.
As classes capitalistas apoiarão o ajuste enquanto aguardam seus resultados. Esse apoio inicial pode diluir as fortes diferenças que surgiram na campanha eleitoral. Javier Milei atuou como o expoente dos fundos de investimento, Patricia Bullrich do capital financeiro tradicional e do agronegócio e Sergio Massa foi a cartada do capital industrial. Mas, como costuma acontecer após as eleições, todos se adaptam ao vencedor, seguindo a adaptação patrocinada pelo FMI.
Na batalha final, Javier Milei juntou ao seu rincão financeiro o apoio dos unicórnios (Galperin), dos gigantes da indústria (Techint) e do grosso do agronegócio. Sergio Massa manteve o apoio da burguesia industrial (UIA) e dos empresários com grandes contratos do Estado (Eurnekian, Vila).
Estes alinhamentos serão seriamente modificados pela cirurgia que o libertário introduzirá. A guerra pelas empresas deixará feridos e o balanço do ajuste recessivo no tecido empresarial é imprevisível. Se as baixas forem numerosas, começará uma contestação a partir de cima da própria continuidade do reordenamento neoliberal.
Diagnóstico em gestação
Os prognósticos sobre a presidência de Javier Milei são tão arriscados como as sondagens que não previram sua vitória esmagadora. Esta dificuldade de previsão deve-se à novidade de um novo protagonista em gestação. A extrema direita entrou em cena como um ator cuja consistência é um ponto de interrogação.
A disputa política já não contrapõe apenas peronistas, radicais e macristas. Esta mutação significativa leva-nos a avaliar a situação atual como o fim de um ciclo e o início de uma nova era. Mas é prematuro postular que esta guinada histórica começou, antes de conhecermos os efeitos imediatos do novo governo. Em poucos meses, saberemos qual é a amplitude das mudanças que afetam um país submetido a vertiginosas transformações.