1 de fevereiro de 2008

Nenhuma zona proibida na leitura?

Dushu e a intelligentsia chinesa

Por uma década, a revista mensal Dushu publicou alguns dos debates mais incisivos da China sobre a cultura e a economia do país. A pesquisa de Zhang Yongle relaciona a trajetória do periódico ao curso dramático de desenvolvimento da RPC e às rupturas dentro de sua intelligentsia.

Zhang Yongle

New Left Review

NLR 49 • Jan/Feb 2008

A data de publicação para esta seleção há muito planejada de artigos do Dushu — provavelmente o principal periódico intelectual da China da última década, bem como o mais controverso — acabou sendo altamente irônica.1 Em julho de 2007, enquanto a coleção Essentials of Dushu de seis volumes estava aparecendo nas livrarias, seus dois editores-chefes, Wang Hui e Huang Ping, estavam sendo demitidos da revista mensal por sua empresa-mãe, a sdx Publishing. Os motivos oficiais para isso pareciam pouco plausíveis: inicialmente, falava-se em queda na circulação, embora, na verdade, o número de assinantes do Dushu tivesse aumentado sob Wang e Huang, de cerca de 60.000 para bem mais de 100.000. A sdx então anunciou que estava implementando uma política da empresa que exigia que todos os editores-chefes fossem em tempo integral, em vez de complementar seu trabalho com ensino universitário, como era o caso de Wang e Huang. A empresa não conseguiu, no entanto, fornecer nenhuma explicação sobre o motivo pelo qual de repente se "lembrou" dessa política, que existia há muitos anos sem nunca ter sido aplicada.

As demissões provocaram uma tempestade de controvérsias entre os intelectuais chineses: o debate se alastrou no ciberespaço, jornais e revistas sobre os méritos da "era Wang e Huang" do Dushu. Os detratores dos editores argumentaram que os dois transformaram o periódico, "universalmente reconhecido" pela intelectualidade chinesa nos anos 1980 e início dos anos 90, em uma plataforma para uma pequena "camarilha da nova esquerda", abandonaram sua tradição de prosa elegante e o tornaram especializado demais para ser legível. Os apoiadores do Dushu, no entanto, argumentaram que a política editorial de Wang e Huang incorporava precisamente o tipo de orientação crítica que os intelectuais deveriam insistir em uma era de transformação social dramática, quando a mercantilização e o desenvolvimento desigual criaram disparidades cada vez maiores em meio ao crescimento de alta velocidade. Esta seleção dos Essentials of Dushu permite que os leitores formem suas próprias avaliações da contribuição do periódico para a compreensão e avaliação desses processos. Ele oferece uma visão geral das preocupações intelectuais de Dushu durante a década de 1996 a 2005, refletindo as principais mudanças trazidas sob a editoria conjunta de Wang e Huang. Para aqueles fora da China, ele também pode fornecer uma boa janela para os debates intelectuais na RPC durante esse período: o periódico provocou muitas discussões, trocas e polêmicas políticas e, como seu título sugere, esta seleção inclui quase todas as peças essenciais.

Aberturas

Dushu — o nome significa literalmente "leitura de livros" — foi fundado como um periódico mensal em 1979, com o famoso slogan "Nenhuma zona proibida na leitura". Publicou uma variedade de resenhas de livros, memórias e ensaios acadêmicos, variando de breves avisos — algumas centenas de caracteres — a textos de 12.000 caracteres (cerca de 7.500 palavras em inglês), com um comprimento médio de cerca de 4.000 caracteres ou 2.500 palavras. No início da década de 1980, sob as editorias de Ni Ziming e Chen Yuan, contribuições elegantemente escritas por uma geração mais velha de acadêmicos e ensaios políticos de pensadores de mente aberta dentro do Partido constituíram uma parte significativa dos artigos do periódico. Dushu não era de forma alguma a única plataforma para discussão intelectual na época: Lishi Yanjiu (Estudos em História) e Zhongguo Shehui Kexue (Ciências Sociais na China) também foram influentes no debate de questões contemporâneas. Dushu era conhecido especialmente por sua publicação de memórias e retratos intelectuais, que forneciam uma espécie de panteão por meio do qual a intelectualidade chinesa podia construir uma nova identidade coletiva.

Apesar de muitas divergências, havia um consenso tácito de perspectiva entre a intelligentsia neste período: eles compartilhavam um sentimento de cansaço após o passado revolucionário recente e uma aspiração por modernização que foi resumida na noção do "novo iluminismo" como o caráter da época, refletindo uma inclinação para o universalismo liberal; isso seria expresso na Praça da Paz Celestial em 1989. O "novo iluminismo" foi marcado por um certo ocidente-centrismo, baseado na crença em um modelo linear-histórico de modernização, para o qual a experiência do Ocidente era vista como um exemplo primordial. Curiosamente, muitos artigos do Dushu na década de 1980 tendiam a olhar para o Japão: reestruturada pelos Estados Unidos após 1945, e poupada do trauma da revolução política, a economia japonesa emergiu como a segunda maior do mundo. Tal admiração foi sustentada por uma comparação tácita: na China, a revolução interrompeu o processo de modernização e fez com que o país ficasse para trás. Quando o Partido Comunista Chinês se distanciou de seu passado revolucionário e se reformulou como um "partido da modernização" após 1978, ele foi visto por muitos intelectuais como estando de volta ao caminho certo. Para a China, a tarefa urgente era seguir o exemplo dos países desenvolvidos e se integrar à ordem mundial dominante, de acordo com o consenso pós-revolucionário. Correspondentemente, a gloriosa missão dos intelectuais chineses era usar os critérios codificados da modernidade para criticar o desenvolvimento da China, passado e presente.

Por volta de 1985, a introdução de conceitos e metodologias ocidentais se tornou um foco importante do interesse de Dushu: teoria da modernização, semiologia, formalismo russo, análise foucaultiana, Braudel e a escola de historiografia dos Annales eram uma mistura inebriante para uma geração mais jovem de intelectuais. O movimento foi parte da onda conhecida como a "febre cultural" da década de 1980, na qual sdx foi um participante ativo; a editora produziu uma famosa série de traduções editadas por Gan Yang, então um estudante de pós-graduação na Universidade de Pequim, sob a rubrica ‘Cultura: China e o Mundo’, que sistematicamente introduziu o trabalho de pensadores ocidentais. Uma série semelhante, editada por Jin Guantao e Bao Zunxin, foi publicada pela Sichuan People’s Press sob o título ‘March to the Future’. Dushu publicou resenhas de muitas dessas traduções, incluindo obras de Nietzsche, Freud, Heidegger, Sartre e outros. Ao mesmo tempo, olhando para o Dushu do final dos anos 1980 e início dos anos 1990, dificilmente se tem um vislumbre das mudanças que estavam ocorrendo na sociedade chinesa além do mundo intelectual: a dissolução das Comunas Populares, a ascensão de empresas de vilas e municípios, mercantilização econômica, descentralização fiscal e assim por diante; o periódico operava mais como um salão ou clube.

Dushu não sofreu tanto com a repressão oficial depois de 1989 quanto alguns de seus periódicos irmãos, e continuou como um site para "febre cultural". O fato de que muitas das outras revistas influentes da década de 1980 foram afetadas por tais pressões e privadas de muito de seu vigor intelectual levou Dushu a assumir maior relevância. No mínimo, a comercialização da sociedade chinesa depois de 1992 provavelmente representou maiores desafios para Dushu. O número de leitores da maioria das resenhas intelectuais estava diminuindo na época e Shen Changwen, editor-chefe durante 1986-96, voltou-se para uma política mais populista, visando tornar seus artigos mais fáceis de ler. A partir de 1996, no entanto, quando Wang Hui e depois Huang Ping foram convidados a se juntar ao periódico — inicialmente em caráter temporário — após a aposentadoria de Shen, Dushu foi orientado por linhas mais críticas e acadêmicas. A dupla fortaleceu a cobertura de ciências sociais do periódico e encorajou um engajamento aberto com questões políticas e econômicas contemporâneas. Eles também estavam mais interessados ​​em interagir com a comunidade intelectual internacional do que seus predecessores. Foi sob Wang e Huang que Dushu surgiu como um periódico socialmente crítico; desagradável para alguns, mas, ainda assim, levantando questões que indubitavelmente tinham uma ressonância mais ampla.

Nova geração

Os dois acadêmicos representaram uma ruptura profissional e geracional. Durante o período de 1979 a 1996, os editores-chefes do Dushu eram editores e editores, cuja formação intelectual era em grande parte em literatura, história e filosofia. Wang Hui e Huang Ping surgiram de uma formação acadêmica mais formal. Wang, nascido em 1959, foi conhecido inicialmente como especialista em Lu Xun e concluiu seus estudos de doutorado em história da literatura chinesa. No final da década de 1980, ele se voltou para a história intelectual. Seu longo artigo, "Contemporary Chinese Thought and the Question of Modernity", originalmente composto em 1994, mas publicado em 1997, foi um choque para os intelectuais chineses da época e provocou debates sérios, devido à sua atitude crítica em relação à modernidade capitalista e sua abordagem fortemente sócio-histórica à história das ideias.footnote2 Seu trabalho recente de quatro volumes, TheRise of Modern Chinese Thought, explora sistematicamente a transformação do pensamento tradicional em contextos sociais modernos. Wang atualmente leciona na Universidade Tsinghua e é um dos acadêmicos mais conhecidos da China. Huang Ping nasceu em 1958 e recebeu seu PhD em sociologia pela London School of Economics; agora ele leciona na Academia Chinesa de Ciências Sociais. Ele atuou como editor em vários periódicos internacionais, incluindo Comparative Sociology, British Journal of Sociology e Current Sociology, e escreveu sobre desenvolvimento social, modernidade e globalização e, acima de tudo, desenvolvimento rural e equilíbrio regional na China. Ambos têm uma sólida formação em teoria social, o que os permite levantar muitas questões críticas sobre a China contemporânea. Em termos de formação intelectual, eles são mutuamente complementares: Wang é forte em literatura e história, Huang em ciências sociais empíricas.

Em parte, isso representou um processo mais amplo de diferenciação entre os intelectuais chineses durante a década de 1990. As ciências sociais se tornaram cada vez mais importantes na discussão de problemas públicos a partir de meados da década, e Wang Hui é um dos muitos acadêmicos que migraram da literatura para a história social e intelectual durante esse período. Mas a orientação de Dushu também refletiu a clivagem ideológica dramática que ocorreu dentro da intelligentsia a partir de meados dos anos 90, quando muitos de seus autores começaram a articular uma crítica ao caminho de desenvolvimento da China. Esta foi uma posição altamente controversa, logo apelidada de "nova esquerda" ou "pós-modernista". Ambos os rótulos tinham fortes conotações negativas neste contexto: por um longo tempo após a década de 1970, era quase escandaloso para um intelectual ser descrito como "esquerdista" (em oposição a "liberal"), porque a maioria da intelligentsia já havia sido vítima do ultraesquerdismo do Partido Comunista Chinês. O pós-modernismo parecia ainda mais estranho: como um intelectual poderia criticar o ideal de modernização em uma sociedade atrasada?

No entanto, o crescimento da década de 1990 produziu resultados sociais que os intelectuais da década de 1980 dificilmente poderiam ter previsto. Após o famoso discurso de Deng Xiaoping sobre a "viagem ao sul" em 1992, o PCC se lançou em um processo de reforma caracterizado pela mercantilização, privatização e integração à ordem mundial capitalista, na qual a rápida expansão da manufatura voltada para a exportação lançou as bases para a ascensão da China para se tornar a "oficina do mundo"; ao mesmo tempo, a venda de empresas estatais, combinada com cortes no bem-estar social para equilibrar o déficit decorrente da descentralização fiscal da década de 1980, resultou na demissão de milhões de trabalhadores de empresas estatais. À medida que a onda de privatização se espalhava para empresas de municípios e vilas de propriedade coletiva, milhões de camponeses perderam seus empregos e tiveram que viajar para as cidades costeiras em busca de trabalho. As disparidades aumentaram entre ricos e pobres, distritos urbanos e rurais, regiões costeiras e o interior. A poluição piorou drasticamente. O alto custo do desenvolvimento recaiu sobre as pessoas comuns.

Foram essas condições que dividiram o consenso relativo que havia sido obtido entre os intelectuais chineses durante a década de 1980. O governo se apegou à doutrina de "eficiência em primeiro lugar" — xiaolü youxian — e proibiu qualquer desafio aberto a esse programa. Economistas tradicionais formaram um sacerdócio virtual em torno do projeto de privatizações e cortes no bem-estar social e, por muito tempo, quase monopolizaram a discussão dentro da intelectualidade e da sociedade em geral. Quaisquer problemas emergentes da privatização e do desenvolvimento desigual foram descartados como soluços temporários que seriam resolvidos por uma maior mercantilização. Para muitos intelectuais, o rápido crescimento da década de 1990 confirmou sua crença na modernização: a privatização levaria ao desenvolvimento econômico, que por sua vez daria origem à liberdade política; esse processo hayekiano-friedmanita foi entendido como uma maré irresistível da história mundial. Outros, no entanto, chamaram a atenção para o "lado negro" do modelo de crescimento da China. Novas vozes surgiram; o conceito de modernização da década de 1980 agora parecia cada vez mais problemático e vulnerável. Desentendimentos vieram à tona e as bases intelectuais instáveis ​​do antigo consenso foram expostas. Como um periódico intelectual líder, o Dushu não apenas testemunhou essa transformação, mas foi um participante importante nela.

O Essentials of Dushu fornece um bom registro de muitos desses debates e das fortes visões críticas expressas neles. Em contraste com a década de 1980, as páginas do Dushu em sua "fase Wang e Huang" também oferecem uma imagem clara dos desenvolvimentos turbulentos na sociedade chinesa, enquanto o periódico lutava com problemas contemporâneos. O Dushu não foi o único local para tais discussões: outros periódicos prosperaram na última década, incluindo The Twenty-First Century, Strategy and Management e o mais esquerdista Tianya, todos os quais publicam artigos mais longos do que o Dushu. O próprio Wang Hui escreveu para todos os três; seu famoso ensaio, "Contemporary Chinese Thought and the Question of Modernity", que tem cerca de 35.000 caracteres, apareceu no Tianya. No entanto, o Tianya se concentra na literatura, não nas ciências sociais; Strategy and Management concentra-se em ciências sociais, não em humanidades; The Twenty-First Century é forte em ambas, mas é publicado em Hong Kong e poucas pessoas na China continental têm acesso direto a ele. No início da década de 1990, The Twenty-First Century era o único periódico disponível para aqueles que tinham fugido para o exterior após 1989 e se tornou um recurso muito importante. Publicou debates importantes sobre conservadorismo e radicalismo no pensamento chinês do século XX, por exemplo, e sobre a capacidade estatal da China. Desde meados da década de 1990, à medida que os periódicos no continente recuperaram seu vigor, sua importância diminuiu. Dushu, por sua vez, desfrutou de uma vantagem importante por estar localizado em Pequim e historicamente manteve relações estreitas com acadêmicos em uma ampla gama de campos. Essas, no entanto, não são as principais razões para a importância de Dushu durante esse período: a verdadeira força do periódico está em sua reflexão sistemática sobre as mudanças em andamento de sua época.

Estratégias sociais

Os seis volumes de Essentials of Dushu são organizados tematicamente. O primeiro, "Reforma: Olhando para trás, avançando", foca em questões de economia política, agrupadas em quatro títulos: os problemas da agricultura, a reforma das empresas estatais, "equidade e eficiência" e desenvolvimento sustentável — 62 artigos no total.footnote3Dushu deve ser parabenizado por sua discussão dos problemas agrários, que iniciou um debate nacional. Na década de 1990, o governo estava principalmente ocupado com reformas em áreas urbanas e prestava pouca atenção aos problemas do campo. A cobertura de Dushu alertou as pessoas sobre a situação desesperadora do campesinato (nongmin), da agricultura (nongye) e das áreas rurais (nongcun) — "os três nongs", como são conhecidos em chinês. Alguns autores veem a raiz do problema no sistema dual urbano/rural, sob o qual os camponeses são institucionalmente discriminados; eles propõem uma reforma do sistema para garantir cidadania igualitária e acelerar a urbanização para transferir a população agrícola para as cidades — essencialmente uma política orientada para o mercado. Outros expressam dúvidas mais profundas sobre o mercado e a capacidade de urbanização da China. Wen Tiejun, em seu texto de 1999, "O Problema dos "Três Nongs"", traça o estado atual da China agrária de volta à contradição entre a grande população do país e os recursos escassos, e analisa as principais mudanças institucionais nas áreas rurais ao longo do último século. Vista dessa perspectiva, a política oficial de aumento da urbanização e mercantilização corre o risco de levar a uma "latino-americanização", caracterizada pela pobreza urbana, violência e turbulência política. Wen Tiejun, portanto, transforma a consideração desses problemas em uma reflexão sobre o caminho geral de desenvolvimento da China. Outros autores podem não compartilhar dessa perspectiva, mas também estão preocupados que o alto fator de risco do mercado possa exacerbar a situação dos camponeses; todos estão bem informados.

Da mesma forma para as reformas de empresas estatais: muitos colaboradores do Dushu têm dúvidas sobre uma política de privatização rudimentar e apontam que é enganoso atribuir a baixa eficiência das soes apenas à propriedade pública, uma vez que as práticas de gestão também são importantes. A privatização radical frequentemente gerou corrupção e levou a um verdadeiro roubo de propriedade pública; nessas circunstâncias, a introdução de um sistema de ações conjuntas nem sempre melhora a produção. Uma série de artigos responde à doutrina da "eficiência em primeiro lugar", argumentando que ela provou ser uma força autodestrutiva. A questão "a economia deve discutir moralidade?" provoca um debate feroz sobre a natureza da economia em si, com ambos os lados pedindo uma releitura de A Riqueza das Nações e da Teoria dos Sentimentos Morais de Adam Smith. O papel dos próprios economistas também é examinado de perto: sua autoridade é questionada no artigo de 1996 "Teorias da Economia e a Arte de Matar Dragões" de He Qinglian, uma jornalista liberal cujo famoso livro The Trap of Modernization discutiu as injustiças sociais do modelo de crescimento da China. Seu texto provocou uma contra-explosão de alguns economistas, cujas respostas também foram incluídas neste volume. Este é outro debate do qual Dushu pode estar justamente orgulhoso: foi a primeira discussão sobre este assunto na China, e a primeira vez que a supremacia intelectual dos economistas foi chamada a prestar contas. Mesmo que suas visões também estejam representadas neste volume, a agenda em si — desigualdade social, a moralidade do enriquecimento privado colossal — é um desafio para eles.

O segundo volume, ‘Reconstruindo nossa imagem do mundo’, reflete a resposta de Dushu à mudança da ordem internacional, tanto política quanto econômica.4 A guerra da Iugoslávia, o bombardeio dos EUA à embaixada chinesa em Belgrado, a entrada da China na OMC, o 11 de setembro e a invasão do Afeganistão e do Iraque inevitavelmente levaram muitos intelectuais a modificar a imagem otimista da ordem mundial liderada pelo Ocidente que eles mantinham desde a década de 1980. ‘International Terror and International Politics’, de Shu Chi, publicado em novembro de 2001, analisa as origens da Guerra Fria do fundamentalismo islâmico, enquanto o poeta de Hong Kong Huang Canran discute a resposta da intelligentsia à Guerra do Iraque e ao neoconservadorismo ocidental em seu ‘Gain the Empire, but Lose Democracy’. A invasão do Iraque provocou um debate acalorado na China, com alguns direitistas declarando seu apoio à guerra, enquanto a esquerda a denunciou.

Muitos dos artigos do Volume Dois — são 41 no total — lidam com o caminho atual da globalização e exploram opções alternativas e mais equitativas. O Volume Dois também reflete a crescente interação de Dushu com intelectuais no exterior: há intervenções de Benedict Anderson, Chomsky, Amy Chua, Derrida, J. K. Galbraith, Habermas, Thomas Pogge e Vandana Shiva. Há um debate muito forte em torno da Crise Financeira Asiática de 1997. Xu Baoqiang, baseado em Hong Kong, argumenta em seu artigo de 1998, ‘Re-reading Braudel in the Storm of the Asian Financial Crisis’, que o crash expôs a vulnerabilidade da economia neoclássica, da teoria do estado desenvolvimentista e dos modelos de ‘capitalismo confucionista’; a crise deve ser situada dentro da mudança do ‘centro de gravidade’ do capitalismo mundial para o leste, nos termos da análise estrutural de Braudel. Em ‘From Open Society to the Global Crisis of Capitalism’, Luo Yongsheng, também de Hong Kong, chama a atenção para a crítica de George Soros ao fundamentalismo de mercado. ‘The Ghost Behind the Miracle’, de Benedict Anderson, vê a crise de uma perspectiva histórica.footnote5 À medida que as quatro condições geográfico-políticas para o milagre econômico do Sudeste Asiático — apoio dos EUA, investimento japonês, autoisolamento da RPC e imigração chinesa para o Sudeste Asiático — gradualmente desapareciam, e na ausência de qualquer outra reforma efetiva, o milagre finalmente entrou em colapso.

Essas análises eram novas para a maioria dos intelectuais chineses no continente, que ainda não estavam familiarizados com a noção de crise capitalista ou os debates em torno dos fluxos de capital desregulamentados; 1997 forneceu muito o que pensar. O artigo de Jiao Wenfeng de 2002 ‘The Regulated Market’, citando o trabalho de Polanyi e Braudel, argumenta que a economia de mercado pré-capitalista estava profundamente enraizada na sociedade local e aponta para o papel do estado na quebra de barreiras entre os mercados locais. O "mercado regulado" é o produto final de um longo processo sócio-político. Essas discussões foram respostas implícitas à doutrina Hayekiana predominante de uma "ordem espontânea".

O objetivo geral deste volume é enfatizar que o mercado não é autossuficiente, ele opera em contextos políticos, sociais e culturais específicos. A ordem econômica internacional é inseparável da política internacional. Alguns textos apontam que a ideologia do livre comércio oculta a realidade histórica de que seus proponentes chegaram ao poder por meio do protecionismo e da pilhagem colonial. Outros propõem que o caminho atual da globalização levou não apenas ao aumento da disparidade entre ricos e pobres, mas também ao aprofundamento do conflito social ou étnico doméstico, como sugere The World on Fire (2004), de Amy Chua. A questão do terrorismo global é vista sob uma luz semelhante: uma grande população oprimida sofrendo de desenvolvimento desigual se tornou o terreno fértil para o extremismo. Essas discussões geralmente apresentam um quadro cinza da ordem político-econômica internacional; mas a implicação não é um retorno ao isolacionismo, mas uma mudança de direção no caminho da globalização em direção a uma maior igualdade.

Os esforços de Dushu para restaurar uma dimensão asiática à visão de mundo dos intelectuais chineses são dignos de nota especial. A Ásia foi uma presença constante para os revolucionários chineses, nacionalistas ou comunistas, durante a primeira metade do século XX, mas desapareceu na década de 1980; para a maioria dos intelectuais na década de 1990, o mundo significava essencialmente a China e o Ocidente, com a imagem deste último oscilando entre exploradores imperialistas e exemplares da civilização moderna. O único país asiático frequentemente mencionado foi o Japão, que apareceu apenas como uma história de sucesso econômico. Essa situação foi transformada por Wang e Huang. Os 30 artigos de Dushu (cerca de 350 páginas) reunidos no Volume Quatro sob o título "A Patologia da Ásia" abrangem o entrelaçamento da história chinesa e japonesa, os dilemas da historiografia do Leste Asiático, a questão coreana, os chamados "valores asiáticos", a identidade política e cultural dos chineses no exterior, "estudos subalternos" e muito mais.footnote6 Autores — entre eles Sanjay Subrahmanyam, Chalmers Johnson, Samir Amin, Arundhati Roy, Partha Chatterjee, Muto Ichiyo, Mizoguchi Yuzo, Koyasu Nobukuni, Kojima Kiyoshi, Baik Young-Seo, Lee Nam Ju, Chen Lijuan, Wang Gengwu e Ma Yiren — vêm da China, Japão, Coreia do Sul, Índia, Cingapura, Malásia, EUA e Egito; quatro de Taiwan contribuem com suas reflexões sobre a história recente da ilha. A ampla gama de autoria ilustra o objetivo dos editores: não simplesmente reconstruir o horizonte da "Ásia" para a intelligentsia chinesa, mas construir Dushu como uma plataforma para discussão internacional sobre problemas asiáticos — incluindo as ambiguidades e contradições na noção da própria Ásia. Como o relato de Wang Hui no Le Monde Diplomatique sugere:

A ideia é simultaneamente colonialista e anticolonialista, conservadora e revolucionária, nacionalista e internacionalista; originou-se na Europa e moldou a autointerpretação da Europa; está intimamente relacionada à questão do estado-nação e se sobrepõe à visão do império; é uma categoria geográfica estabelecida em relações geopolíticas.7

O ponto de referência tácito para "A Patologia da Ásia" é a transição da Europa de estados-nação em guerra para a união econômica e política. Enquanto "Europa" como identidade adquiriu alguma substância, "Ásia" continua sendo um conceito mais ambíguo. Os dois editores tendem a pensar que, embora uma "União Asiática" com substância política e econômica ainda seja uma perspectiva distante, é possível conceber uma comunidade intelectual baseada em redes intelectuais transnacionais. O esforço de Dushu pelo menos promoveu o entendimento mútuo entre pensadores chineses, japoneses e coreanos. Muitos intelectuais chineses reconheceram a importância da Escola de Kyoto e começaram a responder a ela, por exemplo. O acadêmico coreano Wook-yon Lee e o acadêmico japonês Yaoichi Komori expressaram arrependimento aberto quando Wang e Huang foram demitidos de Dushu. Ambos elogiaram muito a contribuição do periódico para o diálogo intelectual no Leste Asiático durante a última década.

Visão e memória

A ampla cobertura cultural de Dushu é representada no Volume Três, "Um Olhar Compulsivo" — há cerca de 41 artigos no total, sobre teatro, belas artes, arquitetura, cinema e música.8 O título vem de uma crítica severa de Zhang Chengzhi, um muçulmano chinês, às atividades do National Geographic Channel no Afeganistão. Em 2002, o canal encomendou um programa para procurar uma garota afegã de olhos verdes cuja foto havia aparecido na capa da National Geographic dezesseis anos antes, quando seu país era o campo de batalha de uma guerra por procuração entre as duas superpotências. Eles a encontraram, agora uma mulher de meia-idade, e tiraram uma série de novas fotos. Seu olhar, revelando uma mistura de medo, pesar e suspeita, resistiu ao poder interpretativo dos invasores imperialistas, argumentou Zhang — não apenas das tropas dos EUA, mas também dos fotógrafos.

Isso pode servir como um exemplo da orientação crítica geral desses textos: o objetivo é interpretar o "olhar convincente" velado pela cultura dominante. Embora essas peças lidem com diferentes artes e formas, há uma perspectiva compartilhada: imagens, formas e ritmos não carregam apenas valores estéticos, mas também podem revelar as relações sociais de contextos históricos específicos. Os autores de Dushu perguntam: quem está falando, como e do quê; quem escuta ou assiste? Suas perguntas iluminam as suposições, repressões ou rebeliões que informam as obras de arte. Há discussões sobre o novo movimento documental da China, arquitetura soviética, design Bauhaus, escultura durante o período revolucionário, o filme Not One Less de Zhang Yimou, The World de Jia Zhangke, filme taiwanês contemporâneo, música durante a Revolução Cultural e na China contemporânea.

Um bom exemplo é a crítica de Lü Xinyu de 2004 sobre West of the Tracks, o documentário épico sobre o declínio da indústria pesada no nordeste da China.footnote9 Partindo de uma descrição vívida de cenas-chave e uma análise da arte narrativa do documentário, Lü propõe uma análise histórica de longo alcance do surgimento e declínio da consciência da classe trabalhadora chinesa. Criticando o marxismo ortodoxo, ela enfatiza a importância da aliança entre camponeses e trabalhadores: em um país semicolonial como a China, os camponeses constituíam a principal força da revolução; a primeira geração de trabalhadores da indústria pesada (a "classe líder") também veio de origens camponesas. Hoje, tanto trabalhadores quanto camponeses foram tragicamente marginalizados; Lü sugere que uma aliança entre os dois será necessária para a libertação de cada um. Sua teorização é ilustrada por uma análise aprofundada do documentário. Nem todos os escritores concordariam com a perspectiva radical de Lü; muitos compartilham as abordagens teóricas de seus pares ocidentais, incluindo o pós-colonialismo, o feminismo e a crítica de Said ao orientalismo. Nem todas essas teorias são de importância recente: os primeiros encontros de Dushu com Foucault datam de meados dos anos 80. Mas naquele ponto ainda era uma questão de introduzir novos conceitos. ‘A Compelling Gaze’ mostra até que ponto estes foram assimilados pela intelligentsia chinesa.

Pantheon

É o quinto volume desta coleção, "Not Only for Commemoration", que melhor preserva uma continuidade com o antigo Dushu.footnote10 Ele continua a tradição de retratos, memórias e biografias de acadêmicos e intelectuais pelos quais o periódico é famoso há muito tempo. Entre os discutidos aqui estão Liang Qichao (1873–1929), um dos principais pensadores da Reforma dos Cem Dias de 1898; o educador Cai Yuanpei (1868–1940); Chen Duxiu (1879–1942), o intelectual fundador do ccp e editor da New Youth; o confucionista Gu Hongming (1857–1928); o historiador chinês clássico Chen Yinque (1890–1969); o historiador marxista Jian Bozan (1898–1968); o filósofo Feng Youlan (1895–1990) e o escritor Wang Xiaobo (1952–97). Há também uma discussão útil sobre a comunidade intelectual na Southwestern United University entre 1938–46, quando as três principais universidades do norte foram evacuadas para escapar da invasão japonesa.

Curiosamente, no entanto, os dois principais pensadores da primeira metade do século XX, Lu Xun (1881–1936) e Hu Shi (1891–1962), estão ausentes deste volume, apesar do fato de Dushu ter publicado alguns artigos sobre eles durante este período. Nenhuma explicação é dada pelo editor do volume, Wu Bin. (Deve-se notar que, embora Wang Hui e Huang Ping sejam os editores-chefes do Essentials of Dushu, há editores individuais para alguns dos volumes; ‘Not Only for Commemoration’ foi elaborado por Wu Bin, que se tornou o editor-chefe de Dushu após a demissão de Wang e Huang.) Este silêncio é estranho, mas não totalmente incompreensível. Na China contemporânea, Lu Xun é o herói dos intelectuais de esquerda, enquanto a direita defende Hu Shi; a pesquisa sobre ambos os pensadores tem sido altamente sofisticada. Se Hu Shi e Lu Xun tivessem sido incluídos, leitores sensíveis poderiam ter calculado quanto peso foi dado a cada um. É difícil avaliar o significado histórico de duas figuras tão complexas em um único ensaio sem incorrer em acalorado desacordo intelectual ou político; portanto, pode ter parecido mais seguro deixar ambos fora de cena.

O interesse de Dushu em narrar a vida de intelectuais pode ser datado de suas origens no final dos anos 70. Naquela época, quando a experiência da Revolução Cultural ainda era recente, tais retratos eram frequentemente tingidos com a memória do trauma político e informados pelo anseio por um espaço individual autônomo. Eles eram geralmente escritos por poetas e estudiosos literários, bem como por intelectuais ilustres do ccp, e compostos com um padrão muito alto. Dushu era famoso por esse gênero na década de 1980; nenhum outro periódico publicou tais peças em um nível comparável. A série desempenhou um papel importante na formação da consciência coletiva da nova intelectualidade.

Durante a década de 1996-2005, o gênero biográfico permaneceu um componente significativo do periódico, mas não tão saliente quanto antes. Uma razão importante para isso está nas mudanças sociais mais amplas que ocorreram desde a década de 1980. A intelligentsia passou de um componente vulnerável da classe trabalhadora socialista para uma posição alta na hierarquia da sociedade pós-socialista; os traumas do período revolucionário foram deixados para trás. Este é o pano de fundo que precisa ser mantido em mente ao ler este volume, pois ele não reflete diretamente essa mudança de ethos. Os artigos ainda são escritos em prosa elegante e, na maioria dos casos, os colaboradores são altamente simpáticos aos pensadores que comemoram: avaliações críticas são relativamente raras. O gênero ainda serve para criar um "panteão" intelectual, um museu de exemplares, por meio do qual identidades e compromissos contemporâneos podem ser comparados, avaliados ou afirmados.

Conversas

O volume final, ‘To Be Together with Dushu’, reúne os debates mais importantes que o periódico sediou na última década.footnote11 Ele abrange uma ampla gama de questões: arqueologia e historiografia chinesa, a imagem contemporânea da China rural, globalização, direito, reforma universitária, feminismo, meio ambiente, guerra e terrorismo, etc. Alguns dos textos são transcrições de simpósios organizados por Dushu; outros são conjuntos de artigos sobre o mesmo tema. O Volume Seis dá uma boa noção da extensão em que Dushu definiu a agenda para o debate em uma era de mudanças drásticas. A maioria dos tópicos é bastante especializada, mas eles compartilham uma orientação comum: desconstruir a imagem codificada da modernidade sustentada pelo ocidente-centrismo e pela história linear; entender a dinâmica da história chinesa e da prática contemporânea; e explorar a possibilidade de democracia, igualdade e justiça no contexto atual.

Inclui aqui a importante intervenção de Dushu nas controvérsias em torno das propostas de reforma orientadas pelo mercado para a Universidade de Pequim. Um plano de 2003, elaborado por um economista, visava introduzir o princípio da competição, encorajando os departamentos a contratar acadêmicos estrangeiros em vez de nacionais e quantificando o sistema de avaliação para replicar as normas acadêmicas americanas. Foi veementemente criticado por acadêmicos nas ciências humanas e sociais. O simpósio de Dushu sobre as propostas elevou a discussão a um novo nível. Reuniu acadêmicos importantes de Pequim e de outros lugares para defender o caso da universidade como uma instituição para a busca da liberdade intelectual e inovação, e para questionar o viés dos economistas por trás da proposta.

Em 2005, Dushu organizou um simpósio adicional sobre a crise da medicina tradicional chinesa dentro do sistema nacional de saúde, que reuniu acadêmicos e médicos famosos em medicina tradicional, incluindo Lu Guangxin da Academia Chinesa de Ciências Médicas Chinesas e Cao Dongyi da Academia Hebei de Ciências Médicas Chinesas, e outros cientistas, entre eles o químico Zhu Qingshi da Universidade Chinesa de Ciências e Tecnologia, juntamente com acadêmicos de humanidades como o teórico jurídico Deng Zhenglai. A discussão cobriu questões políticas e os diferentes fundamentos epistemológicos e metodológicos da medicina ocidental e chinesa, defendendo esta última contra alegações de que ela é "anticientífica". Também foi argumentado que a medicina chinesa, muito mais barata do que seus equivalentes ocidentais, poderia expandir a cobertura do sistema nacional de saúde. Implicitamente em jogo aqui está a tumultuada história recente da China. Durante a Revolução Cultural, Mao Zedong encorajou a medicina tradicional e a usou para construir um sistema de saúde relativamente bem-sucedido. Após as últimas duas décadas de reforma de mercado, no entanto, a assistência médica se tornou muito cara para as pessoas comuns pagarem. Embora os palestrantes não tenham feito uma comparação tão explícita, os leitores foram deixados para considerar as implicações do debate e avaliar por si mesmos a importância do legado socialista da China. O papel de Dushu foi, mais uma vez, reunir altos níveis de conhecimento profissional e reflexão intelectual crítica para informar a discussão pública. Novamente, ‘To Be Together with Dushu’ inclui uma seleção de interlocutores internacionais, incluindo Habermas, Derrida, Perry Anderson, Mark Selden, Michael Hardt e Antonio Negri.

Nem todos os autores estrangeiros que apareceram em Dushu durante a editoria de Wang e Huang estão incluídos nestes seis volumes. Alasdair MacIntyre e Immanuel Wallerstein são dois colaboradores que não estão representados aqui. A razão pode ser que os tópicos selecionados não deixam margem para debates sobre virtude e comunidade, ou sobre a história das ciências sociais; talvez os editores tenham julgado que o tratamento de Dushu dessas questões não era maduro o suficiente para inclusão. No entanto, alguns tópicos importantes abordados durante esta década foram claramente deixados de fora por outros motivos. Um exemplo é a discussão muito influente de Dushu sobre Che Guevara. Em 1998, o periódico publicou uma comemoração de Che pelo latino-americanista Suo Sa, que foi a inspiração direta para uma peça de Huang Jisu e Zhang Guangtian, encenada em 2000. Tanto o artigo de Suo Sa quanto a peça de Che Guevara provocaram intenso debate entre a intelectualidade chinesa: alguns consideraram isso uma evocação retrógrada de um passado revolucionário que havia sido corretamente evitado pela China contemporânea; para outros, foi uma reivindicação bem-vinda da luta pela libertação. Dushu publicou vários artigos de diferentes pontos de vista, debatendo as implicações deste símbolo político dentro do contexto atual. Teria sido muito útil incluir esses textos no Essentials of Dushu, seja em ‘Reconstructing Our Image of the World’ ou em ‘A Compelling Gaze’. Eles fornecem uma boa imagem de como os intelectuais chineses veem o legado revolucionário do país e a mudança contemporânea para longe dele. Os editores podem ter tido suas próprias preocupações, políticas ou técnicas, sobre este assunto; mas da perspectiva do leitor, esses artigos certamente teriam acrescentado valor à seleção.

Outras peças politicamente sensíveis também foram deixadas de fora, incluindo o artigo mais controverso publicado durante este período, "Writing History: Gao Village", pelo sociólogo Gao Mobo. O texto explorou o impacto da Revolução Cultural no desenvolvimento da vila e levantou a questão: quem está dominando a narrativa da Revolução Cultural? Dushu publicou o artigo com o objetivo de abrir perspectivas plurais sobre o GPCR e esperava criar algum debate. Mas "Gao Village" foi visto como um desafio ao consenso político entre intelectuais e burocratas do partido desde a década de 1980 de que a Revolução Cultural havia sido um desastre completo. Ironicamente, não foram os burocratas, mas os intelectuais liberais que primeiro detectaram um cheiro perigoso e que escreveram, não para criticar a bolsa de estudos de Gao, mas para acusá-lo de "incorreção política".12 Censores burocráticos então intervieram para proibir mais discussões sobre o tópico em Dushu. A implicação clara é que era impossível para "Gao Village" ser incluído na coleção Essentials: a legitimidade da era da reforma de mercado é, em uma extensão talvez surpreendentemente grande, baseada em um veredito negativo sobre a Revolução Cultural; aparentemente, mesmo uma imagem levemente positiva daquele período pode ameaçar seriamente miná-la.

Contexto crítico

Apesar dessas deficiências, o Essentials of Dushu, de seis volumes, ainda é uma coleção notável. O arranjo temático permite que esses livros apresentem uma reflexão mais ordenada da orientação intelectual e política do periódico durante esse período. Embora os autores venham de uma variedade de pontos de vista políticos diferentes, a resposta dos editores ao atual caminho de desenvolvimento da China é aparente na agenda geral. Para aqueles que se apegam a uma crença nas virtudes da modernização de livre mercado (ou suas variantes), no entanto, as questões que Dushu levanta inevitavelmente causam ofensa: dentro do âmbito do periódico, os critérios codificados de modernização se desintegram. Em vez de o mercado global, a liberdade, a democracia, os direitos humanos e as ciências andarem de mãos dadas, pode haver sérios conflitos de interesse entre eles. O caminho unitário da modernização, modelado nas experiências do Ocidente, não é mais visto como a prescrição apropriada para a patologia da China. Na década de 1980, os intelectuais frequentemente usavam esse modelo para criticar tanto a estagnação do Império Chinês quanto a violência destrutiva da Revolução; mas tal crítica era geralmente marginalizada em Dushu sob Wang e Huang. O foco mudou para reflexões sobre imperialismo, colonialismo, as condições sociopolíticas do mercado e o dinamismo da história chinesa. Para aqueles que ainda se apegam ao antigo consenso, tem sido bastante desagradável reconhecer que o poder de definição de agenda de Dushu não estava mais em suas mãos.

Com esse pano de fundo em mente, não é difícil entender por que alguns intelectuais celebraram o fim da "era Wang e Huang" de Dushu. Alguns acusaram abertamente Wang de ser contra a modernização e, portanto, um "reacionário", que levou Dushu na direção errada. Outros, cientes de que a teoria da modernização é um paradigma ultrapassado até mesmo no Ocidente, expressaram seu descontentamento de forma mais indireta, em bases não políticas: Dushu sob Wang e Huang se desviou de sua tradição de prosa elegante e se tornou obscuro demais para ser lido; não é mais o "espaço comum" ou "lar espiritual" para toda a intelligentsia. Até que ponto isso é verdade? Como observado, é o quinto volume, "Não apenas para comemoração", que contém as peças literárias mais elegantemente elaboradas. Há muita escrita fina nos outros volumes também, sinalizando a intenção dos editores de manter o estilo passado de Dushu. No entanto, a substância de alguns desses artigos significa que eles dificilmente podem evitar usar o vocabulário necessário para responder aos problemas sociais, econômicos e políticos contemporâneos. Ao contrário das memórias, essas peças tendem a ser analíticas e, muitas vezes, bastante teóricas.

Novamente, essa mudança de estilo precisa ser entendida com referência à diferenciação disciplinar que ocorreu na China na última década. Na década de 1980, os intelectuais liam todos os tipos de livros sem muita consciência dos limites disciplinares; na década de 1990, estes últimos não podiam mais ser ignorados. Em comparação com a literatura, as novas ciências sociais pareciam ter um limite de conhecimento muito maior: a linguagem da economia pode ser proibitiva para um leitor leigo e havia muitos termos recém-traduzidos. Consequentemente, tem sido difícil manter o mesmo nível de elegância literária. No debate recente, os críticos de Wang e Huang interpretaram essa diferença estilística como sintomática da ruptura dos dois editores com a tradição da prosa clássica de Dushu. Na verdade, a reclamação sobre legibilidade foi feita pela primeira vez em meados da década de 1980, quando Dushu começou a introduzir teorias ocidentais. Acompanhar as rápidas mudanças intelectuais da época inevitavelmente sobrecarregou velhos hábitos de leitura. Mas há também o fator inegável da diferença geracional: a maioria dos intelectuais da geração de Wang e Huang não recebeu uma educação sistemática nos clássicos chineses, que foram abolidos após 1949. Alguns intelectuais mais velhos, como Fei Xiaotong, frequentaram universidades no Ocidente, mas como tiveram um treinamento completo nos clássicos antes de irem para o exterior, ainda eram capazes de escrever em chinês elegante. A geração mais jovem não tem esse histórico para contrabalançar a influência repentina das línguas ocidentais. Mas essa é uma restrição estrutural, dentro da qual os editores são obrigados a trabalhar. Com base na evidência desses volumes, parece mais preciso dizer que Wang e Huang tentaram o melhor que puderam para tornar o periódico mais legível sem cair em um estilo populista. Dushu raramente publica artigos de pesquisa altamente especializados e encoraja os acadêmicos a escrever de maneiras que sejam compreensíveis para o leitor em geral. Artigos analíticos tendem a ser equilibrados por memórias ou outros textos curtos.

Quietismo?

Uma outra forma de crítica também foi expressa por intelectuais chineses liberais, mais diretamente por aqueles de fora da RPC: que embora o Dushu tenha assumido uma linha forte contra as políticas econômicas neoliberais desiguais do PCC, o periódico tem sido muito mais cauteloso em promover uma crítica política ao caráter repressivo do governo. Da perspectiva desses críticos, a primeira tarefa da intelligentsia deve ser lutar pela autonomia intelectual do regime. Infelizmente, embora todos possam concordar em princípio sobre a desejabilidade de tal autonomia, mesmo alguns dos que agora a pedem ainda parecem ter a mentalidade centrada no regime de convidar a burocracia a derrubar seus oponentes intelectuais. O Dushu parece ter sido vítima desse tipo de abordagem.

Sobre a questão mais ampla em jogo, é bem verdade que a editoria de Wang e Huang foi em alguns aspectos politicamente cautelosa: as exclusões — Che, ‘Gao Village’ — de The Essentials of Dushu, mencionadas acima, são mais ilustrações disso. No entanto, seria errado dizer que o Dushu de Wang e Huang não desempenhou nenhum papel na crítica da autocracia. O poderoso crítico liberal Qin Hui, por exemplo (entrevistado em nlr 20), tem sido um colaborador ativo do periódico sob sua editoria e seu trabalho está incluído na seleção, assim como textos de liberais proeminentes como Qian Liqun (um historiador da literatura chinesa), He Qinglian (um repórter, agora um exilado político), Xu Ben (um escritor baseado nos EUA trabalhando em Hannah Arendt) e o falecido Li Shenzhi. Após a demissão de Wang e Huang, Qian Liqun anunciou seu arrependimento em um simpósio e pediu que os intelectuais se unissem na luta pela liberdade de expressão.

Resumir aqui envolve inevitavelmente achatar um cenário intelectual altamente variado: há muitas sutilezas e sobreposições em jogo neste debate, que felizmente excede em muito o rótulo de "nova esquerda versus liberalismo" aplicado a ele no final dos anos 1990. Mas seria justo dizer que o Dushu de Wang e Huang se concentrou principalmente em expor a lógica político-econômica da aliança entre o capital e o estado opressivo-desenvolvimentista. Muitos dos críticos do periódico acreditam que o estado é problemático, mas o capital está bem. Da perspectiva deles, portanto, o Dushu criticou muito o capital, o estado muito pouco; esta é a fonte dessa linha de argumentação.

A noção de que o Dushu já foi conhecido como o "lar comum" de toda a intelectualidade chinesa também é uma construção recente. Como observado acima, na década de 1980, o Dushu não era a única plataforma de discussão, e vários outros periódicos foram igualmente influentes. Mas aqui novamente, a relação da intelectualidade com as mudanças na sociedade em geral deve ser levada em consideração. O consenso da década de 1980 sobre a modernização foi quebrado, e o Dushu não pode mais se basear nele. Para reiterar: o periódico continuou a publicar artigos de autores de diferentes convicções, incluindo os economistas de livre mercado que responderam às acusações de He Qinglian. O ponto que irrita tais críticos, talvez, não seja que escritores pró-mercado não possam ser publicados no Dushu, mas sim que, na última década, eles não foram capazes de definir sua agenda.

Uma voz questionadora

Pode-se argumentar que Wang e Huang poderiam ter feito mais para acomodar o gosto daqueles que se mantiveram firmes no consenso anterior. No entanto, é duvidoso que Dushu teria sido capaz de manter a imagem de uma "era de ouro" sem sacrificar sua qualidade crítica, no contexto da polarização intelectual mais ampla. Pois o consenso ideológico passado dependia de algumas condições irrecuperáveis: primeiro, a unidade sem precedentes entre burocratas do Partido e intelectuais trazida pelas novas memórias da Revolução Cultural; segundo, a estrutura de interesse indiferenciada da sociedade chinesa. Hoje, uma grande parte dos trabalhadores e camponeses que foram marginalizados pelo caminho atual da China não mais subscreveria esse consenso ideológico. Nesse contexto, para Dushu continuar a operar de acordo com os valores da década de 1980 significaria inevitavelmente perder de vista as mudanças contemporâneas. É nessa situação que Dushu escolheu não manter a "unidade" impossível da classe intelectual, mas levantar novas questões para toda a sociedade.

Na verdade, muitas das questões levantadas por Dushu se tornaram questões de interesse comum e até influenciaram a política pública. A doutrina de "eficiência em primeiro lugar" foi oficialmente revisada em 2004, e o desenvolvimento sustentável recebeu maior destaque formal sob o novo slogan do partido, "desenvolvimento científico". Os gastos com saúde e previdência social foram aumentados, assim como os orçamentos para infraestrutura rural; o imposto agrícola foi abolido. Isso não quer dizer que o crescimento das disparidades sociais tenha sido contido, muito menos interrompido. Em muitos casos, os governos locais resistem ou sabotam as políticas sociais; para essas autoridades, o crescimento do PIB é o indicador mais importante para sua promoção por meio do sistema burocrático. Isso transforma o governo local em uma máquina de lucrar. Embora os principais líderes possam querer mudar isso, muitos grupos de interesses adquiridos surgiram na sociedade local, onde o poder administrativo e o capital andam de mãos dadas. Nessa situação, as políticas sociais podem, no máximo, amenizar os males do caminho do desenvolvimento, mas não podem curá-los. No entanto, seria justo dizer que os perigos da desigualdade social foram mais amplamente reconhecidos, e os antigos sacerdotes da doutrina da "eficiência em primeiro lugar" não são mais considerados inatacáveis. No ciberespaço chinês, os neoliberais são ferozmente acusados ​​de terem reformas mal administradas, resultando em enorme desigualdade social. A imagem brilhante do mercado global capitalista e da ordem política foi questionada, especialmente desde que as exportações da China encontraram protecionismo comercial nos EUA e na Europa nos últimos anos. Isso permitiu que muitas pessoas vissem que o mundo não é plano. Os liberais agora tendem a esclarecer que não são neoliberais e tendem a levar a justiça social mais a sério no que escrevem. Seria errado ignorar o impacto do trabalho persistente de Dushu em tudo isso.

Mas essas mudanças não curam a clivagem existente na intelectualidade chinesa; isso está, no mínimo, se aprofundando. A forma da demissão de Wang e Huang pode parecer apolítica; mas, estritamente falando, é um processo político despolitizado. O pretexto técnico usado pela sdx Publishing Company não se sustenta. A verdadeira razão deve estar em outro lugar. A maioria dos intelectuais na China não tem dificuldade em descobrir a implicação política dessa mudança repentina. Como uma empresa estatal, a sdx é afiliada ao China Publishing Group, que é supervisionado pelo Departamento Central de Propaganda do ccp. Os burocratas têm um forte incentivo para domar esse periódico "problemático"; pois embora o estilo do Dushu seja muito moderado, as ideias que ele espalha podem ser potencialmente perigosas, e os intelectuais neoliberais há muito falam mal dele. Talvez nunca saibamos o que estava acontecendo na caixa-preta; mas mesmo antes da sdx fazer o anúncio, jornais liberais espalharam a notícia de que o Dushu substituiria seus editores-chefes, e alguns de seus críticos já começaram a comemorar sua vitória.

Inesperadamente, então, esta coleção de seis volumes marca o fim da "era Wang e Huang" do Dushu. Que curso o periódico tomará agora ainda está para ser visto. Inicialmente, ele pareceu permanecer no mesmo caminho por vários meses após a saída de Wang e Huang. Mudanças mais substanciais parecem ter surgido com a edição de janeiro de 2008, que abre com um "Apelo por uma Economia de Mercado com Estado de Direito". Parece improvável que os editores anteriores tivessem usado um slogan político oficial deste tipo como título para uma discussão intelectual. A coleção Essentials of Dushu continua sendo uma janela através da qual o mundo pode ver as convulsões sociais da China durante esta década agitada e situar o pensamento da intelligentsia dentro de seu contexto histórico. O período testemunhou uma reversão dramática: os pensadores e escritores antes unidos por uma aspiração de modernização agora estão divididos pelo amargo processo de reforma e desenvolvimento. Diante dessas divisões dolorosas, alguns não podem deixar de olhar para a unidade dos anos 1980 em busca de consolo. Para essas mentes distraídas, o passado parece cada vez mais uma era de ouro. Em uma era de nostalgia, o Essentials of Dushu, 1996-2005 é uma leitura sóbria: a "era de ouro" está ainda mais irrevogavelmente perdida, pois agora até mesmo o mito em que ela se baseava se dissolve no ar. Para os intelectuais da China, agora é a hora de se manterem firmes e lutarem bravamente por reconhecimento.

1 Dushu Jing Xuan [The Essentials of Dushu], 1996–2005, sdx Publishing Company: Beijing 2007, em seis volumes.
2 Wang Hui, 'Dangdai Zhongguo Sixiang Jingkuang yu Xiandaixing Wenti', em Tianya 5, 1997. Para uma tradução em inglês, ver Wang Hui, 'Contemporary Chinese Thought and the Question of Modernity', Social Text 55, 1998, pp. .
3 Dushu Jing Xuan, vol. i: Gaige: Fansi yu Tuijin ('Reforma: Olhando para Trás, Avançando'), 547 pp, brochura, 978 7 108 026330. 
4 Dushu Jing Xuan, vol. ii, Chonggou Women de Shijie Tujing ('Reconstructing Our Image of the World'), 430 pp, brochura, 978 7 108 026354.
5 Publicado em inglês como 'From Miracle to Crash', London Review of Books, 16 de abril de 1998.
6 Dushu Jing Xuan, vol. iv, Yazhou de Bingli ('A Patologia da Ásia'), 350 pp, brochura, 978 7 108 026378.
7 Wang Hui, "Uma Ásia que não é o Oriente", Le Monde Diplomatique, 27 de fevereiro de 2005. 
8 Dushu Jing Xuan, vol. iii, Bishi de Yanshen ('Um olhar convincente'), 390 pp, brochura, 978 7 108 026361.
9 Uma versão mais curta foi publicada em inglês sob o título 'Ruins of the Future', nlr 31, jan–fev 2005.
10 Dushu Jing Xuan, vol. v, Bujin Weile Jinian ('Não apenas para comemoração'), 579 pp, brochura, 978 7 108 026309.
11 Dushu Jing Xuan, vol. vi, Dushu Xianchang ('Estar junto com Dushu'), 469 pp , impresso, 978 7 108 026255.
12 Veja o jornal, Nanfang Zhoumo (Southern Weekend), 29 de março de 2001.

O princípio de uma crise devastadora

Robert Brenner


Against the Current, No. 77, November/December 1998

Tradução / A presente crise pode bem vir a revelar-se a mais devastadora desde a Grande Depressão. Ela manifesta profundos e irresolvidos problemas da economia real, os quais têm sido, literalmente, embrulhados em papel de dívida ao longo das últimas décadas, bem como um aperto financeiro de curto prazo de uma profundidade que não era vista desde a II Grande Guerra. A combinação entre a fraqueza da acumulação capitalista subjacente e o desmoronamento do sistema bancário é o que torna este deslizamento para o fundo tão intratável para os desenhadores de política econômica e o seu potencial de desastre tão sério. A praga dos encerramentos e das casas abandonadas – frequentemente arrombadas e despojadas de tudo, inclusive dos fios de cobre – atinge em particular Detroit e outras cidades do Midwest norte-americano.

O desastre humano que isto representa para centenas de milhares de famílias e para as suas comunidades pode ser apenas o primeiro sinal do que esta crise capitalista realmente significa. Subidas históricas nos mercados financeiros nas décadas de 1980, 1990 e 2000 – com as suas transferências de rendimento e riqueza para o 1% dos mais ricos, que definiram toda uma época – distraíram a atenção para a real fraqueza a longo prazo das economias capitalistas mais desenvolvidas. O desempenho econômico nos Estados Unidos, na Europa e no Japão, medido por praticamente todos os indicadores padrão – o crescimento do produto, o investimento, o emprego e os salários - deteriorou-se década após década, ciclo econômico após ciclo econômico, desde 1973.

Os anos decorridos desde o início do presente ciclo, que teve origem nos inícios de 2001, têm sido os piores de todos. O crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) nos Estados Unidos tem sido o mais lento para qualquer intervalo de tempo comparável desde o final dos anos 1940. Incremento em novas fábricas ou equipamentos e criação de empregos têm estado, respectivamente, um terço e dois terços abaixo das médias anteriores à última Grande Guerra. Os salários reais por hora, para trabalhadores produtivos (que não de supervisão), que constituem 80% da força de trabalho, têm permanecido praticamente estagnados, arrastando-se aproximadamente ao mesmo nível desde 1979.

A expansão económica também não tem sido significativamente mais forte, quer na Europa, quer no Japão. O declínio no dinamismo económico do mundo capitalista avançado tem as suas raízes numa grande quebra na lucratividade, causada em primeiro lugar por uma tendência crónica para a sobre-capacidade no sector manufactureiro mundial, que remonta as suas origens até ao final dos anos 1960, início dos anos 1970. Por volta do ano 2000, nos Estados Unidos, Japão e Alemanha, a taxa de lucro na economia privada ainda não tinha completado uma retoma, não estando mais alta no ciclo dos anos 1990 do que o esteve no dos anos 1970.

Com uma mais baixa lucratividade, as empresas tiveram lucros reduzidos para acrescer as suas fábricas e equipamentos, bem como incentivos menores para se expandirem. A perpetuação de uma lucratividade reduzida desde os anos 1970 conduziu a um constante abaixamento do investimento, em proporção do PIB, em todas as economias capitalistas avançadas, bem como a reduções faseadas no crescimento do produto, dos meios de produção e do emprego.

A arrastada desaceleração na acumulação capitalista, bem como a compressão efectuada pelas empresas na sua massa salarial, de modo a restaurar as suas margens de lucro - para além dos cortes governamentais nos gastos sociais, feitos para escorar os lucros capitalistas – resultou num abrandamento do crescimento do investimento, assim como da procura governamental e privada e, portanto, num abrandamento do crescimento da procura como um todo. Esta fraqueza na procura agregada, resultado último da quebra de lucratividade, constitui há muito a principal barreira ao crescimento nas economias capitalistas avançadas.

Para contrariar a persistente fraqueza da procura agregada, os governos, dirigidos pelo dos Estados Unidos, não viram outra hipótese senão incorrer em cada vez maiores volumes de dívida, através de canais cada vez mais variados e barrocos, para manter a economia em funcionamento. Inicialmente, durante os anos 1970 e 1980, os Estados eram obrigados a incorrer em cada vez maiores défices públicos, para sustentar o crescimento. Todavia, embora mantendo a economia relativamente estável, estes défices também a tornaram cada vez mais estagnada: na linguagem da época, os governos obtinham cada vez menos impacto com a sua prodigalidade (“less bang for their buck”), menos crescimento do PIB por um dado incremento no endividamento.

Dos cortes orçamentais à economia das bolhas

Deste modo, no princípio da década de 1990, tanto nos Estados Unidos como na Europa, governos virados para a direita e guiados pelo pensamento neo-liberal (privatização e cortes nos programas sociais), sob a direcção de Bill Clinton, Robert Rubin e Alan Greenspan, procuraram superar a estagnação com uma tentativa de movimento em direcção a orçamentos equilibrados. Mas, embora esse facto não seja muito realçado pela maioria dos relatos sobre este período, esta mudança dramática teve um impacto radicalmente negativo.

Porque a lucratividade ainda não tinha recuperado, as reduções no défice, trazidas pelas tentativas de equilíbrio orçamental, resultaram num enorme golpe para a procura agregada, com o resultado de que, na primeira metade dos anos 1990, tanto a Europa como o Japão passaram por recessões devastadoras, as piores do período pós-guerra, enquanto a economia dos Estados Unidos experimentou a chamada retoma sem novos empregos (“job-less recovery”). Consequentemente, desde meados dos anos 1990, os Estados Unidos viram-se obrigados a recorrer a mais poderosas e arriscadas formas de estímulo, para contrariar a tendência à estagnação. Em particular, substituiu os défices públicos do keynesianismo tradicional pelos défices privados e a inflação dos activos, aquilo que poderíamos designar por keynesianismo dos preços dos activos ou, simplesmente, economia das bolhas (“bubblenomics”).

Na grande corrida ascensional das bolsas dos anos 1990, as grandes empresas e os lares abastados viram a sua riqueza em papel expandir-se de uma forma maciça. Deste modo, puderam embarcar num aumento sem precedentes do endividamento e, nessa base, sustentar um poderoso acréscimo do investimento e do consumo. A expansão da chamada “Nova Economia” foi o resultado directo da histórica bolha nos preços dos activos dos anos 1995-2000. Mas uma vez que os preços dos activos subiram em desafio às taxas de lucro declinantes, e uma vez que os novos investimentos vieram exacerbar a sobre-capacidade industrial já existente, seguiu-se rapidamente a quebra bolsista e a recessão de 2000-2001, deprimindo a lucratividade no sector não financeiro até ao seu nível mais baixo desde 1980.

Sem se deixar deter por isso, Greenspan e a Federal Reserve Board (Fed), com a ajuda de outros grandes bancos centrais, contrariaram o novo ciclo depressivo com uma nova ronda de inflação nos preços dos activos. Foi isso que, essencialmente, nos trouxe até onde estamos hoje. Reduzindo a zero as taxas de juro reais de curto prazo, durante três anos, eles facilitaram uma explosão historicamente sem precedentes do endividamento familiar, a qual contribuiu para o disparar dos preços imobiliários, alimentando-se dele também depois, por sua vez.

De acordo com a revista ‘The Economist’, a bolha imobiliária mundial entre 2000 e 2005 foi a maior de todos os tempos, ultrapassando mesmo a de 1929. Tornou possível um crescimento constante nas despesas de consumo e no investimento residencial, que conjuntamente conduziram a expansão. O consumo pessoal mais a construção de casas respondeu por 90 a 100 % do crescimento do PIB nos E.U.A. nos primeiros cinco anos do corrente ciclo económico. Durante este mesmo intervalo de tempo, segundo as contas do Moody’s Economy.com, o factor imobiliário, por si só, foi responsável por elevar o crescimento do PIB quase 50% acima do que o que teria ocorrido sem ele – 2,3% em vez de 1,6%.

Deste modo, conjuntamente com os défices orçamentais reaganianos de George W. Bush, os défices familiares sem precedentes contribuíram para obscurecer quão débil era de facto a recuperação económica subjacente. O crescimento da procura de consumo suportada pela dívida, bem como, de uma forma mais geral, do crédito super-barato, revigoraram mais do que apenas a economia norte-americana. Em especial por terem conduzido aí a um novo surto de importações e a um alargamento do défice de transacções correntes (balança de pagamentos e comercial) para níveis sem precedentes, promoveu também aquilo que apareceu como uma impressionante expansão da economia global.

Uma brutal ofensiva patronal

Mas se os consumidores fizeram a sua parte, o mesmo não pode ser dito dos negócios privados, apesar dos inauditos estímulos económicos. Greenspan e o Fed sopraram a bolha imobiliária de forma a dar tempo às grandes corporações para resolverem o seu problema de excesso de capital e retomarem o investimento. Mas em vez disso, concentrando-se na restauração das suas taxas de lucro, elas desencadearam uma brutal ofensiva contra os trabalhadores. Elas elevaram o crescimento da produtividade, não tanto com o aumento do investimento em fábricas e equipamentos avançados, mas cortando radicalmente nos empregos e compelindo os empregados que ficaram a preencher os vazios. Comprimindo os salários enquanto espremiam mais produto por pessoa, elas apropriaram-se, sob a forma de lucros, de uma percentagem historicamente sem precedentes no aumento que teve então lugar no PIB não financeiro.

As corporações não financeiras, durante esta expansão, elevaram significativamente as suas taxas de lucro, mas mesmo assim continuando sem atingir de novo os já reduzidos níveis dos anos 1990. Para além disso, tendo em vista o grau em que esta elevação dos lucros foi atingida simplesmente pela via do aumento das taxas de exploração – fazendo os operários trabalhar mais e pagando-lhes menos, por hora – há razões para duvidar por quanto tempo isto poderá continuar assim. Acima de tudo, porém, ao aumentar a lucratividade comprimindo a criação de empregos, o investimento e os salários, os patrões norte-americanos mantiveram em baixa o crescimento da procura agregada e, deste modo, cortaram no seu próprio incentivo para se expandirem.

Simultaneamente, em vez de aumentar o investimento, a produtividade e o emprego, de modo a aumentar os lucros, as empresas procuraram explorar os custos de empréstimo hiper-baixos para melhorar a sua posição (e a dos seus accionistas) por via da manipulação financeira – pagando as suas dívidas, distribuindo dividendos e comprando as suas próprias acção para fazer subir a sua cotação, particularmente sob a forma de uma enorme onda de fusões e aquisições. Nos Estados Unidos, ao longo dos últimos quatro ou cinco anos, tanto os dividendos como a recompra de acções, como percentagem dos ganhos retidos, explodiram para os seus mais elevados níveis na época pós-guerra. O mesmo género de coisas tem vindo a acontecer um pouco por toda a economia mundial – na Europa, no Japão, na Coreia.

O rebentamento das bolhas

No final de tudo, o facto é que, nos Estados Unidos e em todo o mundo capitalista avançado, desde 2000, temos assistido ao mais lento crescimento da economia real desde a II Grande Guerra. E assitimos também à maior expansão financeira e da economia de papel na história dos Estados Unidos. Não é preciso ser marxista para dizer que as coisas não poderão continuar assim.

É claro, da mesma forma que a bolha nos mercados bolsistas dos anos 1990 acabou por rebentar, também a bolha imobiliária se esvaziou. Em consequência disso, o filme da expansão apoiada no imobiliário, que vimos durante o ciclo ascendente, está agora a passar em reverso. O preço das casas já baixou 5% desde o seu pico de 2005, mas isto é apenas o começo. Está estimado pela Moody’s que, quando a bolha imobiliária tiver esvaziado por completo, nos começos de 2009, os preços das casas terão baixado 20% em termos nominais – e ainda mais em termos reais – o que é, de longe, o maior declíneo na história norte-americana pós-guerra.

Do mesmo modo que o efeito positivo de riqueza produzido pela bolha imobiliária conduziu a economia em frente, o efeito negativo do desastre está a guiá-la para trás. Com o valor das suas residências em declínio, as famílias não podem continuar a tratar as suas casas como terminais Multibanco. Os empréstimos de garantia imobiliária estão em declínio e, portanto, as famílias vêm-se obrigadas a consumir menos.

O perigo subjacente a isto é que, não sendo mais capazes de “aforrar” putativamente através dos seus valores imobiliários crescentes, as famílias norte-americanas comecem a aforrar deveras, levando a um aumento da taxa de poupança pessoal – que neste momento está ao seu nível histórico mais baixo de sempre – puxando assim o consumo para baixo. Compreendendo como o fim da bolha imobiliária iria afectar o poder de compra dos consumidores, as empresas cortaram na sua contratação, com o resultado de que o crescimento do emprego caiu significativamente, desde inícios de 2007.

Graças à crise imobiliária galopante e à desaceleração no emprego, logo no segundo quartel de 2007, os fluxos monetários totais que entraram para a disposição das famílias, em termos reais, que tinham crescido a uma taxa de 4,4% em 2005 e 2006, caíram para perto de zero. Por outras palavras, se adicionarmos o rendimento real disponível das famílias, mais os seus levantamentos em crédito de garantia imobiliária (“home equity”), mais os seus empréstimos para consumo, mais as suas realizações em ganhos de capital, ver-se-á que o dinheiro que as famílias tinham efectivamente para gastar tinha parado de crescer. Bem antes que a crise financeira batesse à porta, no Verão passado, a expansão já estava no seu estertor final.

Complicando enormemente esta recessão e tornando-a extremamente perigosa, está, é claro, o colapso dos créditos hipotecários de risco (“sub-prime”), que se verificou como extensão do rebentamento da bolha imobiliária. Os mecanismos que ligam os empréstimos hipotecários sem escrúpulos realizados a uma escala titânica, aos encerramentos de casas em massa, ao colapso do mercado de títulos (“securities”) sustentado pelas hipotecas de risco, à crise nos grandes bancos que detinham directamente tão grandes quantidades destes títulos, tudo isto requereria uma discussão em separado.

O que aqui podemos dizer, à laia de conclusão, é simplesmente que, porque as perdas bancárias são tão grandes, desde já enormes, e em vias de crescer cada vez mais à medida que a recessão se torna pior, a economia enfrenta a perspectiva, sem precedentes no período pós-guerra, de uma paralisação total do crédito no exacto momento em que entra em recessão. Os governos enfrentam, agora mesmo, problemas de dificuldade sem paralelo conhecido, para tentar evitar este resultado.

A hipótese comunista

Por que o espectro de maio de 68 ainda assombra o discurso francês? Alain Badiou sobre as sequências de longue durée de restauração e revolta do país, e o lugar da presidência de Sarkozy dentro delas. Lições de coragem política de Platão e Corneille, e um chamado para reafirmar a aposta fundadora do Manifesto.

Alain Badiou


NLR 49 • Jan/Feb 2008

Havia uma sensação tangível de depressão no ar na França após a vitória de Sarkozy.1 Costuma-se dizer que golpes inesperados são os piores, mas os esperados às vezes se mostram debilitantes de uma maneira diferente. Pode ser estranhamente desanimador quando uma eleição é vencida pelo candidato que liderou nas pesquisas de opinião desde o início, assim como quando o cavalo favorito vence a corrida; qualquer um com o menor sentimento por uma aposta, um risco, uma exceção ou uma ruptura preferiria ver um estranho perturbar as probabilidades. No entanto, dificilmente poderia ter sido o simples fato de Nicolas Sarkozy como presidente que pareceu ser um golpe tão desorientador para a esquerda francesa após maio de 2007. Algo mais estava em jogo — algum complexo de fatores para os quais "Sarkozy" é apenas um nome. Como isso deve ser entendido?

Um fator inicial foi a maneira como o resultado afirmou a manifesta impotência de qualquer programa genuinamente emancipatório dentro do sistema eleitoral: as preferências são devidamente registradas, da maneira passiva de um sismógrafo, mas o processo é um que, por sua natureza, exclui quaisquer personificações de vontade política dissidente. Um segundo componente da desorientação depressiva da esquerda após maio de 2007 foi uma onda avassaladora de nostalgia histórica. A ordem política que emergiu da Segunda Guerra Mundial na França — com seus referentes inequívocos de "esquerda" e "direita", e seu consenso, compartilhado por gaullistas e comunistas, no balanço da Ocupação, Resistência e Libertação — agora entrou em colapso. Esta é uma das razões para os jantares ostentosos de Sarkozy, férias em iates e assim por diante — uma maneira de dizer que a esquerda não assusta mais ninguém: Vivent les riches, e para o inferno com os pobres. Compreensivelmente, isso pode encher as almas sinceras da esquerda com nostalgia pelos bons e velhos tempos — Mitterrand, De Gaulle, Marchais, até mesmo Chirac, o Brezhnev do gaullismo, que sabia que não fazer nada era a maneira mais fácil de deixar o sistema morrer.

Sarkozy finalmente acabou com a forma cadavérica do gaullismo presidido por Chirac. O colapso dos socialistas já havia sido antecipado na derrota de Jospin nas eleições presidenciais de 2002 (e ainda mais pela decisão desastrosa de abraçar Chirac no segundo turno). A atual decomposição do Partido Socialista, no entanto, não é apenas uma questão de sua pobreza política, aparente agora há muitos anos, nem do tamanho real da votação — 47 por cento não é muito pior do que suas outras pontuações recentes. Em vez disso, a eleição de Sarkozy parece ter desferido um golpe em toda a estruturação simbólica da vida política francesa: o próprio sistema de orientação sofreu uma derrota. Um sintoma importante da desorientação resultante é o número de ex-assessores socialistas correndo para assumir cargos sob Sarkozy, os formadores de opinião de centro-esquerda cantando seus louvores; os ratos fugiram do navio afundando em números impressionantes. A lógica subjacente é, claro, a do partido único: já que todos aceitam a lógica da ordem capitalista existente, economia de mercado e assim por diante, por que manter a ficção de partidos opostos?

Um terceiro componente da desorientação contemporânea surgiu do resultado do próprio conflito eleitoral. Eu caracterizei as eleições presidenciais de 2007 — colocando Sarkozy contra Royal — como o choque de dois tipos de medo. O primeiro é o medo sentido pelos privilegiados, alarmados de que sua posição pode ser atacada. Na França, isso se manifesta como medo de estrangeiros, trabalhadores, jovens do banlieue, muçulmanos, negros africanos. Essencialmente conservador, ele cria um anseio por um mestre protetor, mesmo um que o oprima e empobreça você ainda mais. A personificação atual dessa figura é, claro, o chefe de polícia superestimulado: Sarkozy. Em termos eleitorais, isso é contestado não por uma afirmação retumbante de heterogeneidade autodeterminada, mas pelo medo desse medo: um medo, também, da figura policial, que o eleitor socialista pequeno-burguês não conhece nem gosta. Esse "medo do medo" é uma emoção secundária, derivada, cujo conteúdo — além do sentimento em si — é quase imperceptível; o campo real não tinha nenhum conceito de aliança com os excluídos ou oprimidos; o máximo que ele conseguia imaginar era colher os benefícios duvidosos do medo. Para ambos os lados, um consenso total reinou sobre Palestina, Irã, Afeganistão (onde as forças francesas estão lutando), Líbano (idem), África (repleta de "administradores" militares franceses). A discussão pública de alternativas sobre essas questões não estava na agenda de nenhuma das partes.

O conflito entre o medo primário e o "medo do medo" foi resolvido em favor do primeiro. Havia um reflexo visceral em jogo aqui, muito aparente nos rostos daqueles que festejavam pela vitória de Sarkozy. Para aqueles sob o domínio do "medo do medo", havia um reflexo negativo correspondente, recuando diante do resultado: esse foi o terceiro componente da desorientação depressiva de 2007. Não devemos subestimar o papel do que Althusser chamou de "aparelho ideológico do estado" — cada vez mais por meio da mídia, com a imprensa agora desempenhando um papel mais sofisticado do que a TV e o rádio — na formulação e mobilização de tais sentimentos coletivos. Dentro do processo eleitoral, parece ter havido um enfraquecimento do real; um processo ainda mais avançado em relação ao "medo do medo" secundário do que com o primitivo e reacionário. Afinal, reagimos a uma situação real, enquanto o "medo do medo" apenas se assusta com a escala dessa reação e, portanto, está ainda mais distante da realidade. A vacuidade dessa posição se manifestou perfeitamente nas exaltações vazias de Ségolène Royal.

Eleitoralismo e o estado

Se postularmos uma definição de política como "ação coletiva, organizada por certos princípios, que visa desdobrar as consequências de uma nova possibilidade que é atualmente reprimida pela ordem dominante", então teríamos que concluir que o mecanismo eleitoral é um procedimento essencialmente apolítico. Isso pode ser visto no abismo entre o imperativo formal massivo de votar e a natureza livre, se não inexistente, das convicções políticas ou ideológicas. É bom votar, dar uma forma aos meus medos; mas é difícil acreditar que o que estou votando seja uma coisa boa em si. Isso não quer dizer que o sistema eleitoral-democrático seja repressivo por si só; em vez disso, que o processo eleitoral é incorporado a uma forma de estado, a do capitalo-parlamentarismo, apropriada para a manutenção da ordem estabelecida e, consequentemente, serve a uma função conservadora. Isso cria um sentimento adicional de impotência: se os cidadãos comuns não têm controle sobre a tomada de decisões do estado, exceto o voto, é difícil ver que caminho a seguir poderia haver para uma política emancipatória.

Se o mecanismo eleitoral não é um procedimento político, mas estatal, o que ele alcança? Com ​​base nas lições de 2007, um efeito é incorporar tanto o medo quanto o "medo do medo" no estado — investir o estado com esses elementos subjetivos de massa, para melhor legitimá-lo como um objeto de medo por si só, equipado para terror e coerção. Pois o horizonte mundial da democracia é cada vez mais definido pela guerra. O Ocidente está engajado em um número crescente de frentes: a manutenção da ordem existente com suas disparidades gigantescas tem um componente militar irredutível; a dualidade dos mundos de ricos e pobres só pode ser sustentada pela força. Isso cria uma dialética particular de guerra e medo. Nossos governos explicam que estão travando guerra no exterior para nos proteger dela em casa. Se as tropas ocidentais não caçarem os terroristas no Afeganistão ou na Chechênia, elas virão para cá para organizar os párias da ralé ressentido.

Neo-Pétainismo estratégico

Na França, essa aliança de medo e guerra classicamente recebeu o nome de Pétainismo. A ideologia de massa do Pétainismo — responsável por seu sucesso generalizado entre 1940 e 1944 — repousava em parte no medo gerado pela Primeira Guerra Mundial: o Marechal Pétain protegeria a França dos efeitos desastrosos da Segunda, mantendo-se bem longe dela. Nas próprias palavras do Marechal, era necessário ter mais medo da guerra do que da derrota. A grande maioria dos franceses aceitou a relativa tranquilidade de uma derrota consensual e a maioria saiu bem durante a Guerra, em comparação com os russos ou mesmo os ingleses. O projeto análogo hoje é baseado na crença de que os franceses precisam simplesmente aceitar as leis do modelo mundial liderado pelos EUA e tudo ficará bem: a França será protegida dos efeitos desastrosos da guerra e da disparidade global. Essa forma de neo-Pétainismo como uma ideologia de massa é efetivamente oferecida por ambas as partes hoje. No que se segue, argumentarei que é um elemento analítico fundamental para entender a desorientação que atende pelo nome de "Sarkozy"; para compreender o último em sua dimensão geral, sua historicidade e inteligibilidade, requer que voltemos ao que chamarei de seu "transcendental" pétainista.footnote2

Não estou dizendo, é claro, que as circunstâncias de hoje se assemelham à derrota de 1940, ou que Sarkozy se assemelha a Pétain. O ponto é mais formal: que as raízes histórico-nacionais inconscientes daquilo que atende pelo nome de Sarkozy devem ser encontradas nessa configuração pétainista, na qual a desorientação em si é solenemente encenada do topo do estado e apresentada como um ponto de virada histórico. Essa matriz tem sido um padrão recorrente na história francesa. Ela remonta à Restauração de 1815, quando um governo pós-revolucionário, avidamente apoiado por emigrantes e oportunistas, foi trazido de volta na bagagem dos estrangeiros e declarou, com o consentimento de uma população exausta, que restauraria a moralidade e a ordem públicas. Em 1940, a derrota militar serviu mais uma vez como contexto para a reversão desorientadora do conteúdo real da ação estatal: o governo de Vichy falava incessantemente da "nação", mas foi instalado pela Ocupação Alemã; os mais corruptos dos oligarcas deveriam tirar o país da crise moral; o próprio Pétain, um general envelhecido a serviço da propriedade, seria a personificação do renascimento nacional.

Numerosos aspectos dessa tradição neopetainista estão em evidência hoje. Tipicamente, capitulação e servilismo são apresentados como invenção e regeneração. Esses eram temas centrais da campanha de Sarkozy: o prefeito de Neuilly transformaria a economia francesa e colocaria o país de volta ao trabalho. O conteúdo real, é claro, é uma política de obediência contínua às demandas das altas finanças, em nome da renovação nacional. Uma segunda característica é a do declínio e da "crise moral", que justifica as medidas repressivas tomadas em nome da regeneração. A moralidade é invocada, como tantas vezes, no lugar da política e contra qualquer mobilização popular. O apelo é feito, em vez disso, às virtudes do trabalho duro, da disciplina, da família: "o mérito deve ser recompensado". Esse típico deslocamento da política pela moralidade foi preparado, a partir dos "novos filósofos" dos anos 1970, por todos que trabalharam para "moralizar" o julgamento histórico. O objetivo é, na realidade, político: sustentar que o declínio nacional não tem nada a ver com os altos servidores do capital, mas é culpa de certos elementos mal-intencionados da população — atualmente, trabalhadores estrangeiros e jovens do banlieue.

Uma terceira característica do neopetainismo é a função paradigmática da experiência estrangeira. O exemplo de correção sempre vem do exterior, de países que há muito superaram suas crises morais. Para Pétain, os exemplos brilhantes foram a Itália de Mussolini, a Alemanha de Hitler e a Espanha de Franco: líderes que colocaram seus países de pé novamente. A estética política é a da imitação: como o demiurgo de Platão, o estado deve moldar a sociedade com os olhos fixos em modelos estrangeiros. Hoje, é claro, os exemplos são a América de Bush e a Grã-Bretanha de Blair.

Uma quarta característica é a noção de que a fonte da crise atual está em um evento passado desastroso. Para o protopetainismo da Restauração de 1815, isso foi, claro, a Revolução e a decapitação do Rei. Para o próprio Pétain, em 1940, foi a Frente Popular, o governo Blum e, acima de tudo, as grandes greves e ocupações de fábricas de 1936. As classes possuidoras preferiram de longe a Ocupação Alemã ao medo que essas desordens provocaram. Para Sarkozy, os males de maio de 68 — quarenta anos atrás — foram constantemente invocados como a causa da atual "crise de valores". O neopetainismo fornece uma leitura simplificada útil da história que vincula um evento negativo, geralmente com uma estrutura popular ou de classe trabalhadora, e um positivo, com uma estrutura militar ou estatal, como uma solução para o primeiro. O arco entre 1968 e 2007 pode, portanto, ser oferecido como uma fonte de legitimidade para o governo Sarkozy, como o ator histórico que finalmente embarcará na correção necessária após o evento danoso inaugural. Finalmente, há o elemento do racismo. Sob Pétain, isso era brutalmente explícito: livrar-se dos judeus. Hoje, é expressado de forma mais insinuante: ‘não somos uma raça inferior’ — a implicação é, ‘diferentemente de outras’; ‘os verdadeiros franceses não precisam duvidar da legitimidade das ações de seu país’ — na Argélia e em outros lugares. À luz desses critérios, podemos, portanto, apontar: a desorientação que atende pelo nome de ‘Sarkozy’ pode ser analisada como a mais recente manifestação do transcendental pétainista.

O espectro

À primeira vista, pode parecer estranho a insistência do novo presidente de que a solução para a crise moral do país, o objetivo de seu processo de "renovação", era "acabar com o Maio de 68, de uma vez por todas". A maioria de nós tinha a impressão de que ele já tinha acabado há muito tempo. O que está assombrando o regime, sob o nome de Maio de 68? Só podemos supor que seja o "espectro do comunismo", em uma de suas últimas manifestações reais. Ele diria (para dar uma prosopopeia sarkoziana): "Nós nos recusamos a ser assombrados por qualquer coisa. Não basta que o comunismo empírico tenha desaparecido. Queremos que todas as formas possíveis dele sejam banidas. Até mesmo a hipótese do comunismo — nome genérico de nossa derrota — deve se tornar inominável."

O que é a hipótese comunista? Em seu sentido genérico, dado em seu Manifesto canônico, "comunista" significa, primeiro, que a lógica de classe — a subordinação fundamental do trabalho a uma classe dominante, o arranjo que persiste desde a Antiguidade — não é inevitável; pode ser superada. A hipótese comunista é que uma organização coletiva diferente é praticável, uma que eliminará a desigualdade de riqueza e até mesmo a divisão do trabalho. A apropriação privada de fortunas massivas e sua transmissão por herança desaparecerão. A existência de um estado coercitivo, separado da sociedade civil, não parecerá mais uma necessidade: um longo processo de reorganização baseado em uma livre associação de produtores o verá definhar.

"Comunismo" como tal denota apenas este conjunto muito geral de representações intelectuais. É o que Kant chamou de Ideia, com uma função reguladora, em vez de um programa. É tolice chamar tais princípios comunistas de utópicos; no sentido em que os defini aqui, são padrões intelectuais, sempre atualizados de uma maneira diferente. Como uma Ideia pura de igualdade, a hipótese comunista sem dúvida existe desde os primórdios do estado. Assim que a ação de massa se opõe à coerção do estado em nome da justiça igualitária, rudimentos ou fragmentos da hipótese começam a aparecer. Revoltas populares — os escravos liderados por Spartacus, os camponeses liderados por Müntzer — podem ser identificados como exemplos práticos dessa "invariante comunista". Com a Revolução Francesa, a hipótese comunista inaugura então a época da modernidade política.

O que resta é determinar o ponto em que agora nos encontramos na história da hipótese comunista. Um afresco do período moderno mostraria duas grandes sequências em seu desenvolvimento, com um intervalo de quarenta anos entre elas. A primeira é a da colocação em prática da hipótese comunista; a segunda, de tentativas preliminares de sua realização. A primeira sequência vai da Revolução Francesa à Comuna de Paris; digamos, 1792 a 1871. Ela vincula o movimento popular de massa à tomada do poder, por meio da derrubada insurrecional da ordem existente; essa revolução abolirá as velhas formas de sociedade e instalará "a comunidade de iguais". No decorrer do século, o movimento popular sem forma, composto por moradores da cidade, artesãos e estudantes, ficou cada vez mais sob a liderança da classe trabalhadora. A sequência culminou na novidade marcante — e na derrota radical — da Comuna de Paris. Pois a Comuna demonstrou tanto a energia extraordinária dessa combinação de movimento popular, liderança da classe trabalhadora e insurreição armada, quanto seus limites: os comunardos não conseguiram estabelecer a revolução em bases nacionais nem defendê-la contra as forças da contrarrevolução apoiadas por estrangeiros.

A segunda sequência da hipótese comunista vai de 1917 a 1976: da Revolução Bolchevique ao fim da Revolução Cultural e à ascensão militante em todo o mundo durante os anos de 1966 a 1975. Ela foi dominada pela questão: como vencer? Como resistir — diferentemente da Comuna de Paris — à reação armada das classes possuidoras; como organizar o novo poder para protegê-lo contra o ataque de seus inimigos? Não era mais uma questão de formular e testar a hipótese comunista, mas de realizá-la: o que o século XIX havia sonhado, o século XX realizaria. A obsessão pela vitória, centrada em questões de organização, encontrou sua principal expressão na "disciplina de ferro" do partido comunista — a construção característica da segunda sequência da hipótese. O partido efetivamente resolveu a questão herdada da primeira sequência: a revolução prevaleceu, seja por meio de insurreição ou guerra popular prolongada, na Rússia, China, Tchecoslováquia, Coreia, Vietnã, Cuba, e conseguiu estabelecer uma nova ordem.

Mas a segunda sequência, por sua vez, criou um problema adicional, que não conseguiu resolver usando os métodos que havia desenvolvido em resposta aos problemas da primeira. O partido tinha sido uma ferramenta apropriada para a derrubada de regimes reacionários enfraquecidos, mas provou ser mal adaptado para a construção da "ditadura do proletariado" no sentido que Marx pretendia — isto é, um estado temporário, organizando a transição para o não-estado: seu "definhamento" dialético. Em vez disso, o partido-estado se desenvolveu em uma nova forma de autoritarismo. Alguns desses regimes fizeram avanços reais na educação, saúde pública, valorização do trabalho e assim por diante; e eles forneceram uma restrição internacional à arrogância das potências imperialistas. No entanto, o princípio estatista em si provou ser corrupto e, a longo prazo, ineficaz. A coerção policial não conseguiu salvar o estado "socialista" da inércia burocrática interna; e em cinquenta anos ficou claro que ele nunca prevaleceria na competição feroz imposta por seus adversários capitalistas. As últimas grandes convulsões da segunda sequência — a Revolução Cultural e Maio de 68, em seu sentido mais amplo — podem ser entendidas como tentativas de lidar com a inadequação do partido.

Interlúdios

Entre o fim da primeira sequência e o início da segunda, houve um intervalo de quarenta anos durante o qual a hipótese comunista foi declarada insustentável: as décadas de 1871 a 1914 viram o imperialismo triunfar em todo o mundo. Desde que a segunda sequência chegou ao fim na década de 1970, estamos em outro intervalo, com o adversário em ascensão mais uma vez. O que está em jogo nessas circunstâncias é a eventual abertura de uma nova sequência da hipótese comunista. Mas está claro que isso não será — não pode ser — a continuação da segunda. O marxismo, o movimento dos trabalhadores, a democracia de massa, o leninismo, o partido do proletariado, o estado socialista — todas as invenções do século XX — não são mais realmente úteis para nós. No nível teórico, eles certamente merecem mais estudo e consideração; mas no nível da política prática eles se tornaram impraticáveis. A segunda sequência acabou e é inútil tentar restaurá-la.

Neste ponto, durante um intervalo dominado pelo inimigo, quando novos experimentos são firmemente circunscritos, não é possível dizer com certeza qual será o caráter da terceira sequência. Mas a direção geral parece discernível: envolverá uma nova relação entre o movimento político e o nível do ideológico — uma que foi prefigurada na expressão "revolução cultural" ou na noção de maio de 68 de uma "revolução da mente". Ainda reteremos as lições teóricas e históricas que resultaram da primeira sequência, e a centralidade da vitória que resultou da segunda. Mas a solução não será nem o movimento popular sem forma, ou multiforme, inspirado pela inteligência da multidão — como Negri e os alter-globalistas acreditam — nem o partido comunista de massa renovado e democratizado, como alguns dos trotskistas e maoístas esperam. O movimento (do século XIX) e o partido (do século XX) eram modos específicos da hipótese comunista; não é mais possível retornar a eles. Em vez disso, após as experiências negativas dos estados "socialistas" e as lições ambíguas da Revolução Cultural e de Maio de 68, nossa tarefa é trazer a hipótese comunista à existência em outro modo, para ajudá-la a emergir dentro de novas formas de experiência política. É por isso que nosso trabalho é tão complicado, tão experimental. Devemos nos concentrar em suas condições de existência, em vez de apenas melhorar seus métodos. Precisamos reinstalar a hipótese comunista — a proposição de que a subordinação do trabalho à classe dominante não é inevitável — dentro da esfera ideológica.

O que isso pode envolver? Experimentalmente, podemos conceber encontrar um ponto que ficaria fora da temporalidade da ordem dominante e do que Lacan chamou uma vez de "o serviço da riqueza". Qualquer ponto, desde que esteja em oposição formal a tal serviço e ofereça a disciplina de uma verdade universal. Um deles pode ser a declaração: "Há apenas um mundo". O que isso implicaria? O capitalismo contemporâneo se gaba, é claro, de ter criado uma ordem global; seus oponentes também falam de "alter-globalização". Essencialmente, eles propõem uma definição de política como um meio prático de passar do mundo como ele é para o mundo como gostaríamos que fosse. Mas existe um único mundo de sujeitos humanos? O "mundo único" da globalização é apenas um de coisas — objetos para venda — e sinais monetários: o mercado mundial conforme previsto por Marx. A esmagadora maioria da população tem, na melhor das hipóteses, acesso restrito a este mundo. Eles são bloqueados, muitas vezes literalmente.

A queda do Muro de Berlim deveria sinalizar o advento do mundo único de liberdade e democracia. Vinte anos depois, está claro que o muro do mundo simplesmente mudou: em vez de separar o Leste e o Oeste, ele agora divide o rico Norte capitalista do pobre e devastado Sul. Novos muros estão sendo construídos em todo o mundo: entre palestinos e israelenses, entre o México e os Estados Unidos, entre a África e os enclaves espanhóis, entre os prazeres da riqueza e os desejos dos pobres, sejam eles camponeses em aldeias ou moradores urbanos em favelas, banlieues, propriedades, albergues, squats e favelas. O preço do mundo supostamente unificado do capital é a divisão brutal da existência humana em regiões separadas por cães policiais, controles burocráticos, patrulhas navais, arame farpado e expulsões. O ‘problema da imigração’ é, na realidade, o fato de que as condições enfrentadas por trabalhadores de outros países fornecem prova viva de que — em termos humanos — o ‘mundo unificado’ da globalização é uma farsa.

Uma unidade performativa

O problema político, então, tem que ser revertido. Não podemos começar de um acordo analítico sobre a existência do mundo e prosseguir para a ação normativa com relação às suas características. O desacordo não é sobre qualidades, mas sobre a existência. Confrontados com a divisão artificial e assassina do mundo em dois — uma disjunção nomeada pelo próprio termo, "o Ocidente" — devemos afirmar a existência do mundo único desde o início, como axioma e princípio. A frase simples, "há apenas um mundo", não é uma conclusão objetiva. É performativa: estamos decidindo que é assim que é para nós. Fiéis a este ponto, é então uma questão de elucidar as consequências que decorrem desta simples declaração.

Uma primeira consequência é o reconhecimento de que todos pertencem ao mesmo mundo que eu: o trabalhador africano que vejo na cozinha do restaurante, o marroquino que vejo cavando um buraco na estrada, a mulher velada cuidando de crianças em um parque. É aí que invertemos a ideia dominante do mundo unido por objetos e signos, para fazer uma unidade em termos de seres vivos e atuantes, aqui e agora. Essas pessoas, diferentes de mim em termos de linguagem, roupas, religião, comida, educação, existem exatamente como eu; já que existem como eu, posso discutir com elas — e, como com qualquer outra pessoa, podemos concordar e discordar sobre as coisas. Mas com a pré-condição de que elas e eu existamos no mesmo mundo.

Neste ponto, a objeção sobre a diferença cultural será levantada: ‘nosso’ mundo é composto por aqueles que aceitam ‘nossos’ valores — democracia, respeito pelas mulheres, direitos humanos. Aqueles cuja cultura é contrária a isso não são realmente parte do mesmo mundo; se eles querem se juntar a ele, eles têm que compartilhar nossos valores, para ‘integrar-se’. Como Sarkozy disse: ‘Se os estrangeiros querem permanecer na França, eles têm que amar a França; caso contrário, eles devem ir embora.’ Mas colocar condições já é ter abandonado o princípio, ‘há apenas um mundo de homens e mulheres vivos’. Pode-se dizer que precisamos levar em conta as leis de cada país. De fato; mas uma lei não estabelece uma pré-condição para pertencer ao mundo. É simplesmente uma regra provisória que existe em uma região específica do mundo único. E ninguém é solicitado a amar uma lei, simplesmente a obedecê-la. O mundo único de mulheres e homens vivos pode muito bem ter leis; o que ele não pode ter são pré-condições subjetivas ou "culturais" para a existência dentro dele — exigir que você seja como todos os outros. O mundo único é precisamente o lugar onde existe um conjunto ilimitado de diferenças. Filosoficamente, longe de lançar dúvidas sobre a unidade do mundo, essas diferenças são seu princípio de existência.

A questão então surge se algo governa essas diferenças ilimitadas. Pode muito bem haver apenas um mundo, mas isso significa que ser francês, ou um marroquino vivendo na França, ou muçulmano em um país de tradições cristãs, não é nada? Ou deveríamos ver a persistência de tais identidades como um obstáculo? A definição mais simples de "identidade" é a série de características e propriedades pelas quais um indivíduo ou um grupo se reconhece como seu "self". Mas o que é esse "self"? É aquilo que, em todas as propriedades características da identidade, permanece mais ou menos invariável. É possível, então, dizer que uma identidade é o conjunto de propriedades que sustentam uma invariância. Por exemplo, a identidade de um artista é aquela pela qual a invariância de seu estilo pode ser reconhecida; a identidade homossexual é composta de tudo o que está ligado à invariância do possível objeto de desejo; a identidade de uma comunidade estrangeira em um país é aquela pela qual a filiação a essa comunidade pode ser reconhecida: linguagem, gestos, vestimenta, hábitos alimentares, etc.

Definida dessa forma, por invariantes, a identidade está duplamente relacionada à diferença: por um lado, a identidade é aquilo que é diferente do resto; por outro, é aquilo que não se torna diferente, que é invariante. A afirmação da identidade tem mais dois aspectos. A primeira forma é negativa. Consiste em manter desesperadamente que eu não sou o outro. Isso é frequentemente indispensável, diante de demandas autoritárias por integração, por exemplo. O trabalhador marroquino afirmará com força que suas tradições e costumes não são os do europeu pequeno-burguês; ele até reforçará as características de sua identidade religiosa ou costumeira. O segundo envolve o desenvolvimento imanente da identidade dentro de uma nova situação — um pouco como a famosa máxima de Nietzsche, "torne-se o que você é". O trabalhador marroquino não abandona aquilo que constitui sua identidade individual, seja socialmente ou na família; mas ele gradualmente adaptará tudo isso, de forma criativa, ao lugar em que se encontra. Ele inventará, portanto, o que é — um trabalhador marroquino em Paris — não por meio de qualquer ruptura interna, mas por uma expansão de identidade.

As consequências políticas do axioma, "só existe um mundo", trabalharão para consolidar o que é universal nas identidades. Um exemplo — um experimento local — seria uma reunião realizada recentemente em Paris, onde trabalhadores sem documentos e cidadãos franceses se reuniram para exigir a abolição de leis persecutórias, batidas policiais e expulsões; para exigir que trabalhadores estrangeiros sejam reconhecidos simplesmente em termos de sua presença: que ninguém seja ilegal; todas as demandas que são muito naturais para pessoas que estão basicamente na mesma situação existencial — pessoas do mesmo mundo.

Tempo e coragem

"Em tão grande infortúnio, o que resta para você?" A Medeia de Corneille é questionada por sua confidente. "Eu mesma! Eu mesma, eu digo, e é o suficiente", vem a resposta. O que Medeia retém é a coragem de decidir seu próprio destino; e coragem, eu sugeriria, é a principal virtude diante da desorientação de nossos próprios tempos. Lacan também levanta a questão ao discutir a cura analítica para a debilidade depressiva: isso não deveria terminar em grandes discussões dialéticas sobre coragem e justiça, no modelo dos diálogos de Platão? No famoso "Diálogo sobre a Coragem", o General Laches, questionado por Sócrates, responde: "Coragem é quando vejo o inimigo e corro em sua direção para enfrentá-lo em uma luta". Sócrates não está particularmente satisfeito com isso, é claro, e gentilmente repreende o General: "É um bom exemplo de coragem, mas um exemplo não é uma definição". Correndo os mesmos riscos que o General Laches, darei minha definição.

Primeiro, eu manteria o status da coragem como uma virtude — isto é, não uma disposição inata, mas algo que se constrói, e que se constrói, na prática. Coragem, então, é a virtude que se manifesta por meio da resistência no impossível. Não se trata simplesmente de um encontro momentâneo com o impossível: isso seria heroísmo, não coragem. O heroísmo sempre foi representado não como uma virtude, mas como uma postura: como o momento em que alguém se volta para enfrentar o impossível cara a cara. A virtude da coragem se constrói por meio da resistência dentro do impossível; o tempo é sua matéria-prima. O que exige coragem é operar em termos de uma durée diferente daquela imposta pela lei do mundo. O ponto que buscamos deve ser aquele que pode se conectar a outra ordem de tempo. Aqueles presos dentro da temporalidade atribuída a nós pela ordem dominante sempre estarão propensos a exclamar, como tantos capangas do Partido Socialista fizeram, "Doze anos de Chirac, e agora temos que esperar por outra rodada de eleições. Dezessete anos; talvez vinte e dois; uma vida inteira!" Na melhor das hipóteses, eles ficarão deprimidos e desorientados; na pior, ratos.

Em muitos aspectos, estamos mais próximos hoje das questões do século XIX do que da história revolucionária do século XX. Uma grande variedade de fenômenos do século XIX está reaparecendo: vastas zonas de pobreza, desigualdades crescentes, política dissolvida no "serviço da riqueza", o niilismo de grandes setores dos jovens, o servilismo de grande parte da intelectualidade; o experimentalismo apertado e sitiado de alguns grupos buscando maneiras de expressar a hipótese comunista... O que é sem dúvida o motivo pelo qual, como no século XIX, não é a vitória da hipótese que está em jogo hoje, mas as condições de sua existência. Esta é a nossa tarefa, durante o interlúdio reacionário que agora prevalece: por meio da combinação de processos de pensamento — sempre globais ou universais em caráter — e experiência política, sempre local ou singular, mas transmissível, para renovar a existência da hipótese comunista, em nossa consciência e no terreno.

1 Este é um extrato editado de De quoi Sarkozy est-il le nom?, Circonstances, 4, Nouvelles Editions Lignes, Paris 2007; a ser publicado em inglês pela Verso como What Do We Mean When We Say ‘Sarkozy’? em 2008.
2 Veja meu Logiques des mondes, Paris 2006 para um desenvolvimento completo do conceito de ‘transcendentais’ e sua função, que é governar a ordem de aparecimento de multiplicidades dentro de um mundo.

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