Jacques Rancière
Libération
A palavra "populismo" tem sido muito usada nos últimos meses. Falou-se dos ataques contra o Islã de Marine Le Pen, da denúncia das elites de Jean-Luc Mélenchon, da transformação dos ciganos em bodes expiatórios de Nicolas Sarkozy... Que populismo é esse que atinge as democracias ocidentais? Libération convocou três filósofos: Jacques Rancière (leia abaixo) que critica a própria noção de populismo. Enzo Traverso que se preocupa com a ascensão da islamofobia e Bernard Stiegler que analisa o "populismo industrial" nascido da transição da democracia escrita para a sociedade das imagens analógicas.
É por isso claro que nenhuma necessidade liga estes três traços. Que existe uma entidade chamada povo, que é a fonte de todo o poder e o interlocutor prioritário do discurso político, era a convicção profunda dos oradores republicanos e socialistas de outrora. Não lhe é associada qualquer forma de sentimento racista ou xenófobo. Que os nossos políticos pensam mais nas suas carreiras do que no futuro dos seus concidadãos e que os nossos governos vivem em simbiose com os representantes dos grandes interesse financeiros, pode ser proclamado sem se ser necessariamente um demagogo. A mesma imprensa que denuncia as derivas "populistas" oferece-nos quotidianamente os testemunhos mais detalhados. Por sua vez, certos chefes de Estado e de governo ditos "populistas", como Silvio Berlusconi ou Nicolas Sarkozy, estão longe de propagar a ideia "populista" que elites são corruptas. O termo "populismo" não serve por isso para caracterizar uma força política concreta. Não designa uma ideologia nem sequer um estilo político coerente. Serve simplesmente para desenhar a imagem de um certo povo.
Porque "o povo" não existe. Aquilo que existe são imagens diferentes, por vezes antagônicas, do povo, imagens construídas privilegiando certas formas de pertença, certos traços distintivos, certas capacidades ou incapacidades. A noção de populismo constrói um povo caracterizado pela atroz aliança entre uma capacidade - a potência bruta do grande número - e de uma incapacidade - a ignorância atribuída a esse mesmo grande número. Por isso, o terceiro traço, o racismo, é essencial. Trata-se de mostrar aos democratas, sempre suspeitos de ingenuidade "angelical", o que é na verdade o povo profundo: uma turba habitada por uma pulsão primária de rejeição que visa simultaneamente os governantes que declara traidores, incapaz de compreender a complexidade dos mecanismos políticos, e os estrangeiros que receia devido ao seu apego atávico a um quadro de vida ameaçado pela evolução demográfica, econômica e social. A noção de populismo recoloca em cena uma imagem do povo elaborada no final do século XIX por pensadores como Hyppolite Taine e Gustave Le Bon, aterrados pela Comuna de Paris e pelo crescimento do movimento operário: a das massas ignorantes impressionadas pelas palavras sonantes dos "agitadores" e dadas à violência extrema pela circulação de rumores incontroláveis e de pânicos contagiosos.
Esses tumultos epidêmicos das massas cegas manipuladas pelos líderes carismáticos estarão verdadeiramente na ordem do dia entre nós? Quaisquer que sejam os preconceitos expressos todos os dias relativamente aos imigrantes, e nomeadamente aos "jovens da periferia", eles não se traduzem em manifestações populares de massa. Aquilo a que hoje em dia chamamos racismo no nosso pais é essencialmente a conjunção de duas coisas. Por um lado, as formas de discriminação no emprego ou no local de residência que se exercem na perfeição dentro de gabinetes assépticos. Por outro, medidas de Estado que não resultam de todo de movimentos de massa: restrição à entrada no território, recusa de conceder documentos a gente que trabalha e paga impostos em França há anos, recusa do direito de cidadania a quem nasce dentro do país, dupla penalização, leis contra o foulard e a burqa, metas obrigatórias de deportação ou o desmantelamento de acampamentos de nômades. Essas medidas têm como principal objetivo precarizar uma parte da população quanto aos seus direitos de trabalhadores ou de cidadãos, constituir uma população de trabalhadores que podem a qualquer momento ser reenviados para o seu destino e de franceses que não têm a certeza de o continuar a ser.
Essas medidas são apoiadas por uma campanha ideológica, justificando essa diminuição de direitos pela evidência de uma não-pertença aos traços característicos da identidade nacional. Mas não foram os "populistas" da Frente Nacional que desencadearem essa campanha. Foram os intelectuais, de esquerda ao que se diz, que encontraram o argumento imparável: essas pessoas não são verdadeiramente francesas porque não são laicas.
A recente "derrapagem" de Marine Le Pen é instrutiva a esse respeito. Não faz efetivamente senão condensar numa imagem concreta uma sequência discursiva (muçulmano - islâmico - nazista) que se insinua um pouco por toda a prosa dita republicana. A extrema-direita "populista" não exprime uma paixão xenófoba específica que emana das profundezas do corpo popular; ela é um satélite que utiliza a seu favor as estratégias do Estado e as campanhas intelectuais mais sofisticadas. O Estado alimenta um permanente sentimento de insegurança que funde os riscos da crise e do desemprego com os do gelo na estrada ou os do ácido fórmico, para fazê-los culminar a todos na suprema ameaça do terrorismo islâmico. A extrema-direita coloca as cores da carne e do sangue sob o retrato robô delineado pelas medidas ministeriais e pela prosa dos ideólogos.
Assim, nem os "populistas" nem o povo projetado pelas denunciações rituais do populismo correspondem verdadeiramente à sua definição. Mas isso pouco interessa aos que agitam o seu fantasma. O essencial, para esses, é amalgamar a própria ideia do povo democrático à imagem da turba perigosa. E de retirar daí a conclusão que todos nos devemos entregar a quem nos governa e que qualquer contestação da sua legitimidade e da sua integridade é a porta aberta ao totalitarismo. "Antes uma república das bananas do que uma França fascista", dizia um dos mais sinistros slogans anti-Le Pen em abril de 2002. A atual campanha em torno dos perigos mortais do populismo procura converter em teoria a ideia de que não temos outra escolha.
Jacques Rancière é um filósofo francês, professor da European Graduate School de Saas-Fee e professor emérito da Universidade de Paris.
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