31 de janeiro de 2020

Classe média, Brasil e EUA

Queda na renda ajuda a entender a guinada para o populismo de direita nos dois países

Nelson Barbosa

Folha de S.Paulo

Morador da Cidade Tiradentes, na zona leste de São Paulo, vive em média até os 57,3 anos, de acordo com o Mapa da Desigualdade. Gabriel Cabral/Folhapress

Quase todo colunista já usou a frase de Tolstói, no livro “Anna Karenina”: “Todas as famílias felizes são parecidas. Cada família infeliz é infeliz da sua própria maneira”. Chegou minha vez e recorro ao escritor russo para falar da classe média no Brasil e nos Estados Unidos.

Como demonstrado por vários estudos, houve queda na participação da classe média na renda dos dois países em anos recentes.

Porém, a queda foi diferente em cada economia, influenciada pelo tipo de política econômica adotada lá e cá.

Mais formalmente, a World Inequality Database (WID) apresenta a distribuição de renda pessoal antes dos impostos em vários países. No Brasil, os dados começam em 2001, e a observação mais recente disponível é de 2015. Nos Estados Unidos, os dados começam bem antes, no início do século 20, mas a última observação é de 2014 (coloquei os números no Blog da FGV Ibre).

Considerando o intervalo comum de 2001-14, verificamos aumento da parcela da renda apropriada pelos 10% mais ricos nos dois países. Nos Estados Unidos, o aumento foi de 42,8% para 47%, no Brasil, de 54,3% para 54,6%.

Traduzindo do economês, ainda somos bem mais desiguais do que os Estados Unidos quando consideramos a participação dos 10% mais ricos no total da renda, mas a expansão da parcela apropriada pelo topo da distribuição de renda foi bem menor aqui do que lá, durante a maior parte dos “anos petistas”.

A diferença entre EUA e Brasil aumenta quando consideramos os 50% mais pobres. Nos EUA, a metade inferior da distribuição de renda perdeu participação entre 2001 e 2014: de 15% para 12,5%. No Brasil, houve simplesmente o contrário: aumento de 12,6% para 14,3% no mesmo período. Certamente salário mínimo e ampliação de empregos formais no auge dos “anos Lula e Dilma” explicam parte da diferença.

Os dois países se aproximam quando analisamos a “classe média”, isto é, o grupo entre os 50% mais pobres e os 10% mais ricos. Nos dois casos houve perda de participação na renda: de 42,3% para 40,4% nos EUA e de 33,1% para 31,1% no Brasil. Essa queda comum de quase dois pontos ajuda a entender parte da insatisfação e guinada para o populismo de direita aqui e nos Estados Unidos.

A situação volta a divergir quando analisamos os “quase muito ricos”, isto é, aqueles entre os 90% mais pobres e o 1% mais rico. Houve aumento da participação desse grupo na renda dos EUA, de 25,5% para 26,8%, mas redução no Brasil, de 28,1% para 27,1%. A perda de um ponto no Brasil também ajuda a entender a revolta da alta classe média por aqui.

E o 1% mais rico? Houve aumento da participação na renda nos dois países, pois esse grupo tem mais meios de se proteger em qualquer situação. Nos EUA, o crescimento foi de 17,3% para 20,2%.

No Brasil, de 26,2% para 27,5%. A redistribuição para cima foi muito maior lá do que aqui, mas houve redistribuição para cima nos dois casos.

Volto a Tolstói. Nos EUA e no Brasil houve compressão da classe média entre 2001 e 2014, mas de modo diferenciado. Por lá, os 90% mais pobres perderam participação para os 10% mais ricos. Por aqui, os 50% mais pobres e o 1% mais rico ganharam participação e, consequentemente, os 49% do meio (a classe média e os quase ricos) perderam.

E depois de 2014? Os dados de 2015 indicam nova concentração de renda no Brasil, mas agora seguindo o padrão dos Estados Unidos: os 90% de baixo perderam enquanto os 10% no topo ganharam. Só saberemos se isso é a nova tendência ou efeito temporário da recessão de 2015 quando tivermos dados mais recentes.

Sobre o autor

Professor da FGV e da UnB, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016). É doutor em economia pela New School for Social Research.

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