28 de julho de 2016

A arte da política

O debate durante a ascensão de Margaret Thatcher pode nos dizer muito sobre como responder ao nosso momento político.

Asad Haider

Jacobin

A polícia espera para esvaziar um acampamento anti-guerra em Washington, DC, em 1970. Washington Area Spark.

Tradução / O espetáculo de um Partido Democrata em crise em sua Convenção Nacional de 2016 levou Donald Trump a tweetar, em um exemplo habilidoso de apropriação da retórica de esquerda pela direita: “Enquanto Bernie [Sanders] abandonou completamente a luta pelo povo, nós damos boas vindas a todos os eleitores que desejam um futuro melhor para nossos trabalhadores”.

A responsabilidade por este cenário despenca sobre os ombros dos liberais americanos que, escandalizados pelas investidas de Trump, consolidaram a profecia autorrealizável de que um populismo de esquerda nunca seria capaz de derrota-lo. A última areia sob o caixão foi jogada pelo próprio Sanders durante a convenção democrata, quando desafiou seus apoiadores a pavimentar o caminho para um candidato cuja percepção pública é caracterizada pela corrupção, pelo segredo e pelo oportunismo.

Na semana anterior, enquanto aceitava sua nomeação na Convenção Nacional Republicana, Trump declarou a si mesmo como “o candidato da lei e da ordem” e prometeu que “a segurança será restaurada” por sua presidência. No dia seguinte, um angustiado editorial do Washington Post declarou Trump “uma ameaça única à democracia”.

Mas as memórias oficiais são muitas curtas – todo momento na representação da política americana parece como a exceção à regra. Não faz muito tempo que a esquerda liberal dos Estados Unidos declarou George W. Bush como uma inflexão sistêmica no sentido de uma monarquia satânica, inaugurando uma era de vigilância, desigualdade e guerra. Barack Obama, em contraste, ofereceu um momento excepcional de esperança: um líder charmoso, erudito e cosmopolita que tranquilamente nos orienta para esferas ainda mais baixas de vigilância, desigualdade e guerra.

Neste momento a temporada eleitoral confronta a raivosa supervisão militar estratégica de Obama com um bilionário sociopata, desequilibrado e com uma mente perspicaz para o marketing. Nesta eleição às avessas, passou a ser tolice prever qualquer coisa, mas pode ser razoável perguntar algo até aqui ignorado: se oito anos de Bill Clinton nos legou George W. Bush e oito anos de Obama nos deixou Trump, o que oito anos de Hillary Clinton pode oferecer?

Felizmente Trump nos dá uma sugestão. Ao reviver os slogans de Reagan e Nixon, e apresentar sua candidatura como uma reação ao conflito social ao redor da violência policial racista, ele deixou sua linhagem evidente. Enquanto a esquerda americana ainda precisa compreender a sequência que parte de Nixon para Reagan, Bush e Trump, o intelectual britânico nascido na Jamaica, Stuart Hall devotou boa parte de sua carreira lutando para entender a emergência inquietante de Margaret Thatcher no contexto do debate no interior da esquerda britânica, de maneira que antecipa o que agora se passa no contexto dos Estados Unidos.

“O que o país precisa” – falou Thatcher em sua campanha de 1979 – “é menos taxas e mais lei e ordem”. Para Hall, o sucesso deste slogan não era surpreendente. Um ano antes de Thatcher assumir como Primeira Ministra, ele havia se engajado em pesquisar o clima social no qual esta retórica poderia se conectar à mentalidade pública e se concentrara no “pânico moral” ao redor dos crimes de assalto à mão armada.

Primeiro editor da revista New Left Review, Hall foi designado como diretor do Centro de Estudos Culturais Contemporâneos da Universidade de Birmingham no final dos anos 1960 por seu fundador, Richard Hoggart. Ao lado de colegas no Centro ele publicou, em 1978, Policing the Crisis: Mugging, the State, and Law and Order.

O estudo estava, inicialmente, centrado nas representações midiáticas do crime, mas este era na verdade um componente de uma análise mais ampla do declínio da socialdemocracia britânica e a queda da fábula do “consenso do pós-guerra”, que prevalecia desde 1945 quando o Partido Trabalhista formou um governo de maioria.

No período imediatamente posterior à Segunda Guerra Mundial, o Estado assumiu indústrias falidas, empregou uma grande proporção do trabalho, regulou a demanda e o emprego, assumiu a responsabilidade pelo bem-estar social, expandiu a educação para alcançar os requisitos de um desenvolvimento tecnológico, aumentou seu envolvimento na comunicação midiática e trabalhou para harmonizar o comércio internacional.

Apesar do compromisso declarado do Partido Trabalhista com o socialismo, a estabilização da economia no pós-guerra não alterou fundamentalmente o sistema econômico subjacente. Ela foi, ao contrário, capaz de construir um Estado de bem-estar tendo como base um “período de crescimento produtivo sem precedentes” e, como Policing the Crisis explica, a democracia representativa do pós-guerra se desenvolveu na base do “papel protuberante do Estado nos assuntos econômicos”.

Mas a participação britânica no boom econômico do pós-guerra foi feita de fraquezas importantes, causadas pelos efeitos debilitantes do legado imperial e por uma estrutura industrial ruidosa e resistente à inovação. Ela não conseguia se equiparar à afiada competição internacional, às flutuações na taxa de lucro e ao aumento da inflação. Ainda assim, o Partido Trabalhista pintou uma imagem de si no beco, afirmando a “ausência de estratégia alternativa para administrar a crise econômica”.

As condições econômicas desfavoráveis não eram apenas obstáculo ao desafio da preservação da ordem existente. O Estado precisaria confrontar, ainda, “uma forte, ainda que frequentemente corporativa, classe trabalhadora com expectativas materiais crescentes, tradições fortes de barganha, resistência e luta”. Consequentemente, “cada crise do sistema adquiriu a forma aberta de uma crise de administração estatal”. Seguindo as pistas de Antonio Gramsci e Nicos Poulantzas, Hall e seus colegas chamaram esta situação por “crise de hegemonia”.

O Estado passou a cumprir mais e mais o papel de atacar as “barganhas” da classe trabalhadora, engana-la por meio da mediação do movimento de trabalhadores organizados e cujas instituições haviam “sido progressivamente incorporadas na administração da economia”. Neste contexto, no qual a classe trabalhadora parecia se confrontar com o Estado diretamente, preservar o consenso como meio primordial da regra democrática ao invés da coerção, tornou-se um problema central.

A sociedade de consumo havia apresentado fontes potenciais para uma solução: o uso crescente das mídias de massa pelo Estado dirigido para moldar e transformar um “consenso em valores”. Mas durante a crise de hegemonia, o consenso não pode mais ser garantido; a crise se constitui “um momento de ruptura profunda na vida política e econômica de uma sociedade, um acúmulo de contradições (...) quando toda a base da liderança política e autoridade cultural se expõe e é contestada”.

E esta era a crise que se desdobrava. Ao final dos anos 1960, uma variedade de pânicos morais sobre a cultura jovem e a imigração estouravam na superfície da educada sociedade britânica. Um conjunto amplo de fenômenos, do protesto e contracultura à permissividade e crime, passou a se apresentar como parte de uma única e surpreendente ameaça às fundações da ordem social. Ao mesmo tempo, a economia presenciou “o retorno ao estágio histórico da luta de classes, de maneira visível, aberta e em escalada”:

“Uma sociedade que sai dos trilhos por meio da ‘permissividade’, ‘participação’ e ‘protesto’ no sentido ‘da sociedade alternativa’ e ‘anarquia’ é uma coisa. Outra, completamente diferente, é o momento em que a classe trabalhadora mais uma vez assume a ofensiva em um clima de militância ativa (...). A tentativa de um governo socialdemocrata administrar o Estado por meio de uma versão organizada do consenso finalmente se exauriu e entrou em colapso entre 1964 e 1970, então gradualmente a luta de classes se tornou mais e mais aberta, assumindo uma presença manifesta. Este desenvolvimento é eletrizante”.

As políticas de renda nos anos 1970, que tentaram administrar a inflação ao trocar pequenos aumentos salariais por um constrangimento no aumento dos preços, representaram uma tentativa de “exercer e reforçar as restrições sobre os salários e sobre a classe trabalhadora por meio do consenso”, ao “ganhar os sindicatos para uma colaboração plena com o Estado no processo de disciplina da classe trabalhadora”.

Mas este projeto falhou, em parte pela rebelião contínua das bases e “a mudança massiva do lugar do conflito de classe na indústria das disputas administração-sindicato para aquelas administração-chão de fábrica”. A militância de base e as organizações de chão de fábrica deslocaram a mesa de negociação: “condições locais puderam ser exploradas e vantagens locais aproveitadas em larga escala no ambiente industrial, especialmente na engenharia onde, como consequência das complexas divisões do trabalho, a paralização de dez trabalhadores em uma seção era capaz de travar toda a linha de montagem”.

A ideologia conservadora cumpriu um papel importante na resposta do Estado para esta ameaça. Uma “transição do controle apertado ao final dos anos 1960 para um fechamento plenamente repressivo nos anos 1970” abriu o caminho para “a sociedade da lei-e-ordem”. O pânico moral e a instabilidade econômica legitimaram o esforço do Estado em usar a repressão como forma de administrar a crise, uma “rotina do controle” que fez o policiamento parecer “normal, natural, além de correto e inevitável”.

Esta campanha possuía uma vantagem não evidente: ela ofereceu legitimidade para a iniciativa estatal “em disciplinar, restringir e coagir, para trazer – no enquadramento da lei e ordem – não apenas ativistas, criminosos, viciados em drogas e posseiros, mas mesmo as sólidas fileiras da classe trabalhadora. Esta classe recalcitrante – ou ao menos suas minorias mais desordeiras – também precisava ser conduzida à ordem”.

Em 1971, descompromissados com relação ao trabalho organizado, os conservadores foram capazes de atacar o poder dos sindicatos com o Ato de Relações Industriais. Eles apelaram para a “unidade nacional” e evocaram a “restauração da autoridade do governo”. Mesmo quando o Ato era repelido sob o governo do Partido Trabalhista que se seguiu, com seus “Contratos Sociais” centristas, seu efeito já era evidente no horizonte da classe trabalhadora. A crise representara uma mudança estrutural profunda no caráter do Estado capitalista do pós-guerra.

Todos estes elementos estavam sob consideração no Centro em Birmingham, assim como a ascensão de sentimentos racistas anti-imigrantes anunciados por parlamentares como Enoch Powell e os neofascistas do Fronte Nacional, em resposta às redefinições da identidade britânicas por rastafáris e os “rude boys” jamaicanos. Hall e seus colegas abordaram estas discordâncias culturais por meio do estudo do aumento percebido do crime violento.

A representação midiática do assalto à mão armada nos anos 1970 possuía uma característica particular, que persiste ainda hoje: uma associação deliberada e rígida do crime com a juventude negra. A polícia tem se engajado em “controlar e conter” a população negra desde o início dos anos 1970, mas depois da turbulência política e do colapso econômico da metade desta década, que resultou em cortes nas políticas bem estar, educação e suporte social, o impacto sobre a população negra concentrada nas cidades foi o mais grave.

Além disso, parte do efeito das revoltas dos anos 1960 tem sido introduzir uma nova sensibilidade de resistência no interior das cidades, e o que agora emergia era uma situação explosiva: “um setor da população, já mobilizado em termos de consciência negra, era agora também o setor mais exposto ao processo de aceleração da recessão econômica”.

A consequência foi “nada menos do que a sincronização dos aspectos de raça e classe da crise”, escreveram os acadêmicos de Birmingham. “Policiar os negros ameaçou o problema do policiamento dos pobres e dos desempregados: todos os três estavam concentrados precisamente nas mesmas áreas urbanas”. “Policiar os negros” tornou-se “sinônimo de policiar a crise”.

Aqui Policing the Crisis apresentou um slogan bastante citado: “raça é a modalidade na qual a classe é vivida”. Para membros negros da classe trabalhadora, é primeiramente por meio da experiência da “raça” que eles podem “chegar a uma consciência de sua subordinação estruturada”: “É por meio da modalidade da raça que negros compreendem, lidam e começam a resistir à exploração que é uma característica objetiva de sua situação de classe”. O poeta de dub raggae, Linton Kwesi Johnson cantou esta chegada à consciência, E a classe trabalhadora?:

“E a classe trabalhadora?
Nada de culpar a classe trabalhadora negra, Sr. Racista
A culpa é da classe dominante
A culpa é do patrão capitalista
A gente paga o custo, a gente perde”

As forças da reação foram rápidas e decisivas. A eleição de Margaret Thatcher como líder da oposição, em 1975, representou o movimento de uma direita radical saída das margens para o centro, erigida na ideologia da lei e da ordem para avançar uma estratégia de fuga em relação ao consenso do pós-guerra.

Esta estratégia assumiria lugar central à medida em que a administração da crise da socialdemocracia chegou a um inevitável impasse: “a Grã-Bretanha nos anos 1970 é um país para cuja crise não existe uma solução capitalista viável restante e, ainda, não existe uma base política para uma estratégia socialista alternativa. É uma nação presa em um dilema mortal: uma condição de declínio capitalista incontrolável”.

A dominação de classe assumiria novas formas, registradas principalmente “na inclinação da operação do Estado em se afastar do consenso e se aproximar do polo da coerção”. O pânico moral sobre o assalto violento, então, era “uma das formas aparentes de uma crise histórica profundamente enraizada”; ele cumpriu um papel importante na estabilização do Estado.

A percepção do aumento do crime era “uma das principais formas de consciência ideológica por meio da qual uma ‘maioria silenciosa’ é vencida para dar seu apoio às medidas crescentemente coercitivas por parte do Estado, e emprestar legitimidade para um uso do exercício do controle ‘mais do que o usual’”. Em 1977, a banda The Clash gravou em seu álbum de estreia um cover do músico jamaicano Junior Murvin, Police and Thieves, em que a descrição da polícia jamaicana se assemelhava muito à descrição de Londres.

O consenso do pós-guerra de um Estado de bem-estar benevolente abria caminho para um consenso autoritário, um desenvolvimento que o sociólogo britânico Ralph Miliband havia sugerido em 1969. Ele concluíra seu livro O Estado na sociedade capitalista com uma descrição de uma certa dialética entre reforma e repressão.

O Estado enfrenta a pressão social por meio da reforma, mas não pode nunca fazer isso de maneira plena: “na medida em que a reforma se revela incapaz de subjugar pressão e protesto, então se dá a mudança de ênfase no sentido da repressão, coerção, poder policial, lei e ordem”. Mas a repressão também engendra oposição, e “ao longo deste caminho está a transição de uma ‘democracia burguesa’ para um ‘autoritarismo conservador’”. Isto não necessariamente significa fascismo. Na verdade, o exemplo de Miliband vinha da esquerda:

“Sempre que lhes foi dado oportunidade, os líderes socialdemocratas rapidamente se projetaram na administração do Estado capitalista: mas esta administração requer sempre e mais o fortalecimento do Estado capitalista, objetivo com o qual – de um ponto de vista conservador – estes líderes deram valorosa contribuição”.

Este fortalecimento do Estado, no entanto, deixara a socialdemocracia em uma situação de “vulnerabilidade crescente aos ataques da direita (...) o caminho se tornou mais suave para os candidatos a salvadores populares cujo conservantismo extremo esta cuidadosamente localizando sob uma retórica demagógica de renovação nacional e redenção social, alimentado de maneira sutil por um apelo a preconceitos raciais e outros tipos de preconceitos vantajosos”. Miliband concluiu que “o movimento socialista alcançou uma posição de comando de tal forma” que “pode ser tarde demais para as forças do conservadorismo assumir uma opção autoritária com alguma chance real de sucesso”.

Apesar disso, para Hall o governo Thatcher foi um exemplo de extraordinário sucesso do autoritarismo. Policing the Crisis mostrava como a administração socialdemocrata da crise capitalista havia criado contradições que abriam espaço para novas estratégias de direita, e como o consenso popular com a autoridade começava a se tornar assegurando por novas formas de luta ideológica.

O que agora emergia era uma estratégia antiestatal de direita – ou melhor, uma que se representava como antiestatal para ganhar o consenso do populacho descontente, ao mesmo tempo em que detinha uma abordagem altamente centralista em relação ao governo.

Esta estratégia funcionou ao se aproveitar o descontentamento popular e neutralizar a oposição, fazendo uso de certos elementos da opinião popular para modular uma nova forma de consenso. Em 1979, Hall elaborou sobre esta nova estratégia em um artigo chamado “O show do grande movimento à direita”. O texto foi publicado na revista Marxism Today, uma revista teórica experimental do Partido Comunista da Grã-Bretanha, meses antes da eleição de Thatcher como primeira ministra.

As raízes de sua ascensão, insistia Hall, estavam “na contradição no interior da socialdemocracia”, que havia “efetivamente desorganizado a esquerda e a resposta da classe trabalhadora para a crise”. Sintetizando a dinâmica que revisara historicamente em Policing the Crisis, Hall explicou que a contradição começava com os esforços da socialdemocracia em ganhar poder eleitoral, o que exigia a “maximização de suas exigências como a representação politica dos interesses da classe trabalhadora e do trabalho organizado” capaz de “administrar a crise” e “defender – dentro dos constrangimentos impostos pela recessão – os interesses da classe trabalhadora”.

Esta não era uma “entidade política homogênea, mas uma formação política complexa”, não uma expressão da classe trabalhadora no governo, mas “os meios principais de representação da classe”. “Representação”, como uma função política na democracia parlamentar, “precisa ser entendida como uma relação ativa e formativa”, que “organiza a classe e a constitui como uma força política” – uma força política socialdemocrata – ao mesmo momento em que se constitui.”

Uma vez que a social democracia entra no governo, no entanto, “se compromete em encontrar soluções para a crise que são capazes de alcançar apoio de setores-chave do capital, desde que estas soluções sejam enquadradas em seus limites”. Isto exige o uso da “conexão indissolúvel” com as lideranças sindicais, “não para avançar, mas para disciplinar a classe e organizações que representa”.

Esta função gira ao redor do Estado, e a socialdemocracia deve se apoiar “em uma interpretação neutra e benevolente do papel do Estado como encarnação do interesse nacional acima da luta de classes”. Ela toma por sinônimos a expansão do Estado e o socialismo, “sem referencia alguma à mobilização de poderes democráticos efetivos em níveis populares” e usa o intervencionismo alargado do aparelho do Estado para “administrar a crise capitalista de maneira favorável ao capital”.

O Estado termina “inscrito em todo aspecto e característica da vida social”: “a socialdemocracia não tem alternativa estratégica viável, especialmente para o grande capital (e o grande capital não possui uma estratégia alternativa viável para si mesmo) que não envolva o apoio massivo do Estado”.

Este é o pano de fundo para a direita radical, que opera no mesmo espaço da socialdemocracia e explora suas contradições. Ela “toma os elementos que já existiam construídos no espaço, os desmantela, reconstitui em nova lógica e articula o espaço de uma nova maneira, polarizando-o à direita”.

É possível apelar para a desconfiança no estatismo, para frustração com a administração socialdemocrata da crise capitalista e avançar uma agenda aparentemente antiestatal neoliberal. O thatcherismo visou valores coletivistas, mas também o estatismo real que havia contaminado o Partido Trabalhista desde o início – ele tirou vantagem da distancia que a liderança reformista havia tomado em relação as suas bases, e demonstrou o caráter irreconciliável entre valores coletivistas e o desafio de administrar a crise capitalista.

A realização mais admirável do thatcherismo foi sua habilidade de ligar as filosofias econômicas abstratas do liberalismo austríaco, desenvolvidas por heróis libertários como Ludwig von Mises e Friedrich Hayek, aos sentimentos populares no que diz respeito a “nação, família, dever, autoridade, padrões, autoconfiança”, motores ideológicos poderosos no contexto de mobilização política por lei e ordem.

Esta “mistura rica” Hall apelidou por “populismo autoritário” e seus operadores ideológicos não poderiam ser reduzidos à mera farsa – em fato, eles haviam operado sobre “contradições genuínas”, com “conteúdo racional e material”: “Seu sucesso e efetividade não está na capacidade de enganar algum popular desavisado, mas em endereçar problemas reais, experiências reais e vividas, contradições reais – e ainda ser capaz de representa-las por meio de um discurso lógico que as impulsiona sistematicamente na direção de políticas e estratégias de classe da direita”.

A revista Marxism Today era, acima de tudo, um projeto inusitado e de longo alcance, com o estilo visual de uma revista comercial e uma carapuça de cultura popular que procurou intervir na consciência da sociedade de consumo – provocando o repúdio do companheiro de Miliband, John Saville, que cuidadosamente e desdenhosamente documentou as páginas do periódico dedicadas ao mundo da moda.

No entanto, talvez a critica mais influente tenha sido realizado pelo próprio Miliband em O grande revisionismo na Grã-Bretanha, publicado na New Left Review em 1985. Este “novo revisionismo”, argumentou Miliband, era uma repetição da primeira onda representada por Hugh Gaitskell – que havia usado o termo na revista Parliamentary Socialism.

No centro estava o debate das questões estratégicas que o Partido Trabalhista enfrentava e que Miliband não achava que poderiam ser adequadamente capturadas pelas teorias do populismo autoritário. Ele relembrava que o declínio do apoio eleitoral da classe trabalhadora ao Partido Trabalhista já existia desde 1951, resultando de suas próprias contradições.

Como documentamos acima, Hall havia cuidadosamente analisado este fenômeno e, na verdade, feito dele a base para sua teoria sobre o thatcherismo. Mas, para Miliband, Hall ainda sobrevoava questão, condenando a suspeita da direção diante da “autoativação da classe trabalhadora”, apontando sua análise constantemente em termos das possibilidades de “renovação” do partido, mesmo que fosse cético quanto às suas possibilidades.

A principal preocupação de Miliband, por sua vez, era a de refutar a nova tendência revisionista que rejeitava a “política de classe”, entendida como “insistência no ‘primado’ do trabalho organizado em desafiar o poder capitalista, e o desafio de criar uma ordem radicalmente diferente”. Miliband defendia este primado: “nenhum outro grupo, movimento ou força na sociedade capitalista é remotamente capaz de se impor como desafiante efetivo e formidável às estruturas atuais de poder e privilégio como o poder do trabalho organizado”.

Existiam dois ângulos nos quais este primado poderia ser defendido, o primeiro relacionado às mudanças no processo de produção e horizonte social nos países de capitalismo avançado; André Gorz e seu Farewell to the Working Class Adeus à classe do trabalho foi nomeado um influente precursor do “revisionismo”.

Miliband aceitava que “a classe trabalhadora experimentou nos anos recentes um processo acelerado de recomposição, com o declínio de setores industriais tradicionais e um crescimento considerável dos trabalhadores de colarinho branco, de distribuição, serviços e setores técnicos”. Mas ele não aceitava que isto significasse que as coordenadas clássicas da política socialista deveriam mudar. Afinal, os assalariados continuavam a compor a maior parte da população dos países capitalistas avançados, e continuavam capazes de desenvolver uma consciência socialista.

O segundo desafio era aquele relativo aos novos movimentos sociais. Miliband começou com uma lembrança razoável de que “a classe trabalhadora incluía um grande número de pessoas que são membros dos ‘novos movimentos sociais’, ou que são parte do público que estes movimentos querem alcançar”. Mas ele também argumentou que seria uma erro para estas pessoas entender suas experiências de opressão pode meio das identidades.

De fato, a categoria de “política de classe” dera o compasso dos novos movimentos sociais na medida em que o trabalho organizando não lutou por seus fins economicistas e corporativos, “mas por toda a classe trabalhadora muito além dela”. Ainda que esta luta “requeira um sistema de alianças populares”, Miliband sustentou que “é apenas a classe trabalhadora organizada que pode formar a base deste sistema”.

A pergunta sobre “como” a classe trabalhadora pode se organizar, porém, ficou sem resposta. Como Robin Blackburn afirmou recentemente, “1985 marcou o começo de praticamente três décadas de desmobilização e desmoralização de classe” e Miliband “subestimou os efeitos da recomposição de alcance global do capital e trabalho no fim do século”. Sua discussão sobre os novos movimentos sociais se manteve especulativa, sem investigação séria das questões levantas sobre o caráter da política da classe trabalhadora.

Em contraste, a análise de Hall da raça como “modalidade” por meio da qual os trabalhadores negros se tornam conscientes de sua posição de classe estava baseada em uma análise da composição da classe trabalhadora negra, a história da cultura migrante, e a organização política das lutas negras – por meio da qual ele foi capaz de construir e identificar formas potenciais de atividade política que possuíam relevância geral para a classe, na medida em que o racismo era parte da maneira como as populações trabalhadoras eram estruturas pelo capital.

Este impasse estratégico afetou diretamente a conjuntura política com a experiência da greve dos mineiros em 1984-1985. A ferocidade desta luta tornou qualquer discussão carregada emocionalmente. Hall havia sido bastante crítico da greve – do sofrimento intenso e do risco implicado em fazer a greve em um período de austeridade e declínio industrial, e da decisão não democrática de fazer a greve sem uma votação.

Ele seguiu criticando o aspecto “familial e masculinista” da mobilização dos mineiros, “como homens que possuem um dever de se levantar e lutar”. O enquadramento como política de classe do momento, fixo em uma identidade de classe específica, havia impedido os mineiros de “generalizar sua luta em uma dimensão social mais ampla”.

Aspectos desta análise estavam provavelmente corretos. Mas ela provocou um afastamento compreensível de Miliband. Chegou um momento em que muitos, especialmente aqueles afiliados ao Marxism Today, passaram a associar a greve com uma prática teimosa e antiquada de uma “esquerda dura”.

O termo não está totalmente deslocado; qualquer um que tenha participado de um movimento social já se encontrou aqueles que se intitulam “guardiões das consciências de esquerda, como garantidas políticas, o teste limite da ortodoxia”. Mas em retrospecto, usado contra os que defendiam os sindicatos no contexto de um ataque capitalista implacável, este apelido era inadequado.

Por outro lado, o argumento de Miliband perdia as questões substanciais que estas críticas de fato levantavam. De acordo com a biografia de Michael Newman, ele foi criticado por sua esposa Marion Kozaks, que considerava que o artigo sobre o novo revisionismo “superestima o primado da classe e falha ao não dar peso suficiente aos movimentos sociais, os quais vê como divisores ao invés de potenciais aliados para os movimentos classistas – como, por exemplo, os grupos de mulheres que apoiam os mineiros”.

Estas linhas de aliança inesperadas foram recentemente dramatizadas no filme Pride, que mostra os esforços de arrecadação de recursos do Apoio de Lésbicas e Gays aos Mineiros, um gesto de solidariedade que foi devolvida pela participação de grupos de mineiros galeses na Marcha do Orgulho Gay de Londres, em 1985 e pelo apoio decisivo da União Nacional dos Mineiros para uma resolução interna do Partido Trabalhista em favor dos direitos LGBTs.

Conforme escreveram Doreen Massey e Hilary Wainwright em comentário sobre os grupos feministas de apoio à greve, “não é uma questão de ação industrial ou novos movimentos sociais, tampouco é uma questão de soma-los (...) Novas instituições podem ser construída para que ‘a política de classe’ possa ser vista como algo mais que simples militância industrial mais representação parlamentar”. Era justamente a urgência por estas novas instituições, e a dificuldade de construí-las, que estava por baixo do pessimismo de Hall:

“A greve foi então condenada a ser travada e perdida como algo velho e não como uma nova forma de política. Para aqueles de nós que sentimos isto desde o início, foi duplamente insuportável porque – na solidariedade que ela alcançou, nos níveis gigantescos de apoio que engendrou, com o envolvimento sem paralelos de mulheres nas comunidades mineiras, presença feminista na greve, a quebra de barreiras entre diferentes interesses sociais que ela pressagiou – a greve dos mineiros carregava instintivamente a política da novidade, ela foi um grande enfrentamento com o thatcherismo que deveria marcar a transição para a política do presente e do futuro, mas foi travada e perdida, aprisionada nas categorias e estratégias do passado.”

Se cada lado do debate tinha um ponto, não está claro que todos os participantes entendessem o que a derrota catastrófica dos mineiros representava verdadeiramente. Apesar da clareza de Hall a respeito dos efeitos poderosos do populismo autoritário, sua teoria não parecia antecipar o quão drasticamente esta derrota mudaria o campo e o quão completa ela seria.

Este momento não foi adequadamente apreciado como uma derrota também para os novos movimentos sociais. Ao longo da vida das coalizões “arco-íris”, multiculturalismo, e políticas de identidade, sua sobrevivência indicaria a separação crescente em relação às formas organizacionais de base e aos movimentos militantes com os quais poderiam forma alianças antissistema permanentes. E apesar de sua oposição anterior sobre o novo revisionismo, não está claro que a abordagem de Miliband o teria conduzido a uma alternativa política.

Apesar das desventuras que envolvem o nome Miliband, é Hall que é frequentemente acusado de ter pavimentado o caminho para o Novo Trabalhismo. Isto de alguma forma confunde o funcionamento da dinâmica: foi o thatcherismo que pavimentou o caminho para o Novo Trabalhismo, e Hall foi uma das pessoas que descreveu com grande clareza o thatcherismo como um modo de operação. Não há razão para duvidar que Miliband teria criticado o giro dramático à direita engendrado por Tony Blair se estivesse vivo.

Hall, por sua vez, execrou Blair em uma edição única de “retomada” da Marxism Today em 1997 (não circulava desde 1991), em um artigo chamado “O grande show da movimentação para o nada”. Enquanto documentou as capitulações do Novo Trabalhismo ao neoliberalismo, e os novos sujeitos sociais que delas se manifestavam (“homem econômico ou como ela/ele gosta de ser chamado, O Sujeito Empreendedor e o Consumidor Soberano”), ele não apresentou uma análise política do fenômeno comparável ao que havia feito com o thatcherismo.

Obviamente Blair estava seguindo os passos de Bill Clinton, cujo mandato presidencial não apenas trouxe o Tratado de Livre Comércio das Américas (NAFTA), a lei do crime e a reforma da lei do bem-estar, mas também estava empenhado em um estilo cultural, direcionado por grupos focais e imagens de consultoria, que jogavam com a diversidade dos novos tempos, levando Toni Morrison ao famoso comentário de que Clinton era o “primeiro presidente negro”.

Um termo além do “populismo autoritário” seria necessário para descrever este fenômeno, que mostrou, por um lado, que a estratégia hegemônica da direita era bem sucedida a ponto de absorver a esquerda conhecida e facilitar a consolidação da desigualdade econômica e a reversão seguinte das reformas condensadas no Estado; e, por outro lado, que o pluralismo, a celebração da mídia popular e olhar para a cultura jovem não necessariamente constituem, na ausência de mobilizações revolucionárias viáveis, uma força de oposição, como as campanhas de base para o verdadeiro primeiro presidente americano negro mostraram desde então.

É precisamente no frustrante desenvolvimento de um agente antagonista que a discussão sobre a cultura e a ideologia deve ser situada – não como uma explicação de mecanismos complexos e viradas da política eleitoral. Muito tempo depois de Thatcher e Reagan uma indústria de comentadores pergunta por que a classe trabalhadora americana vota contra “seus interesses”, nos convidando a opor Kansas e Connecticut, estado vermelho e estado azul. Mas na verdade é na decomposição e desorganização da classe trabalhadora que devemos procurar a explicação para a emergência da direita – não na consciência, falsa ou o que seja.

As evidencias empíricas mostram que a classe trabalhadora nos Estados Unidos, medida por renda, possui uma preferencia de voto consistente no Partido Democrata, e isso é verdadeiro mesmo se restringimos os dados para a classe trabalhadora branca. Mas ao contrário da lógica mercadológica “dos interesses”, esta prática de voto nunca aumentou o poder da classe trabalhadora, e portanto o éter indeterminado da opinião pública americana termina subordinado ao poder de vanguardas de direita. Se o populismo autoritário mudou as ideias das pessoas, ou não, é uma questão inútil.

O seu papel na transformação neoliberal foi atacar a possibilidade de alianças estratégicas entre os novos movimentos sociais e a organização no lugar de produção. Ideologias tradicionalistas de família, igreja e nação foram ataques preventivos contra uma potencial barreira política de acumulação que estas linhas de aliança poderiam impor a partir de baixo.

“Nossa convenção ocorre no momento de crise de nossa nação” disse Donald Trump na convenção republicana. Ele está certo; e a crise é também da esquerda. Nosso discurso muitas vezes se reduz a disputas mesquinhas, por uma lado uma absorção a-histórica em posturas espetaculares de rebelião sem direção e narcisismo identitário, por outro a ortodoxia indigesta e pouco atraente. Neste contexto, a arte da política não pode ser encontrada – com exceção talvez do delírio de direita, uma realidade que Hall também descreveu:

“Eu me lembro do momento na eleições de 1979 em que o Sr. Callaghan, em sua última corrida política por assim dizer, disse com verdadeira surpresa sobre a ofensiva da Srª. Thatcher: ‘Ela parece arrancar a sociedade pelas raízes’. Esta era uma ideia impensável para o vocabulário socialdemocrata: um ataque radical no status quo.” 
A verdade é que ideias tradicionalistas, as ideias de respeitabilidade social e moral, tem penetrado tão profundamente na consciência socialista que é comum encontrar pessoas comprometidas com um programa político radical e sustentadas por sentimentos e sensações totalmente tradicionais.” 

Nossa crise nos impediu de levar adiante uma tarefa urgente que Hall colocou com precisão: “como forças diferentes podem, juntas, conjunturalmente, criar um novo terreno no qual uma política diferente possa se formar”. Está colocado para nós inventar uma política diferente – ou Trump será o único a fazê-lo.

24 de julho de 2016

Austeridade não pode ignorar políticas inclusivas

Desafio é fechar as contas mantendo rota de redução das desigualdades

Marta Arretche

Naercio Menezes

Folha de S.Paulo


Um dos grandes desafios da conjuntura em que vivemos envolve escolhas estratégicas que permitam dar continuidade à bem sucedida trajetória recente de redução das desigualdades sociais no Brasil sem gerar crises fiscais que impeçam a sustentabilidade das políticas. Essas escolhas, por sua vez, estão estreitamente associadas a concepções normativas sobre o tipo de sociedade que desejamos.

Estamos entre os que acreditam que as políticas sociais devem produzir igualdade de oportunidades, de modo que as condições econômicas da família ao nascimento, a cor ou a região de origem não sejam uma barreira intransponível para os indivíduos poderem ter uma vida decente, preferencialmente com seu próprio trabalho. Deste ponto de vista, é importante que se diga com toda a clareza que, a despeito dos inegáveis avanços das últimas décadas, ainda temos um longo caminho pela frente para nos aproximarmos desse ideal.

Duas questões são incontornáveis nesse debate. A primeira diz respeito às políticas desejáveis, que deveriam ser preservadas em uma estratégia de enfrentamento da crise fiscal (o desequilíbrio financeiro do Estado). Responder a essa questão requer identificar os fatores que mais contribuíram para a redução das desigualdades no passado recente.

A segunda, não menos relevante, diz respeito à viabilidade política dessas políticas desejáveis, sem a qual tais preferências não passam de "wishful thinking".

Quando a democracia foi reinstaurada no Brasil, em 1985, além da elevada concentração da renda entre os mais ricos, a dívida social brasileira também resultava de uma grande divisão entre "insiders" (os incluídos) e "outsiders" (os excluídos).

Desde Getúlio Vargas, a legislação trabalhista protegia apenas os trabalhadores do mercado formal que compunham o setor industrial urbano. O vínculo trabalhista era requisito para aposentadorias e serviços de saúde. Estima-se que apenas 40% dos trabalhadores estavam nessa condição.

Viam-se excluídos, portanto, da proteção trabalhista e do direito à aposentadoria e a cuidados de saúde cerca de 60% dos trabalhadores, que acumulavam a desvantagem da baixa escolaridade e de ocupações precárias. Um elemento central do modelo adotado por Vargas, mantido até 1988, é que eram principalmente esses "outsiders" que contribuíam para financiar os benefícios dos "insiders".

Sob o modelo de substituição de importações, em uma economia fechada, os custos da proteção social dos "insiders" eram transferidos para os preços dos produtos, e, portanto, pagos por todos os consumidores.​


Educação

Além disso, a despeito de iniciativas reformistas que datam do Império, o fato é que o Estado brasileiro nunca deu prioridade à educação. Em 1980, apenas metade dos jovens com 12 a 15 anos de idade tinha completado o ensino primário. Entre os jovens de 16 a 18 anos, apenas 20% tinha o ensino fundamental completo. Essa oferta abundante de trabalhadores pouco qualificados gerou fortes incentivos para um modelo de industrialização de baixa intensidade tecnológica. A indústria acomodou-se com essa estratégia e apostou que os cursos de qualificação profissional seriam suficientes para gerar mão de obra capacitada. Grave erro.

A combinação de limitados esforços para a universalização do acesso à educação, mantendo-se forte associação entre origem familiar e avanço no sistema escolar, com direitos previdenciários e de saúde vinculados a empregos formais para uma pequena parcela implicou uma fusão de vantagens para os "insiders" que não representavam nem metade da população brasileira.

Desde meados dos anos 1980, o Brasil vem experimentando um processo incremental de inclusão dos "outsiders". Essa trajetória não é explicada por um único fator isolado. Ela resulta de uma combinação de mudanças demográficas, forças de mercado e políticas deliberadas.

Na dimensão demográfica, a mudança no comportamento reprodutivo das mulheres mais pobres, a partir dos anos 1980, com consequente queda nas taxas de fertilidade, estancou a fonte da abundante oferta de jovens pobres no mercado de trabalho. Essa trajetória demográfica dificilmente será revertida.

Por outro lado, o boom das commodities e as baixas taxas internacionais de juros, que também afetaram outros países da América Latina, foram uma forte alavanca do crescimento econômico –o que favoreceu a expansão das receitas governamentais, sem que políticas impopulares de expansão da taxação fossem necessárias. Essas condições não estão mais presentes, o que eleva a temperatura dos conflitos redistributivos, como já estamos tendo oportunidade de observar.

O comportamento desses fatores –a demografia e o boom internacional das commodities– está fora do alcance das escolhas institucionais. Por essa razão, nossa avaliação deve se concentrar sobre as políticas deliberadas que favoreceram a inclusão.

A constitucionalização dos sistemas universais de educação e saúde, bem como a vinculação do piso das aposentadorias (contributivas e não-contributivas) ao salário mínimo, estão entre as principais políticas de inclusão dos "outsiders" que afetaram as historicamente elevadas taxas de desigualdade no Brasil.

A vinculação do piso das aposentadorias ao valor do salário mínimo produziu um colchão de proteção para os mais pobres, mesmo em contextos recessivos, como em 1992 e 2003. Além disso, a valorização do mínimo em termos reais reduziu a desigualdade no mercado de trabalho, contribuindo para a inclusão de milhares de brasileiros no universo de consumo. A conjunção de fatores externos e demográficos favoráveis fez com que o impacto do salário mínimo fosse sancionado pelo mercado de trabalho, não resultando em maior desemprego ou informalidade. Ao contrário, tanto um quanto outro diminuíram na primeira década do século 21.

Transferência
 
A expansão da escolaridade, por sua vez, reduziu (não eliminou) a influência da origem social sobre a educação e a oferta abundante de jovens não qualificados que chegavam todos os anos ao mercado de trabalho.

Vale notar que tal inclusão favoreceu muito mais as mulheres do que os negros e pardos. Mas, o fato é que essa expansão decorreu da vinculação de recursos estabelecida pela Constituição de 1988 e que foi aprofundada com a adoção do Fundef e do Fundeb.

Continuar na trajetória de redução das desigualdades de acesso à educação, estancando a oferta abundante de mão de obra não qualificada, é, portanto, uma condição essencial para dar continuidade à queda das desigualdades no mercado de trabalho brasileiro.

Por fim, o SUS garantiu o acesso aos cuidados de saúde para os trabalhadores menos qualificados e com precária inserção no mercado, garantindo uma queda notável nas taxas de mortalidade –com consequente expansão da expectativa de vida e redução substancial das diferenças regionais nas condições de saúde.

Nesse sentido, os programas de transferência condicionais de renda, como o Bolsa Família, e de visitação domiciliar, como o Programa Saúde da Família, também tiveram papel fundamental.

A citada constitucionalização dos sistemas universais de saúde e de educação, bem como do piso dos pagamentos previdenciários, foi resultado de um grande consenso, ainda na transição para a democracia, em torno da ideia de que a democracia não seria sustentável sem políticas de inclusão. A politização da extrema pobreza e da desigualdade, vocalizada por grupos progressistas e de esquerda, inscreveu o tema na agenda política da transição democrática. Tal como Ulysses Guimarães, aquela geração parlamentar amarrou essas políticas ao mastro da Constituição para protegê-las contra maiorias ocasionais no futuro.

É possível que aquele consenso esteja em processo de erosão, dada a crescente mobilização política dos grupos conversadores no Brasil. Mas nossa avaliação é de que a vinculação constitucional dos gastos em saúde e educação para os três níveis de governo ainda é a melhor proteção contra o canto das sereias.

Além disso, o fato é que as taxas de participação eleitoral no Brasil variam em torno de 80%, o que quer dizer que os (antigos) "outsiders" votam. Uma vez incluídos na arena eleitoral, os beneficiários das pensões e benefícios indexados ao salário mínimo e dos sistemas universais de saúde e educação representam um grande número de eleitores, que pode ser decisivo em um pleito majoritário. Eles podem influenciar sobremaneira os cálculos eleitorais dos parlamentares na tramitação de propostas orientadas a impor perdas a categorias concentradas de beneficiários. A recente aprovação de aumentos salariais para o funcionalismo público é um exemplo nessa direção.

Assim, propostas de imposição de perdas que tenham alta visibilidade política terão muita dificuldade para formar coalizões de apoio no Congresso, tendo em vista as eleições municipais deste ano e as majoritárias em 2018

Há razões para crer, com base no comportamento parlamentar na tramitação dessas matérias, que mesmo partidos conservadores terão dificuldade para apoiar medidas de imposição de perdas, dada a necessidade de expandir sua base eleitoral para além dos setores de classe média e alta.

Custo eleitoral

Os custos eleitorais de aprovar medidas que afetem negativamente uma parcela substancial da população brasileira, como os que ganham um salário mínimo no mercado de trabalho, ou via Previdência, por exemplo, são extremamente altos para os políticos. O mesmo ocorre com o fim das vinculações de gastos com educação e saúde.

Em suma, estamos passando por um período turbulento em termos econômicos e políticos. O nosso problema fiscal precisa ser enfrentado ao mesmo tempo em que passamos por uma recessão sem precedentes em nossa história. Novas denúncias envolvendo a credibilidade dos partidos aparecem todos os dias.

Não sabemos se o sistema partidário atual e sua estrutura de competição política sobreviverão ao tsunami. Mas, é certo que os eleitores do piso da pirâmide social e suas preferências não desaparecerão –e terão que ser levados em conta na tramitação das medidas de ajuste fiscal. Combinar equilíbrio fiscal e a popularidade das políticas de inclusão é, e continuará sendo, um grande desafio a ser enfrentado pela elite política brasileira.

Marta Arretche, 58, professora de ciência política da USP, é diretora do Centro de Estudos da Metrópole.

Naercio Menezes Filho, 51, professor de economia da USP e do Insper, é coordenador do Centro de Políticas Públicas do Insper.

Marcia Xaviaer, 40, é artista plástica

23 de julho de 2016

O neoliberalismo é um projeto político

David Harvey sobre o que o neoliberalismo realmente é - e por que o conceito é importante.

Bjarke Skærlund Risager

Jacobin

David H. Petraeus, da Agência Central de Inteligência, toca o sino de abertura na Bolsa de Nova York em 18 de setembro de 2012, em cumprimento ao 65º aniversário da CIA. CIA / Wikimedia

Tradução / Onze anos atrás, David Harvey publicou Breve história do neoliberalismo, agora um dos livros mais citados sobre o assunto. Desde então temos visto novas crises econômicas e financeiras, mas também de novas ondas de resistência, que muitas vezes visam o "neoliberalismo" em sua crítica da sociedade contemporânea.

Cornel West fala do movimento Black Lives Matter como "uma acusação do poder neoliberal"; o falecido Hugo Chávez chamou o neoliberalismo de um "caminho para o inferno"; e líderes trabalhistas estão cada vez mais usando o termo para descrever o ambiente maior, na qual ocorrem as lutas no local de trabalho. A imprensa mainstream também recorreu ao termo, ainda que apenas para argumentar que o neoliberalismo na verdade não existe.

Mas, exatamente, estamos falando sobre o quê quando falamos sobre o neoliberalismo? É um alvo útil para os socialistas? E como mudou desde a sua gênese no final do século XX?

Bjarke Skærlund Risager, doutor pelo Departamento de Filosofia e História das Idéias da Universidade de Aarhus, sentou-se com David Harvey para discutir a natureza política do neoliberalismo, como transformou modos de resistência e por que a esquerda ainda precisa ser séria sobre o fim do capitalismo.

O neoliberalismo é hoje um termo amplamente utilizado. No entanto, muitas vezes não está claro o que as pessoas se referem quando o usam. Em seu uso mais sistemático, ele pode se referir a uma teoria, um conjunto de idéias, uma estratégia política ou um período histórico. Você poderia começar por explicar como você entende o neoliberalismo?

Sempre tratei o neoliberalismo como um projeto político levado a cabo pela classe capitalista corporativa, pois eles se sentiram intensamente ameaçados tanto em termos políticos quanto econômicos no final da década de 1960 até a década de 1970. Eles desejavam desesperadamente lançar um projeto político que restringisse o poder do trabalho.

Em muitos aspectos, o projeto foi um projeto contra-revolucionário. Ele deveria arrancar pela raiz o que, naquela época, eram movimentos revolucionários em grande parte do mundo em desenvolvimento - Moçambique, Angola, China, etc. -, mas também uma onda crescente de influências comunistas em países como a Itália e a França e, em menor grau, a ameaça de um ressurgimento daquela na Espanha.

Mesmo nos Estados Unidos, os sindicatos haviam produzido um Congresso Democrático que era bastante radical em sua intenção. No início da década de 1970, eles, juntamente com outros movimentos sociais, forçaram uma série de reformas e iniciativas reformistas que eram anti-corporativas: a Agência de Proteção Ambiental, a Administração de Segurança e Saúde do Trabalho, proteção ao consumidor e todo um conjunto de coisas em torno do poder do trabalho além do que tinha sido autorizado antes.

Então, nessa situação, havia, de fato, uma ameaça global ao poder da classe capitalista corporativa e, portanto, a questão era: "O que fazer?". A classe dominante não era onisciente, mas eles reconheceram que havia várias frentes sobre as quais eles tinham que lutar: a frente ideológica, a frente política e, acima de tudo, tinham que lutar para conter o poder do trabalho por qualquer meio possível. Foi daí que surgiu um projeto político que eu chamaria de neoliberalismo.

Poderia nos dizer um pouco mais a propósito dos fronts político e ideológico, assim como os ataques contra o mundo do trabalho?

No front ideológico, isso consistia em seguir o conselho de um cara chamado Lewis Powell, que havia escrito um memorando dizendo que as coisas haviam ido longe demais e que o capital precisava de um projeto coletivo. Essa nota ajudou a mobilizar a Câmara de Comércio e a Távola Redonda dos negócios.

The ideological front amounted to following the advice of a guy named Lewis Powell. He wrote a memo saying that things had gone too far, that capital needed a collective project. The memo helped mobilize the Chamber of Commerce and the Business Roundtable.

As idéias tinham então sua importância. Essa gente pensava que era impossível organizar as universidades porque elas eram muito progressistas; e o movimento estudantil, forte demais. De repente, eles montaram todos esses grupos de reflexão, think tanks como o Instituto Manhattan, as fundações Ohlin ou Heritage. Esses grupos levaram adiante as idéias de Friedrich Hayek, de Milton Friedman e da economia da oferta.

A ideia era fazer com que esses grupos de pesquisa fizessem pesquisas sérias e alguns deles - por exemplo, o Escritório Nacional de Pesquisa Econômica era uma instituição de capital privado que realizava pesquisas extremamente boas e aprofundadas. Esta pesquisa seria então publicada de forma independente e influenciaria a imprensa e, pouco a pouco, cercaria e se infiltraria nas universidades.

Esse processo tomou um tempo. Penso que eles estão agora num ponto em que não têm mais necessidade de coisas como a fundação Heritage. As universidades foram amplamente penetradas pelos projetos neoliberais que as cercam.

No que diz respeito ao trabalho, o desafio consistia em tornar competitivo o custo do trabalho local em relação ao custo do trabalho globalizado. Uma solução teria sido demandar mão de obra imigrante. Nos anos 1960, por exemplo, os alemães apelaram aos turcos, os franceses aos magrebinos e os ingleses aos trabalhadores originários de suas antigas colônias. Mas isso havia criado muito descontentamento e agitação social.

Desta vez, os capitalistas escolheram outra via: exportar o capital de onde havia uma força de trabalho mais cara. Mas para que a globalização funcionasse, era preciso reduzir as tarifas e reforçar o capital financeiro, pois esta é a forma de capital mais móvel. O capital financeiro e o fato de tornar as moedas flutuantes tornaram-se essenciais para conter a classe operária.

Ao mesmo tempo, os projetos de privatização e de desregulação criaram desemprego. Portanto, desemprego no interior do país e deslocalizações para fora, assim como um terceiro componente, as mudanças tecnológicas, a desindustrialização por meio da automação e da robotização. Esta foi a estratégia para triturar a classe operária.

Foi um ataque ideológico, mas também um assalto econômico. Para mim, sobre o que se tratava o neoliberalismo: era esse projeto político, e acho que a burguesia ou a classe capitalista corporativa colocaram-no em movimento pouco a pouco.

Eu não acho que eles começaram lendo Hayek ou qualquer coisa, eu acho que eles simplesmente disseram intuitivamente, "Nós temos que esmagar o trabalho, como nós fazemos isso?" E eles descobriram que havia uma teoria de legitimação lá fora, o que apoiaria isso.

Depois da publicação, em 2005, do livro Breve história do neoliberalismo, muito foi escrito sobre esse conceito. Parece haver principalmente dois campos: os pesquisadores que estão mais interessados na história intelectual do neoliberalismo e as pessoas que são sobretudo preocupadas com o “neoliberalismo realmente existente”. Onde você se situa?

Existe uma tendência nas ciências sociais, à qual eu tento resistir, que consiste em procurar uma fórmula mágica para explicar um fenômeno. Há assim uma série de pessoas dizendo que o neoliberalismo é uma ideologia e que escrevem uma história idealizada sobre ela.

Um exemplo é o conceito de Foucault de “governabilidade” que vê tendências neoliberais já presentes no século XVIII. Mas se vocês tomam o neoliberalismo unicamente como uma ideia ou um pacote de práticas limitadas de “governabilidade”, encontrarão numerosos precursores.

O que falta aqui é a forma como a classe capitalista orquestrou seus esforços durante a década de 1970 e início dos anos 80. Penso que seria justo dizer que naquele momento - pelo menos no mundo de língua inglesa - a classe capitalista corporativa tornou-se bastante unificada.

Eles concordaram em muitas coisas, como a necessidade de uma força política para realmente representá-los. Então você obtém a captura do Partido Republicano, e uma tentativa de minar, até certo ponto, o Partido Democrata.

A partir da década de 1970, a Suprema Corte tomou um monte de decisões que permitiram que a classe capitalista corporativa comprasse as eleições mais facilmente do que poderia no passado.

Há uma longa tradição nos Estados Unidos de capitalistas corporativos que compram eleições,mas agora foi legalizado em vez de estar sob a mesa como corrupção.

No geral, acho que este período foi definido por um amplo movimento em muitas frentes, ideológicas e políticas. E a única maneira que você pode explicar esse movimento amplo é reconhecendo o grau relativamente alto de solidariedade da classe capitalista corporativa. O capital reorganizou seu poder em uma tentativa desesperada de recuperar sua riqueza econômica e sua influência, que havia sido gravemente destruída desde o final da década de 1960 até a década de 1970.

Houve várias crises desde 2007. Como o conceito e a história do neoliberalismo podem nos ajudar a compreendê-las?

Houve muito poucas crises entre 1945 e 1973; houve momentos sérios, mas não houve grandes crises. A mudança para a política neoliberal ocorreu em meio a uma crise na década de 1970, e todo o sistema tem sido uma série de crises desde então. E, claro, as crises produzem as condições das futuras crises.

Em 1982-85 houve uma crise da dívida no México, no Brasil, no Equador e, basicamente, em todos os países em desenvolvimento, incluindo a Polônia. Em 1987-88 houve uma grande crise nas instituições de poupança e empréstimo dos EUA. Houve uma grande crise na Suécia em 1990, e todos os bancos tiveram que ser nacionalizados.

Então, é claro que temos a Indonésia e o Sudeste Asiático em 1997-98, então a crise se move para a Rússia, depois para o Brasil, e atinge a Argentina em 2001-2.

E houve problemas nos Estados Unidos em 2001, que eles conseguiram tirando dinheiro do mercado de ações e despejando-o no mercado imobiliário. Em 2007-8, o mercado imobiliário dos EUA implodiu, então você teve uma crise aqui.

Você pode olhar um mapa do mundo e visualizar as crises percorrendo o planeta. O conceito de neoliberalismo é útil para compreender esses fenômenos.

Um dos grandes movimentos de neoliberalização foi expulsar todos os keynesianos do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional em 1982 - uma limpeza total de todos os conselheiros econômicos que possuíam pontos de vista keynesianos.

Eles foram substituídos por teóricos neoclássicos do lado da oferta e a primeira coisa que fizeram foi decidir que, a partir desse momento, o FMI deveria seguir uma política de ajuste estrutural sempre que houvesse uma crise em qualquer lugar.

Em 1982, com certeza, houve uma crise da dívida no México. O FMI disse: "Nós o salvamos". Na verdade, o que eles estavam fazendo era salvar os bancos de investimento de Nova York e implementar uma política de austeridade.

A população do México sofreu algo como uma perda de 25% de seu padrão de vida nos quatro anos após 1982, como resultado da política de ajuste estrutural do FMI.

Desde então, o México teve cerca de quatro ajustes estruturais. Muitos outros países tiveram mais de um. Isso tornou-se uma prática padrão.

O que eles estão fazendo na Grécia agora? É quase uma cópia do que fizeram ao México em 1982, apenas mais experiente. Isto também aconteceu nos Estados Unidos em 2007-8. Eles resgataram os bancos e fizeram as pessoas pagarem por uma política de austeridade.

Haverá qualquer coisa, nas crises recentes e no modo como elas foram geradas pelas classes dirigentes, que o faria hoje rever sua teoria do neoliberalismo?

Bem, não creio que a solidariedade da classe capitalista seja hoje o que era então. Em nível geopolítico, os Estados Unidos não estão mais na posição de conduzir a dança como faziam nos anos 1970.

Penso que assistimos a uma regionalização das estruturas globais de poder no seio do sistema dos Estados - com hegemonias regionais como a da Alemanha na Europa, do Brasil na América Latina ou da China no Leste da Ásia.

Evidentemente, os Estados Unidos conservam uma posição dominante, mas os tempos mudaram. Trump pode comparecer ao G20 e dizer “devemos fazer isso”, e Angela Merkel lhe responder “não o faremos”, o que era inimaginável nos anos 1970.

A situação geopolítica está, portanto, regionalizada, e há mais autonomia. Penso que é em parte um resultado do fim da guerra fria. Países como a Alemanha não dependem mais da proteção dos Estados Unidos.

Aliás, isso que chamamos “a nova classe capitalista” de Bill Gates, da Amazon e do Vale do Silício têm uma política que difere da dos gigantes tradicionais do petróleo e da energia.

O resultado é que cada um tenta seguir seu próprio caminho, o que leva a conflitos entre por exemplo a energia e as finanças, a energia e o Vale do Silício etc. Existem sérias divergências sobre temas tais como as mudanças climáticas, por exemplo.

Um outro aspecto que me parece crucial é que o impulso neoliberal dos anos 1970 não foi imposto sem fortes resistências. Houve importantes reações da classe trabalhadora, dos partidos comunistas na Europa etc.

Mas eu diria que ao final dos anos 1980 a batalha havia sido perdida. E como a classe trabalhadora não tem mais o poder de que dispunha àquela época, a solidariedade no seio da classe dirigente não é mais também necessária.

Não há mais uma séria ameaça vindo de baixo. A classe dirigente se vira muito bem e não tem muita coisa a mudar.

Se a classe capitalista se arranja bem, em contrapartida o capitalismo vai bastante mal. As taxas de lucro se recuperaram, mas as taxas de reinvestimento são extremamente baixas, razão pela qual um monte de dinheiro não retorna para a produção mas é dedicado à conquista de terras ou à compra de ativos.

Falemos um pouco mais das resistências. Em seu trabalho, você insiste no fato, aparentemente paradoxal, de que a ofensiva neoliberal se desenvolveu paralelamente a um declínio na luta de classes, pelo menos no Norte, em favor de “novos movimentos sociais” pela liberdade individual.

Você poderia explicar como o neoliberalismo gerou certas formas de resistência?


Aqui está uma questão a meditar. E se cada modo de produção dominante, com sua configuração politica particular, criar um modo de oposição que se constitui em seu reflexo?

À época da organização fordista da produção, o reflexo era um movimento sindical centralizado e partidos políticos baseados no centralismo democrático.

À época neoliberal, a organização da produção para uma acumulação flexível produziu uma esquerda que é também, na verdade, seu reflexo: trabalho em redes decentralizadas, não hierarquizados. Penso que é muito interessante.

E até certo ponto, o reflexo do espelho valida o que tentava destruir. O movimento sindical, assim, sustentou o fordismo.

Penso que neste momento muita gente à esquerda, sendo muitos autônomos e anarquistas, reforçam na verdade o neoliberalismo em seu jogo final. Muita gente de esquerda não quer saber dessa afirmação.

Mas a pergunta que se coloca é, evidentemente: haverá um meio de se organizar que não seja no espelho do neoliberalismo? Podemos quebrar esse espelho e organizar qualquer outra coisa, que não jogue o jogo do neoliberalismo?

A resistência ao neoliberalismo pode assumir diversas formas. No meu trabalho, ressalto o fato de que o lugar de realização do valor é também um ponto de tensão.

O valor é produzido no processo do trabalho, e é um aspecto muito importante da luta de classes. Mas o valor se realiza no mercado através da venda, e uma boa parte da política tem aí seu lugar.

Uma grande parte da resistência à acumulação do capital se exprime não somente no lugar de produção, mas também através do consumo, na esfera da realização do valor.

Tome a indústria de automóveis: grandes fábricas podiam antes empregar cerca de 25 mil pessoas, e hoje empregam 5 mil porque a tecnologia reduziu a necessidade de trabalhadores. O trabalho encontra-se assim cada vez mais deslocado da esfera da produção para a esfera da vida na cidade.

principal centro de insatisfação, no quadro das dinâmicas capitalistas, desloca-se para a esfera de realização do valor, para as políticas que têm impacto na vida cotidiana na cidade.

Os trabalhadores evidentemente preocupam-se com um monte de coisas. Se nos encontramos em Shenzhen, na China, as lutas no quadro do processo de trabalho são dominantes. E nos Estados Unidos teríamos apoiado a greve de Verizon, por exemplo.

Mas em vários pontos, o que domina são as lutas em torno da qualidade da vida cotidiana. Vejam as grandes lutas dos dez a quinze últimos anos. Um conflito como o do Parque Gezi, em Istambul, não foi uma luta trabalhista. O descontentamento tinha a ver com a política cotidiana, a falta de democracia e o modo de tomar decisões. Nos levantes ocorridos das cidades brasileiras, em 2013, foram também os problemas da vida cotidiana os detonadores: os transportes e as despesas suntuosas para a construção de grandes estádios em detrimento de escolas, hospitais e moradias acessíveis. Os levantes a que assistimos em Londres, em Paris ou em Estocolmo não estavam ligados ao processo de trabalho, mas à vida cotidiana.

Nesse terreno, a política é muito diferente daquela que é implementada no local de produção. Na produção, o conflito opõe claramente o capital ao trabalho. As lutas pela qualidade de vida são menos claras em termos de configuração de classe.

As políticas claramente de classe, que procedem em geral de uma compreensão do processo de produção, tornam-se teoricamente mais vagas à medida que se tornam mais concretas. Elas expressam uma disputa entre classes, mas não no sentido convencional.

Você acha que se fala demais de neoliberalismo e não o suficiente de capitalismo? Quando é mais apropriado usar um ou outro desses termos, e quais são os riscos de confundi-los?

Muitos liberais clássicos dizem que o neoliberalismo foi longe demais em termos de desigualdade de renda, que todas essas privatizações foram longe demais e que há numerosos bens comuns a proteger, como o meio ambiente.

Há também modos de falar do capitalismo, como quando falamos de uma economia de partilha, que na verdade acaba por ser extremamente capitalista e exploradora.

Há a noção de capitalismo ético, que significa apenas ser razoavelmente honesto ao invés de roubar. Algumas pessoas pensam que é possível uma reforma da ordem neoliberal em direção a uma outra forma de capitalismo.

Penso que talvez haja uma forma de capitalismo melhor que essa que existe hoje – mas não tão melhor.

Os problemas fundamentais tornaram-se agora tão profundos que, sem um vasto movimento anticapitalista, será de fato impossível chegar até eles. Gostaria então de colocar as questões atuais em termos de anticapitalismo, em vez de antineoliberalismo.

E quando ouço as pessoas falarem sobre neoliberalismo, me parece que o perigo é acreditar que não é o próprio capitalismo, de uma forma ou de outra, que está em questão.

A maioria dos anti-neoliberais não conseguem lidar com os macro-problemas do crescimento composto interminável - problemas ecológicos, políticos e econômicos - então, eu preferiria falar sobre anticapitalismo em vez de anti-neoliberalismo.

17 de julho de 2016

Como devemos julgar os revolucionários?

Um dos líderes históricos do socialismo francês defende a Revolução de 1789.

Jean Jaurès



Tradução / Jean Jaurès foi um dos grandes personagens do socialismo francês, um orador e propagandista brilhante que ajudou a fundar o Partido Socialista Francês Unido em 1905. Grande inimigo do militarismo e do papel dos militares na sociedade francesa, sua batalha final, contra a guerra iminente, levou ao seu assassinato em 31 de julho de 1914 por um fanático de extrema-direita.

Jaurès acreditava que foi a Revolução Francesa de 1789 que estabeleceu as bases do movimento socialista e da futura sociedade socialista, e entre suas atividades políticas ele escreveu sua obra-prima, Uma História Socialista da Revolução Francesa, um trabalho que estabeleceu as bases para todas as histórias subsequentes que colocaram os trabalhadores no coração da revolução.

A obra pretendia ser um guia para a ação. Como Jourès escreveu: “Queremos recontar os eventos que ocorreram entre 1789 e o fim do século XIX a partir do ponto de vista socialista em benefício das pessoas comuns, trabalhadores e camponeses”.

O capítulo a seguir de História Socialista foi traduzido do Francês por Mitchell Abidor e pertence a um resumo recentemente lançado, publicado pela Pluto Press.

A um historiador sempre é permitido opor hipóteses ao destino. Ele pode apontar os erros dos homens e dos partidos e imaginar que sem esses erros os eventos poderiam ter seguido outros rumos. Tenho falado dos imensos serviços de Robespierre depois de 31 de maio, organizando o poder revolucionário, salvando a França de uma guerra civil, da anarquia e da derrota. Também tenho falado sobre como, depois do aniquilamento do Hébertismo e Dantonismo, ele fora atingido por incerteza, cegueira e distração.

Mas o que nunca deve ser esquecido quando se julga estes homens é que os problemas que o destino impôs a eles eram formidáveis e provavelmente além da força humana. Parece que não era possível para uma geração sozinha derrubar oancien régime, criar novas leis e direitos, ascender um povo esclarecido e orgulhoso dos túmulos da ignorância, pobreza e miséria, lutar contra uma liga internacional de tiranos e escravos, e colocar todas as paixões e forças em uso nesse combate e ao mesmo tempo assegurar a evolução do país febril, exausto, contra a ordem normal e a liberdade bem ordenada.

A França da revolução precisou de um século, incontáveis tentativas, recuos para a monarquia, despertares da república, invasões, desmembramentos, golpes de estado, e guerras civis antes que finalmente se chegasse a organização da república, ao estabelecimento de liberdades iguais através do sufrágio universal.

Os grandes trabalhadores da revolução e da democracia que laboraram e lutaram mais de um século atrás não são responsáveis, para nós, por um trabalho que precisou de várias gerações para ser realizado. Julga-los como se eles devessem ter encerrado o drama, como se a história não fosse continuar depois deles, é infantil e injusto.

O trabalho deles foi necessariamente limitado, mas foi formidável. Eles afirmaram a ideia de democracia na sua totalidade. Eles proveram o mundo com o primeiro exemplo de um grande país governando e salvando a si mesmo através do poder de todo o povo. Eles deram à revolução o prestígio magnífico da ideia e o prestígio indispensável da vitória. E eles deram à França e ao mundo um ímpeto tão prodigioso em direção à liberdade que, apesar da reação e ofuscamentos, os novos direitos que eles estabeleceram tomaram definitivamente posse da história.

O socialismo proclama e se apoia nesses novos direitos. É um partido democrático em seu mais alto grau já que quer organizar a soberania de todos em ambas esferas política e econômica. E baseia a nova sociedade nos direitos da pessoa humana, já que quer garantir a todo indivíduo os meios concretos de desenvolvimento que sozinhos irão permitir que ele se realize completamente.

Escrevi essa longa história sobre a revolução até 9 Termidor em meio a uma luta, uma luta contra os inimigos do socialismo, da república e da democracia. Uma luta também entre os socialistas pelos melhores métodos de ação e combate. E quanto mais eu avançava sob o fogo cruzado da batalha, mais forte era a minha convicção de que a democracia é uma grande conquista para o proletariado.

É ao mesmo tempo um poderoso meio de ação e a forma em conformidade com a qual as relações econômicas e políticas deveriam ser ordenadas. Isso foi a fonte da extrema felicidade que senti quando eu vi o metal fundido do socialismo que fluiu da revolução e da democracia como se saísse de uma fornalha.

Em um sentido importante — no sentido que Babeuf denotou quando o invocou ao falar de Robespierre — nós somos o partido da democracia e da revolução. Mas nós não acorrentamos e imobilizamos isso. Nós não reivindicamos o conserto da sociedade humana nas fórmulas econômicas e sociais que prevaleceram entre 1789 e 1795 e que responderam às condições de vida e econômicas que não existem mais.

Os partidos democráticos burgueses frequentemente se limitam a pegar alguns poucos fragmentos de lava resfriada do pé do vulcão, para retirar algumas cinzas extintas dos arredores da chama. Ao invés disso, o metal queimando precisa ser derramado em novos moldes.

O problema da propriedade não é mais posto, não pode mais ser posto, como era em 1789 ou 1793. A propriedade privada era então proclamada ser ambos a forma e a garantia da individualidade humana. Dado a existência da indústria capitalista de grande escala, a associação socialista de produtores e a propriedade comum e coletiva dos meios e métodos de produção se tornaram as condições para a libertação universal. Uma forte ação de classe por parte do proletariado é necessária a fim de arrancar a revolução e a democracia de tudo aquilo que é agora ultrapassado e retrógrado na visão de mundo burguesa.

“Classe” e não “seita”, para a necessária organização de toda a vida do proletariado, e só é possível organizar a democracia e a vida se envolvendo ela mesma nelas. A ação precisa ser grandiosa e livre e carregada com a disciplina de uma ideal claro. Uma política democrática e uma política de classe: esses são os dois termos não-contraditórios entre os quais a força proletária se movimenta e que a história um dia irá fundir na unidade da social democracia.

Nesse sentido o socialismo é anexado à revolução sem ser acorrentado a ela. E esse é o motivo pelo qual nós traçamos os esforços heróicos da democracia revolucionária com a mente livre e um coração fervoroso.

Eu passo para as mãos de nossos amigos a tocha onde as chamas foram retorcidas pelos ventos da tempestade e que se consumiu pela metade ao tragicamente iluminar o mundo. Uma chama atormentada mas imortal que o despotismo e os contra-revolucionários irão fortemente lutar para extinguir e que, revivida, irá expandir em uma ardente esperança socialista. Era na atmosfera sombria do Termidor que a luz da revolução teria agora de lutar.

Colaborador

Jean Jaurès foi um socialista e antimilitarista francês.

14 de julho de 2016

Resistir ao Pokémon Go

Se o Pokémon Go pudesse se parecer com o melhor da infância, ele teria algum valor. O que realmente faz é muito diferente.

Sam Kriss

Tradução / De acordo com um certo filão rabugento da crítica de esquerda, a cultura está nos infantilizando. Afinal, suas formas dominantes (as que não apenas se mostram mais rentáveis mas que também vêm codificando o próprio terreno cultural), são vídeo games – que são para crianças – e filmes de super-heróis – que também são para crianças!

E não é apenas uma questão de gênero: essas formas exigem um determinado tipo de engajamento, pois pressupõem um determinado tipo de sujeito – o de uma criança eufórica e cobiçante. Não basta só pagar o preço de admissão, mas dar aporte à cultura-mercadoria de forma acrítica, identificar com seus personagens, comprar os brinquedos, nutrir uma obsessão que beira o patológico. Agir, em outras palavras, com a euforia voraz de uma criança fastidiosa.

Qualquer outra forma de engajamento é tacitamente proibida. Veja a fúria dos fãs quando alguém tenta abordar a cultura de massa com qualquer tipo de olhar mais crítico. “Por que está levando isso tão a sério?”, “Pra que tanta pretensão?”, “É só um filme/jogo, não quer dizer nada…” Mas ao mesmo tempo algo que diz: “Pô, qual é? Você está cortando meu barato.”

Para muitos desses críticos, estaríamos diante de um cenário totalmente apocalíptico. E o pano de fundo aqui é o novo fenômeno mundial do Pokémon Go, é claro. De que outra forma você descreveria um mundo em que milhões de adultos passaram a rodar por aí a esmo, vidrados em seus celulares, colecionando ratinhos digitais, revivendo uma infância abestalhada, e se reduzindo no processo a um bando de pirralhos hiperativos e inertes?

Mundos infantis

Isso tudo compõe uma forte crítica ao jogo, mas não é a que me interessa desenvolver aqui. Esqueça os adultos infantilizados e me responda o seguinte: o que as crianças realmente fazem? Em suas brincadeiras, aos montes e sem a mediação de nada além de suas imaginações, elas fazem algo espontâneo e incrível: elas criam novos mundos.

Esses mundos geralmente não aparecem na forma de simples fantasias escapistas, mas configuram uma verdadeira reinterpretação da própria existência. Trata-se da invenção de novas formas de mapear e sistematizar a realidade através de uma série de jogos e experimentos com a plasticidade do espaço.

Comece pelas calçadas. Se pisar nas rachaduras, algo horrível acontecerá com você: o chão irá se abrir, ou um urso surgirá para te comer. Às vezes, o chão todo pega fogo e vira lava, e um código piroclasta transforma o mundo cinzento dos objetos. Às vezes um grupo de crianças vira astronautas e alienígenas; carros estacionados se vertem em planetas, folhas secas se arrastam como campos de asteroides.

Tudo está pleno de vida e repleto de significados em potencial, o mundo existe para ser derrubado e reconstruído. E é justamente essa a promessa do Pokémon Go: basta baixar o aplicativo, e você será lançado em um mundo diferente, uma versão colorida e enérgica da realidade, habitada por monstrinhos incríveis.

Tudo isso deve interessar à esquerda, desnecessário dizer. Afinal, um dos lemas revolucionários que mais reverberou nos últimos tempos afirma que “um outro mundo é possível.” Como marxistas, devemos estar interessados em mudar o mundo. Não apenas alterar políticas de Estado ou substituir uma classe dominante por outra, mas transformar a própria experiência humana da realidade – passar de uma experiência alienada para uma de liberdade.

Em seus famosos Manuscritos econômico-filosóficos, Marx descreve a relação sujeito-objeto que resulta de trabalho não alienado: “O objeto do trabalho é […] a objetivação da vida genérica do homem: quando o homem se duplica não apenas na consciência, intelectual[mente], mas operativa, efetiva[mente], contemplando-se, por isso, a si mesmo num mundo criado por ele.” (p.84) Em Heidegger, a condição do Dasein (o “ser-aí”, o Ser humano) é de estar-lançado (Geworfenheit), de estar jogado em um mundo que simplemente, e indiferentemente, é.

Marx vislumbra uma saída da alienação no exercício intencional da consciência no mundo. E esse exercício livre, espontâneo e transformador da vida genérica do homem realmente já ocorre por toda nossa volta. Apesar de todos os terrores e crueldades da fenomenologia infantil (e não devemos valorizar as crianças demais – afinal, outra característica quase inevitável de suas brincadeiras é o bullying sistemático dos mais fracos), ninguém pode dizer que vê num grupo de crianças brincando de aventura no espaço ou ladrões de banco os grilhões e o tolhimento do trabalho alienado.

Se algo como o Pokémon Go realmente tivesse a capacidade de tornar os adultos crianças novamente, ele poderia até ter algum valor. O que ele efetivamente faz é algo bem diferente.

Obedeça
Abdelhafid Khatib foi um escritor, teórico e membro da Internacional Letrista e da Internacional Situacionista. Ele também era árabe. No final da década de 1950, os Situacionistas estavam tentando desenvolver sua prática de “psicogeografia”, uma espécie de flânerie em que as pessoas se colocariam à “deriva” pelos ambientes urbanos, sem rota prescrevida, descobrindo novas formas de moldar e reinterpretar o espaço.

Como Andrea Gibbons relata, Khateb havia ficado encarregado em 1958 de realizar um relatório psicogeográfico sobre o distrito de Les Halles em Paris. Só que isso tudo acontecia durante a terrível guerra colonial da França na Argélia. Todos os árabes viviam sob toque de recolher e Khateb acabou sendo preso duas vezes por conta de suas incursões situacionistas.

Seu relatório, entretanto, eventualmente chegou a ser publicado, junto com um curto posfácio que explicava as dificuldades em que incorreu ao produzi-lo, mas ele não costuma aparecer nas coletâneas de textos situacionistas. Os camaradas de Khateb na Internacional não deixaram que seus achados infectassem sua teoria; eles não queriam que sua diversão fosse estragada pelas realidades da opressão racial.

Há um problema semelhante no Pokémon Go; a forma pela qual seu novo e divertido mapa do mundo pode entrar em conflito com outras realidades, mais estabelecidas: raça e classe, história, perigo e morte. Como um jogador assinalou, o jogo pode ser bastante perigoso para jovens negros.

Um jogador negro vagando a esmo em um bairro branco, talvez passando várias vezes na frente das mesmas casas em busca de uma tartaruga digital, seria sujeito a uma outra forma bastante diferente de mapeamento e sistematização da realidade: poderia muito facilmente ser lido como suspeito. E para um jovem negro, ser lido como suspeito pode custar sua vida.

Há outros relatos de realidades se encontrando de maneira desagradável: a menina que encontrou um cadáver boiando em um rio enquanto perseguia criaturas imaginárias; os assaltantes armados que armavam “iscas” para atrair não apenas outros Pokémons, mas os próprios jogadores a uma localização específica, onde lhes tomavam os celulares; o museu do Holocausto, cujos corredores, descobriu-se, continham um Pokémon chamado Koffing, que emite um gás venenoso.

O remapeamento da realidade levado a cabo pelo Pokémon Go é impermeável e indiferente à existência social; trata-se de uma fantasia objetiva, abstrata e centralizada. O problema aqui é a objetividade e não a fantasia. Não haveria nada de errado com o jogo se ele simplesmente nos desse um mundo falso para explorar, mas o mundo que ele nos mostra é um mundo real, e suas amarras nos asfixiam de todos os lados.

A paisagem de seu bairro que você vê durante o jogo é um mapa de GPS – uma tecnologia originalmente criada para orientar mísseis guiados. É o mapa do Google. Seu cinza fúnebre foi substituído por um verde virulento que é tão achatador e totalizante quanto o original, independente do conjunto de nuvenzinhas que preenche a parte superior da tela. Os edifícios aparecem como retângulos lisos, inertes e achatados. Pode ser um arranha-céu ou um casebre, não faz diferença. O jogo lança seu olhar sobre o mundo da perspectiva de um satélite militar localizado acima da atmosfera terrestre, totalmente indiferente à experiência sensível e alheio à vida humana.

A verdadeira brincadeira das crianças figura o mundo como uma aventura; é a própria experiência sensível que é reconfigurada, e revela dimensões inusitadas ao passar por regimes sucessivos de signos. No Pokémon Go só há uma: todas as rotas já estão determinadas, todas as eventualidades estão esquadrinhadas, e todos os pontos de interesse estão marcados e são imutáveis. Não há nem a possibilidade de um passeio puramente desinteressado uma vez que o Pokémon Go cria seu mapa e seu território ao mesmo tempo.

Onde eu moro, o sudeste de Londres, encontro PokéStops em igrejas nigerianas e mercados locais; a estação nacional de trens é uma academia de Pokémons. Toda a fantasia gravita em torno de pontos de interesse fixos. Voltamos a Heidegger: este é um mundo em que fui lançado.

O poder de ativamente agir sobre esta realidade aumentada pertence apenas aos executivos da empresa, e o poder do jogo infantil foi sujeitado a mais uma rodada de acumulação primitiva e alienação. Nosso mundo não se torna completamente outro. Na verdade, com o Pokémon Go, é só uma nova camada que se soma e se aloja, sem atrito, no tédio da nossa vida cotidiana.

Para o jogador de Pokémon Go, a injunção é de obedecer. Verdadeiros corpos humanos são domados e manobrados por iscas virtuais que pipocam por aí: comércios podem comprar itens do jogo que atrairão possíveis consumidores para seus estabelecimentos; o Estado talvez possa até acalmar um levante espalhando centenas de Pokémons raros longe da avenida ou praça central. Se quiserem, os criadores do jogo poderiam induzir pessoas a pularem de penhascos, vaguearem pelos trilhos de trem, ou a se meterem em incêndios.

Trata-se de uma tecnologia de biopolítica. Algo que fala em uma voz aos milhões atomizados e à sua maneira ajuda a orientar suas vidas. Por enquanto, evidentemente suas injunções são brandas, mas sua brandeza é a do ideal burguês elevado a um universal intocável.

Ande por aí. Explore seu bairro. Visite o parque. Aproveite a vista. Se divirta. PokémonGo é coerção, é autoridade: um comando emitido de um universo vazio, que atravessa clivagens sociais e políticas para finalmente “pegar todos”. [Alusão ao “slogan” do Pokémon, “Gotta catch ‘em all”, “temos que pegar”]. É preciso resistir a ele.

Sobre o autor

Sam Kriss is a writer living in the United Kingdom. He blogs at Idiot Joy Showland.

Sim, a Revolução Francesa era necessária

Historiadores que argumentam o contrário ignoram as terríveis condições da realidade.

Eric Hazan

Jacobin

Cidadãos de Paris, liderados pela Guarda Nacional, assaltam a prisão da Bastilha.

O que está em jogo aqui é uma escolha entre duas visões contrastantes da Revolução Francesa. Para toda uma linhagem de historiadores que se estende de Alexis de Tocqueville a François Furet, a substância do levante revolucionário já estava em andamento, se não mesmo concluída, ao final do antigo regime. Uma revolução ao estilo americano, calma e democrática, levaria ao mesmo resultado final, evitando o som, a fúria e a guilhotina: “A Revolução resolveu repentinamente, por um esforço convulsivo e doloroso, sem transição, sem precauções, sem deferências, o que ter-se-ia realizado sozinho, pouco a pouco, com o tempo.”

Em seu comentário a Tocqueville, Furet argumenta que o antigo regime já estava morto: "A consciência revolucionária é a ilusão de vencer um Estado que já não existe mais,". Ele chega ao seguinte veredicto: "nada se parece mais com a sociedade francesa de Luis XVI que a sociedade francesa de Luis Philippe".

Tocqueville explica como a centralização se estabeleceu sobre "uma diversidade de domínios e autoridades" que eram os destroços da ordem feudal. Na cúpula estava o conselho real, que era a suprema corte de justiça, além da autoridade administrativa mais alta, e "sujeito à aprovação do rei [tinha] poderes legislativos; poderia debater e propor a maioria das leis; fixar taxas e distribuir impostos.”

Os assuntos internos foram confiados a um único indivíduo, o controlador-geral, que "monopolizou gradualmente toda a administração pública". Nas províncias, paralelamente aos governadores - um cargo honorário e remunerado -, o pretendente era "o único representante do governo" em sua esfera. Em resumo, "devemos" centralização administrativa "não à Revolução ou ao Império, como alguns dizem, mas ao antigo regime".

Como poderia uma administração tão bem oleada desaparecer no primeiro choque, evaporando sem resistência no verão de 1789? Os elementos de uma resposta podem ser encontrados na imagem desenhada por Albert Mathiez:

Confusão e caos reinavam em todos os lugares... O controlador geral das finanças admitiu que lhe era impossível elaborar um orçamento regular devido à ausência de um exercício financeiro claramente definido, ao grande número de contas diferentes... Um ministro protegeia os filósofos enquanto outro os perseguiam. Ciúmes e intrigas eram abundantes... Os interesses do público não eram mais protegidos. O direito divino do absolutismo servia de desculpa para todo tipo de desperdício, procedimento arbitrário e abuso.

Ao descrever a sociedade francesa da década de 1780, é habitual seguir as divisões estabelecidas nos Estados Gerais - nobreza, clero e Terceiro Estado. Isso tem uma certa lógica, desde que tenhamos em mente que essas “ordens” não eram blocos compactos e homogêneos, como o trem da história demonstraria muito em breve.

O Terceiro Estado constituía a grande maioria dos 28 milhões de habitantes da França. “O que é o Terceiro Estado? Tudo”, escreveu Sieyès em janeiro de 1789. Mas esse ditado célebre não deve nos levar a esquecer que “Terceiro” não era um nome, mas um número, e que esse“ tudo” era composto de grupos muito diferentes, cada um deles cumprindo seu papel no curso da revolução.

Entre esses grupos, o número de sujeitos sob Luís XVI que viviam na terra é estimado em 23 milhões. Nos anos que antecederam a revolução, no entanto, as formas de propriedade fundiária e o cultivo sofreram mudanças significativas.

Durante séculos, o seigneurie do senhor era composto de duas partes: a reserva, terra sobre a qual o senhor gozava de direitos exclusivos, e a censiva, onde os direitos eram divididos entre senhor e camponeses; estes pagavam uma censura ao senhor - que geralmente era nobre, mas também podia ser eclesiástico ou plebeu - mas eles não podiam ser expropriados e transmitiam sua posse a seus herdeiros. Paralelamente, as terras comuns eram propriedade coletiva da comunidade da vila: bosques, pastagens e campos cultivados cujos produtos eram divididos (desigualmente) entre seus membros.

Na véspera da revolução, uma grande proporção de cultivadores alugavam dos proprietários o solo que eles cultivavam. Alguns deles eram agricultores, outros meeiros. Arthur Young explica que estes eram “homens que contratam a terra sem capacidade de cultivá-la; o proprietário é forçado a fornecer gado e sementes, e ele e seu inquilino dividem a produção; um sistema miserável, que perpetua a pobreza e exclui a instrução.”

Esse "sistema miserável" prevaleceu nas regiões mais pobres, como Bretanha, Lorena e no centro e sul do país. Mesmo entre os agricultores, havia grandes diferenças de condição: os exploradores de grandes fazendas de cereais na bacia de Paris e no norte não tinham nada em comum com os pequenos agricultores do bocage ou das regiões montanhosas. Quem trabalhava na terra nem sempre era inquilino.

Ao longo do século, muitos camponeses se tornaram proprietários de terras, e estima-se que antes da revolução eles possuíam um terço da área total cultivável - uma proporção que variava de acordo com a região, sendo baixa nas ricas terras produtoras de trigo e alta naquelas províncias onde o cultivo era mais difícil. No topo da escada, um camponês próspero começou a se formar; estes enriqueceram com o aumento dos preços das commodities, pois sua produção lhes deu um excedente para vender além da subsistência familiar.

Esse estrato de camponeses prósperos não era muito grande: a maioria dos camponeses proprietários possuía uma pequena parcela que mal lhes permitia levar uma existência auto-suficiente. Eles eram frequentemente obrigados a buscar a renda adicional da indústria rural ou a ir trabalhar em outro lugar como trabalhadores sazonais.

Independentemente de sua condição, os camponeses estavam sujeitos a impostos: a cauda para o estado, o dîme para a Igreja e as dívidas senhoriais para o senhor. No The Ancien Régime de Tocqueville e na Revolução Francesa, o primeiro capítulo do Livro II é intitulado "Por que os direitos feudais se tornaram mais odiados entre o povo da França do que em qualquer outro lugar". Jean Jaurès explicou o seguinte:

Não havia uma ação na vida rural que não exigisse que os camponeses pagassem um resgate. Simplesmente cito sem mais comentários: o direito de prestar assistência aos animais usados ​​para arar, o direito a balsas senhoriais para atravessar rios, o direito de leide de comprar impostos de mercadorias em mercados e barracas, o direito de policiamento senhorial em estradas secundárias, o direito de pescar nos rios, o direito de pontonnage em pequenos cursos de água, o direito de cavar poços e administrar lagoas... o direito de garenne, que autorizava apenas os nobres manter furões, o direito de colombier que dava aos pombos do senhor o grão do camponês, o direito ao fogo, fouage e chaminé que impunham uma espécie de imposto sobre a construção de todas as casas da vila e, finalmente, o mais odiado de todos, o direito exclusivo de caçar... 
Os direitos feudais estenderam suas garras a toda força da natureza, tudo o que crescia, movia, respirava; os rios com seus peixes, o fogo queimando no forno para assar o pão pobre do camponês misturado com aveia e cevada, o vento que transformava o moinho de moer milho, o vinho jorrando da prensa, o jogo que emergia das florestas ou das altas pastagens para devastar hortas e campos.

Nos livros de queixas dos Estados Gerais, o ódio aos direitos senhoriais é uma constante. No momento em que os castelos foram invadidos, isso foi acima de tudo, como veremos, a fim de destruir os documentos que estabeleciam a origem desses direitos.

Nem todos os habitantes rurais, no entanto, estavam sujeitos a isso. A grande massa daqueles que não eram agricultores, nem fazendeiros, nem proprietários, aqueles que não tinham nada além de suas próprias mãos, só podiam reclamar do confisco de terras comuns, da supressão de pastagens livres e do direito de recolher que lhes tirava o pouco que restava do comunismo primitivo do campo. Esses trabalhadores, manobristas como eram chamados, migraram para encontrar trabalho sazonalmente.

Quando o campo não fornecia isso, eles procuravam emprego em pequenas indústrias rurais - sobretudo têxteis, lã e linho no norte, seda no sul - ou então iam trabalhar na cidade como construtores, vendedores ambulantes, limpadores de chaminés ou transportadores de água. A fronteira é vaga entre esses migrantes e as dezenas de milhares de vagabundos e mendigos que percorreram as estradas em todo o país, acompanhados por mulheres e crianças.

A maioria dos historiadores vê a situação no interior da França como tendo melhorado no decorrer do século XVIII, e é verdade que esse período não viu mais fomes do tipo experimentada no final do reinado de Luís XV, quando milhares de camponeses morreram de fome. No entanto, a escassez permaneceu comum e, quando ocorreram várias colheitas ruins seguidas, a soudure - entre junho e outubro - permaneceu um período crítico, com a mortalidade infantil atingindo níveis terríveis.

Aqueles que não tinham terra, ou não tinham o suficientes, eram frequentemente reduzidos à condição que Young descreveu em torno de Montauban:

Os pobres parecem realmente pobres; as crianças são terrivelmente esfarrapadas, se possível piores do que se não tivessem nenhum casaco [sic]; quanto a sapatos e meias, são luxos. Um terço do que vi desta província parece não cultivado e quase todo na miséria. O que os reis, os ministros, os parlamentos e os estados respondem a seus preconceitos, vendo milhões de mãos que seriam industriosas, ociosas e famintas, através das máximas execráveis do despotismo ou dos preconceitos igualmente detestáveis de uma nobreza feudal. Durma no Lion d'Or, em Montauban, um buraco abominável.

Aqui não temos mais uma revolução desnecessária, mas inevitável.

Excerto de A People's History of the French Revolution, em breve pela Verso.

Sobre o autor

Eric Hazan é fundador da editora La Fabrique e autor de A People's History of the French Revolution.

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