31 de agosto de 2016

A internet deve ser um bem público

A Internet foi construída por instituições públicas - então por que é controlada por corporações privadas?

ENIAC, o primeiro computador de uso geral. Exército americano

Tradução / Em 1º de outubro a internet mudou, mas ninguém percebeu. Essa transformação invisível afetou o componente mais importante da internet: o Domain Name System (DNS). Quando você digita o nome de um site em seu navegador, o DNS é o que converte esse nome na sequência de números que especifica a localização real do site. Como uma lista telefônica, o DNS combina nomes que são significativos para nós com números que não são.

Durante anos, o governo dos EUA controlou o DNS. Mas, em 2016, o sistema tornou-se responsabilidade de uma organização sem fins lucrativos com sede em Los Angeles chamada Internet Corporation for Assigned Names and Numbers (ICANN). Na verdade, a ICANN administra o DNS desde o final da década de 1990 sob um contrato com o Departamento de Comércio. A novidade é que a ICANN agora tem uma autoridade independente sobre o DNS, com base em um modelo de “múltiplas partes interessadas” que deve tornar a governança da internet mais internacional.

O impacto real provavelmente foi pequeno. Por exemplo, foram mantidas as medidas de proteção da marca que policiam o DNS em nome das empresas. E o fato de a ICANN estar sediada em Los Angeles e ser constituída sob a lei dos EUA significa que o governo dos EUA continuou a exercer sua influência, embora de forma menos direta.

Mas o significado simbólico é enorme. A transferência marcou o capítulo mais recente na privatização da internet. Ele conclui um processo que começou na década de 1990, quando o governo dos EUA privatizou uma rede construída com enormes gastos públicos. Em troca, o governo não exigiu nada: nenhuma compensação, restrição ou condição sobre a forma que a internet tomaria.

Não havia nada de inevitável nesse resultado: ele refletia uma escolha ideológica, não uma necessidade técnica. Em vez de abordar questões críticas de fiscalização e acesso popular, a privatização excluiu a possibilidade de colocar a internet em um caminho mais democrático. Mas a luta não acabou. Para começar a reverter a situação e reivindicar a internet como um bem público, devemos rever a história desconhecida de como a privatização aconteceu.

As origens públicas da internet

O Vale do Silício gosta de fingir que a inovação é resultado de empreendedores trabalhando duro em garagens. Mas a maior parte da inovação da qual o Vale do Silício depende vem de pesquisas governamentais, pela simples razão de que o setor público pode se dar ao luxo de correr riscos que o setor privado não pode.

É precisamente o isolamento das forças do mercado que permite ao governo financiar o trabalho científico de longo prazo que acaba por produzir muitas das invenções mais lucrativas.

Isto é verdade também para a internet. A internet era uma ideia tão radical e improvável que apenas décadas de financiamento e planejamento públicos poderiam torná-la realidade. Não apenas a tecnologia básica precisava ser inventada, mas a infraestrutura precisava ser construída, especialistas treinados e contratados, financiados e, em alguns casos, retirados diretamente de agências governamentais.


A internet às vezes é comparada à rede de rodovias interestaduais, outro grande projeto público. Mas, como aponta o ativista Nathan Newman, a comparação só faz sentido se o governo “tivesse imaginado a possibilidade de carros, subsidiado a invenção da indústria automobilística, financiado a tecnologia do concreto e do asfalto e construído todo o sistema inicial”.

A Guerra Fria forneceu o pretexto para esse empreendimento ambicioso. Nada abriu tanto a bolsa dos políticos norte-americanos como o medo de ficar para trás da União Soviética. Esse medo cresceu em 1957, quando os soviéticos colocaram o primeiro satélite no espaço. O lançamento do Sputnik causou uma sensação de crise no establishment norte-americano e levou a um aumento substancial do financiamento federal para pesquisa.

Uma das consequências foi a criação da Agência de Projetos de Pesquisa Avançada (ARPA), que mais tarde mudaria seu nome para Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa (DARPA). A ARPA tornou-se o braço de P&D do Departamento de Defesa. Em vez de centralizar a pesquisa em laboratórios governamentais, a ARPA adotou uma abordagem mais distribuída, cultivando uma comunidade de contratados tanto da academia quanto do setor privado.

No início da década de 1960, a ARPA começou a investir pesadamente em computação, construindo grandes computadores centrais em universidades e outros centros de pesquisa. Mas mesmo para uma agência tão generosamente financiada como a ARPA, esse gasto desmedido não era sustentável. Naquela época, um computador custava centenas de milhares, senão milhões, de dólares. Assim, a ARPA desenvolveu uma maneira de compartilhar seus recursos de computação de forma mais eficiente entre seus contratados: construiu uma rede.

Essa rede foi chamada de ARPANET e lançou as bases para a internet. A ARPANET conectou computadores por meio de uma tecnologia experimental chamada comutação de pacotes, que envolvia quebrar mensagens em pequenos pedaços chamados pacotes, direcioná-los através de um labirinto de comutadores e remontá-los na outra extremidade.

Hoje, esse é o mecanismo que movimenta os dados pela internet, mas, na época, o setor de telecomunicações o considerava impraticável. Anos antes, a Força Aérea havia tentado persuadir a AT&T a construir tal rede, sem sucesso. A ARPA até ofereceu a ARPANET para a AT&T depois que ela estava em funcionamento, preferindo comprar tempo na rede em vez de executá-la por conta própria.

Diante da oportunidade de adquirir a rede de computadores mais sofisticada do mundo, a AT&T recusou. Os executivos simplesmente não viam dinheiro nisso. Essa miopia significou sorte para nós. Sob a gestão pública, a ARPANET floresceu. O controle do governo deu à rede duas grandes vantagens. A primeira era o dinheiro: a ARPA podia injetar dinheiro no sistema sem ter que se preocupar com a lucratividade. A agência encomendou pesquisas pioneiras dos cientistas da computação mais talentosos do país em uma escala que teria sido suicida para uma empresa privada.

E, tão importante quanto, a ARPA aplicou uma ética de código aberto que incentivou a colaboração e a experimentação. Os terceirizados que contribuíam para a ARPANET tinham que compartilhar o código-fonte de suas criações ou correriam o risco de perder seus contratos. Isso catalisou a criatividade científica, pois pesquisadores de várias instituições diferentes puderam refinar e ampliar o trabalho uns dos outros sem viver com medo da lei de propriedade intelectual.

A inovação mais importante que ocorreu foram os protocolos da internet, que surgiram em meados da década de 1970. Esses protocolos permitiram que a ARPANET se tornasse a internet, fornecendo uma linguagem comum que permitia a comunicação entre redes muito diferentes.

A natureza aberta e não submetida à propriedade intelectual da internet aumentou muito sua utilidade. Prometeu um padrão único e interoperável para comunicação digital: um meio universal, em vez de uma colcha de retalhos de dialetos comerciais incompatíveis.

Promovida pela ARPA e adotada por pesquisadores, a internet cresceu rapidamente. Sua popularidade logo fez com que cientistas de fora das Forças Armadas e o seleto círculo de terceirizados da ARPA exigissem acesso. Em resposta, a National Science Foundation (NSF) lançou uma série de iniciativas destinadas a levar a internet a quase todas as universidades do país. Essas iniciativas culminaram na NSFNET, uma rede nacional que se tornou a nova “espinha dorsal” da internet.

A “espinha dorsal” (backbone) era um conjunto de cabos e computadores que formavam a principal artéria da internet. Parecia um rio: os dados fluíam de uma ponta a outra, alimentando afluentes, que por sua vez se ramificavam em riachos cada vez menores. Esses fluxos atenderam a usuários individuais, que nunca tocavam diretamente na espinha. Se eles enviassem dados para outra parte da internet, eles subiam pela cadeia de afluentes até ela e depois desciam por outra cadeia, até chegarem ao fluxo que servia ao destinatário.

Uma das lições desse modelo é que a internet precisa de muitas redes em suas bordas. O rio é inútil sem afluentes para estender seu alcance. É por isso que a NSF, para garantir a maior conectividade possível, também subsidiou uma série de redes regionais que ligavam universidades e outras instituições participantes dessa “espinha dorsal” da NSFNET.

Tudo isso não foi barato, mas funcionou. Os estudiosos Jay P. Kesan e Rajiv C. Shah estimaram que o programa NSFNET custou mais de US$ 200 milhões. Outras fontes públicas, como governos estaduais, universidades financiadas pelo Estado e agências federais, provavelmente contribuíram com outros US$ 2 bilhões para a rede NSFNET. Graças a essa avalanche de dinheiro público, uma tecnologia de comunicação de ponta incubada pela ARPA ficou disponível para pesquisadores americanos no final dos anos 1980.

O caminho da privatização

Mas no início dos anos 1990, a internet estava se tornando vítima de seu próprio sucesso. O congestionamento atormentava a rede e, cada vez que a NSF a atualizava, mais pessoas se reuniam. Em 1988, os usuários enviavam menos de um milhão de pacotes por mês. Em 1992, enviaram 150 bilhões. Assim como novas rodovias geram mais tráfego, as melhorias da NSF atiçaram a demanda, sobrecarregando o sistema.

É claro que as pessoas gostaram da internet. E esses números teriam sido ainda maiores se a NSF tivesse colocado menos restrições a seus usuários. A “Política de Uso Aceitável” (AUP) da NSFNET proibiu o tráfego comercial, preservando a rede apenas para fins de pesquisa e educação. A NSF viu isso como uma necessidade política, pois o Congresso poderia cortar o financiamento se o dinheiro do contribuinte fosse visto como subsídios para a indústria.

Na prática, a AUP era amplamente inexequível, pois as empresas usavam regularmente a NSFNET. Além disso, o setor privado vinha ganhando dinheiro com a internet há décadas, tanto como terceirizados quanto como beneficiário de software, hardware, infraestrutura e com o talento de engenheiros desenvolvidos com financiamento público.

A AUP pode ter sido uma ficção legal, mas teve um efeito. Ao excluir formalmente a atividade comercial, criou um sistema paralelo de redes privadas. No início da década de 1990, vários provedores comerciais surgiram em todo o país oferecendo serviços digitais sem restrições sobre o tipo de tráfego que podiam transportar.

A maioria dessas redes se originou de financiamento do governo e contou com veteranos da ARPA com experiência técnica. Mas quaisquer que sejam suas vantagens, as redes comerciais foram proibidas pela AUP de se conectar à internet, o que inevitavelmente limitou seu valor.

A internet prosperara sob propriedade pública, mas estava chegando a um ponto de ruptura. O aumento da demanda de pesquisadores prejudicou a rede, enquanto a AUP impedia que ela alcançasse um público ainda mais amplo. Não eram problemas fáceis de resolver. Abrir a internet para todos e desenvolver a capacidade para acomodá-los apresentava desafios políticos e técnicos significativos.

O diretor da NSFNET, Stephen Wolff, viu a privatização como a resposta. Ele acreditava que entregar a internet para o setor privado traria dois grandes benefícios: aliviaria o congestionamento, causando um fluxo de novos investimentos, e acabaria com o AUP, permitindo que provedores comerciais integrassem suas redes à NSFNET. Livre do controle do governo, a internet poderia finalmente se tornar um meio de comunicação de massa.

O primeiro passo ocorreu em 1991. Alguns anos antes, a NSF havia concedido o contrato para operar sua rede a um consórcio de universidades de Michigan chamado Merit, em associação com a IBM e MCI. Este grupo havia feito uma oferta significativamente menor, percebendo uma oportunidade de negócio. Em 1991, eles decidiram lucrar, criando uma subsidiária com fins lucrativos que começou a vender acesso comercial à NSFNET sob a bênção de Wolff.

O movimento irritou o resto da indústria de redes. As empresas acusaram, com razão, a NSF de fazer um acordo secreto para dar aos seus terceirizados o monopólio comercial, e fizeram tanto barulho que audiências no Congresso foram realizadas em 1992. Essas audiências não questionaram a conveniência da privatização, mas suas condições. Agora que Wolff havia lançado a privatização, os outros provedores comerciais simplesmente queriam uma parte da ação.

Um de seus CEOs, William Schrader, testemunhou que as ações da NSF eram semelhantes a “dar ao K-mart [gigantesca rede de lojas de departamento] um parque federal”. No entanto, a solução não foi manter o parque, mas sim dividi-lo em vários K-marts. As audiências forçaram a NSF a aceitar um papel maior para a indústria na formação do futuro da rede. Como esperado, isso produziu uma privatização ainda mais rápida e profunda. Anteriormente, a NSF havia considerado reestruturar a NSFNET para permitir que mais terceirizados a controlasse.

Em 1993, em resposta à contribuição da indústria, a NSF decidiu dar um passo muito mais radical: eliminar completamente a NSFNET. Em vez de uma rede troncal e nacional, haveria vários, todos de propriedade e operados por provedores comerciais. Os líderes da indústria alegaram que o redesenho garantiu um “igualdade de condições”. Para ser mais exato, o campo ainda estava desigual, mas aberto a mais players. Se a antiga arquitetura da internet favorecia o monopólio, a nova foi feita sob medida para o oligopólio.

Não havia tantas empresas que consolidassem infraestrutura suficiente para operar uma rede troncal. Cinco, para ser exato. A NSF não estava abrindo a internet para a concorrência, mas sim entregando-a a um pequeno punhado de empresas que esperavam. Surpreendentemente, esta transferência veio sem amarras. Não haveria supervisão federal das novas redes troncais da internet, nem regras governando a operação da infraestrutura dos provedores comerciais.

Nem haveria mais financiamento para as redes regionais sem fins lucrativos que conectaram campi e comunidades à internet nos dias da NSFNET. Eles logo foram comprados ou quebrados por empresas com fins lucrativos. Em 1995, a NSF acabou com a NSFNET. Em poucos anos, a privatização estava completa.

A rápida privatização da internet não suscitou oposição e quase nenhum debate. Embora Wolff tenha liderado o caminho, ele agiu a partir de um amplo consenso ideológico. O triunfalismo do livre mercado da década de 1990 e o clima político intensamente desregulador promovido pelos democratas de Bill Clinton e pelos republicanos de Newt Gingrich enquadraram a propriedade privada total da internet como benéfica e inevitável.

O colapso da União Soviética reforçou essa visão, pois a justificativa da Guerra Fria para um planejamento público mais robusto desapareceu. Finalmente, a profunda influência da indústria sobre o processo garantiu que a privatização tomasse uma forma particularmente extrema.

Talvez o fator mais decisivo na transferência tenha sido a ausência de uma campanha organizada exigindo uma alternativa. Tal movimento poderia ter proposto uma série de medidas destinadas a popularizar a internet sem privatizá-la completamente. Em vez de abandonar as redes regionais sem fins lucrativos, o governo poderia tê-las expandido.

Essas redes, financiadas por taxas cobradas de provedores comerciais da rede troncal, permitiriam ao governo garantir acesso à internet de baixo custo e alta velocidade a todos os americanos como um direito social. Enquanto isso, a FCC poderia regular essas redes, definindo as taxas que se cobram uns dos outros para transportar o tráfego da internet e supervisioná-las como um serviço público.

Mas promover mesmo uma fração dessas políticas exigiria mobilização popular, e a internet ainda era relativamente obscura no início dos anos 1990, em grande parte confinada a acadêmicos e especialistas. Foi difícil construir uma coalizão em torno da democratização de uma tecnologia que a maioria das pessoas nem sabia que existia. Nesse cenário, a privatização obteve uma vitória tão completa que se tornou quase invisível, revolucionando silenciosamente a tecnologia que em breve revolucionaria o mundo.

Recuperando a plataforma do povo

Quase trinta anos depois, a Internet cresceu tremendamente, mas a estrutura de propriedade de sua infraestrutura central é praticamente a mesma. Em 1995, cinco empresas possuíam a rede troncal (backbone) da internet. Hoje, existem entre sete e doze grandes provedores de backbone nos Estados Unidos, dependendo de como você conta, e mais alguns no exterior. Embora uma longa série de fusões e aquisições tenha levado ao rebranding e reorganização, muitas das maiores empresas dos Estados Unidos têm vínculos com o oligopólio original, incluindo AT&T, Cogent, Sprint e Verizon.

As condições de privatização tornaram mais fácil para os titulares protegerem sua posição. Para formar uma internet unificada, as redes de backbone devem se interconectar e conectarem-se com provedores menores. É assim que o tráfego viaja de uma parte da internet para outra. No entanto, como o governo não especificou nenhuma política de interconexão quando privatizou a internet, os backbones podem negociar o acordo que quiserem.

Eles geralmente permitem a interconexão entre si gratuitamente, porque é mutuamente benéfico, mas cobram de provedores menores para transportar o tráfego. Esses contratos não são regulamentados, mas também, muitas vezes, secretos. Negociados a portas fechadas com a ajuda de acordos de confidencialidade, eles garantem que o funcionamento profundo da internet não seja apenas controlado pelas grandes empresas, mas também oculto do público.

Mais recentemente, surgiram novas concentrações de poder. O backbone não é a única parte da internet que está nas mãos de relativamente poucas pessoas. Atualmente, mais da metade dos dados que chegam aos usuários dos EUA nos horários de pico vêm de apenas trinta empresas, das quais a Netflix é parte importante.

Da mesma forma, gigantes de telecomunicações e cabo, como Comcast, Verizon e Time Warner Cable, dominam o mercado de serviços de banda larga. Essas indústrias transformaram a arquitetura da internet, criando acesso direto às redes uma da outra, ignorando o backbone. Provedores de conteúdo como a Netflix agora enviam seus vídeos diretamente para provedores de banda larga como a Comcast, evitando uma rota tortuosa pelas entranhas da internet.

Esses acordos desencadearam uma tempestade de controvérsias e contribuíram para os primeiros passos para a regulamentação da internet nos Estados Unidos. Em 2015, a FCC anunciou sua resolução mais forte até o momento para impor a “neutralidade da rede”, o princípio de que os provedores de serviços de internet devem tratar todos os dados da mesma forma, independentemente de virem da Netflix ou do blog de alguém. Na prática, a neutralidade da rede é impossível dada a estrutura atual da internet. Mas, como um alerta, esse debate concentrou a atenção do público no controle corporativo da internet e produziu vitórias reais.

A decisão da FCC reclassificou os provedores de banda larga como “portadores comuns”, submetendo-os pela primeira vez à regulamentação das telecomunicações. E a agência prometeu usar esses novos poderes para proibir as empresas de banda larga de bloquear o tráfego para determinados sites, diminuir a velocidade dos clientes e aceitar “priorização paga” de provedores de conteúdo.

A decisão da FCC é um bom começo, mas não vai longe o suficiente. Rejeita explicitamente a “regulamentação de tarifas prescritivas em todo o setor” e isenta os provedores de banda larga de muitas das disposições da Lei de Comunicações de 1934, que data do New Deal. Também se concentra na banda larga, deixando de lado o backbone da internet. Mas a decisão é uma cunha que pode ser ampliada, especialmente porque a FCC deixou em aberto muitas das especificidades em torno de sua aplicação.

Outra frente promissora é a banda larga municipal. Em 2010, em Chattanooga, a Tennessee Municipal Electric Company começou a vender serviços de internet de alta velocidade acessíveis para os moradores. Graças a uma rede de fibra óptica construída em parte com fundos federais de fomento, a empresa oferece algumas das velocidades de internet doméstica mais rápidas do mundo.

A indústria de banda larga respondeu com força, pressionando as legislaturas estaduais a proibir ou limitar experimentos semelhantes. Mas o sucesso do modelo de Chattanooga inspirou movimentos pela banda larga municipal em outras cidades, como Seattle, onde a vereadora socialista Kshama Sawant há muito defende a ideia.

Podem parecer pequenos passos, mas apontam para a possibilidade de construção de um movimento popular para reverter a privatização. Isso envolve não apenas promover a expansão da supervisão da FCC e serviços públicos de banda larga de propriedade pública, mas também mudar a retórica em torno da reforma da internet.

Uma das obsessões mais danosas entre os reformadores da internet é a noção de que mais competição democratizará a internet. A internet precisa de muita infraestrutura para funcionar. Dividir as grandes corporações que possuem essa infraestrutura em empresas cada vez menores na esperança de que o mercado crie melhores resultados é um erro.

Em vez de tentar fugir da grandeza da internet, devemos abraçá-la e colocá-la sob controle democrático. Isso significa substituir provedores privados por alternativas públicas, quando viável, e regulá-los quando não. Não há nada nos canais ou protocolos da internet que a force a produzir grandes concentrações de poder corporativo. Esta é uma escolha política, e podemos escolher outra coisa.

Sobre o autor

Ben Tarnoff is a founding editor of Logic.

21 de agosto de 2016

Texto rebate críticas aos economistas heterodoxos de Lisboa e Pessôa

Luiz Fernando de Paula
Elias M. Khalil Jabbour


RESUMO O texto procura rebater críticas aos economistas heterodoxos formuladas por Marcos Lisboa e Samuel Pessôa em artigo publicado no caderno ("As razões da divergência", 17/7 ). Entre outros argumentos, os autores apontam o uso de exercícios retóricos que os dois economistas consideram típicos dos desenvolvimentistas.

Ilustração Antonio Malta Campos

Em artigo publicado nesta "Ilustríssima", Marcos Lisboa e Samuel Pessôa afirmam que, enquanto os economistas tradicionais preferem a evidência dos dados, os heterodoxos desprezam os métodos estatísticos e partem aprioristicamente das conclusões, depreendendo que "nos principais centros da academia internacional, o debate deve ser resolvido pela evidência estatística dos dados disponíveis".

Ainda segundo os autores, os primeiros consideram que o desenvolvimento econômico decorre da produtividade, ao passo que os heterodoxos –em especial na vertente estruturalista– sustentam que ele resulta do crescimento de atividades produtivas específicas, estimuladas por políticas setoriais.

Argumentam ainda que, para muitos heterodoxos brasileiros, o gasto público é sempre eficaz caso a economia se encontre em recessão, como em 2015 –ao que eles se contrapõem sustentando que, na realidade, a expansão dos gastos públicos nos últimos sete anos contribuiu para a crise atual.

A "miséria da ortodoxia", não muito longe da crítica de Marx à "filosofia da miséria" de Proudhon, incorre nos seguintes pontos: 1) uso e abuso da retórica, que os autores condenam sob o mantra da "neutralidade" e "objetividade científica"; 2) desenvolvimento de uma visão deturpada e simplificada da heterodoxia econômica; e 3) generalizações claramente apriorísticas partindo de fatos e experiências específicas. Como veremos a seguir, esses fatores estão relacionados entre si.

A negação recorrente de um fato, método ou até mesmo de um fenômeno pode ser prelúdio de ato repetitivo daquilo que se tenta negar. Esta pode ser uma plausível explicação à utilização intensa e quase fortuita da retórica por parte dos dois economistas no intuito de negar a própria retórica como instrumento científico de persuasão e demonstração. A utilização, por exemplo, de dados, com o recurso de técnicas estatísticas para amplificar ideias-força (na intenção de transformá-las em algo amplamente aceito), não deixa de ser um exercício de retórica, no qual se "pinçam" estudos que favoreçam argumentos preconcebidos.

Um insuspeito economista ortodoxo, Pérsio Arida, em artigo originalmente publicado em 1983 ("A história do pensamento econômico como teoria e retórica"), destaca que "os economistas praticam a retórica sem o saber e, o que é pior, dela desconfiando".

A heterodoxia –sustentam Lisboa e Pessôa– "Parte-se da conclusão. A visão de mundo determina os principais aspectos de funcionamento das economias". Não seria, então, um exercício retórico e apriorístico fazer crer que qualquer debate na seara econômica deva se resolver no âmbito –único e sagrado– da evidência empírica? Recorramos novamente ao artigo de Arida, para quem "nenhuma controvérsia importante na teoria econômica foi resolvida através do teste ou da mensuração empírica. Não importa aqui o rigor do teste: o recurso aos fatos nunca serviu para resolver controvérsias significativas". Para ele, deve-se "abandonar a ficção positivista de um sistema econômico inambiguamente dado à observação, árbitro supremo de todas as discordâncias, face ao qual os vários corpos teóricos proviriam explicações desinteressadas".

Nesse sentido, longe de uma demonstração da robustez científica e "neutra" da ciência econômica, agora reduzida a uma pobre "física social", as demonstrações empíricas estão muito mais próximas de se apresentarem como argumentos de autoridade do que como solução final de controvérsias.

Karl Popper, um dos papas da metodologia científica, era um crítico do "indutivismo ingênuo": em sua busca por uma "filosofia da ciência", além de demonstrar que não existe observação neutra e livre de pressupostos, vaticinava sobre a falsidade da concepção segundo a qual conhecimento científico é corroborado ou falseado apenas a partir de um conjunto de dados empíricos.

Popper sugeria, assim, que o empirismo está sempre à mercê dos pontos de vista próprios do pesquisador e que, portanto, nenhuma teoria poderia se propor a ser verdade absoluta. Mas mesmo seu "princípio de falseabilidade" tem sido criticado especialmente por sua inadequação histórica e pela ideia de que a prática científica não pode se resumir a uma incessante tentativa de falsear teorias, inclusive na economia, como sugerido por Arida. O poder da explicação científica não pode ser aferido apenas a partir da intervenção de um único método, como a estatística, tido como absoluto.

Na realidade, não existe uma análise de fatos e fenômenos econômicos e sociais isenta de valores: a escolha das variáveis relevantes e a maneira pela qual o cientista social (inclusive economista) as analisa é informada pelos corpos teóricos e juízo de valores subjacentes. Alguns tópicos podem ilustrar mais claramente a questão.

Por exemplo, a alta poupança agregada da China é atribuída por alguns economistas convencionais à alta propensão a poupar das famílias, que seria condição necessária e suficiente para se alcançar uma taxa de câmbio depreciada. Para outros analistas, é a manipulação da taxa de câmbio pelo governo chinês que contribui para elevados superavits comerciais, que, por sua vez, elevam os investimentos nos setores comercializáveis, gerando "ex post" uma alta poupança agregada.

Para alguns economistas liberais, ainda, o sucesso chinês é propiciado pela desregulamentação do mercado, em especial a abertura ao capital estrangeiro e a privatização das empresas estatais.

Já para alguns desenvolvimentistas (como um dos autores deste artigo, influenciado pelo pensamento de Ignácio Rangel), o sucesso do desenvolvimento chinês se deve à "abertura comercial" planificada pelo Estado; à construção de instituições que refletissem a estratégia estatal desenhada pelos acontecimentos de 1949 e 1978; ao surgimento de novas e superiores formas de planificação econômica; e à presença do capital estrangeiro, estimulado mas submetido a regras do Estado, que por sua vez controla com mão de ferro a taxa de câmbio e a política de juros.

Essa experiência, cuja espinha dorsal é a existência de imensos conglomerados empresariais estatais e um poderoso sistema financeiro público, não prescindiu de controles sobre o fluxo de capitais, que capacitaram o Estado a controlar melhor a taxa de câmbio e a política monetária.

Produtividade
Todos os economistas –ortodoxos e heterodoxos– concordam que crescimento depende do aumento de produtividade; contudo há divergência quanto aos seus fatores determinantes. Para economistas convencionais, a produtividade depende da formação dos trabalhadores e da qualidade do marco institucional (que proporciona segurança jurídica à realização de investimentos). Para economistas keynesianos, esses fatores são importantes, mas não únicos: a produtividade responde também ao próprio processo de crescimento da produção industrial puxado pela demanda, uma vez que as empresas se veem estimuladas a incorporar máquinas e equipamentos a partir da perspectiva de aumento de suas vendas –essa relação causal é conhecida como Lei Kaldor-Verdoorn.

Acrescente-se que a produtividade depende da utilização da mão de obra em setores tecnologicamente de mais alta produtividade, como determinados segmentos da indústria de transformação. Um dos motivos pelos quais a produtividade no Brasil nos últimos anos esteve baixa, em que pese a pequena taxa de desemprego até 2014, foi o fato de boa parte da mão de obra estar empregada no setor de serviços de baixa produtividade, como o comércio.

Há várias formas de diferenciar ortodoxia de heterodoxia. Ortodoxia foi definida de forma ampla pelo economista britânico Frank Hahn como a abordagem que engloba uma perspectiva individualista (agentes atuam como indivíduos atomizados), algum axioma de racionalidade (normalmente otimizadora) e um compromisso com estudos de estado de equilíbrio (repouso em algum ponto). Isto é, as ações de indivíduos otimizadores isolados que interagem em livre concorrência e tendem a alcançar de alguma forma uma posição de equilíbrio.

Desse modo, mecanismos de mercado produzem resultados eficientes se fricções e falhas podem ser abstraídas ou apenas impactam no curto prazo; ou seja, o "laissez-faire" produz resultados ótimos em termos de alocação dos recursos disponíveis. Ressalvamos que tais axiomas podem ser parcialmente afrouxados para incluir, por exemplo, novas formas de racionalidade.

Já a heterodoxia é um espectro amplo de abordagens (institucionalista, marxista, neoschumpeteriana, neoricardiana, pós-keynesiana, regulacionista etc.), que se diferenciam pelas suas orientações substantivas particulares, preocupações e ênfases, que têm em comum a rejeição tanto do reducionismo metodológico em prol da pluralidade quanto da noção de que economias capitalistas abstraídas de fricções tendem ao auto equilíbrio com pleno emprego.

Busca-se, na abordagem heterodoxa, o máximo realismo das hipóteses e rejeita-se o atomismo e o individualismo metodológico que caracterizam boa parte do pensamento convencional (ver, a respeito, o artigo "Crises econômicas evidenciam reducionismo de modelos teóricos", de Belluzzo e Bastos, publicado no site deste caderno em 20/3).

Uma interessante analogia acerca da heterodoxia é concebê-la como um "sistema aberto", no qual 1) não é possível saber com certeza se todas as variáveis relevantes foram identificadas (variáveis importantes podem ser omitidas); 2) a fronteira é semipermeável; 3) há conhecimento imperfeito das relações entre variáveis que podem mudar em função da criatividade humana; 4) pode haver inter-relação entre os agentes (esses podem aprender ao longo do tempo). Em síntese, estrutura e ação são interdependentes. Nesse sentido, a irreversibilidade do tempo histórico e a dependência do sistema em relação à sua trajetória são elementos centrais da heterodoxia econômica.

Lisboa e Pessôa sugerem que só existe uma boa teoria econômica, que supostamente é a ortodoxa. A heterodoxia seria anticientífica, ou uma ciência ideológica –afinal, parte-se das conclusões! A visão que eles têm da heterodoxia é simplista e deturpada. A heterodoxia, como visto, se utiliza de um amplo espectro metodológico, inclusive com uso frequente de modelos matemáticos e técnicas econométricas, embora com a parcimônia necessária e ressalvas quanto a seu uso como um fim em si.

Acrescente-se que hipóteses como o crescimento de longo prazo determinado pela demanda e a restrição externa ao crescimento em economias em desenvolvimento têm recebido farta análise empírica. Para ter uma ideia do que está sendo produzido por economistas pós-keynesianos no Brasil e no exterior, sugerimos ao leitor dar uma olhada nos artigos que são apresentados nos encontros anuais da Associação Keynesiana Brasileira (AKB) ou da Conference Research Network Macroeconomics and Macroeconomic Policies, realizada anualmente em Berlim.

Compartilhamos a preocupação de Milton Friedman de que a economia neoclássica estaria se tornando um ramo da matemática sem lidar com os problemas econômicos reais. A análise do mundo real é fundamental para qualquer entendimento sobre a realidade. Neste sentido, o economista Bresser-Pereira sugere a precedência do uso do método histórico-dedutivo na economia sobre o método hipotético-dedutivo, de modo a superar o irrealismo dos axiomas ortodoxos.

O método histórico-dedutivo é histórico porque nasce da observação da realidade empírica para efetuar generalizações, mas é também dedutivo porque a análise envolve uma série de deduções feitas a partir do modelo e visão de mundo do analista.

Entre as diversas formas de comparar e abordar a evolução do pensamento científico, um outro papa da metodologia científica, Imre Lakatos, propõe uma perspectiva epistemológica através da construção da metodologia dos programas de pesquisa científica, segundo a qual a superação de um programa de pesquisa por outro constitui-se em processo racional, em que um deles progride na sua capacidade explicativa da realidade, agregando conhecimento, enquanto outro perde eventualmente poder explicativo e, deste modo, regride, sem que isso represente a sua total refutação.

Ademais, segundo ele, a ocorrência de uma "revolução científica" é um processo histórico, normalmente lento, em que o progresso do conhecimento dependerá da existência de programas rivais. O programa científico prevalecente é aquele aceito pela comunidade científica como tal. Quando o desenvolvimento teórico de um programa de pesquisa se atrasa em relação ao seu caráter explicativo de fenômenos existentes e somente oferece explicações "ad hoc" de descobertas casuais ou de fatos antecipados por um programa rival, o prevalecente pode ser superado por este último.

Interessante notar que essa análise abre espaço para a existência e convivência de programas rivais de pesquisa –afinal é assim que evolui o conhecimento científico! Nesse sentido, nada mais anticientífico do que desqualificar o programa de pesquisa rival com base em argumentos de autoridade e sob o frágil pressuposto de falta de base empírica.

Generalizações
Uma última questão diz respeito ao uso de generalizações apriorísticas partindo de fatos e experiências específicas, viés retórico que Lisboa e Pessôa adotam com frequência.

A generalização como método serve à transformação do óbvio em achado científico –caso do papel do investimento em capital humano como variável fundamental ao desenvolvimento, que entendemos ser condição necessária, mas não suficiente para que tal processo ocorra. O apriorismo serve para mostrar que no Brasil as políticas setoriais costumam não dar certo e que o segredo da alta taxa de investimento na China reside na elevada propensão a poupar das famílias chinesas. Desconsideram-se, neste caso, tanto o papel-chave dos investimentos públicos quanto a existência de um sistema estatal amplo e complexo que financia as atividades produtivas.

A desastrada política de informática dos anos 1980 no Brasil seria a evidência de que políticas setoriais com recursos ou subsídios públicos, supostamente caras à tradição estruturalista, em geral não funcionam, ou funcionaram apenas em algumas condições muito particulares. Surpreende aqui a visão simplista de Lisboa e Pessôa a respeito do sofisticado e abrangente trabalho de Celso Furtado e outros autores estruturalistas sobre o desenvolvimento econômico na periferia.

É comum, ademais, alguns economistas ortodoxos concluírem que o fracasso da economia no primeiro governo Dilma é uma evidência de que políticas heterodoxas e desenvolvimentistas são por natureza equivocadas.

Recurso análogo de retórica seria generalizar o fracasso de políticas neoliberais tão somente em função dos resultados do segundo governo FHC: baixo crescimento econômico, elevação explosiva da dívida pública, aumento de desemprego, aceleração inflacionária, crises cambiais, apagão energético etc.

Além de evitar generalizações apressadas, há que analisar com cuidado os fatores que levaram ao fracasso de tais governos, já que, como diz um ditado popular, "a prova do pudim é prová-lo" e, no caso dos dois referidos governos, os resultados econômicos ficaram a desejar.

No caso do primeiro governo Dilma, muitos economistas heterodoxos criticaram os rumos seguidos, ainda que existam, como não poderia deixar de ser, análises diferenciadas a respeito da política adotada e dos seus fracassos. Para dar um exemplo, um dos autores deste artigo publicou (em coautoria com André Modenesi) um texto intitulado "Consequências do senhor Mantega", no encarte "Eu& Fim de Semana", do jornal "Valor", em 12/7/2013. Os autores sustentavam que havia no governo Dilma uma descoordenação da política econômica e que políticas keynesianas, para serem bem-sucedidas, têm que ser bem coordenadas.

Uma das razões do fracasso da nova matriz macroeconômica, argumenta-se, foi uma política fiscal expansionista equivocada, que privilegiou isenções fiscais ao invés do gasto público, de maior efeito multiplicador de renda.

Tal política, ademais, não foi transmitida aos agentes de forma adequada: o governo prometeu que cumpriria integralmente a meta de superavit primário, acabando por utilizar artifícios contábeis para alcançá-la. O resultado, como se sabe, foi uma forte deterioração fiscal, em função tanto do baixo crescimento econômico (empresários recompuseram suas margens de lucro ao invés de aumentarem a produção industrial) quanto do fato de que o governo abriu mão de receita fiscal.

Por fim, um comentário sobre a recessão de 2015, que, conforme sustentam Lisboa e Pessôa, não seria consequência de um "austericídio" fiscal no Brasil. A literatura empírica internacional mostra que a magnitude do multiplicador fiscal –isto é, o quanto um aumento (ou diminuição) no gasto público impacta sobre o crescimento econômico– depende do estágio do ciclo econômico, sendo maior na desaceleração econômica. Nesse sentido, é de se esperar que a aguda contração fiscal ocorrida em 2015 tenha contribuído para a forte desaceleração econômica. Mas, sem dúvida, outros fatores também contribuíram para a desaceleração econômica, como o relevante desinvestimento da Petrobras, o choque dos preços de energia elétrica e a deterioração das expectativas empresariais frente à crise política.

Esse assunto, contudo, está a merecer uma análise mais apurada, usando dados que excluam as pedaladas e "despedaladas" fiscais para melhor aferir o efeito da contração fiscal sobre o PIB.

Os efeitos de processos de consolidação fiscal sobre dívida pública e crescimento econômico têm sido avaliados na literatura internacional. Um trabalho recentíssimo, que tem como um dos autores o ex-secretário do Tesouro americano Lawrence Summers ("The Permanent Effects of Fiscal Consolidations"), confirma achados empíricos anteriores no sentido de consolidações fiscais poderem ser contraproducentes, uma vez que reduções no deficit público podem resultar em aumento na relação dívida/PIB devido aos seus efeitos negativos de longo prazo sobre o crescimento.

Ajuste a fórceps
De fato, no debate do mainstream norte-americano pós-crise de 2007-2008, tem havido um forte questionamento da tese da contração fiscal expansionista, segundo a qual as contrações fiscais podem ser expansionistas uma vez que seriam capazes de aumentar a confiança do setor privado e estimular novas decisões de consumo e investimento por meio de um efeito de "crowd- ing in" sobre os gastos privados.

A tentativa de fazer um forte ajuste fiscal a fórceps em 2015 pelo então ministro Joaquim Levy, numa conjuntura de aguda queda na arrecadação, se revelou um rotundo fracasso, com a meta do superavit primário inicial anunciada para 2015 caindo sucessivamente de 1,2% PIB para 0,15% (julho de 2015) e depois para deficit de 0,8% (outubro de 2015), até finalmente alcançar -2,0% do PIB em 2015 (não se descontando as despedaladas fiscais).

Concluindo, procuramos mostrar que Lisboa e Pessôa incorrem em farto uso de exercício retórico para desqualificar a heterodoxia, "pinçando" estudos empíricos que favoreçam suas análises e conclusões, fazendo generalizações a partir de fracassos específicos e vendendo uma visão deturpada.

Se a retórica deles é boa ou ruim cabe ao leitor avaliar, mas a argumentação nos parece frágil e superficial. Como acadêmicos de esquerda, só podemos lamentar que tenhamos poucos economistas ortodoxos progressistas no Brasil, como é o caso de Paul Krugman e Joseph Stiglitz nos EUA.

Elias M. Khalil Jabbour, 40, é professor-adjunto na área de teoria e política do planejamento econômico da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Luiz Fernando de Paula, 56, é professor titular da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e ex-presidente da Associação Keynesiana Brasileira.

20 de agosto de 2016

Os militantes esquecidos

A fraca resistência da classe trabalhadora tem suas raízes na perda de sindicatos radicais.

Charlie Post

Jacobin

Trabalhadores desempregados se reúnem na frente do quartel-general do Partido Comunista na Union Square, em 1934. (Charles Rivers, Biblioteca Tamiment / Arquivo Trabalhista Robert F. Wagner, Universidade de Nova York)

Tradução / O movimento dos trabalhadores nos Estados Unidos está com grandes problemas.

Durante os últimos 40 anos (e até mais, diriam alguns), os capitalistas e seus representantes políticos em ambos partidos têm travado uma ofensiva ferrenha contra os trabalhadores. Patrões em todo os país exigiram tremendas concessões de seus empregados – retrocessos em salários, direitos e regulamentação nos locais de trabalho; introdução de escalas divisórias de salário (multi-tiered workforce); deslocamento de vagas de emprego para outras subsidiárias ou empresas não sindicalizadas – enquanto lutam contra organizações sindicais que avançam em suas novas plantas.

Na arena política, os fiéis servos do capital têm bloqueado qualquer reforma de peso das leis trabalhistas a favor dos trabalhadores e corroeram por dentro o Estado de bem-estar social, que garantia proteções mínimas contra os piores aspectos da competição no mercado de trabalho.
Os resultados dessa ofensiva são bem conhecidos: desigualdade e insegurança crescentes, que criaram um solo fértil para o crescimento do racismo, xenofobia, sexismo e homofobia entre uma significante minoria dos trabalhadores.

Apesar das expectativas daquela geração que se radicalizou na década de 1960 e no inicio da de 1970, esse massacre, que já dura décadas, se deparou com relativamente pouca resistência. Houve, é claro, enfrentamentos contra as concessões e austeridade: greve na Hormel em 1985-86; greves quase simultâneas contra as empresas Bridgestone-Firestone, Caterpillar e Staley em 1994-95; greve na UPS em 1997; greve dos transportes em Nova Iorque em 2005; greve da União dos Professores de Chicago (CTU, na sigla em inglês) em 2012. Mas com exceção parcial das greves da UPS e dos professores, a maioria desses embates terminou em derrota.

Ainda mais importante, o nível de resistência organizada nos locais de trabalho é extremamente baixo. O número de dias de trabalho perdidos com greves está entre os mais baixos da história e a porcentagem de trabalhadores que são sindicalizados reduziu para cerca de 11%, a menor em um século.

O que explica a quantidade desconcertantemente baixa de resistência por parte da classe trabalhadora nos Estados Unidos hoje?

Explicações conflitivas

Um argumento popular hoje na esquerda é que o movimento dos trabalhadores nos EUA está frente a uma hostilidade sem precedentes por parte dos patrões, que são auxiliados por um ambiente jurídico desfavorável aos trabalhadores. Esse argumento, contudo, não resiste a um exame histórico mais criterioso.

O Congresso das Organizações Industriais (CIO, na sigla em inglês) fez seus avanços mais importantes nos anos de 1930, frente a uma animosidade muito maior por parte dos patrões (em alguns casos chegando ao nível das Forças Armadas) e sustentou frente à Suprema Corte o Ato das Relações Nacionais do Trabalho (NLRA) em 1937.

Igualmente, quando os trabalhadores dos setores públicos se organizaram em massa nas décadas de 1960 e 1970, seus sindicatos muitas vezes conquistaram ganhos significativos, apesar da aguerrida oposição patronal e antes das novas leis estaduais e locais que garantiram o direto a negociação coletiva. As reformas nas leis trabalhistas nos Estados Unidos sempre foram precedidas de mobilizações dos trabalhadores, e não o contrário.

Outra explicação para a baixa resistência por parte da classe trabalhadora foca nas mudanças da estrutura e composição dessa classe. O argumento mais comum é que a classe trabalhadora industrial desapareceu com a “globalização” e a “desindustrialização”. Nesse modelo, as indústrias de produção em larga escala, cujos trabalhadores formavam a espinha dorsal do sindicalismo, ou desapareceram ou foram realocadas para o hemisfério Sul.

A realidade, porém, é muito mais complexa. Para início de conversa, o papel da produção industrial na economia dos EUA na verdade tem crescido – a produção final de bens aumentou de perto dos 22% do PIB real nas décadas de 1960 e 70 para 28% na década de 2000, e aumentou vagarosamente para 31% em 2010-12.

Mesmo sendo verdade que a porcentagem de trabalhadores industriais tem diminuído, essa redução se iniciou no final do de século XIX. Ainda mais importante, a sindicalização entre trabalhadores nas indústrias tem caído mais rápido do que o emprego nesse setor: entre 1993 e 1994 (enquanto resultado da produtividade crescente e da reestruturação produtiva), o número de trabalhadores na produção foi reduzido em 33%, enquanto a filiação em sindicatos do setor industrial caiu 60%.

Nem as mudanças no processo de trabalho podem ser responsabilizadas pela queda na combatividade da classe trabalhadora. Apesar das afirmações de que a desqualificação através da informatização eliminou a capacidade dos trabalhadores de parar a produção, existem claras evidências de que esses trabalhadores ainda detêm um poder social em potencial.

Na verdade, a disseminação de estoques “just-in-time” – que eliminam reservas de peças e materiais – aumentou a capacidade de trabalhadores em indústrias de logística interromperem a produção.

É igualmente duvidoso se a informatização de fato reduziu os trabalhadores industriais a meros “leitores de medidores”. Mesmo que essa afirmação seja verdadeira, a informatização põe enorme poder nas mãos daqueles trabalhadores que montam e consertam essas novas máquinas. Trabalhadores sem nenhuma qualificação poderiam parar a produção apenas ficando junto de suas máquinas, uma versão atual das greves de ocupação da década de 1930.

Talvez a explicação mais disseminada entre a esquerda atualmente para o declínio da combatividade da classe trabalhadora é a de que empregos formais e duradouros foram suplantados por empregos temporários e informais. O crescimento do “precariado”, nessa linha de pensamento, tem solapado o poder dos trabalhadores nos locais de trabalho.

Esses argumentos, no entanto, aparecem em todos os lugares menos nos dados empíricos. Enquanto o número de trabalhadores com empregos precários (trabalho temporário, por demanda, em tempo parcial ou em contratos com tempo determinado e de forma autônoma) cresceu por volta de 3 milhões entre 1995 e 2005, a porcentagem de trabalhadores em condições precárias aumentou apenas 0,3%, de 15,2% para 15,5%.

De modo similar, um relatório de 2015 de agências governamentais estimou que aqueles classificados como “núcleo precário” (trabalhadores temporários, por demanda etc.) perfazem aproximadamente 7,9% da força de trabalho.

Mesmo o crescimento de empregos em tempo parcial (especialmente nos setores de varejo e saúde) não reduziu a ligação desses trabalhadores a um único empregador. O número de anos que esses trabalhadores em tempo parcial permanecem empregados por um único patrão não diminuiu significativamente nos últimos vinte anos.

Para uma explicação mais persuasiva do enfraquecimento da combatividade dos trabalhadores, nós precisaremos olhar para outro lugar.

A crise de estratégia

Como notaram Mike Goldfield, Kim Moody, Joe Burns, dentre outros, uma mudança na correlação de forças entre as classes, iniciada nos fins da década de 1950 e intensificada após a década de 1970, criou uma crise na estratégia da direção oficial da AFL-CIO.

Desde os fins da década de 1940, as direções sindicais nos Estados Unidos agiram dentro da estrutura montada pelo NLRA.

Novas formas de organização tomaram conta através das eleições promovidas pelo Conselho Nacional de Relações Trabalhistas – NLRB (National Labor Relations Board, em inglês), que determinava a composição das “unidades de barganha” (muitas das vezes apenas uma fração da força de trabalho em uma determinada empresa ou indústria). Negociações rotineiras com empresas “mais visadas” produziam acordos plurianuais que, por sua vez, definiam o padrão a ser seguido pelo resto da indústria.

A institucionalização foi um golpe severo na combatividade dos trabalhadores. Greves foram restringidas aos períodos após o término dos contratos e limitadas em relação a suas táticas (sem pressões sobre outras empresas, ocupação das fábricas etc.). Durante a duração do acordo, todos os enfrentamentos nos locais de trabalho são canalizados para os procedimentos de reclamação, o que faz com que os trabalhadores continuem realizando tarefas perigosas ou degradantes enquanto a reclamação segue através dos longos processos de inquirição e mediação. Finalmente, a atividade política dos trabalhadores se resumia a apoiar o Partido Democrata.

Por um punhado de décadas, a estratégia da AFL-CIO garantiu retornos em alguns aspectos. Trabalhadores industriais conquistaram reajustes salariais que em geral acompanhavam a inflação, desfrutavam de um “estado de bem-estar social privado” na forma de seguros de vida e pensões fornecidos pelos empregadores e eram protegidos dos piores abusos das chefias por complexas categorias de emprego e regras de trabalho. Alguns sindicatos (como o United Auto Workers e o United Rubber Workers) estenderam sua organização com sucesso para as plantas geralmente não sindicalizadas do sul do país antes do fim da década de 1970.

No entanto, mesmo no ápice dessa estratégia havia desvantagens significativas. Para citar uma, a aliança dos burocratas sindicais com o Partido Democrata resultou em poucas políticas que beneficiassem todos os trabalhadores, agudizando a divisão entre trabalhadores sindicalizados e não sindicalizados (na enorme maioria mulheres e não brancos).

Ainda por cima, a viabilidade desse sindicalismo burocrático de negociação estava calcada na existência de uma classe de capitalistas dispostos e capazes de fazerem concessões em troca de uma produção sem sobressaltos. A crise na lucratividade que começou no meio da década de 1960, e intensificou a concorrência globalmente em meados da década de 1970, transformou completamente a relação anterior do capital com os trabalhadores.

Desafiados pelos retornos cada vez menores e pelos desafios sem precedentes à sua dominação mundial desde o pós-guerra, os capitalistas dos EUA partiram para a ofensiva. Eles iniciaram exigindo retrocessos em 1979. A liderança da AFL-CIO, presa na sua aliança estratégica com a NLRB e o Partido Democrata, respondeu que concordava com as concessões de direitos e tentou convencer os patrões que eram “parceiros” potenciais que poderiam ajudar a fazer as empresas estadunidenses serem mais lucrativas e competitivas.

A conciliação foi um desastre. As organizações dos trabalhadores foram reduzidas por todo o país e salários, direitos e condições de trabalho foram deterioradas por toda a economia.

A peça que falta

A crise de estratégia é uma explicação necessária, mas insuficiente para dar conta do declínio das lutas da classe trabalhadora nos Estados Unidos.

Há uma razão, como apontaram Robert Brenner e outros, para que as direções sindicais se agarrassem às suas estratégias falidas. Mas o que explica a falta de enfrentamento vinda de baixo? Por que as bases dos sindicatos não repeliram as ofensivas patronais com maior energia?

Resumindo: a diminuição do tamanho e a desorganização política da “minoria combativa”. Sem um grupo de trabalhadores com uma visão estratégica de como organizar, lutar e vencer, as direções sindicais ficaram livres para seguirem aferradas à sua estratégia suicida.

O desenvolvimento desigual da consciência da classe trabalhadora está enraizado no caráter necessariamente episódico dos conflitos de classe sob o capitalismo. Enfrentamentos massivos que envolvem crescentes confrontos com os patrões e o Estado são necessários para desenvolver a radicalidade e a consciência da classe trabalhadora.

Mas como os trabalhadores dependem da venda de sua força de trabalho para sobreviverem, a maioria deles não pode participar permanentemente de greves, atos, ocupações e momentos similares.

Apenas durante breves levantes é que segmentos maiores dos trabalhadores são arrastados para o combate. Na maior parte do tempo, eles estão muito ocupados apenas tentando sobreviver. Enquanto a condição de vida privilegiada da burocracia sindical é a base para o seu compromisso incondicional com estratégias reformistas (negociações rotineiras, procedimento de reclamações, campanhas eleitorais do Partido Democrata etc.), a massa de trabalhadores apoia condicionalmente esses esforços com a esperança de melhorar suas condições de vida sem o risco de um conflito aberto.

Junto da burocracia de tempo integral do movimento dos trabalhadores e da massa dos trabalhadores passivos lutando apenas para sobreviver, há um pequeno segmento de trabalhadores que, nas palavras do falecido Ernest Mandel, “(não) abandonam as linhas de frente da luta de classes, mas (continuam) a guerra, por assim dizer, ‘através de outros meios’”.

Esse importante grupo – politicamente heterogêneo e composto de delegados sindicais e outras lideranças dos locais de trabalho que realizaram enfrentamentos no chão de fábrica e promoveram políticas radicais no seio da classe trabalhadora – é a minoria combativa.

Uma breve história

Nas décadas de 1870 e 1880, ondas de greves massivas nos Estados Unidos deixaram em seu rastro duas camadas no movimento dos trabalhadores: uma burocracia de sindicalistas de negociação que garantiam aos monopólios urbanos um suprimento de força de trabalho qualificada; e uma minoria combativa constituída de trabalhadores agrupados em torno da crescente imprensa local, que tratava dos problemas trabalhistas e da fragmentária esquerda socialista e anarquista.

Durante a longa expansão econômica anterior à I Guerra Mundial, esses militantes (trabalhadores industriais qualificados, têxteis e mineiros) se unificaram em torno da ala esquerda do Partido Socialista e se juntaram aos Trabalhadores Industriais do Mundo (International Workers of the World, IWW ) – a mais importante organização da minoria combativa pré-1917.

A repressão desencadeada no pós-guerra não eliminou esse importante grupo, mas assistiu à sua reorganização dentro do Partido Comunista (CP) e na Liga Educacional dos Sindicatos (TUEL), uma frente composta de trabalhadores radicais que buscava transformar os sindicatos ligados à AFL e organizar os que estavam desorganizados.

No início da década de 1930, sindicalistas, socialistas de esquerda e comunistas de vários matizes adotaram uma estratégia voltada para a independência frente às direções sindicais acomodadas, radicalismo no combate aos patrões e ao Estado, solidariedade com as lutas de outros trabalhadores e uma organização sindical mais democrática. Eles a colocaram em prática com grande efetividade no meio da década, liderando as greves que iriam resultar na criação do CIO.

Naquela época, o Partido Comunista era reconhecido como a organização mais importante da minoria combativa. Ainda que subordinado à direção soviética desde o fim da década de 1920, o partido possuía orgulhosamente uma grande fatia de trabalhadores radicais.

O Partido Comunista foi especialmente influente durante o breve intervalo entre o ultra-esquerdismo do Terceiro Período (1928-1933), quando abandonou todo o trabalho nos sindicatos existentes, e o reformismo da Frente Popular (após 1936). Durante esses três anos, o Partido Comunista foi uma verdadeira alternativa à AFL.

Mas a aceitação da estratégia da Frente Popular pelo Partido Comunista cortou imediatamente as asas do CIO e da minoria combativa. Os comunistas foram transformados de defensores da independência política da classe trabalhadora em soldados rasos da campanha para a reeleição de Roosevelt em 1936.

Sob a nova estratégia, o Partido Comunista se juntou a direções sindicais como John L. Lewis e Philip Murray (que o partido enxergava como progressistas pelo seu apoio a Roosevelt e a um acordo com a União Soviética) e com a emergente burocracia dentro do CIO.

Para manter essa aliança e ganhar cargos de direção para os seus militantes, os sindicalistas comunistas usaram sua influência nos sindicatos do CIO para bloquear a disseminação de greves. O estrangulamento das táticas e formas de organização combativas que haviam sido cruciais para os sucessos do CIO em 1936-7 contribuiu para a derrota das greves metalúrgicas em 1937 e pôs fim à primeira onda de crescimento do CIO.

Durante a II Guerra Mundial, a integração dos comunistas na baixa e média burocracia do CIO se aprofundou, isolando-os ainda mais das bases de trabalhadores. Quando os líderes, tanto da AFL quanto do CIO, assinaram um compromisso de evitar as greves, os comunistas não apenas concordaram, mas se tornaram seus mais zelosos defensores.

Os comunistas denunciaram à justiça, por exemplo, a greve dos mineiros em 1943. Ainda mais trágico foi o papel de delegados sindicais, direções locais e militantes comunistas nas indústrias automotivas, siderúrgicas e de plásticos e borracha durante a guerra. Direções sindicais comunistas, muitas vezes eleitos por sua radicalidade, se uniram com as chefias para reprimir e demitir trabalhadores que deflagravam greves não autorizadas em busca de melhores salários e condições de trabalho.

No final da guerra, o papel de disciplinadores dos trabalhadores assumido pelos comunistas tinha criado um abismo entre eles e as bases do CIO.

O advento da Guerra Fria interrompeu a integração do Partido Comunista com a burocracia do CIO. Assumindo o papel de liderança do mundo capitalista, a classe dominante dos Estados Unidos rompeu sua aliança de guerra com a União Soviética e passou a buscar “conter” o comunismo.

Tanto Democratas quanto Republicanos usaram o espectro da ameaça comunista para erradicar qualquer forma de radicalismo no país. A direção do CIO sucumbiu também a esse apelo, perseguindo e expulsando os comunistas e outros radicais nas décadas de 1940 e 1950 em nome de sua aliança com o governo Truman.

Nas décadas seguintes à fusão da AFL e do CIO em 1955, o divórcio entre a política socialista e a vida da classe trabalhadora protegeu a burocracia sindical de qualquer oposição significativa.

Enquanto os burocráticos sindicatos de negociação alcançaram aumentos salariais e de direitos para os seus membros, sua dependência dos procedimentos de reclamação enfraqueceu sua capacidade de enfrentar a intensificação do ritmo de trabalho e a deterioração das condições de saúde e de segurança nos locais de trabalho.

Entre 1965 e 1975, muitos jovens trabalhadores, especialmente negros encorajados pelos movimentos sociais do período, desencadearam milhares de greves não oficiais, desafiaram lideranças sindicais encasteladas e forçaram figurões dos sindicatos a convocarem greves nacionais contra os patrões.
Ainda assim, a inexistência de uma organização política presente nacionalmente como o TUEL, enraizada nos locais de trabalho e capaz de unir essas rebeliões, significava que as lideranças sindicais poderiam continuar tranquilas.

Quando toda essa explosão se encerrou e os patrões retomaram a sua ofensiva, logo auxiliados pela recessão de 1980-1982, a capitulação das burocracias sindicais encontrou relativamente pouca oposição das bases de trabalhadores.

Uma guerra de um lado só

Nas décadas desde então, temos presenciado surtos de enfrentamentos massivos, mas nenhuma minoria combativa em larga escala.

O Transportadores por um Sindicato Democrático (Teamsters for a Democratic Union, TDU) permaneceu como a única oposição organizada nacionalmente a um sindicato já existente. Vários movimentos de reforma a partir da base surgiram, notadamente, o Novas Direções (New Directions) no Sindicato dos Transportadores da cidade de Nova Iorque (New York City Transport Workers Union) e a Coalizão de Educadores pela Base (Coalition of Rank and File Educators, CORE) na União dos Professores de Chicago.

Entretanto, a maioria das tentativas de construção de oposições pela base contra as políticas de recuo das direções sindicais foi derrotada, desfeita ou isolada em um único local. Esses são os amargos frutos do desaparecimento da minoria combativa.

Hoje, o caminho para retomar a resistência e o radicalismo da classe trabalhadora estadunidense passa por reconstruir uma minoria combativa, compromissada com políticas de solidariedade, democracia e independência. Na verdade, é esclarecedor que as únicas greves bem sucedidas dos últimos trinta anos foram produtos de organizações de base independentes como o TDU ou o CORE.

Socialistas precisam priorizar a reconstrução dessa camada de trabalhadores militantes, que hoje está reunida em torno do jornal Labor Notes, seus materiais e atividades. Qualquer projeto de crescimento dessa minoria militante necessita ir além da estrutura criada pelo NLRB, atiçando a determinação dos trabalhadores em ir contra a lei para construir uma resistência bem sucedida e organizar os desorganizados.

Mesmo que esse trabalho seja difícil e longo – nós não devemos esperar resultados rápidos nem fáceis – ele é essencial se quisermos ver uma mudança na correlação de forças entre as classes e a criação de uma grande audiência entre os trabalhadores para o radicalismo político.

18 de agosto de 2016

Quando nós amávamos Mussolini

Benito Mussolini e o secretário de Estado americano Henry Stimson, Roma, julho 1931

Os Estados Unidos e a Itália fascista: A ascensão da finança americana na Europa
por Gian Giacomo Migone, traduzido do italiano e com um prefácio de Molly Tambor
Cambridge University Press, 405 págs.

Tradução / No início dos anos 1960, em pleno refluxo do atlantismo do pós-guerra, Gian Giacomo Migone, descendente de uma família cosmopolita de diplomatas italianos, chegou a Harvard para estudar história. Como um católico liberal, seguidor de John F. Kennedy e admirador do Papa João XXIII, Migone escapava do conservadorismo e do neofascismo das universidades italianas do pós-guerra. Ele veio para os Estados Unidos em busca da promessa de democracia e novos desenvolvimentos em sua bolsa de estudos. O que ele encontrou foi algo mais complicado. Era o auge da luta pelos direitos civis e ele e outros estudantes estrangeiros aventuraram-se para o Sul para testemunhar os últimos dias de Jim Crow. No entanto, não era o presente da América que iria desestabilizar-lo, mas o passado e, em particular, a história recente da América em relação ao seu próprio país.

Em 1965, o tema do legendário seminário de Ernest May em Harvard, sobre relações exteriores da América, eram os anos 1920, e Migone recebeu o encargo de explorar a política da América para a Itália. Era missão delicada num duplo sentido. Os anos 1920 foram uma década comumente identificada com o isolacionismo americano, período durante o qual se dava por decidido que os América não tinham qualquer real política externa. E Itália, nos anos 1920, era o regime de Mussolini. A questão era como as administrações republicanas de Harding, Coolidge e Hoover, comprometidos com seu programa nacionalista de "normalidade" e modernização, haviam se envolvido com o primeiro esforço para construir uma ditadura fascista na Europa. Com a guerra do Vietnã em escalada no pano de fundo, foi encargo que abalaria as crenças ingênuas que o jovem Migone acalentava sobre o alinhamento da potência ocidental com/pela democracia.

Publicado em italiano em 1980, após muitos anos de pesquisa pioneira nos arquivos americanos e italianos, o livro de Migone estabeleceu-o na Itália como uma autoridade entre os estudiosos da esquerda-liberal da era fascista e lançou uma carreira que o levaria por meio da Universidade de Turim a um assento no Senado italiano. Mesmo assim, em tempos ainda antes da Internet e de Google Translate, a tese doutoral de Migone permaneceu praticamente desconhecida para leitores do mundo anglófono. Como outros trabalhos clássicos da historiografia internacional europeia dos anos 1960 e 1970, muitos dos quais centrados na América – em alemão, pensa-se logo em Hitler's Strategie, de Andreas Hillgruber; Aufrüstung oder Sicherheit, de Michael Geyer; e Die amerikanische Stabilisierungspolitik in Deutschland de Werner Link –, essa interpretação europeia do poder da América permaneceu praticamente ignorada na própria historiografia americana. E devemos agradecimentos à Cambridge University Press e a Molly Tambor, ela também historiadora da Itália do pós-guerra, por termos afinal essa excelente tradução.

O antifascismo é o mito fundador da república italiana depois de 1945. Mas não só uma ressentida minoria de italianos permanecia ligada à memória de Mussolini, como também, como Migone descobriu nos National Archives em Washington, a América só surpreendentemente tarde decidiram declarar Il Duce inimigo, no final da década dos 1930. No período entre guerras, diferente do que se viu depois de 1945, os americanos não assumiam que a democracia fosse destino natural de todos os estados da Europa Ocidental. Admiradores americanos de Mussolini iam das empresas de mídia de Hearst ao presidente da Universidade de Columbia, Nicholas Murray Butler, que deu uma plataforma à propaganda fascista na "Casa Italiana" no Upper West Side. Dois presidentes, Hoover e Roosevelt manifestaram aprovação e apoio ao regime de Mussolini. O fascismo prometia levar ordem e progresso à Itália, ao mesmo tempo em que mantinha ao largo qualquer ameaça vinda da esquerda.

Já em 1972, John Patrick Diggins, em seu Mussolini and Fascism: The View from America, revelara o entusiasmo que Mussolini gerava entre intelectuais americanos do campo progressista. O que o livro de Migone expõe a nu é que aquelas afinidades eram fundadas em mais do que só ideias e política. Por trás do palco, havia interesses financeiros que orquestravam o conúbio entre os EUA e o fascismo italiano. Como ele diz em seu prefácio, Migone pode não ter começado como um marxista, mas através da "leitura de documentos produzidos pelos bancos centrais e os bancos de investimento" às vezes ele se sentia como se pudesse "tornar-se um".


Um dos obstáculos que muito dificultaram que se reconhecesse mais amplamente as relações amistosas entre Wall Street e o fascismo italiano foi a visão generalizada sobre o período entre guerras como era de nacionalismo econômico. Mussolini é famoso pela defesa empenhada da autarquia e por triunfos como a drenagem dos pântanos de Pontine e a "batalha pelo grão" na agricultura. A Itália, por sua vez, foi severamente afetada pelas quotas impostas pela América no início dos anos 1920, que limitavam o número de imigrantes.

Mas políticas de desenvolvimento nacional absolutamente não eram incompatíveis com incentivar as interconexões comerciais e financeiras internacionais. Aqui se tem de tomar seriamente os adjetivos "nacional" e "internacional". As elites empresariais italianas jamais cogitaram admitir que o desenvolvimento econômico nacional fosse amputado da economia mundial. O efeito imediato da Primeira Guerra Mundial nem foi tanto desencadear uma desglobalização, quanto promover um rearranjo das interações econômicas internacionais. Se, antes de 1914, empresários visionários como Giuseppe Volpi procuravam a Alemanha em busca de assistência para desenvolver indústrias modernas na Itália, como usinas hidrelétricas, a partir de 1917 a economia italiana passou a depender de empréstimos da Grã-Bretanha e da América, os quais, em 1919 já chegavam a $2 bilhões e $1,65 bilhão respectivamente. Depois da Conferência de Paz de Paris, apesar do confronto que houve com Woodrow Wilson, por os italianos exigirem o controle sobre Fiume, os liberais italianos continuaram de olhos postos em Wall Street.

Tragicamente, após o fracasso de Wilson para convencer o Senado a ratificar o Tratado de Versalhes, a mente de América estava em outro luga. Por mais que o Senado e o Departamento de Estado estivessem interessados na estabilização europeia, o que realmente os preocupava era o destino da Alemanha. Foi o desastroso conflito franco-alemão no Ruhr que levou a América a se reengajar nos negócios europeus, no outono de 1923. Naquela altura, para a primeira geração dos liberais atlantistas da Itália, já era tarde demais. Mussolini tinha tomado o poder em outubro 1922.

Migone mostra como, com a Alemanha como prioridade de Washington, Mussolini posicionou seu governo como muito mais maleável que a França republicana, com vistas à nova hegemonia da América. Por mais que Mussolini rugisse seus resultados de guerra, não teve política agressiva contra a Alemanha. Deixou bem claro desde o início que compreendia o poder da América, e disse ao rei Vittorio Emanuele III em 1923, para empurrá-lo a fazer uma visita oficial à América:

"A volta do fluxo migratório para os EUA e a cooperação com o capital americano são dois elementos de importância vital para nós. Além das vantagens econômicas... seria imenso benefício para a Itália... por causa da indiscutível influência que podem ter sobre nossas relações com outros estados, dentre os quais, sobretudo, a Inglaterra."

Ao contrário dos políticos eleitos democraticamente que governavam em Paris, na ditadura de Mussolini na Itália a política financeira foi delegada a uma sucessão de empresários e tecnocratas. Ao contrário do francês, eles aceitaram os termos econômicos básicos estabelecidos pelo Congresso e articulados pelo secretário de Comércio, Herbert Hoover e Andrew Mellon no Tesouro. Circulando entre eles, como facilitadores onipresentes de conversas em ambos os lados, estavam banqueiros proeminentes e, acima de tudo, J. P. Morgan.

Em seu prefácio, Molly Tambor observa que uma das decisões mais difíceis que ela e Migone tiveram que fazer na versão de seu livro para o Inglês era como traduzir classe dirigente. Em atenção a sensibilidades modernas, rejeitaram a tradução mais óbvia "classe dominante," em favor de expressões como "elites" e "líderes de negócios". Mas mesmo através do filtro dessa tradução que aspira a ser despolitizada, o quadro que Migone pinta é muito claro. O novo poder da América nos anos 1920 baseava-se em sua economia e na projeção de uma visão americana de ordem internacional que ultrapassava a Liga das Nações: e no comando, estavam banqueiros norte-americanos. As questões cruciais da diplomacia italiana-americana não eram questões de democracia, mas de finanças. Tinham a ver com a quitação das dívidas de guerra da Itália e com a restauração do padrão ouro. E com a orientação fraterna de J.P. Morgan, o regime de Mussolini rapidamente aceitou os termos de acertos financeiros com a América. O acordo sobre dívida de guerra negociado em 1925 foi o mais generoso que a América firmou com qualquer de seus associados de tempos de guerra. E desencadeou um fluxo de investimento americano para a Itália que ainda acelerou depois de 1927, tão logo a Itália estabilizou-se sobre o padrão ouro.

O investimento total dos EUA na Itália fascista rapidamente ultrapassaram os $400 milhões. A destacar que, à altura de 1930, quando o presidente Hoover iniciou o movimento para restaurar a ordem mundial (começando com a conferência de Londres sobre controle de armas navais), a Itália fascista, depois do governo trabalhista de Ramsay MacDonald na Grã-Bretanha, era a parceira preferida de Washington na Europa. Quando o ministro de Relações Exteriores de Mussolini, o carismático ex-squadistra Dino Grandi, encontrou Hoover em 1931, o presidente disse ao seu hóspede italiano que a minoria expressiva de antifascistas na América devia ser ignorada: "Eles não existem para nós americanos, e nem devem existir para vocês."


O que destruiu a harmonia dos anos 1920 não foram as tendências crescentemente ditatoriais do regime de Mussolini, mas a Grande Depressão. O colapso do padrão ouro e o fim do empréstimo internacional romperam os laços de "soft power" que haviam contido o regime de Mussolini. Mussolini sempre falara de guerra e conquista, mas desde o incidente de Corfu em 1923, quando a Itália fora arrastada para uma crise diplomática e militar com a Grécia, em que disputavam aquela ilha, ele moderara suas ações de agressão a outros países. Em 1935 o expansionismo explodiu à plena luz. Com o ataque não provocado contra a Abissínia, Mussolini quebrou a ordem do entre guerras. Em seguida vieram a militarização da Rhineland por Hitler; o golpe de Franco na Espanha e a Anschluss da Áustria. Se ainda houvesse qualquer esperança de conter essa escalada, estaria em sanções rápidas e agressivas contra Mussolini por causa da Abissínia. Mas, em vez disso, as potências liberais vacilaram. Por quê?

Hitler disse a famosa frase que tinha visto os estadistas do Ocidente em Munique e eles eram "vermes". Nisso, pelo menos, Churchill concordava. Para Migone, a lógica de apaziguamento não era uma questão de fraqueza moral. Foi sistemática. A ação de não impor sanções aos fascistas foi uma espécie de eco abafado de uma estratégia de hegemonia financeira antes poderosa. Consideradas as políticas dos anos 1920, a recusa da América, que se posicionou contra até as mínimas sanções impostas pela Liga das Nações, era totalmente previsível. Em vez de sanções, as importações crescentes de veículos motorizados e petróleo deram forte impulso à agressão assassina da Itália, contra o único membro africano da Liga das Nações, que era u, estado independente. A principal preocupação do Departamento de Estado não era punir a violação da lei internacional, mas o medo de que se Mussolini viesse a ser humilhado o governo fascista entrasse em colapso e a Itália se tornasse palco de uma revolução.

Examinar os movimentos pró-paz (ou a ausência deles) contra o pano de fundo das relações financeiras e políticas nos anos 1920 é certamente muito esclarecedor. Mas também revela uma unilateralidade na história da Migone. Ele não leva suficientemente a sério a confusão e a surpresa em Washington e Londres, ao responderem à repentina agressão de Mussolini. Mas, e o que Mussolini quereria na Abissínia? Era uma questão real. Conforme o modelo aceito de hegemonia capitalista, à qual os americanos acreditavam que eles mesmos estivessem visando com seus amigos fascistas, não havia resposta óbvia. Nem Migone cuida de nos oferecer alguma. Em seu esforço para refutar as leituras excessivamente ideológicos do fascismo como uma religião política violenta, ele deixa de nos dar um relato sistemático de agressão fascista.

A violência que explodiu em 1935 teve várias fontes. Mas conforme o próprio argumento de Migone ela pode ser mais bem interpretada como o verso da cumplicidade que o próprio autor descreve tão poderosamente nos anos 1920. A insurgência "ou faz ou morre" foi um tipo diferente de reação à nova ordem mundial criada em 1919. É impossível dar conta da singularidade do regime de Mussolini – ou do regime de Hitler – se não se reconhece essa dualidade. Il Duce não apenas não se curvou ante o poder do Império Britânico e da América: ele também conspirou contra as duas potências.

O modo como responder a essa violenta insurgência foi um verdadeiro desafio para a estratégia dos governos liberais depois da Primeira Guerra Mundial. A preferência deles pela paz tinha fundamentos sólidos. Interesses sociais e econômicos e um não-gostar de guerra também participaram. O potencial militar de uma aliança Alemanha-Itália-Japão não seria ameaça que se pudesse tratar com desdém. Mas o que levou realmente a amolecer contra os fascistas nem foi tanto o medo da derrota; foi, mais, o custo ruinoso de vencer novamente. A vitória das potências da Entente em 1918 custou preço tão alto que, fundamentalmente, pôs em questão o valor da guerra como ferramenta de poder político. Desde a conferência naval em Washington em 1921, a estratégia de ambos, americanos e britânicos consistira em solidificar a dominação estratégica nos oceanos. Em 1935, se quisessem afirmar essa dominação, a superioridade da frota britânica sobre a frota italiana teria sido enorme. Mas impor bloqueio total requereria mobilização política em casa e alianças estratégicas com França e América, que esses países não haviam oferecido e que os britânicos não desejavam assumir.

O que faltava era um sistema confiável de contenção, uma força tão formidável e tão clara em sua missão política e estratégica que tornaria implausível qualquer esforço para derrubar o status quo. Desde a Conferência de Paz de Paris, o governo francês clamava exatamente por tal sistema – mediante alguma combinação de exército da Liga das Nações, mecanismos automáticos de sanções e garantias de segurança com garras reais. Mas foi precisamente essa insistência que tornou a República Francesa tão intolerável para Washington.

O desastre subsequente revelaria as limitações de uma hegemonia financeira unidimensional. Para dar segurança a uma ordem liberal assim tão conveniente, seria necessária uma mistura muitíssimo mais densa de política, ideologia e poder militar. Depois de 1945, a promoção, pelos EUA, da integração europeia e do papel de âncora que teria na OTAN foram dois elementos vitais da nova ordem. O anticomunismo solidificou o apoio político doméstico. O New Look nuclear de Eisenhower, por mais horrendo pensamento que fosse, tornou a contenção financeiramente possível. Como o revisionismo de Migone energeticamente nos faz lembrar, outro elemento da ordem do pós-guerra foi um serviço de reescrever a história dos anos 1930s que fez descer um véu de silêncio sobre o fato de que bem recentemente, logo ali, em 1935, instituições tão crucialmente importantes como J.P. Morgan trabalhavam em relação muito próxima com homens que hoje são tratados como bandidos fascistas.

O trabalho de "acertar as contas com o passado" iniciado por Migone e sua geração, assim, iluminou, tanto o período entre guerras quanto as fundações políticas da ordem pós-guerra. E embora o fascismo tenha saído de cena, é o fio cortante da auto-reflexão crítica que dá ao livro de Migone sua relevância para os desenvolvimentos recentes. Qual é a relação entre democracia e capitalismo financeiro internacionalizado? Até que ponto podemos enfrentar as tensões entre um e outro? Na era do Vietnã e Pinochet, Migone colocou essas perguntas sobre o relacionamento dos Estados Unidos com a Itália de Mussolini. Elas ainda permanecem conosco até hoje. E ao enfrentá-las precisamos de toda a ajuda que pudermos obter. Embora o retorno das humanidades à "história do capitalismo" seja um efeito colateral bem-vindo da crise financeira, décadas de abandono cobraram seu preço em nossas faculdades críticas e analíticas. Vai nos fazer muito bem aguçar nossa inteligência sobre os esforços de uma geração anterior para compreender a economia política do capitalismo internacional. O lúcido e poderoso livro de Migone é um excelente ponto de partida.

Sobre o autor

Adam Tooze é o diretor do Instituto Europeu de Columbia. Ele é o autor de Crashed: How a Decade of ­Financial Crises Changed the World e atualmente está trabalhando em uma história econômica da emergência climática. (Fevereiro de 2020)

17 de agosto de 2016

Contradições entre capital e cuidado

Nancy Fraser tracks the reconfiguration of the relations of social reproduction under successive regimes of accumulation — "separate spheres", male breadwinner, dual-income household. Are the exactions of financialized capitalism now serving to undermine its lifeworld?

Nancy Fraser



Tradução / A “crise do cuidado” é, presentemente, uma importante questão publicamente debatida3. Frequentemente associada às ideias de “pobreza de tempo”, “equilíbrio entre trabalho e família” e “esgotamento social”, essa crise diz respeito às pressões que, provindas de diversas direções, estão a espremer, atualmente, um conjunto-chave de capacidades sociais: as capacidades sociais disponíveis para dar à luz e criar crianças, cuidar de amigos e familiares, manter lares e comunidades mais amplas e, de modo mais geral, sustentar conexões4. Historicamente, esses processos de “reprodução social” foram e continuam a ser representados como trabalho das mulheres, embora também os homens sempre tenham desempenhado uma parte dele. Tal trabalho, constituído tanto de labor afetivo como de labor material e frequentemente realizado sem paga, é indispensável para a sociedade. Sem ele, não poderia haver qualquer cultura, qualquer economia, qualquer organização política. Nenhuma sociedade que mine a reprodução social de modo sistemático pode durar por muito tempo. Hoje, porém, uma nova forma de sociedade capitalista está fazendo exatamente isso. O resultado é uma crise enorme, não só do cuidado, mas da reprodução social nesse sentido mais amplo.

Compreendo essa crise como um aspecto de uma “crise geral” que também abrange as vertentes econômica, ecológica e política, vertentes todas que tanto se entrecruzam como se exacerbam mutuamente. A vertente relacionada à reprodução social é uma importante dimensão dessa crise geral, mas, frequentemente, é negligenciada nas discussões atuais, que enfocam, sobretudo, os perigos econômicos ou ecológicos. Esse “separatismo crítico” é problemático; a vertente social é tão central
para a crise mais ampla que nenhuma das outras pode ser apropriadamente compreendida caso seja dela abstraída. No entanto, o inverso também é verdadeiro. A crise da reprodução social não é independente e não pode ser adequadamente entendida caso seja isolada. Como, então, ela deveria ser compreendida? O que defendo é que a “crise do cuidado” é mais bem interpretada como uma expressão mais ou menos aguda das contradições sociorreprodutivas do capitalismo financeirizado. Essa formulação sugere duas ideias. Em primeiro lugar, as atuais pressões sobre o cuidado não são acidentais, mas têm profundas raízes sistêmicas na estrutura de nossa ordem social, que caracterizo aqui como capitalismo financeirizado. Não obstante – e esse é o segundo ponto –, a atual crise da reprodução social indica que há algo podre não só na forma atual do capitalismo, a forma financeirizada, mas na sociedade capitalista per se.

O que defendo é que toda forma de sociedade capitalista incuba uma “tendência de crise” (ou contradição) sociorreprodutiva profundamente arraigada: de um lado, a reprodução social é uma condição de possibilidade da acumulação de capital continuada; de outro, a orientação do capitalismo para a acumulação ilimitada tende a desestabilizar os próprios processos de reprodução social dos quais ele depende. Essa contradição sociorreprodutiva do capitalismo está na raiz da chamada crise do cuidado. Conquanto seja inerente ao capitalismo enquanto tal, ela assume um aspecto diferente e distintivo em cada forma historicamente específica da sociedade capitalista – no capitalismo liberal, concorrencial, do século XIX; no capitalismo administrado pelo Estado do período do pós-guerra; e no capitalismo financeirizado neoliberal de nosso tempo. Os déficits de cuidado que experienciamos hoje são a forma tomada por essa contradição na terceira e mais recente fase do desenvolvimento capitalista.

Para desenvolver essa tese, proponho, em primeiro lugar, uma explicação da contradição social do capitalismo enquanto tal, em sua forma geral. Em segundo lugar, esboço uma explicação de seu desdobramento histórico nas duas fases anteriores do desenvolvimento capitalista. Por último, sugiro uma leitura dos “déficits de cuidado” hodiernos como expressões da contradição social do capitalismo em sua presente fase, a fase financeirizada.

Parasitando o mundo da vida5

A maioria dos analistas da crise contemporânea põe em foco as contradições internas ao sistema econômico capitalista. No coração desse sistema – eles defendem –, está encravada uma tendência à autodesestabilização que se expressa em crises econômicas periódicas. Guardados os limites de seu alcance, esse modo de compreender a crise contemporânea é correto; no entanto, ele não dá conta de retratar todas as tendências de crise inerentes ao capitalismo. Adotando uma perspectiva economicista, ele compreende o capitalismo de maneira demasiadamente estreita, como um sistema econômico simpliciter. Em vez disso, adotarei uma compreensão ampliada do capitalismo que abarca tanto sua economia oficial como as condições “não econômicas” de fundo dessa economia. Tal compreensão ampliada nos permite conceituar e criticar todo o espectro das tendências de crise do capitalismo, incluindo as que têm como eixo a reprodução social.

O que argumento é que o subsistema econômico do capitalismo depende de atividades sociorreprodutivas que lhe são externas e que constituem uma de suas condições de possibilidade de fundo. Entre essas condições de fundo, também se incluem as funções de governação exercidas pelos poderes públicos e a disponibilidade da natureza como uma fonte de “insumos produtivos” e como um “esgoto” para o lixo da produção6. Aqui, no entanto, enfocarei o modo como a economia capitalista
depende de – poderíamos dizer: parasita – atividades de prover, cuidar e interagir que produzem e mantêm vínculos sociais, apesar de essa economia não lhes conferir qualquer valor monetizado e de tratá-las como se custassem nada. Chamada quer de “cuidado”, quer de “labor afetivo”, quer de “subjetivação”, tal atividade forma os sujeitos humanos do capitalismo, sustentando-os como seres naturais dotados de corpo, ao mesmo tempo que os constitui também como seres sociais, formando
seu habitus e o ethos cultural no qual eles se movem. O trabalho de dar à luz e socializar as crianças é central para esse processo, assim como cuidar dos idosos, manter lares, construir comunidades e sustentar os sentidos compartilhados, as disposições afetivas e os horizontes de valor que dão suporte à
cooperação social. Em sociedades capitalistas, muito dessa atividade, embora não toda ela, prossegue fora do mercado – em lares, bairros, associações da sociedade civil, redes informais e instituições públicas, tais como as escolas; e relativamente pouco dela toma a forma de trabalho remunerado. A atividade sociorreprodutiva não remunerada é necessária para a existência do trabalho remunerado, para a acumulação de mais-valor e para o funcionamento do capitalismo enquanto tal. Nada disso
poderia existir caso faltassem o trabalho doméstico, a criação de crianças, a escolarização, o cuidado afetivo e uma gama de outras atividades que servem para produzir novas gerações de trabalhadores e repor as existentes, bem como para manter vínculos sociais e compreensões compartilhadas. A reprodução social é uma indispensável condição de fundo para que seja possível a produção econômica numa sociedade capitalista7.

Desde, pelo menos, o período industrial, no entanto, as sociedades capitalistas separam o trabalho de reprodução social do de produção econômica. Associando o primeiro às mulheres e o último aos homens, elas remuneram as atividades “reprodutivas” na moeda do “amor” e da “virtude”, ao passo que compensam o “trabalho produtivo” na do dinheiro. Desse modo, as sociedades capitalistas criaram uma base institucional para formas novas, modernas, de subordinação das mulheres. Arrancando o labor reprodutivo do universo mais amplo das atividades humanas, no qual o trabalho das mulheres tivera, antes, um lugar reconhecido, as sociedades capitalistas o relegaram a uma “esfera doméstica” institucionalizada havia pouco, esfera na qual a importância social que ele tem foi obscurecida. E,
nesse mundo novo, no qual o dinheiro se tornou um primordial veículo de poder, o fato de ele não ser pago selou a questão: as que desempenham esse trabalho estão estruturalmente subordinadas
aos que auferem remunerações em espécie, ao mesmo tempo que o trabalho delas fornece uma precondição necessária para o trabalho remunerado – e ao mesmo tempo que o trabalho delas também se torna saturado de e mistificado por novos ideais domésticos de feminilidade.

Em geral, portanto, as sociedades capitalistas separam a reprodução social da produção econômica, associando a primeira às mulheres e obscurecendo sua importância e valor. Paradoxalmente, no entanto, tais sociedades fazem com que suas economias oficiais sejam dependentes dos mesmos processos de reprodução social cujo valor elas denegam. Essa peculiar relação de, ao mesmo tempo, separação, dependência e denegação é uma fonte ínsita de instabilidade: de um lado, a produção econômica capitalista não é autossustentável, senão que depende da reprodução social; de outro, seu impulso para a acumulação ilimitada ameaça desestabilizar os próprios processos e capacidades de reprodução dos quais o capital – assim como o resto de nós – necessita. Com o decorrer do tempo, o efeito, como veremos, pode ser expor ao perigo as condições sociais necessárias da economia capitalista. Aqui, de fato, encontra-se uma “contradição social” inerente à estrutura profunda da sociedade capitalista. Da mesma maneira que as contradições econômicas que os marxistas puseram em relevo, também essa contradição baseia uma tendência de crise. Nesse caso, no entanto, a contradição não está localizada “dentro” da economia capitalista, mas na fronteira que separa a produção da reprodução e, simultaneamente, conecta aquela a esta. Nem intraeconômica nem intradoméstica, trata-se de uma contradição entre esses dois elementos constitutivos da sociedade capitalista. Frequentemente, é claro, essa contradição é silenciosa, e a respectiva tendência de crise permanece obscurecida. Ela se agudiza, todavia, quando o impulso do capital para a expansão da acumulação se desprende de suas bases sociais e se volta contra elas. Nesse caso, a lógica da produção econômica passa por cima da lógica da reprodução social, desestabilizando os próprios processos dos quais o capital depende – comprometendo as capacidades sociais, tanto as domésticas como as públicas, que são necessárias para sustentar a acumulação em longo prazo. Destruindo suas próprias condições de possibilidade, a dinâmica de acumulação do capital, realmente, come seu próprio rabo.

Realizações históricas

Essa é a estrutura da tendência geral de crise social do “capitalismo enquanto tal”. No entanto, a sociedade capitalista só existe em formas historicamente específicas, ou regimes de acumulação. De fato, a organização capitalista da reprodução social passou por grandes viradas históricas, frequentemente em decorrência da contestação política – especialmente nos períodos de crise, quando os atores sociais travam lutas a respeitodas fronteiras que estremam a “economia” da “sociedade”, a
“produção” da “reprodução” e o “trabalho” da “família”, conseguindo, por vezes, redefini-las. Tais “lutas fronteiriças” – é assim que as tenho chamado – são tão centrais para as sociedades capitalistas quanto as lutas de classes analisadas por Marx, e as viradas que elas produzem marcam transformações epocais8. Uma perspectiva que coloque no primeiro plano essas viradas pode distinguir, ao menos, três regimes de reprodução social e produção econômica na história do capitalismo.

  • O primeiro é o regime oitocentista do capitalismo liberal concorrencial. Combinando a exploração industrial no centro europeu com a expropriação colonial na periferia, esse regime tendia a deixar os trabalhadores reproduzir-se “autonomamente”, fora dos circuitos de valor monetizado, ao passo que os Estados olhavam e não se envolviam. Mas ele também criou um imaginário novo, burguês, em torno da vida familiar. Representando a reprodução social como o nicho das mulheres no interior da família privada, esse regime elaborou o ideal das “esferas separadas”, ao mesmo tempo que privava a maioria das pessoas das condições necessárias para realizá-lo. 
  • O segundo regime é o capitalismo administrado pelo Estado do século XX. Tendo como bases a produção industrial em grande escala e o consumismo doméstico no centro e sendo sustentado pela expropriação colonial e pós-colonial ainda em andamento na periferia, esse regime internalizava a reprodução social através do provimento de bem-estar social por Estados e empresas. Modificando o modelo vitoriano das esferas separadas, ele promovia o ideal aparentemente mais moderno do “salário com que se consegue manter uma família”9⁕, ainda que, mais uma vez, relativamente poucas famílias pudessem alcançar tal ideal.
  • O terceiro regime é o capitalismo financeirizado globalizador do tempo presente. Esse regime desloca a indústria para regiões onde as remunerações são mais baixas, recruta as mulheres para a força de trabalho paga e promove a redução dos investimentos estatais e empresariais em bem-estar social. Expelindo de si o trabalho de cuidado e lançando-o sobre as famílias e as comunidades, ele diminui, simultaneamente, as capacidades de que elas dispõem para desempenhar esse trabalho. O resultado, em meio à desigualdade crescente, é uma organização dualizada da reprodução social, mercadorizada para quem pode pagar para dela usufruir, privatizada para quem não o pode – tudo lustrado pelo ideal ainda mais moderno da “família de dois ganhadores de dinheiro”.

Em cada regime, portanto, as condições sociorreprodutivas para a produção capitalista assumem uma forma institucional diferente e incorporam uma ordem normativa diferente: primeiro, as “esferas separadas”; depois, o “salário com que se consegue manter uma família”; agora, a “família de dois ganhadores de dinheiro”. Em cada caso, além do mais, a contradição social da sociedade capitalista assume um aspecto diferente, encontrando expressão num conjunto diferente de fenômenos de crise. Em cada regime, por último, a contradição social do capitalismo incita formas diferentes de luta social – lutas de classes, decerto, mas também lutas fronteiriças – e ambas também se entrelaçam com outras lutas, lutas destinadas a emancipar as mulheres, os escravizados e os povos colonizados.

O processo de produção de donas de casa10

Consideremos, primeiro, o capitalismo liberal concorrencial do século XIX. Nesse período, os imperativos de produção e os de reprodução pareciam estar em contradição direta uns com os outros. Nos primeiros polos manufatureiros do centro capitalista, os industrialistas empurraram mulheres e crianças para fábricas e minas, ávidos por seu trabalho barato e sua suposta docilidade. Recebendo uma ninharia como paga e obrigadas a trabalhar por extensas horas em condições insalubres, essas trabalhadoras se tornaram ícones da desconsideração do capital para com as relações e as capacidades sociais que lhe sustentavam a produtividade (Tilly, Scott, 1987). O resultado foi uma crise em, ao menos, dois níveis: de um lado, uma crise de reprodução social entre as classes pobres e trabalhadoras, cujas capacidades de subsistência e reposição eram tensionadas até o limite; de outro, um pânico moral entre as classes médias, que se escandalizavam com o que compreendiam como a “destruição da família” e a “dessexualização” das mulheres proletárias. Tão árdua era essa situação que mesmo Marx e Engels, críticos tão argutos, confundiram esse primeiro conflito frontal entre a produção econômica e a reprodução social com um ponto de estrangulamento. Imaginando que o capitalismo teria entrado em sua crise terminal, eles acreditavam que, ao lacerar as famílias da classe trabalhadora, o sistema também estaria erradicando a base da opressão sofrida pelas mulheres (Marx, Engels, 1978, p. 487-488; Engels, 1902, p. 90-100). Mas o que, na realidade, veio a suceder foi exatamente o contrário: com o decorrer do tempo, as sociedades capitalistas encontraram recursos para administrar essa contradição – em parte, criando “a família” em sua restrita forma moderna; inventando sentidos novos, intensificados, para a diferença de gênero; e modernizando a dominação masculina.

O processo de ajuste começou, no centro europeu, com a legislação protetiva. A ideia era estabilizar a reprodução social por meio da limitação da exploração das mulheres e das crianças no trabalho fabril (Woloch, 2015). Tendo como ponta de lança reformadores oriundos da classe média em aliança com nascentes organizações de trabalhadores, essa “solução” refletia um amálgama complexo de diferentes motivos. Um dos objetivos, celebremente descrito por Karl Polanyi (2001, p. 87,138-139, 213), era defender a “sociedade” contra a “economia”. Outro era atenuar a ansiedade a respeito do “nivelamento dos gêneros”. Mas esses motivos também estavam entrelaçados com algo mais: com uma insistente defesa da autoridade masculina sobre as mulheres e as crianças, especialmente no interior da família (Baron, 1981). Por conseguinte, a luta para assegurar a integridade da reprodução social se enredou na defesa da dominação masculina.

O efeito pretendido por essa luta, no entanto, era o silenciamento da contradição social no centro capitalista – aomesmo tempo que a escravidão e o colonialismo a elevavam a um grau extremo na periferia. Criando o que Maria Mies (2014, p. 74) chamou de “processo de produção de donas de casa” como a outra face da colonização, o capitalismo liberal concorrencial elaborou um novo imaginário em torno dos gêneros, imaginário que tinha como eixo as esferas separadas. Figurando a mulher como “o anjo do lar”, os proponentes desse imaginário intentavam criar um lastro estabilizador para a volatilidade da economia. O mundo da produção, um mundo de competição renhida, devia ser flanqueado por um “porto seguro no mundo desalmado” (Zaretsky, 1986; Coontz, 1988). Desde que cada lado se mantivesse na esfera que lhe era designada como própria e servisse como complemento do outro, o conflito potencial entre eles se manteria em segredo.

Na realidade, essa “solução” se mostrou bamba. A legislação protetiva não podia assegurar a reprodução do trabalho quando os salários permaneciam abaixo do nível necessário para manter uma família; quando os cortiços abarrotados e encerrados na poluição inviabilizavam a privacidade e causavam danos aos pulmões; quando o próprio emprego (caso houvesse emprego) estava sujeito a flutuações descontroladas devido às falências, às quebras do mercado de títulos e aos pânicos financeiros. E tampouco tais arranjos satisfizeram os trabalhadores. Protestando por salários mais altos e melhores condições de trabalho, eles formaram sindicatos, puseram-se em greve e se filiaram a partidos trabalhistas e socialistas. Dilacerado pelo conflito de classes abrangente e cada vez mais agudo, o futuro do capitalismo parecia qualquer coisa, menos seguro.

As esferas separadas também se mostraram problemáticas. Mulheres pobres, racializadas e oriundas da classe trabalhadora não estavam em posição de satisfazer os ideais vitorianos de vida doméstica; se a legislação protetiva mitigava sua exploração direta, ela não provia qualquer apoio material ou compensação dos salários perdidos. E tampouco as mulheres de classe média que podiam conformar-se aos ideais vitorianos estiveram sempre contentes com sua situação, que combinava o conforto material e o prestígio moral com a menoridade jurídica e a dependência institucionalizada. Para ambos os grupos, a “solução” das esferasseparadas viera, sobretudo, em prejuízo das mulheres. Mas ela também jogava um grupo contra o outro – o que é exemplificado pelos conflitos oitocentistas a respeito da prostituição, que perfilaram as preocupações filantrópicas das mulheres da classe média vitoriana contra os interesses materiais de suas “irmãs decaídas” (Walkowitz, 1980; Hobson, 1990).

Uma dinâmica diferente desdobrava-se na periferia. Ali, dado que o colonialismo extrativista devastava as populações subjugadas, nem as esferas separadas nem a proteção social tinham lugar. Longe de buscar proteger as relações indígenas de reprodução social, as potências metropolitanas promoviam, de modo ativo, sua destruição. Os camponeses eram saqueados, suas comunidades eram destroçadas, para que fossem fornecidos a comida, os têxteis, os minerais e a energia baratos sem os quais a exploração dos trabalhadores industriais nas metrópoles não poderia ter sido lucrativa. Nas Américas, enquanto isso, as capacidades reprodutivas das mulheres escravizadas eram instrumentalizadas para os cálculos de lucratividade dos senhores da lavoura latifundiária, monocultora, exportadora e baseada no trabalho escravizado, senhores que, de modo rotineiro, despedaçavam as famílias de escravizados ao venderem seus membros para donos diferentes (Davis, 1972). As crianças nativas, além disso, eram arrancadas de suas comunidades, recrutadas para escolas missionárias e submetidas a disciplinas coercitivas de assimilação (Adams, 1995; Churchill, 2004). Quando racionalizações se faziam necessárias, o estado “retrógrado e patriarcal” dos arranjos indígenas pré-capitalistas de parentesco servia muito bem. Também aqui, entre os colonialistas, as mulheres filantropas encontraram uma plataforma pública, urgindo com “os homens brancos para que salvassem as mulheres marrons dos homens marrons” (Spivak, 1988, p. 305). 

Tanto no cenário da periferia como no do centro, os movimentos feministas se viram negociando um campo minado político. Rejeitando o status jurídico de mulher casada sob a proteção e a autoridade de seu marido11⁕, de um lado, e as esferas separadas, de outro, ao mesmo tempo que reivindicavam os direitos a votar, a recusar-se a fazer sexo, à propriedade privada, a firmar contratos, a exercer profissões e a controlar suas próprias remunerações, as feministas liberais pareciam valorizar mais a aspiração “masculina” à autonomia que os ideais “femininos” de criar e ajudar a desenvolver. E, nesse ponto, as feministas socialistas, que com aquelas contendiam, estavam basicamente de acordo, apesar de não concordarem em muitos outros pontos. Concebendo o acesso das mulheres ao trabalho assalariado como a rota para a emancipação, também as feministas socialistas preferiram os valores “masculinos” associados à produção aos valores associados à reprodução. É certo que essas associações eram ideológicas, mas, por trás delas, havia uma intuição profunda: apesar das novas formas de dominação que trazia, a erosão das relações tradicionais de parentesco operada pelo capitalismo continha um momento emancipatório. 

Apanhadas por um dilema, muitas feministas não encontraram qualquer respaldo significativo no duplo movimento de Polanyi: enquanto o movimento da mercadorização desconsiderava a reprodução social, o contramovimento da proteção social se atrelava à dominação masculina. Não podendo simplesmente rejeitar nem abraçar a ordem liberal, elas precisavam de uma terceira alternativa, que elas chamaram de emancipação. Na medida em que puderam dar carne a esse termo, as feministas, efetivamente, explodiram a configuração polanyiana dualista e a substituíram pelo que podemos chamar de um “movimento triplo”. Nesse conflito trilateral, os proponentes da proteção e os da mercadorização se contrapunham não só uns aos outros, mas também aos partidários da emancipação: às feministas, por certo, mas também aos socialistas, aos abolicionistas e aos anticolonialistas, todos dos quais se empenhavam em jogar as duas forças polanyianas uma contra a outra, embora conflitassem, ao mesmo tempo, entre si. Ainda que promissora na teoria, tal estratégia era difícil de implementar. À medida que os esforços para “proteger a sociedade da economia” eram identificados com a defesa da hierarquia de gêneros, a oposição feminista à dominação masculina podia facilmente ser interpretada como endossando as forças econômicas que devastavam a classe trabalhadora e as comunidades periféricas. Essas associações se mostrariam surpreendentemente duradouras, muito depois de ocapitalismo liberal concorrencial haver colapsado sob o peso de suas múltiplas contradições, em meio às guerras interimperialistas, às depressões econômicas e ao caos financeiro internacional – dando lugar, em meados do século XX, a um novo regime, o do capitalismo administrado pelo Estado.

Fordismo e o salário com que se consegue manter uma família

Emergindo das cinzas da Grande Depressão e da Segunda Guerra Mundial, o capitalismo administrado pelo Estado aplacou a contradição entre a produção econômica e a reprodução social de um modo diferente – recrutando o poder estatal para o lado da reprodução. Assumindo alguma responsabilidade pública pelo “bem-estar social”, os Estados desse período buscaram combater os efeitos corrosivos que sobre a reprodução social exerciam não só a exploração, mas também o desemprego em massa. Esse objetivo foi abraçado pelos Estados de bem-estar social democráticos do centro capitalista e, igualmente, pelos Estados desenvolvimentistas da periferia, cuja independência era recente – apesar das desiguais capacidades que eles tinham para realizar tal objetivo.

Mais uma vez, os motivos eram heterogêneos. Uma camada formada pelas elites esclarecidas viera a crer que o interesse de curto prazo do capital em sacar lucros máximos tinha de ser subordinado às exigências de longo prazo da sustentação da acumulação no decorrer do tempo. A criação do regime
administrado pelo Estado dizia respeito, sobretudo, a salvar o sistema capitalista de suas próprias propensões autodesestabilizadoras – bem como do espectro da revolução num período de mobilização massiva. A produtividade e a lucratividade exigiam o cultivo “biopolítico” de uma força de trabalho saudável, educada e com interesse no sistema, em oposição a uma turba maltrapilha revolucionária (Foucault, 1991; Foucault, 2010, p. 64). O investimento público em assistência à saúde, educação
escolar, creches e aposentadorias, suplementado pelas prestações realizadas pelas empresas, era compreendido como uma necessidade num tempo em que as relações capitalistashaviam penetrado tanto a vida social que as classes trabalhadoras já não possuíam os meios para reproduzir-se por si mesmas. Nessa situação, a reprodução social tinha de ser internalizada, trazida para dentro do domínio oficialmente administrado da ordem capitalista.

Esse projeto encaixava com a nova problemática da “demanda” econômica. Objetivando suavizar os ciclos de boom e recessão próprios do capitalismo, os reformadores econômicos buscaram assegurar o crescimento contínuo possibilitando aos trabalhadores no centro capitalista cumprir, duplamente, seu dever como consumidores. Aceitando tanto a sindicalização, que trouxe remunerações mais altas, como os desembolsos do setor público, que geraram empregos, os criadores de políticas públicas reinventaram o lar como um espaço privado para o consumo doméstico de objetos de uso diário produzidos em massa (Ross, 1996; Hayden, 2003; Ewen, 2008). Ligando a linha de montagem ao consumismo das famílias da classe trabalhadora, de um lado, e à reprodução apoiada pelo Estado, de outro, o modelo fordista forjou uma nova síntese de mercadorização e proteção social – projetos que Polanyi considerara antitéticos.

Mas foram, acima de tudo, as classes trabalhadoras – tanto mulheres como homens – que, movidas por razões próprias, atuaram como a ponta de lança da luta pelo provimento público de bem-estar social. Para elas, o que estava em questão era o status de membros plenos da sociedade enquanto cidadãos
democráticos – tratava-se, portanto, de dignidade, direitos, respeitabilidade e bem-estar material, e tudo isso era compreendido como requerendo uma vida familiar estável. Assim, ao abraçarem a social-democracia, as classes trabalhadoras também estavam valorizando a reprodução social e opondo-a
ao dinamismo, que a tudo consumia, da produção econômica. De fato, elas estavam votando a favor da família, do país e do mundo da vida, contra a fábrica, o sistema e a máquina. Diferentemente da legislação protetiva do regime liberal, o acordo capitalista-estatal resultou de um compromisso entre classes e representava um avanço democrático. Além do mais, diferentemente do regime precedente, os novos arranjos serviram, ao menos para alguns e por certo tempo, para estabilizar a reprodução social. Para os trabalhadores etnicamente majoritários no centro capitalista, eles amenizaram as pressões materiais sobre a vida familiar e promoveram a inclusão política. 

Mas, antes de corrermos a proclamar uma era dourada, deveríamos registrar as exclusões constitutivas que tornaram possíveis essas realizações. Assim como antes, a defesa da reprodução social no centro estava entrelaçada com o (neo)imperialismo; os regimes fordistas financiaram os direitos sociais, em parte, com a expropriação contínua na periferia – incluindo a “periferia dentro do centro” –, que persistia sob formas velhas e novas depois da descolonização12. Enquanto isso, os Estados pós-coloniais apanhados na mira da Guerra Fria direcionavam a maior parte de seus recursos, já depauperados pela predação imperialista, para grandes projetos desenvolvimentistas, que implicavam, frequentemente, a expropriação de “seus próprios” povos indígenas. A reprodução social, para a grande maioria na periferia, permanecia externa, pois as populações rurais eram deixadas ao léu para proverem a si mesmas. Ademais, assim como seu predecessor, o regime administrado pelo Estado estava entrelaçado com a hierarquia racial: a seguridade social estadunidense excluía os trabalhadores domésticos e agrícolas, basicamente impedindo que muitos afro-americanos acessassem os direitos sociais (Quadagno, 1994; Katznelson, 2005). E a divisão racial do trabalho reprodutivo, iniciada durante a escravidão, assumiu um novo aspecto sob a legislação Jim Crow, tendo em conta que as mulheres de cor encontravam trabalho mal remunerado na criação das crianças e na limpeza dos lares de famílias “brancas”, em detrimento de suas próprias famílias (Jones, 1985; Glenn, 2010).

E tampouco a hierarquia de gêneros estava ausente desses arranjos. Durante certo período – aproximadamente, dos anos 1930 até o final dos anos 1950 –, quando os movimentos feministas não gozavam de muita visibilidade pública, quase ninguém contestava a opinião segundo a qual a dignidade da classe trabalhadora requereria “o salário com que se consegue manter uma família”, a autoridade masculina no lar e um forte senso da diferença de gênero. Por conseguinte, a ampla tendência do capitalismo administrado pelo Estado nos países do centro era valorizar o modelo heteronormativo da família marcada por um viés de gênero13 que atribuía ao homem a posição de arrimo de família e à mulher a de dona de casa. O investimento público na reprodução social reforçava essas normas. Nos Estados Unidos, o sistema de bem-estar social tomou uma forma dualizada, dividida entre uma estigmatizada assistência aos pobres para as mulheres e as crianças (“brancas”) que não tinham acesso ao salário de um homem, de um lado, e uma respeitável seguridade social para os que eram concebidos como “trabalhadores”, de outro (Fraser, 1989; Nelson, 1985; Pearce, 1979; Brenner, 1991). Por sua vez, os arranjos europeus estabeleciam a hierarquia androcêntrica de um modo diferente, mediante a divisão entre pensões para mães e direitos atrelados ao trabalho assalariado – divisão norteada, em muitos casos, por agendas natalistas, nascidas da competição interestatal (Land, 1978; Holter, 1984; Ruggie, 1984; Siim, 1990; Orloff, 2009). Ambos os modelos validaram, assumiram e encorajaram o salário com que se consegue manter uma família. Ao institucionalizarem compreensões androcêntricas da família e do trabalho, eles naturalizaram a heteronormatividade e a hierarquia de gêneros, removendo-as, em grande medida, do debate político.

Em todos esses aspectos, a social-democracia sacrificou a emancipação a uma aliança entre a proteção social e a mercadorização, ao mesmo tempo que mitigou a contradição social do capitalismo por várias décadas. Mas o regime capitalista-estatal começou a degringolar; primeiro, politicamente, nos anos
1960, quando a Nova Esquerda global irrompeu para contestar-lhe as exclusões imperialistas, de gênero e raciais, bem como o paternalismo burocrático, em nome da emancipação; e, depois, economicamente, nos anos 1970, quando a estagflação, a “crise da produtividade” e as taxas de lucro declinantes na indústria galvanizaram os esforços neoliberais para desagrilhoar a mercadorização. O que seria sacrificado, caso a emancipação e a mercadorização viessem a unir forças, seria a proteção social.

Lares de dois ganhadores de dinheiro

Assim como o regime liberal antes dela, a ordem capitalista administrada pelo Estado dissolveu-se no curso de uma prolongada crise. Antes dos anos 1980, observadores prescientes puderam discernir os contornos emergentes de um novo regime, que viria a ser o capitalismo financeirizado do tempo presente. Globalizador e neoliberal, esse regime promove a redução dos investimentos estatais e empresariais no bem-estar social, ao passo que recruta as mulheres para a força de trabalho paga
– expelindo de si o trabalho de cuidado e lançando-o sobre as famílias e as comunidades, ao mesmo tempo que lhes diminui a capacidade para desempenhar esse trabalho. O resultado é uma organização nova, dualizada, da reprodução social, mercadorizada para quem pode pagar para dela usufruir e privatizada para quem não o pode, tendo em conta que alguns da segunda categoria proveem os da primeira com trabalho de cuidado em troca de (baixas) remunerações. Enquanto isso, a dupla bordoada
desferida pela crítica feminista e pela desindustrialização despojou, definitivamente, o “salário com que se consegue manter uma família” de toda credibilidade. Esse ideal deu lugar à norma hodierna da “família de dois ganhadores de dinheiro”.

O principal propulsor desses desenvolvimentos e a característica definidora desse regime é a nova centralidade da dívida. A dívida é o instrumento por meio do qual as instituições financeiras globais pressionam os Estados a cortar os desembolsos sociais, a levar a efeito a austeridade e, em geral, a conluiar-se com os investidores para extrair valor de populações indefensas. Além disso, é principalmente através da dívida que os camponeses no Sul Global são submetidos à despossessão numa nova etapa de tomada empresarial de terras que se destina a açambarcar reservas de energia, água, terra arável e “compensações de carbono”. É também cada vez mais via dívida que a acumulação prossegue no centro histórico: uma vez que o trabalho mal remunerado, precário, em serviços substitui o trabalho industrial sindicalizado, as remunerações caem abaixo do nível dos custos de reprodução socialmente necessários; nessa “economia de bicos”, a continuação dos gastos dos consumidores requer uma expansão do crédito para consumidores, que cresce exponencialmente (Roberts, 2013). É cada vez mais através da dívida, noutras palavras, que o capital, agora, canibaliza o trabalho, disciplina os Estados, transfere riqueza da periferia para o centro e suga valor dos lares, das famílias, das comunidades e da natureza.

O efeito produzido por essa nova centralidade da dívida é a intensificação da contradição, inerente ao capitalismo, entre produção econômica e reprodução social. Enquanto o regime anterior concedia poder aos Estados para subordinar os interesses de curto prazo das empresas privadas ao objetivo de longo
prazo da acumulação sustentada, função que eles cumpriam ao, entre outras medidas, estabilizarem a reprodução por meio do provimento público de bem-estar social, o presente regime autoriza o capital financeiro a disciplinar os Estados e os públicos em prol do interesse imediato dos investidores privados, demandando, especialmente, a retirada de investimentos públicos da reprodução social. E, enquanto o regime anterior aliava a mercadorização à proteção social contra a emancipação,
o presente regime gera uma configuração ainda mais perversa, na qual a emancipação se junta com a mercadorização para minar a proteção social.

O novo regime emergiu do fatídico cruzamento entre dois conjuntos de conflitos. Um deles impelia um ascendente grupo de proponentes do livre mercado, inclinados à liberalização e à globalização da economia capitalista, contra os declinantes movimentos trabalhistas nos países centrais; tendo sido,
outrora, a mais poderosa base de apoio da social-democracia, esses movimentos se encontram, agora, na defensiva, se é que já não estão completamente derrotados. O outro conjunto de conflitos impelia os “novos movimentos sociais” progressistas, contrários às hierarquias de gêneros, sexos, “raças”, etnicidades e religiões, contra populações que buscavam defendermundos da vida e privilégios estabelecidos, mas ameaçados, agora, pelo “cosmopolitismo” da nova economia. Da colisão
desses dois conjuntos de conflitos, emergiu um resultado surpreendente: um neoliberalismo “progressista”, que celebra a “diversidade”, a meritocracia e a “emancipação”, ao mesmo
tempo que desmantela as proteções sociais e torna a expelir de si a reprodução social. O resultado é não só abandonar populações indefensas às predações do capital, mas também redefinir
a emancipação nos termos do mercado14. Os movimentos emancipatórios participaram nesse processo. Todos eles – incluindo o antirracismo, o multiculturalismo, a libertação LGBT e a ecologia – produziram correntes neoliberais favoráveis ao mercado. Mas a trajetória feminista se mostrou especialmente fatídica, considerando o entrelaçamento, persistentemente engendrado pelo capitalismo, entre gênero e reprodução social. Assim como cada um dos regimes predecessores, o capitalismo
financeirizado institucionaliza a divisão entre produção e reprodução em consonância com um viés de gênero basilar. Diferentemente de seus predecessores, no entanto, seu imaginário dominante é liberal-individualista e igualitário quanto aos gêneros – as mulheres são consideradas como iguais dos homens em todas as esferas, merecedoras de iguais oportunidades para realizar seus talentos, inclusive – talvez em especial – na esfera da produção. A reprodução, porém, aparece como um resíduo atrasado, um obstáculo ao avanço que deve ser removido, de um jeito ou de outro, na rota para a libertação.

Apesar ou, talvez, por causa de sua aura feminista, essa concepção é o epítome da atual forma da contradição social do capitalismo, contradição que assume uma nova intensidade. Além de diminuir o provimento público de bem-estar social e recrutar as mulheres para a força de trabalho assalariada, o capitalismo financeirizado tem reduzido os salários reais, elevando, assim, o número de horas de trabalho pago que, por domicílio, são necessárias para manter uma família, bem como provocando uma corrida desesperada para transferir o trabalho de cuidado para outrem (Warren, Tyagi, 2003). A fim de preencher a “lacuna de cuidado”, o regime importa trabalhadores emigrantes dos países mais pobres para os mais ricos. De modo típico, são mulheres racializadas, amiúde campesinas e de regiões pobres que assumem o trabalho de cuidado e reprodutivo que, antes, era desempenhado por mulheres mais privilegiadas. Mas, para fazer isso, as emigrantes devem transferir suas próprias responsabilidades familiares e comunitárias para outras cuidadoras ainda mais pobres, que devem, por sua vez, fazer o mesmo – e assim por diante, em “cadeias globais de cuidado” cada vez mais compridas. Longe de preencher a lacuna de cuidado, o resultado é o deslocamento dessa lacuna – das famílias mais ricas para as mais pobres, do Norte Global para o Sul Global (Hochschild, 2002, p. 15-30; Young, 2001). Esse cenário encaixa com as estratégias que, marcadas por um viés de gênero, são empregadas por Estados pós-coloniais endividados e necessitados de dinheiro que se encontram sujeitos aos programas de ajuste estrutural do FMI. Desesperados por moeda forte, alguns deles têm promovido, de modo ativo e em nome das remessas de dinheiro, a emigração de mulheres para desempenharem trabalho de cuidado pago no estrangeiro; já outros têm cortejado o investimento estrangeiro direto, frequentemente nas indústrias que empregam preferencialmente mulheres, tais como a indústria têxtil e as montadoras de eletrônicos (Bair, 2010). Em ambos os casos, as capacidades sociorreprodutivas são espremidas ainda mais.

Dois desenvolvimentos recentes nos Estados Unidos são epítomes da gravidade da situação. O primeiro é a crescente popularidade do “congelamento de óvulos”, um procedimento que, normalmente, custa US$ 10 mil, mas, agora, é oferecido grátis e como um benefício adicional por empresas de TI a empregadas altamente qualificadas. Ambicionando atrair e reter essas trabalhadoras, empresas como Apple e Facebook dão a elas um forte incentivo para postergarem a gestação, dizendo-lhes de fato: “esperem e tenham seus filhos quando chegarem aos quarenta, cinquenta ou mesmo sessenta anos; devotem a nósseus anos de muita energia, seus anos produtivos”15. Um segundo desenvolvimento estadunidense é igualmente sintomático da contradição entre reprodução e produção: a proliferação de bombas mecânicas de alta tecnologia, caras, para espremer leite materno. Essa é a “solução” escolhida num país com elevada participação da força de trabalho feminina, sem licença maternidade ou parental juridicamente exigida e num caso de amor com a tecnologia. Além do mais, esse é um país no qual amamentar é praxe, mas tem mudado a ponto de tornar-se irreconhecível. Não mais se tratando de aleitar uma criança em seu peito, uma mulher, agora, “amamenta” ao espremer seu leite mecanicamente e armazená-lo para que sua babá, depois, alimente a criança com a mamadeira. Num contexto de grave pobreza de tempo, bombas que funcionam sem o uso das mãos e que enchem um copo duplo são consideradas as mais desejáveis, pois permitem a uma mulher que esprema o leite de ambos os seios de uma só vez, ao mesmo tempo que dirige para o trabalho na via expressa (Jung, 2015, p. 130-131)16.

Tendo em vista pressões como essas, causa alguma surpresa o fato de as lutas a respeito da reprodução social terem explodido durante os últimos anos? As feministas do Norte Global, frequentemente, descrevem seu foco como o “equilíbrio entre família e trabalho” (Belkin, 2003; Warner, 2006; Miller, 2013; Slaughter, 2012; Slaughter, 2015; Shulevitz, 2016). Mas as lutas a respeito da reprodução social abrangem muito mais: movimentos comunitários por moradia, assistência à saúde, segurança alimentar e uma renda básica incondicional; lutas pelos direitos de migrantes, trabalhadores domésticos e funcionários públicos; campanhas para sindicalizar os trabalhadores do setor de serviços em clínicas geriátricas, hospitais e creches que perseguem fins lucrativos; lutas por serviços públicos como creches e cuidado de idosos, por uma semana de trabalho mais curta, por generosas licenças maternidade e parental pagas. Tomadas em conjunto, essas reivindicações são equivalentes à demanda por uma imensa reorganização da relação entre produção e reprodução: à demanda por arranjos sociais que possibilitem às pessoas de todas as classes, todos os gêneros, todas as sexualidades e todas as cores combinar as atividades sociorreprodutivas com um trabalho seguro, interessante e bem remunerado.

As lutas fronteiriças a respeito da reprodução social são tão centrais para a presente conjuntura quanto as lutas de classes a respeito da produção econômica. Elas respondem, acima de tudo, a uma “crise do cuidado” que está enraizada na dinâmica estrutural do capitalismo financeirizado. Globalizador e
propelido pela dívida, esse capitalismo está expropriando, de modo sistemático, as capacidades disponíveis para sustentar conexões sociais. Proclamando o novo ideal da família de dois ganhadores de dinheiro, ele reavê os movimentos por emancipação, que se juntam com os proponentes da mercadorização para opor-se aos partidários da proteção social, tornados, agora, cada vez mais ressentidos e chauvinistas.

Outra mutação?

O que pode emergir dessa crise? A sociedade capitalista reinventou-se diversas vezes no curso de sua história. Especialmente em momentos de crise geral, quando múltiplas contradições – políticas, econômicas, ecológicas e sociorreprodutivas – se entremeiam e se exacerbam mutuamente, lutas fronteiriças irromperam ao longo das divisões institucionais constitutivas do capitalismo: onde a economia encontra a política, onde a sociedade encontra a natureza, e onde a produção encontra a reprodução. Nessas fronteiras, os atores sociais se mobilizam para redefinir o mapa institucional da sociedade capitalista. Seus esforços propeliram a virada, primeiro, do capitalismo liberal concorrencial do século XIX para o capitalismo administrado pelo Estado do século XX e, depois, para o capitalismo financeirizado do tempo presente. Além disso, historicamente, a contradição social do capitalismo constituiu uma vertente importante da crise precipitadora de cada virada, tendo em conta que a fronteira que separa a reprodução social da produção econômica emergiu, a cada vez, como um campo e um marco fundamental de luta. Em cada caso, a ordem dos gêneros da sociedade capitalista foi contestada, e o resultado dessa contestação dependeu de alianças forjadas entre os principais polos de um movimento triplo: mercadorização, proteção social, emancipação. Essas dinâmicas propeliram a virada, primeiro, das esferas separadas para o salário com que se consegue manter uma família e, depois, para a família de dois ganhadores de dinheiro.

O que se segue daí para a atual conjuntura? As presentes contradições do capitalismo financeirizado são suficientemente graves para se qualificarem como uma crise geral, e deveríamos antecipar outra mutação da sociedade capitalista? A crise atual galvanizará lutas de amplitude e visão suficientes para transformar o presente regime? Uma nova forma de feminismo socialista poderia chegar a romper o caso de amor do movimento feminista convencional com a mercadorização e, ao mesmo tempo, forjar uma nova aliança entre a emancipação e a proteção social – e, se sim, para qual fim? Como a divisão entre produção e reprodução poderia ser reinventada hoje, e o que pode substituir a família de dois ganhadores de dinheiro?

Nada do que escrevi aqui serve, de modo direto, para responder a essas questões. Mas, ao assentar a base que nos permite formulá-las, tentei lançar alguma luz sobre a conjuntura atual. Especificamente, defendi a tese segundo a qual as raízes da hodierna “crise do cuidado” residem na contradição social inerente ao capitalismo – ou melhor, na forma aguda que essa contradição assume hoje, no capitalismo financeirizado. Se essa tese for correta, então tal crise não será resolvida com remendos de política social. O caminho para sua resoluçãosó poderá passar pela profunda transformação estrutural dessaordem social. O que, acima de tudo, é preciso é superar a subjugação rapace, característica do capitalismo financeirizado, da reprodução à produção – mas, desta vez, sem sacrificar nem a emancipação nem a proteção social. Isso, por sua vez, requer reinventar a distinção entre reprodução e produção e reimaginar a ordem dos gêneros. Resta ver se o resultado sequer será compatível com o capitalismo.

Notas

1 Tradução de José Ivan Rodrigues de Sousa Filho (PPGFil/UFSC), a partir do original FRASER, Nancy. Contradictions of capital and care. New Left Review, v. 100, 2016, p. 99-117, com o indispensável apoio da autora e a devida autorização da New Left Review, titular dos direitos autorais. O tradutor é grato a Luiz Philipe de Caux por sua atenciosa revisão.

2 Professora titular da cátedra Henry and Louise A. Loeb de Filosofia e Política da New School for Social Research, em Nova Iorque.

3 Uma tradução francesa deste ensaio foi apresentada em Paris, em 14 de junho de 2016, na qualidade de Conferência Marc Bloch da École des Hautes Études en Sciences Sociales e está disponível no site da École. Agradeço a Pierre-Cyrille Hautcoeur pelo convite para a conferência, a Johanna Oksala pelas instigantes discussões, a Mala Htun e Eli Zaretsky pelos proveitosos comentários e a Selim Heper pelo auxílio na pesquisa.

4 Ver, entre muitos outros exemplos recentes, Rosen (2007), Hess (2013), Boffey (2015). Quanto à “pobreza de tempo”, ver Hochschild (2001), Boushey (2016). Quanto ao “equilíbrio entre trabalho e família”, ver Boushey & Anderson (2013), Beck (2015). Quanto ao “esgotamento social”, ver Rai,
Hoskyns & Thomas (2013).

5 No original: Free-riding on the life-world. (N. T.) 

6 Para uma explicação das condições políticas de fundo que são necessárias para uma economia capitalista, ver Fraser (2015). Quanto às condições ecológicas, ver O’Connor (1988) e Moore (2015).

7 Muitas teóricas feministas elaboraram versões diferentes desse argumento. Para formulações feministas-marxistas, ver Vogel (2013), Federici (2012) e Delphy (2016). Outra elaboração poderosa é a de Folbre (2002). Quanto à “teoria da reprodução social”, ver Laslett & Brenner (1989), Benzanson & Luxton (2006), Bakker (2007), Arruzza (2016).

8 Sobre as lutas fronteiriças e para uma crítica da compreensão do capitalismo como uma economia, ver Fraser (2014).

9 No original: family wage. (N. T.)

10 No original: Housewifization. (N. T.)

11 No original: coverture. (N. T.)

12 Nesse período, o apoio estatal à reprodução social foi financiado por receitas tributárias e fundos especiais para os quais os trabalhadores e o capital metropolitanos contribuíam em diferentes proporções, dependendo das relações de poder entre as classes em certo Estado. Mas aqueles fluxos de renda eram alimentados com o valor sorvido da periferia, através dos lucros do investimento estrangeiro direto e através do comércio baseado na troca desigual (Prebisch, 1950; Baran, 1957; Pilling, 1973; Köhler & Tausch, 2001).

13 No original: gendered family. (N. T.)

14 Fruto de uma aliança improvável entre os proponentes do livre mercado e os “novos movimentos sociais”, o novo regime está chacoalhando todos os alinhamentos políticos usuais, jogando feministas neoliberais “progressistas” como Hillary Clinton contra populistas nacionalistas autoritários como Donald Trump.

15 Apple and Facebook offer to freeze eggs for female employees, Guardian, 15 de outubro de 2014. É importante notar que esse benefício já não é mais exclusivamente reservado à classe gerencial-técnica-profissional. O exército estadunidense já disponibiliza grátis o congelamento de óvulos para mulheres alistadas que se inscreverem para tempos mais longos de serviço no exterior: Pentagon to offer plan to store eggs and sperm to retain young troops, New York Times, 3 de fevereiro de 2016. Aqui, a lógica do militarismo pesa mais que a da privatização. Até onde sei, ninguém ainda tocou na questão pendente de o que fazer com os óvulos de uma soldada que morre em conflito.

16 O Affordable Care Act (conhecido como Obamacare) agora exige que as operadoras de planos de saúde forneçam grátis tais bombas para suas beneficiárias. Assim, também esse benefício não é mais uma prerrogativa exclusiva de mulheres privilegiadas. O efeito gerado é a criação de um enorme mercado novo para industriais, que estão a produzir as bombas em imensos lotes nas fábricas de empresas terceirizadas chinesas (Kliff, 2013).

Referências

ADAMS, David Wallace. Education for extinction: American Indians and the boarding school experience, 1875-1928. Kansas: University Press of Kansas, 1995.

ARRUZZA, Cinzia. Functionalist, determinist, reductionist: social reproduction feminism and its critics. Science & Society, v. 80, n. 1, 2016, p. 9-30.

BAIR, Jennifer. On difference and capital: gender and the globalization of production. Signs: Journal of Women in Culture and Society, v. 36, n. 1, 2010, p. 203-226.

BAKKER, Isabella. Social reproduction and the constitution of a gendered political economy. New Political Economy, v. 12, n. 4, 2007, p. 541-556.

BARAN, Paul. The political economy of growth. New York: Monthly Review Press, 1957.

BARON, Ava. Protective labour legislation and the cult of domesticity. Journal of Family Issues, v. 2, n. 1, 1981, p. 25-38.

BECK, Martha. Finding work-life balance. Huffington Post, 10 de março de 2015.

BELKIN, Lisa. The opt-out revolution. New York Times, 26 de outubro de 2003.

BEZANSON, Kate; LUXTON, Meg (eds.). Social reproduction: feminist political economy challenges neo-liberalism. Montreal: McGill-Queen’s University Press, 2006.

BOFFEY, Daniel. Half of all services now failing as UK care sector crisis deepens. Guardian, 26 de setembro de 2015.

BOUSHEY, Heather. Finding time: the economics of work-life conflict. Cambridge: Harvard University Press, 2016.

BOUSHEY, Heather; ANDERSON, Amy Rees. Work-life balance. Forbes, 26 de julho de 2013.

BRENNER, Johanna. Gender, social reproduction, and women’s self-organization: considering the US Welfare State. Gender & Society, v. 5, n. 3, 1991, p. 311-333.

CHURCHILL, Ward. Kill the Indian, save the man: the genocidal impact of American Indian residential schools. San Francisco: City Lights Publishers, 2004.

COONTZ, Stephanie. The social origins of private life: a history of American families, 1600-1900. London: Verso, 1988.

DAVIS, Angela. Reflections on the black woman’s role in the community of slaves. The Massachusetts Review, v. 13, n. 1-2, 1972, p. 81-100.

DELPHY, Christine. Close to home: a materialist analysis of women’s oppression. Translated by Diana Leonard. London, New York: Verso, 2016.

ENGELS, Friedrich. The origins of the family, private property and the state. Translated by Ernest Untermann. Chicago: Charles H. Kerr & Company, 1902.

EWEN, Stuart. Captains of consciousness: advertising and the social roots of the consumer culture. New York: Basic Books, 2008.

FEDERICI, Silvia. Revolution at point zero: housework, reproduction, and feminist struggle. New York: PM Press, 2012.

FOLBRE, Nancy. The invisible heart: economics and family values. New York: The New Press, 2002.

FOUCAULT, Michel. Governmentality. Translated by Rosi Braidotti and revised by Colin Gordon. In: BURCHELL, Graham; GORDON, Colin; MILLER, Peter (eds.). The Foucault effect: studies in governmentality. Chicago: The University of Chicago Press, 1991, p. 87-104.

FOUCAULT, Michel. The birth of biopolitics: lectures at the Collège de France, 1978-1979. Translated by Graham Burchell. New York: Picador, 2010.

FRASER, Nancy. Women, welfare, and the politics of need interpretation. In: FRASER, Nancy. Unruly practices: power, discourse, and gender in contemporary social theory. Minneapolis: University of
Minnesota Press, 1989, p. 144-160.

FRASER, Nancy. Behind Marx’s hidden abode: for an expanded conception of capitalism. New Left Review, v. 86, 2014, p. 141-159.

FRASER, Nancy. Legitimation crisis? On the political contradictions of financialized capitalism. Critical Historical Studies, v. 2, n. 2, 2015, p. 157-189.

GLENN, Evelyn Nakano. Forced to care: coercion and caregiving in America. Cambridge: Harvard University Press, 2010.

HAYDEN, Dolores. Building suburbia: green fields and urban growth, 1820-2000. New York: Pantheon Books, 2003.

HESS, Cynthia. Women and the care crisis: valuing in-home care in policy and practice. Institute for Women’s Policy Research Briefing Paper n. 401, 2013.

HOBSON, Barbara Meil. Uneasy virtue: the politics of prostitution and the American reform tradition. Chicago: University of Chicago Press, 1990.

HOCHSCHILD, Arlie Russell. The time bind: when work becomes home and home becomes work. New York: Holt Paperbacks, 2001.

HOCHSCHILD, Arlie Russell. Love and gold. In: EHRENREICH, Barbara; HOCHSCHILD, Arlie Russell (eds.). Global woman: nannies, maids, and sex workers in the new economy. New York: Metropolitan Books, 2002, p. 15-30.

HOLTER, Harriet (ed.). Patriarchy in a welfare society. Oslo: Universitetsforlaget, 1984.

JONES, Jacqueline. Labor of love, labor of sorrow: black women, work, and the family, from slavery to the present. New York: Basic Books, 1985.

JUNG, Courtney. Lactivism: how feminists and fundamentalists, hippies and yuppies, and physicians and politicians made breastfeeding big business and bad policy. New York: Basic Books, 2015.

KATZNELSON, Ira. When affirmative action was white: and untold history of racial inequality in twentieth-century America. New York: W. W. Norton & Company, 2005.

KLIFF, Sarah. The breast pump industry is booming, thanks to Obamacare. Washington Post, 4 de janeiro de 2013.

KÖHLER, Gernot; TAUSCH, Arno. Global Keynesianism: unequal exchange and global exploitation. New York: Nova Science Publishers, 2001.

LAND, Hilary. Who cares for the family? Journal of Social Policy, v. 7, n. 3, 1978, p. 257-284.

LASLETT, Barbara; BRENNER, Johanna. Gender and social reproduction: historical perspectives. Annual Review of Sociology, v. 15, 1989, p. 381-404.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto of the Communist Party. In: TUCKER, Robert C. (ed.). The Marx-Engels Reader. 2nd ed. New York, London: W. W. Norton & Company, 1978, p. 469-500.

MIES, Maria. Patriarchy and accumulation on a world scale: women in the international division of labour. London: Zed Books, 2014.

MILLER, Lisa. The retro wife. New York Magazine, 17 de março de 2013.

MOORE, Jason. Capitalism in the web of life: ecology and the accumulation of capital. London, New York: Verso, 2015.

NELSON, Barbara J. Women’s poverty and women’s citizenship: some political consequences of political marginalization. Signs: Journal of Women in Culture and Society, v. 10, n. 2, 1984, p. 209-231.

O’CONNOR, James. Capitalism, nature, socialism: a theoretical introduction. Capitalism, Nature, Socialism, v. 1, n. 1, 1988.

ORLOFF, Ann Shola. Gendering the comparative analysis of welfare states: an unfinished agenda. Sociological Theory, v. 27, n. 3, 2009, p. 317-343.

PEARCE, Diana. Women, work and welfare: the feminization of poverty. In: FEINSTEIN, Karen Wolk (ed.). Working women and families. Beverly Hills: Sage Publications, 1979, p. 103-124.

PILLING, Geoffrey. Imperialism, trade and “unequal exchange”: the work of Arghiri Emmanuel. Economy and Society, v. 2, n. 2, 1973, p. 164-185.

POLANYI, Karl. The great transformation: the political and economic origins of our time. 2nd ed. Boston: Beacon Press, 2001.

PREBISCH, Raúl. The economic development of Latin America and its principal problems. New York: United Nations, 1950.

QUADAGNO, Jill. The color of welfare: how racism undermined the war on poverty. Oxford: Oxford University Press, 1994.

RAI, Shirin M.; HOSKYNS, Catherine; THOMAS, Dania. Depletion: the cost of social reproduction. International Feminist Journal of Politics, v. 16, n. 1, 2014, p. 86-105.

ROBERTS, Adrienne. Financing social reproduction: the gendered relations of debt and mortgage finance in twenty-first-century America. New Political Economy, v. 18, n. 1, 2013, p. 21-42.

ROSEN, Ruth. The care crisis. The Nation, 27 de fevereiro de 2007.

ROSS, Kristin. Fast cars, clean bodies: decolonization and the reordering of French culture. Cambridge: The MIT Press, 1996.

RUGGIE, Mary. The state and working women: a comparative study of Britain and Sweden. Princeton: Princeton University Press, 1984.

SHULEVITZ, Judith. How to fix feminism. New York Times, 10 de junho de 2016.

SIIM, Birte. Women and the welfare state: between private and public dependence. In: UNGERSON, Clare (ed.). Gender and caring: work and welfare in Britain and Scandinavia. London: Harvester Wheatsheaf, 2010, p. 80-109.

SLAUGHTER, Anne-Marie. Why women still can’t have it all. The Atlantic, julho-agosto de 2012.

SLAUGHTER, Anne-Marie. Unfinished business: women, men, work, family. New York: Penguin Random House, 2015.

SPIVAK, Gayatri. Can the subaltern speak? In: NELSON, Cary; GROSSBERG, Lawrence (eds.). Marxism and the interpretation of culture. Urbana, Chicago: University of Illinois Press, 1988, p. 271-313.

TILLY, Louise A.; SCOTT, Joan W. Women, work, and family. London: Routledge, 1987.

VOGEL, Lise. Marxism and the oppression of women: toward a unitary theory. Leiden, Boston: Brill, 2013.

WALKOWITZ, Judith R. Prostitution and Victorian society: women, class, and the state. Cambridge: Cambridge University Press, 1980.

WARNER, Judith. Perfect madness: motherhood in the age of anxiety. New York: Riverhead Books, 2006.

WARREN, Elizabeth; TYAGI, Amelia Warren. The two-income trap: why middle-class parents are going broke. New York: Basic Books, 2003.

WOLOCH, Nancy. A class by herself: protective laws for women workers, 1890s-1990s. Princeton: Princeton University Press, 2015.

YOUNG, Brigitte. The “mistress” and the “maid” in the globalized economy. Socialist Register, n. 37, 2001, p. 315-327.

ZARETSKY, Eli. Capitalism, the family, and personal life. New York: Perennial Library, 1986.

Guia essencial para a Jacobin

A Jacobin tem divulgado conteúdo socialista em ritmo acelerado desde 2010. Eis aqui um guia prático para algumas das obras mais importantes ...