28 de abril de 2017

The H-Word de Perry Anderson - siga o líder

Uma história da hegemonia mostra que há limites rígidos para o poder suave

Adam Tooze

Financial Times

Um relevo em mármore do século 5º a.C. do Parthenon, Atenas, localizado agora no museu britânico. Bridgeman Images.

Para afastar os poderosos persas no século V a.C., os estados da cidade grega formaram a Liga de Delos. A líder da Liga era Atenas. Mas qual era a natureza da preeminência ateniense? Era uma superioridade imposta pelo poder, comandando apenas aquiescência forçada, ou a liga acabou por ser fundada no apego e no consentimento? Os contemporâneos não chegaram a um consenso, nem os historiadores. Mas o termo-chave cunhado no decorrer desse argumento ecoou nos próximos milênios. O que primeiro Atenas e depois Esparta exerciam, Aristóteles nos diz, era hegemonia.

O termo ficou fora de uso com os romanos - para eles, a República e o Império bastaram. Mas como Perry Anderson mostra em sua fascinante história, The H-Word, a discussão sobre hegemonia foi revivida em meados do século XIX por aqueles que achavam que na Alemanha fraturada e pós-napoleônica, a Prússia poderia desempenhar o papel que Atenas já teve na Grécia. Desde então, falar de hegemonia nunca mais foi abandonado. O termo foi usado pelos marxistas revolucionários, teóricos das relações internacionais, cientistas políticos e economistas. Hoje, a hegemonia é o pão com manteiga das páginas de opinião. Com a ascensão de Trump acabou a hegemonia do liberalismo estilo Davos? A Alemanha de Angela Merkel surgirá como a nova hegemonia liberal, ou o manto da liderança global passou para Pequim? Para Anderson, desde a década de 1960 uma das principais vozes na esquerda acadêmica, questões semelhantes estão presentes no seu trabalho que vai desde as Linhagens do Estado Absolutista (1974) até a história intelectual da política externa americana moderna de 2015.

Dos gregos em diante, a questão foi: a hegemonia simplesmente colocou o brilho do consentimento sobre formas de dominação mais nuas? Em retrospectiva, parece óbvio que a hegemonia do século 19 foi a Grã-Bretanha. A Grã-Bretanha era um império. Na Índia, o coração desse império, governou principalmente pela força. Como Ranajit Guha, pai da Escola de Estudos Subalternos da história de baixo e um dos heróis de Anderson, descreveu, o Raj assegurou o domínio, mas sem hegemonia. Apoiou-se na força e não na persuasão. Mas isso não era típico do papel mais amplo da Grã-Bretanha, que combinava o poder de fogo e o alcance da Royal Navy com formas de influência mais sutis. O império informal da Grã-Bretanha apoiou-se menos na diplomacia da canhoneira do que na tecnologia, dinheiro e idéias. A rede global de cabos, o "sistema de Westminster", o direito comum, a religião do livre comércio, a visão da modernidade oferecida pelo Palácio de Cristal e a Grande Exposição de 1851: todas estas coias juntas definiram sua hegemonia.

Uma das coisas impressionantes reveladas pela pesquisa de Anderson é que a discussão aberta sobre o papel da persuasão no exercício do poder tende a ser um sinal de seu comprometimento fraco. Como Anderson mostra, foi precisamente quando a preeminência da Grã-Bretanha vitoriana desapareceu no final do século 19 que proliferou o uso do termo hegemonia. Quando estados desafiadores, como Japão, Alemanha e Itália, apareceram em cena, a hegemonia tornou-se um termo não de aprovação, mas de crítica. A Alemanha do Kaiser ameaçou a hegemonia no continente. Os marxistas russos adotaram o termo para descrever como a classe trabalhadora levaria as massas camponesas à revolução. De uma cela da prisão na Itália fascista, Antonio Gramsci, líder do comunismo italiano, invocou a hegemonia para conceituar como o burguês manteve o controle sobre o poder.

Para Gramsci, ficou claro que a hegemonia no século 20 ainda falaria inglês, mas com um sotaque americano. Ele foi um dos primeiros a descrever uma nova era de riqueza produzida em massa, o que ele chamou de Fordismo. A América também deu ao mundo Woodrow Wilson e sua promessa de autodeterminação. Hollywood era a fábrica de sonhos do mundo.

Nas décadas de 1920 e 1930, a influência americana estava em todo lugar. O mundo estava à espera do poder americano. Mas, como observou um contemporâneo perspicaz, a guerra entre os dois países manteve-se como "presença ausente". Ela exerceu uma enorme influência, mas fez isso indiretamente. À medida que surgiu uma nova onda de insurgentes - Alemanha nazista, Japão imperial - o que foi revelado foi os dolorosos défices de hegemonia sem dominância, influência e persuasão sem o respaldo do compromisso político ou os meios de dissuasão ou coerção.

Seria preciso uma segunda guerra mundial para que os EUA emergissem como um poder disposto e capaz de impor uma ordem na Europa e na Ásia Oriental. A Europa testemunharia no Plano Marshall o que o historiador econômico Charles Kindleberger chamaria a era da hegemonia americana de pleno direito. No Massachusetts Institute of Technology na década de 1970, Kindleberger deu a pesquisa da história que deu forma a uma geração inteira de cientistas políticos e economistas americanos. A economia mundial, argumentou Kindleberger, funcionou bem quando tinha uma âncora. Gemeu e deslizou quando não.

Mais uma vez, no momento em que foi teorizada, a hegemonia estava em crise. À medida que o sistema monetário de Bretton Woods entrou em colapso, a estagnação se estabeleceu. Esse foi um efeito colateral inevitável da perda de liderança dos Estados Unidos? A economia mundial realmente precisa de um centro dominante? Com a Europa recuperada da destruição da guerra e com o crescimento do Japão, a cooperação e a coordenação não podem ser suficientes? É precisamente o que Ronald Reagan e Margaret Thatcher e seus seguidores na Europa - Helmut Kohl, Bettino Craxi e, eventualmente, François Mitterrand também - entregariam. À medida que a posição da América era relativizada, o que surgiu não foi o caos, mas algo mais abrangente: a hegemonia liberal renasceu sob a forma de revolução do mercado ou, como aprendemos a chamá-la, neoliberalismo.

Em 1989, a nova hegemonia parecia estar pronta para declarar a vitória final, nada menos do que o fim da história. Como sabemos agora, isso era prematuro. Lemos Anderson porque nenhum comentador histórico tomou mais a sério a estrutura intelectual do poder liberal e ninguém a criticou de forma mais eficaz. Nós lemos Anderson hoje com uma atenção ainda maior, porque os 10 anos desde o início da crise financeira global em 2007 deram uma esmagadora reivindicação da predição básica do marxismo acadêmico: a hegemonia liberal não é auto-sustentável. É ameaçado por crise, assombrada pela incerteza radical e infinitamente produtiva de inimigos dentro e fora.

Na verdade, dado os eventos de 2016, podemos ter chegado ao ponto em que, para citarr uma frase de Donald Trump, a esquerda intelectual "está cansada de ganhar". The H-Word terminou em outubro de 2016 e podemos perceber que Anderson estava afiando suas armas críticas para lidar com a coroação de Hillary Clinton. Em vez disso, como todos os outros, enfrenta o desafio de dar sentido a uma presidência muito diferente. Como o principal crítico da hegemonia liberal responderá ao deslumbrante deslocamento do melífluo Barack Obama pelo poderoso ataque de Trump e sua comitiva? Como é comum observado, Trump está deixando a comédia fora do negócio. Ele fará o mesmo com o sofisticado esquerdismo intelectual? Dada a evidente ameaça da direita e sua própria fraqueza política, a esquerda deveria convir como s apelos centristas para a unidade, formando uma espécie de Frente Popular do século XXI? Pode-se imaginar que Anderson concorda. No seu pico, a hegemonia liberal estava muito feliz em declarar, "não há alternativa". Seria dolorosamente irônico se essa declaração hegemônica exigisse uma força prática ainda maior em meio à decomposição simbólica do liberalismo.

26 de abril de 2017

Por que o Brasil vai se mobilizar amanhã

O presidente não eleito do Brasil quer passar uma reforma draconiana das aposentadorias e pensões - e uma greve geral pode ser a única chance de impedi-lo.

Ella Mahony


Protestos contra a reforma da previdência no Rio de Janeiro, Brasil, em 31 de março de 2017.

A semana passada marcou o aniversário de um ano do processo de impeachment da ex-presidente brasileira Dilma Rousseff. A remoção da mandatária do Partido dos Trabalhadores (PT) abriu caminho para que seu vice-presidente, Michel Temer, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), assumisse o poder e instituísse uma impressionante reversão dos direitos sociais e trabalhistas. Ele chamou seu plano, que dizima os gastos públicos, ataca a diversidade política nas escolas, aprofunda a precariedade e acelera a destruição ambiental, de "Ponte para o Futuro".

Nas eleições municipais que seguiram a ascensão de Temer à presidência, pareceu que sua "ponte" seria fortificada por uma direita inconteste em cada canto do país. O partido de Temer ganhou quase mil disputas municipais, tornando o PMDB o partido no poder em um quinto de municípios do país. Em segundo lugar, o Partido Social-Democrata Brasileiro (PSDB), que também conquistou centenas de municípios, desferiu um enorme golpe com a eleição de seu candidato apresentador de TV João Doria para a prefeitura da maior cidade da América do Sul, São Paulo. O PT, por outro lado, sofreu retrocessos em todos os lugares, perdendo 60 por cento das cidades que controlava em 2012.

Talvez seja por isso que, em dezembro, Temer imaginou que seu último ataque - uma reforma draconiana das pensõaposentadorias - seria mais fácil do que tem sido. A proposta inicial fixaria uma nova idade mínima para a aposentadoria - sessenta e cinco anos - onze anos a mais que a atual idade média de aposentadoria. O projeto de lei aplica-se sobretudo aos trabalhadores mais jovens, mas os homens com mais de cinquenta anos e as mulheres com mais de quarenta e cinco anos sofreria um aumento de 50 por cento em seu tempo de contribuição restante - economês para "agora você tem que dobrar o tempo que você trabalha para o benefício que já tinha alcançado". Também acrescentaria cinco anos para os idosos de baixa renda poderem começar a receber apoio extra. Isso desvincularia as pensões do salário mínimo já baixo. E buscaria eliminar provisões especiais para os trabalhadores do setor público brasileiro, um movimento claramente em sintonia com a agenda mais ampla de privatização de Temer.

A proposta de reforma conta com o apoio de amplos setores do capital nacional e internacional, bem como de seus cortesãos na mídia. O Moody's Investors Service considerou que as reformas podem ser suficientes para impulsionar a má avaliação de crédito do Brasil. The Economist, em um artigo intitulado "Less gold for the old", chamou a oposição maciça às reformas de "resmungos" e repreendeu que, eventualmente, "os brasileiros terão razão para agradecer [Temer.]"

Isso é improvável. O projeto faz parte de um ataque abrangente aos direitos dos trabalhadores que promete destruir as perspectivas dos jovens trabalhadores nas próximas décadas. Em um esforço para alinhar as normas trabalhistas do Brasil com as prioridades das corporações multinacionais, Temer também está promovendo um projeto de lei que permite às empresas terceirizar qualquer trabalho; prorrogar a duração máxima dos contratos de trabalho temporário de três meses para nove meses; e acabar com a jornada de trabalho de oito horas. Se essas reformas passarem, os jovens brasileiros enfrentarão um futuro sombrio de trabalho mais precário, menos benefícios, mais horas e diminuição das esperanças de aposentadoria.

Sem surpresa, tanto a reforma das aposentadorias como o próprio Temer são massivamente impopulares, e após as alegações explosivas de corrupção da semana passada dirigidas a quase um terço do ministério de Temer (e muitos de seus aliados no Congresso), pergunta-se se o presidente interino terá o capital político para segurar essa. Mesmo antes das acusações de corrupção, o índice de aprovação de Temer estava pairando em apenas 10% - no mesmo lugar em que Rousseff estava na véspera de seu impeachment.

É isso que o PT, as massivas federações do Brasil e a esquerda socialista, pequena mas vigorosa, esperam capitalizar com a greve geral desta sexta-feira.

Embora o Brasil não tenha visto uma greve geral em trinta e um anos, a ação de sexta-feira parece promissora. Afinal, no mês passado, as mobilizações contra a reforma atraíram centenas de milhares de pessoas em todo o país. Em 15 de março, Brasília, capital do país, testemunhou cerca de cinco mil manifestações, algumas das quais invadiram e ocuparam o Ministério da Fazenda. Em São Paulo, paralisações parciais feitas por trabalhadores de transportes públicos afetaram o trânsito da cidade, e os sindicatos de professores interromperam aulas por um dia.

As federações sindicais, verificando o caráter descaradamente anti-trabalhador das medidas, foram unânimes em sua convocação para a greve. Até mesmo a Força Sindical, cujo presidente Paulinho da Força apoiou o destituição de Dilma e defendeu o corrupto político de direita Eduardo Cunha, tem apoiado a ação.

O PT, por sua vez, espera claramente que os protestos posicionem o partido como a principal oposição ao mandato de Temer, o ajudem a recuperar parte de seu brilho pré-impeachment e apoiem ​​as chances do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva nas eleições de 2018. Nos protestos de 15 de março, Lula apareceu entre a multidão em São Paulo para fazer um discurso contundente, investindo contra Temer por querer "acabar com as conquistas obtidas pela classe trabalhadora nos últimos anos".

O PT ainda mantém uma forte influência sobre os sindicatos, especialmente a Central Unitária de Trabalhadores (CUT), a maior federação sindical da América Latina, com cerca de 7,4 milhões de membros. Se a greve for bem-sucedida, o PT poderia recompor sua imagem como os legítimos defensores dos trabalhadores brasileiros e até mesmo da mesma classe média - em particular, os trabalhadores públicos alvos da reforma - que saíram às ruas no ano passado para exigir a destituição de Dilma do cargo.

O que Lula não mencionou em seu discurso recente foi o seu próprio histórico problemático. Em seus primeiros cem dias de governo em 2003, Lula colocou a reforma das aposentadorias no topo de sua agenda e, como Temer, seu plano visava provisões para funcionários públicos e elevou a idade de aposentadoria em quase uma década.

Tão determinado foi Lula para passar as medidas que ele reforçou a relação do PT com o PMDB, isolando e, finalmente, expulsando a esquerda do PT. Foi este movimento que elevou o PMDB, o autor final do impeachment de Dilma, a uma maior importância no governo nacional. E foi a purga que levou os ex-líderes do PT Luciana Genro, Heloísa Helena, Babá e João Fontes a fundar, com outros integrantes de esquerda, o Partido do Socialismo e da Liberdade (PSOL), hoje o partido de esquerda mais significativo do ponto de vista eleitoral no Brasil.

Devido a esta história sórdida, e os contínuos problemas do PT com a corrupção, a esquerda tem uma chance de fazer uma intervenção produtiva nas mobilizações de sexta-feira. Enquanto o PSOL não tem os tradicionais bastiões sindicais, eles fizeram incursões com funcionários públicos em centros metropolitanos, como professores, enfermeiros e alguns trabalhadores do metrô. Eles também conseguiram captar grande parte da energia dos movimentos feministas e estudantis da América do Sul, com sua convergência de jovens neste mês atraindo cerca de 1.500 estudantes de todo o país, incluindo Ana Julia Ribeiro, de 16 anos, que pronunciou um poderoso discurso no ano passado defendendo as ocupações escolares anti-austeridade.

Estes ganhos entre os trabalhadores mais jovens, que são menos incorporados às estruturas sindicais tradicionais, serão cruciais para estabelecer coalizões de longo prazo contra a austeridade. Estão livres tanto da história da política neoliberal do PT como dos laços com a corrupção, colocando-os numa posição melhor para alcançar aqueles que não são afetados pelo processo político.

Afinal, essa insatisfação, e não a popularidade da direita, levou à decadência do PT nas eleições municipais do ano passado. Apesar do sistema de voto obrigatório do Brasil, as taxas de abstenção foram as mais altas desde 1988 - a primeira eleição após a ditadura militar. Um quarto dos eleitores não apareceu em absoluto, e ainda mais configuraram votos em branco ou nulos. Em São Paulo, o número de pessoas que se abstiveram ou anularam sua escolha foi maior que o número de pessoas que votaram no prefeito atual, João Doria.

Nesse sentido, a greve de sexta-feira é um campo de testes para ver quem pode emergir como protagonista da esquerda brasileira. É perfeitamente possível que o PT possa explorar a oposição generalizada a Temer e manobrar Lula de volta à presidência. No entanto, o programa político do partido foi seriamente comprometido na última vez que esteve no poder, e não está claro se eles têm um plano para evitar cair nas mesmas armadilhas. Com a dissolução da esquerda do partido - a única facção potencialmente capaz de criar tal plano - há pouca razão para otimismo. Um mandato do PT que não beneficiasse os trabalhadores poderia facilmente cultivar a extrema direita mais nociva do Brasil, exemplificada pelo conservador Jair Bolsonaro, enquanto reprime e enerva a esquerda socialista.

Na preparação para a greve de sexta-feira, a esquerda socialista tem cultivado cuidadosamente uma coalizão de sindicatos de esquerda, correntes feministas, grupos indígenas e movimentos estudantis, todos eles cada vez mais vistos como independentes do PT. Os estudantes em particular, que no ano passado fecharam mais de mil escolas, provaram ser uma força elétrica capaz de articular uma política alternativa. Esta coalizão tem o potencial de colidir um polo energético de oposição a Temer que também está livre dos compromissos do PT.

Ainda assim, a medida mais crucial da greve de sexta-feira é se ela pode impedir as medidas desastrosas de Temer. Diante de tal oposição militante, o governo de Temer adotou uma estratégia do tipo Kamikaze para impulsionar as reformas. O ministro das Finanças, Henrique Meirelles, foi visto argumentando no Financial Times que "a impopularidade torna muito mais fácil para o governo tentar fazer algo ambicioso ... ele não têm nada a perder". Ele também observou que, como resultado do processo de impeachment, o atual presidente (não eleito) está mais unificado com os partidos conservadores que dominam o Congresso do que qualquer outro em décadas.

Os neoliberais no poder estão apostando que este consenso dominante pode superar o popular, de base. O desafio da esquerda brasileira é provar que estão errados.

Os passos para o ecossocialismo

Qualquer movimento ecossocialista deve ter uma estratégia de organização no aqui e agora.

Ian Angus e John Bellamy Foster


Alberta, Canada. kris krüg / Flickr

Tradução / Ficamos contentes ao descobrir que Daniel Tanuro estava escrevendo um artigo sobre esquemas de precificação de carbono. Seu livro Green Capitalism: Why it Can’t Work (Capitalismo Verde: Porque não pode dar certo) traz uma importante contribuição para o pensamento ecossocialista, e Tanuro tem um impressionante histórico de envolvimento pessoal em diversas campanhas radicais pelo meio ambiente na Europa. Esperávamos ansiosamente por uma explicação clara e uma forte crítica a abordagens mercadológicas das mudanças climáticas que sabemos que ele poderia escrever.

Infelizmente, “The Right’s Green Awakening” (O Despertar Verde da Direita) não correspondeu às expectativas da alta qualidade estabelecida pelo seu livro. Ao invés de abordar os planos de precificação do carbono que têm emergido nas políticas capitalistas, Tanuro foca sua crítica nas propostas desenvolvidas pelo importante cientista do clima James Hansen e no apoio crítico que demos a sua proposta na Monthly Review e na Climate & Capitalism.

Tanuro equipara nossa posição — e a posição diferente de Hansen — a uma proposta feita por políticos da direita americana, argumentando que apoiamos “uma variante populista... [da] doutrina neoliberal.” Obviamente, discordamos.

Não estamos dizendo que nossos pontos de vista não podem ser criticados. O debate aberto é uma parte essencial da construção de um movimento ecossocialista global e nós acolhemos respostas ponderadas a qualquer coisa que escrevemos. No entanto, já que o artigo de Tanuro deturpa seriamente tanto o plano de Hansen quanto nossa abordagem em relação a ele, precisamos corrigir seu equívoco antes de começar uma discussão adequada.

As propostas de Hansen

O que chamamos de “Estratégia de Saída das Mudanças Climáticas” de James Hansen inclui um plano de taxas e dividendos, no qual companhias de combustíveis fósseis pagariam uma taxa de carbono crescente na boca de poço, poço de mina ou ponto de entrada. Todos as rendas provenientes desses pagamentos seriam distribuídas como dividendos à população em um esquema per capita.

Diferentemente de planos de mercado de carbono e impostos sobre o consumo, a taxa proposta por Hansen seria simples de se coletar e difícil de sonegar. Hansen estima que 60 por cento dos cidadãos americanos iriam receber mais em dividendos do que teriam que pagar em aumentos de preços.

Ao contrário de economistas clássicos que prometem resultados mágicos a partir exclusivamente da precificação do carbono, Hansen entende que “por si só, um imposto sobre o carbono não consegue resolver o problema energético e permitir um rápido término gradativo do carvão”, então seu programa vai além disso.

Ele inclui um banimento total do petróleo de areias betuminosas, do óleo e do gás de xisto, e de hidratos de metano, assim como o fechamento de todas as usinas movidas a carvão que não capturem suas emissões de CO2 — o que equivale a todas as usinas em operação hoje.

Hansen também demanda eliminação de todos os subsídios a companhias de combustíveis fósseis, transição global para uma agricultura e práticas florestais sustentáveis, rápida redução nas emissões de metano, ozônio e de carbono negro, assistência substancial a países emergentes no que diz respeito à implementação e ao desenvolvimento de energia limpa, e investimento no que ele espera serem tecnologias nucleares de quarta geração e seguras.

Essas medidas, aplicadas em conjunto, representam uma estratégia abrangente de saída das mudanças climáticas.

Um cavalo de troia conservador.

A recém-formada Cúpula dos Líderes sobre o Clima (CLC) publicou “Uma Defesa Conservadora dos Dividendos Climáticos” em fevereiro de 2017. Seis ex-líderes do Partido Republicano e o ex-presidente da Walmart assinaram o documento, temendo que políticas anti-ambientais grosseiras prejudicassem os Republicanos nas pesquisas, levando “jovens votantes[,] que detém a chave para a futura fortuna política de cada partido,” a apoiarem defensores de “regulações de comando e controle inibidoras de crescimento.”

Para evitar isso, eles propuseram um plano “que demonstrasse o inteiro poder de convicções conservadoras duradouras.” Sua principal proposta — um imposto gradualmente crescente sobre as emissões de dióxido de carbono distribuído a todos os cidadãos estadunidenses — se assemelha ao plano de taxas e dividendos de Hansen, mas, em contraste agudo à sua abordagem, eles insistem que ela deve estar atrelada a um “retorno regulatório significante.” Sem o banimento a combustíveis não-convencionais, sem o fechamento de usinas a carvão, e sem o investimento em conservação e energia limpa. “Muito da autoridade regulatória da EPA (Agência de Proteção Ambiental) sobre emissões de dióxido de carbono seria eliminada gradualmente, incluindo uma revogação aberta do Clean Power Plan (Plano de Energia Limpa),” eles escrevem, e cidadãos não teriam permissão para processar emissores por danos.

Além disso, o crescimento de taxas iria acabar automaticamente depois de cinco anos, a não ser que um “Painel de Fita Azul” (um painel governamental de alto nível) decida o contrário. Eles não especificam a composição do painel, mas não nos surpreenderíamos quando interesses em combustíveis fósseis desempenhassem um grande papel.

Em suma, a caricatura do CLC de um plano de taxas e dividendos não mira em uma prevenção das mudanças climáticas. É um cavalo de Troia para eliminar todas as medidas práticas que poderiam contribuir para tal objetivo.

Na prática, claro, líderes republicanos de fato decidiram por abolir proteções regulatórias sem se darem ao trabalho de determinar um preço do carbono ou prometer a eleitores um dividendo, então a preocupação de Tanuro de que o plano CLC “poderia formar consenso público de maneira real” parece deslocada.

Ecossocialistas e o programa de Hansen

Essa fraude conservadora não é o mesmo que o plano de Hansen, e não tem qualquer semelhança com o programa revolucionário ecossocialista que viemos defendendo por anos.

Contudo, Tanuro conecta tendenciosamente as perspectivas de Hansen às dos conservadores — descrevendo o plano do CLC como “uma ideia inicialmente proposta pelo proeminente climatologista James Hansen” e afirmando que “Hansen formulou originalmente o plano.” Ele se refere a “Hansen e as propostas do CLC” como se fossem idênticas. Então, para a nossa surpresa, ele afirma que John Bellamy Foster “apoiou fortemente o imposto sobre dividendos,” assim como “seus seguidores, que incluem Ian Angus”. Ele dedica a segunda metade do seu artigo para nos criticar por isso.

Tanuro pode não ter tido a intenção de identificar as nossas perspectivas com as do reacionário CLC , mas certamente essa é a impressão que seu artigo dá.

Apesar de nós dois termos escritos múltiplos artigos sobre a abordagem de Hansen à mudança climática, a crítica de Tanuro é baseada em apenas um exemplo, “James Hansen e a Estratégia de Saída das Mudanças Climáticas” de Foster, publicado cinco anos atrás. Aquele artigo, o primeiro em qualquer publicação socialista a discutir a natureza e significado das propostas de Hansen, tem duas seções principais: “A Estratégia de Saída de Hansen,” um relato objetivo sobre o programa, e “A Pegada Ecológica do Capitalismo: Para além da Estratégia de Saída de Hansen,” uma crítica ecossocialista que defende “uma transformação social muito maior” do que Hansen imagina. (Nós achamos que as críticas a Hansen que Foster faz na segunda seção são, na verdade, bem mais afiadas e completas do que as de Tanuro.)

Em uma curta seção de conclusão, Foster argumenta que a abordagem de Hansen, apesar de suas limitações, representa um importante avanço no movimento para impedir o ecocídio capitalista.

Ao longo do artigo, Foster usa o termo “estratégia de saída” para se referir ao programa inteiro de Hansen, incluindo seu foco no fechamento de oleodutos, usinas a carvão, e operações com combustíveis não-convencionais. Taxas e dividendos compõem apenas uma parte do programa e, como Foster afirma claramente, ela não se sustenta sozinha: “todas as estratégias exclusivamente baseadas no mercado tendem a sair pela culatra, já que elas se apoiam principalmente em incentivos econômicos.” O plano de taxas e dividendos de Hansen, Foster escreve, “é apenas um único ponto de apoio no que deve ser uma estratégia bem mais abrangente de saída das mudanças climáticas.

Apesar disso, Tanuro repetidamente trata os comentários positivos de Foster sobre a estratégia inteira como entusiasmo pelo componente de taxas e dividendos. Ele diz, por exemplo, que nós “argumentamos que o imposto sobre dividendos é a única abordagem viável no contexto atual”. No contexto, as palavras de Foster claramente dizem que esse é o ponto de vista de Hansen, não o nosso: “Isso levou ele a promover taxas e dividendos como a única abordagem viável para diminuir as emissões de carbono rapidamente” (ênfase adicionada).

De fato, Tanuro repetidamente confunde a apresentação de Foster das visões de Hansen com a própria opinião de Foster acerca dessas visões. Por exemplo, Foster elogia Hansen, que não é um socialista, por fazer uma “tentativa calculada de levar a cabo o plano máximo que se poderia conceber ser aceitável pelo regime do capital”. O comentário claramente se refere às intenções de Hansen com toda a estratégia de emergência, mas nas mãos de Tanuro, isso se torna, “Eles argumentaram que o imposto sobre dividendos é... 'o máximo que o capital poderia racionalmente aceitar', como Foster coloca”.

De forma similar, Tanuro se opõe à descrição de Foster do programa de Hansen como um “primeiro passo,” porque “a solução pode vir apenas… da convergência das lutas concretas dos explorados e oprimidos,” implicando que Foster ignoraria tais lutas. Ele não consegue perceber que imediatamente após mencionar esse primeiro passo, Foster adverte:

Uma solução real demanda uma alteração radical nas prioridades sociais — o tipo de transformação revolucionária que poderia ocorrer em velocidade inimaginável se a população atingisse um dia seu próprio ponto de inflexão sócio-ambiental.

Frequentemente, Tanuro tira as palavras de Foster de contexto, mudando seu significado. Ele escreve: “Foster argumenta que a proposta [de taxa e dividendo] de Hansen é ‘objetivamente revolucionária.’ “ Aqui está a frase inteira de Foster:

O que é objetivamente revolucionário na proposta de Hansen é sua raiz em um senso compartilhado de emergência e de crise que pode ser prontamente comunicado no centro do sistema, nas próprias economias de capital financeiro monopolista.

Nenhum de nós jamais sugeriu que um plano de taxas e dividendos por si só é revolucionário. Como Angus escreveu:

Taxas e dividendos podem ser parte de um programa de ação radical contra as mudanças climáticas, mas não são suficientes por si só, e não são adequados para a construção de movimentos de massas que socialistas sabem ser necessários.

Corrigindo todos os erros de má citação e representação nesse artigo tomaria muito mais tempo e espaço, mas achamos que o ponto está feito. Daniel Tanuro está nos criticando — e a Hansen — por pontos de vista que não temos.

A importância da estratégia de saída

Reduzido ao essencial, o artigo de Tanuro traz dois pontos importantes. Primeiro, “o mercado não pode ser a solução... Temos que confrontar as dinâmicas de acumulação, o que o plano de taxas e dividendos simplesmente não consegue fazer.” E, segundo, precisamos “de uma estratégia de aliança com os explorados e oprimidos para desenvolver uma alternativa ecossocialista.”

Concordamos inteiramente. Isso é exatamente o que Foster argumenta no mesmo artigo que Tanuro critica:

A estratégia de saída de Hansen, apesar de todos os seus pontos fortes, é ainda insuficiente. Sua fraqueza é que ela não vai longe o suficiente no enfrentamento às contradições sócio-sistêmicas geradas pela estrutura de poder do capital monopolista-financeiro atual. O que é necessário sob as presentes circunstâncias é a aceleração da história envolvendo uma reconstituição da sociedade. Os tipos de mudanças a serem consideradas no contexto de uma emergência planetária não podem ser confinados a canais estreitos que a classe dominante e sua poderosa elite política irão aceitar. Pelo contrário, uma estratégia efetiva de saída das mudanças climáticas deve contar com uma transformação social muito maior que pode ser desencadeada apenas por meio de mobilizações democráticas em massa.

Ecossocialistas não precisam debater se soluções de mercado podem fazer o trabalho (elas não podem) ou se precisamos construir um movimento de massas que consiga barrar o ecocídio capitalista (obviamente precisamos). O problema real é: como vamos daqui para lá? Como podem os ecossocialistas, uma corrente política relativamente pequena, contribuírem com a construção de um amplo e unido movimento que concordamos que é necessário?

O artigo de Tanuro não aborda o contexto prático no qual a estratégia de saída das mudanças climáticas de Hansen se desenvolveu. Organizações conservadoras e liberais que trabalham próximas às companhias de combustíveis fósseis vêm dominando por muito tempo o movimento verde estadunidense. Como Naomi Klein demonstra em Isso Muda Tudo, os maiores grupos verdes têm “enredado seus destinos com as corporações no cerne da crise climática… As mãos de quase ninguém estão limpas.” Teremos pouco progresso contra as mudanças climáticas enquanto tais forças possuírem controle político e organizacional.

É por isso que ecossocialistas devem apoiar grupos e campanhas como 350.org, Idle No More, e NoDAPL. Enquanto poucos desses “novos guerreiros climáticos,” como Klein os designa, são explicitamente anticapitalistas, eles ainda assim arriscam seus corpos para barrar os projetos mais destrutivos do capital.

James Hansen desempenhou um papel crítico na motivação e construção do novo movimento climático radical. Ele não é apenas qualquer cientista climático ou apenas qualquer ativista. Desde que prestou depoimento pela primeira vez em um comitê congressional em 1979, ele tem sido reconhecido como o principal climatologista do mundo e um ator central no novo movimento climático:

Ele foi preso em uma tentativa de proibir usinas a carvão e em um protesto contra o oleoduto Keystone XL, projetado para trazer areia betuminosa de Alberta para o Golfo do México. Seu ativismo e o fato de ele estar disposto a ir preso por essas questões demonstram o que ele considera ser essencial.

Uma estratégia de saída das mudanças climáticas concebida por ecossocialistas teria sem dúvidas sido mais forte e mais radical do que a de Hansen, mas não teria tido a mesma relevância ou credibilidade científica. Quando uma figura de tal proeminência chega a conclusões radicais provindas da falha dos governos e de corporações em agir, a Esquerda precisa prestar atenção.

Foster escreveu seu artigo de 2013 exatamente por essa razão: para alertar ecossocialistas e outras pessoas da esquerda sobre uma importante inflexao nas políticas verdes, uma mudança profunda que oferece novas possibilidades para a ação unida contra o ecocídio capitalista. Escrevemos tais artigos porque concordamos com Marx: “Todo passo do movimento real é mais importante do que uma dúzia de programas.”

Discordamos com aspectos do programa de Hansen. Nos incomodamos com seu apoio à energia nuclear e achamos que ele dá ênfase demais à parte de taxas e dividendos do seu programa. Mas nunca conseguiremos construir um movimento amplo se insistirmos em unanimidade. A não ser que você acredite que se deva, por uma questão de princípio, fazer oposição absoluta à precificação do carbono — e não é essa a visão de Tanuro, já que ele é favorável a uma taxação sobre o combustível de aeronaves — não há motivo para rejeitar de imediato a estratégia de saída de Hansen.

Não estamos debatendo se taxas e dividendos oferecem uma solução completa, mas se um programa que os inclui, assim como campanhas pelo fechamento de usinas de carvão, fracking e mineração de areias betuminosas, pode contribuir para um movimento de massas contra as mudanças climáticas.

Enquanto construímos esse movimento, vamos nos deparar com o trabalho em conjunto com pessoas que pensam que “precificar o carbono” representa a melhor solução. (Se não nos depararmos com esse trabalho em conjunto, não estamos obtendo alcance suficiente!) Deveriam os ecossocialistas simplesmente afastar essas pessoas? Ou deveríamos as conduzir mais à esquerda, argumentando, “se tal programa for introduzido, ele deve alvejar diretamente as corporações de combustíveis fósseis, enquanto protege os padrões de vida do povo trabalhador e dos pobres,” como a proposta de Hansen almeja?

Precisamos de um programa para a ação contra as mudanças climáticas que possa ganhar apoio de um amplo alcance de correntes e ativistas em potencial. O programa de Hansen pode não ser perfeito, mas não conhecemos uma proposta melhor vinda de um ambientalista com a influência que ele tem.

O plano de taxas e dividendos não entra em conflito com a construção de um movimento de massas, a não ser que o apresentemos como a única solução. Como parte de uma estratégia de saída ampla na linha do que Hansen propõe, esse plano oferece uma base consistente para o desenvolvimento de um movimento amplo contra as mudanças climáticas e avança uma contestação sistêmica ao capitalismo.

Concordamos com Daniel Tanuro que o mercado não é a resposta: o ecossocialismo é a resposta. Apenas de quaisquer desacordos que tenhamos, esperamos poder trabalhar com ele nesse projeto de vital importância.

Colaboradores

Ian Angus é editor do site Climate & Capitalism e autor do livro Facing the Anthropocene.

John Bellamy Foster é editor da revista Monthly Review e professor de sociologia na Universidade de Oregon.

25 de abril de 2017

Gramsci e a Revolução Russa

O que pensou um jovem Antonio Gramsci sobre a Revolução Russa?

Alvaro Bianchi e Daniela Mussi

Jacobin


Tradução / Oitenta anos atrás, em 27 de abril de 1937, Antonio Gramsci morreu depois de passar sua última década numa prisão fascista. Reconhecido postumamente por seu trabalho teórico em seus cadernos do cárcere, as contribuições políticas de Gramsci começaram durante a Guerra Mundial, quando ele era um jovem estudante de linguística na Universidade de Turim. Mas mesmo naquela época, seus artigos na imprensa socialista desafiavam não apenas a guerra, mas a cultura italiana liberal, nacionalista e católica.

No começo de 1917, Gramsci estava trabalhando como jornalista num pequeno jornal socialista de Turim, Il Grido del Popolo (“O grito do povo”) e colaborando com a edição piemontesa do jornal Avanti! (“Avante!”). Nos primeiros meses após a Revolução de Fevereiro na Rússia, as notícias sobre ela eram ainda escassas na Itália. Elas estavam sendo limitadas, em grande parte, à mera reprodução de artigos de agências de notícias de Londres e Paris. No Avanti!, alguns artigos que cobriam a Rússia passaram a vir assinados por “Junior”, um pseudônimo de Vasilij Vasilevich Suchomlin, um exilado russo Socialista-Revolucionário.

Para abastecer os socialistas italianos com informação confiável, a liderança do Partido Socialista Italiano (PSI) mandou um telegrama para o deputado Oddino Morgari, que na época encontrava-se em Haia, pedindo a ele para ir até Petrogrado e entrar em contato com os revolucionários. A viagem não deu certo e Morgari retornou para a Itália em julho. No dia 20 de abril, o Avanti! publicou uma nota, escrita por Gramsci, sobre a tentativa de viagem do congressista, chamando-o de o “embaixador vermelho”. Seu entusiasmo sobre os eventos na Rússia era visível. Nesse momento, Gramsci considerou que a força potencial da classe trabalhadora italiana para enfrentar a guerra estava diretamente conectada com a força do proletariado russo. Ele acreditou que, com a revolução na Rússia, todas as relações internacionais iriam fundamentalmente serem mudadas.

A Guerra Mundial estava passando por seus momentos mais intensos e a mobilização militar afetava profundamente o povo italiano. Angelo Tasca, Umberto Terracini e Palmiro Togliatti, amigos e camaradas de Gramsci, foram convocados para o front – no que Gramsci escapou por conta de sua saúde precária. Essa acabou sendo a forma pela qual o jornalismo tornou-se o seu “front”. Em seu artigo sobre Morgari, Gramsci citava favoravelmente uma declaração dos Socialistas-Revolucionários russos, publicada na Itália pelo Corriere della Sera, conclamando todos os governos da Europa a abandonarem suas ofensivas militares e fazerem apenas manobras defensivas diante dos ataques alemães. Essa era a posição do “defensismo revolucionário”, adotada por uma grande maioria na Conferência Pan-Russa dos Sovietes, em abril. Poucos dias depois, o Avanti! iria reproduzir a resolução dessa conferência, traduzida por Junior.

Mas conforme novas notícias chegaram, Gramsci começou a desenvolver sua própria interpretação sobre o que estava acontecendo na Rússia. No final de abril de 1917, ele publicou no Il Grido del Popolo um artigo intitulado “Note sulla rivoluzione russa” (“Notas sobre a Revolução Russa”). Contrário à posição de muitos socialistas na época – que analisavam os eventos russos como uma nova Revolução Francesa – Gramsci a tratou como um “ato proletário” que levaria ao socialismo.

Para Gramsci, a Revolução Russa era muito diferente daquela do modelo jacobino, visto como uma mera “revolução burguesa”. Ao interpretar os eventos de Petrogrado, Gramsci expôs um programa para o futuro. Visando dar continuidade ao movimento e ir em direção a uma revolução dos trabalhadores, os socialistas russos deveriam romper definitivamente com o modelo jacobino – identificado aqui com o uso sistemático da violência e com a baixa atividade cultural.

Nos meses seguintes de 1917, Gramsci rapidamente alinhou sua posição com a dos Bolcheviques, algo que ficou expresso também na sua identificação com as facções mais radicais e anti-guerra do PSI. Num artigo de 28 de julho, “I massimalisti russi” (“os maximalistas russos”), Gramsci declarou total suporte a Lenin e ao que ele chamava de política “maximalista”. Isso representava, em sua opinião, “a continuidade da revolução, o ritmo da revolução e, portanto, a própria revolução”. Os maximalistas eram a encarnação da “ideia-limite de socialismo”, sem qualquer compromisso com o passado.

Gramsci insistia que a revolução não podia ser interrompida e que deveria superar o mundo burguês. Para o jornalista do Il Grido del Popolo, o maior risco das revoluções, especialmente da Russa, era o desenvolvimento da percepção de que o processo tivesse atingido um ponto de fechamento. Os maximalistas eram a força que se opunha a essa interrupção e, por conta disso, “o último elo lógico do devir revolucionário”. No raciocínio de Gramsci, a totalidade do processo revolucionário estava encadeada e era impulsionada num movimento no qual os mais fortes e mais determinados conseguiriam arrastar os mais fracos e mais confusos.

No dia 5 de agosto, uma delegação russa representando os sovietes chegou em Turim, incluindo nela Josif Goldemberg e Aleksandr Smirnov. A viagem tinha sido autorizada pelo governo italiano, que tinha esperança militaristas de que o novo governo russo iria dar continuidade à guerra contra a Alemanha. Após encontrar-se com os delegados russos, os socialistas italianos expressaram sua perplexidade com as ideias que ainda eram dominantes dentro dos sovietes russos. No dia 11 de agosto, o editor do Il Grido del Popolo questionava:

Quando nós ouvimos os delegados dos sovietes russos falarem em defesa da continuação da guerra em nome da revolução, nós perguntamos ansiosamente se isso não significava, então, aceitar ou até mesmo desejar a continuação da guerra para proteger a supremacia dos interesses dos capitalistas russos contra os avanços do proletariado?

Apesar disso, a visita dos delegados dos sovietes foi uma oportunidade para propagandear a revolução e os socialistas italianos aproveitaram o momento. Após terem passado por Roma, Florença, Bologna e Milão, a delegação retornou à Turim. Em frente da Casa del Popolo, quarenta mil pessoas deram as boas-vindas para a Revolução Russa na primeira grande manifestação pública na cidade desde o início da guerra. Na sacada da casa, Giacinto Menotti Serrati, o então líder da ala maximalista dentro do partido e firme opositor da guerra, traduziu o discurso de Goldemberg. E conforme o delegado falou, Serrati disse que os russos queriam o fim imediato da guerra e concluiu a “tradução” gritando “Viva a Revolução Italiana”, no que a multidão respondeu gritando de volta “Vida longa à Revolução Russa! Vida longa à Lênin!”

Gramsci relatou entusiasmadamente sobre esse comício com os delegados russos da revolução no Il Grido del Popolo. A manifestação promoveu, em sua opinião, uma verdadeiro “espetáculo das forças proletárias e socialistas em solidariedade com a Rússia revolucionária”. Alguns dias depois, esse espetáculo tomaria novamente as ruas de Turim.

Na manhã do dia 22 de agosto não havia mais pão em Turim, resultado de uma longa crise de abastecimento provocada pela guerra. Ao meio-dia os operários pararam o trabalho nas fábricas da cidade. Às 5 da tarde, quando quase todas as fábricas tinham parado, a multidão começou a marchar pela cidade, saqueando padarias e depósitos. A insurreição espontânea, que não havia sido convocada por ninguém, espalhou-se e rapidamente dominou a cidade. A restauração do abastecimento de pão não parou o movimento, que rapidamente assumiu um caráter político.

Na tarde seguinte, o poder em Turim foi transferido para o Exército, que tomou controle do centro da cidade. Os saques e a construção de barricadas continuaram nos limites de Turim. No Borgo San Paolo, um enclave socialista, os manifestantes atacaram e atearam fogo na igreja de San Bernardino. A polícia atirou contra a multidão. Os conflitos se intensificaram até o dia 24 de agosto. Na manhã desse dia, os manifestantes tentaram chegar ao centro da cidade, mas sem sucesso. Algumas horas depois, eles enfrentaram tiros do Exército que vinham de metralhadoras e carros blindados. No final do dia, a trilha de destruição contabilizava vinte e quatro mortos e mais de 1.500 pessoas presas. A greve continuaria até a manhã seguinte, mas sem as barricadas. Em seguida, vinte e quatro dirigentes socialistas foram presos. Essa rebelião espontânea chegava ao seu fim.

O jornal Il Grido del Popolo não circulou nesses dias. Ele iria retomar suas atividades no dia 1º de setembro, agora sob a direção de Gramsci, que estava substituindo a líder socialista que tinha sido presa, Maria Giudice. A censura estatal não permitia que fosse publicada qualquer referência a insurreição. Gramsci então aproveitou a oportunidade para fazer uma pequena referência à Lênin: “Kerensky representa a fatalidade histórica, mas certamente Lênin representa o devir socialista e nós estamos com ele, com todo nosso entusiasmo”. Aquela era uma referência aos dias de julho na Rússia e a perseguição política aos Bolcheviques que tinha acontecido logo em seguida e que acabaram forçando Lênin a se refugiar na Finlândia.

Alguns dias depois, no dia 15 de setembro, quando as tropas lideradas pelo general Layr Kornilov marcharam em direção a Petrogrado para restaurar a ordem contrarrevolucionária, Gramsci mais uma vez referenciou aquela “revolução que ocorreu nas consciências”. E em 29 de setembro, Lênin novamente foi definido como o “agitador das consciências, o despertador das almas adormecidas”. A informação existente na Itália ainda não era confiável e estava sendo filtrada pelas traduções de Junior no Avanti!. Nessa altura, Gramsci ainda identificava o Socialista-Revolucionário Viktor Chenov como “o homem que tem um programa concreto para a ação, um programa que é completamente socialista, que não admite a colaboração de classes e que não pode ser aceito pela burguesia porque ele subverte o princípio da propriedade privada, porque ele é finalmente o começo da revolução social”.

Enquanto isso, a crise política na Itália continuava. Depois da derrota do Exército italiano na Batalha de Caporetto, no dia 12 de novembro, a facção parlamentar dos socialistas, liderada por Filippo Turati e Cladio Treves, adotou uma postura abertamente nacionalista e passou a advogar pela defesa da “nação”, distanciando-se do “neutralismo” dos anos anteriores. Nas páginas do jornal Critica Sociale, Turati e Treves publicaram um artigo que afirmava a necessidade do proletariado defender seu país em momentos de perigo.

A intransigente facção revolucionária do partido, por sua vez, também se organizou diante da nova situação. Em novembro, os líderes dessa facção chamaram uma reunião secreta em Florença para discutir a “futura orientação do nosso partido”. Gramsci, que tinha começado a assumir um importante papel na seção de Turim do partido, participou da reunião na condição de representante. No encontro, ele se alinhou com aqueles que defendiam a necessidade de agir de forma militante, como Amadeo Bordiga, enquanto Serrati e outros falaram na necessidade de manter a velha tática neutralista. A reunião terminou reafirmando os princípios do internacionalismo operário e a oposição à guerra, mas sem nenhuma orientação prática sobre como agir.

Gramsci interpretou os eventos de agosto, em Turim, sob a luz da Revolução Russa e após ter retornado da reunião, ele estava convencido de que o momento exigia ação. Animado por esse otimismo e pelos ecos que falavam da tomada de poder na Rússia pelos Bolcheviques, ele escreveu, em dezembro, um artigo chamado “La rivoluzione contro ‘Il Capitale‘” (“A revolução contra o ‘Capital’”); nele, Gramsci declarava que “a revolução Bolchevique definitivamente era a continuação da revolução geral do povo russo”.

Após ter impedido que a revolução estagnasse, os partidários de Lênin tomaram o poder numa posição que estabelecia a “sua ditadura” e elaboraram “formas socialistas pelas quais a revolução invariavelmente tinha que conformar para continuar seu desenvolvimento de forma harmoniosa”. Em 1917, Gramsci não tinha uma noção clara de todas as diferenças políticas dentre os revolucionários russos. Além disso, o centro de suas ideias sobre a revolução socialista era uma presunção genérica que concebia que ela seria um movimento contínuo, “sem confrontos violentos”.

Por sua íntima e irresistível força cultural, a revolução dos Bolcheviques “era baseada mais em ideologias do que em fatos”. Por essa razão, a revolução não poderia ser lida seguindo à risca “a letra [do texto] de Marx”. Na Rússia, continuava Gramsci, o Capital era “o livro da burguesia e não dos operários”. Ele se referia aqui ao Prefácio de 1867, no qual Marx afirmava que as nações com maior desenvolvimento capitalista mostravam o caminho para as subdesenvolvidas, os “estágios naturais” do progresso que não poderiam ser saltados.

Com base nesse texto, os Mencheviques formularam uma leitura do desenvolvimento social na Rússia que afirmava a necessidade de formar uma burguesia e uma constituição totalmente adequadas ao desenvolvimento da sociedade industrial antes do socialismo tornar-se uma possibilidade. Mas, de acordo com Gramsci os revolucionários, sob a liderança de Lênin, “não eram marxistas” no sentido estrito do termo, ou dito de outra forma, ainda que eles não recusassem o “pensamento imanente” de Marx, eles “renegavam algumas das afirmações do Capital” e recusavam-se a toma-lo como uma “doutrinazinha exterior, cheia de afirmações dogmáticas e frases indiscutíveis”.

De acordo com Gramsci, as predições de Marx sobre o desenvolvimento do capitalismo expostas no Capital estariam corretas nas situações de desenvolvimento normal nas quais a formação de uma “vontade popular coletiva” ocorreria a partir de “uma longa série de experiências de classe”. A guerra, contudo, havia acelerado essa temporalidade de forma imprevisível e, dentro de três anos, os trabalhadores russos tinham vivenciado intensamente essas experiências. “O alto custo de vida, a fome, a morte decorrente dela, tudo isso atingia a todos, dizimando dezenas de milhões de pessoas na época. [Contra] esse estado de coisas, a vontade coletiva foi colocada em uníssono, inicialmente de forma mecânica e, depois da primeira revolução, de forma espiritual”.

Essa vontade popular coletiva foi cultivada pela propaganda socialista. Ela havia permitido que os trabalhadores russos, numa situação excepcional, vivessem a totalidade da história do proletariado em um instante. Os trabalhadores reconheceram os esforços de seus ancestrais em prol da emancipação contra os “laços de servilismo” e rapidamente desenvolveram uma “nova consciência”, tornando-se “testemunhas presentes de um mundo futuro”. Além disso, atingindo essa consciência num momento no qual o capitalismo internacional estava completamente desenvolvido em países como a Inglaterra, o proletariado russo podia rapidamente atingir sua maturidade econômica, uma condição necessária para o coletivismo.

Apesar de que em 1917 ele ainda tinha pouco conhecimento sobre as ideias dos Bolcheviques, o jovem editor do Il Grido del Popolo havia feito um movimento natural de aproximação com a fórmula de Trotsky de revolução permanente. Gramsci viu em Lênin e nos Bolcheviques a encarnação de um programa de renovação de uma revolução ininterrupta. Uma revolução que ele queria que se tornasse real também na Itália.

Vinte anos depois, Gramsci morreu como prisioneiro do fascismo italiano. Tal olhar retrospectivo poderia nos levar a crer que esse destino trágico teria levado Gramsci a questionar as grandes esperanças que ele viu surgirem com os eventos de outubro de 1917. Ou até mesmo que seus Cadernos do Cárcere seriam um exercício para encontrar “novas formas”, mais moderadas ou negociadas, para lutar contra o capitalismo.

Mas nunca houve tal rendição. Em seus escritos no cárcere, Gramsci construiu uma teoria da política na qual a força e o consenso não são elementos separados e na qual o Estado é concebido como o resultado histórico de processos de forças entrelaçadas, processos nos quais raramente produzem condições vantajosas para os grupos subalternos. Ele escreveu sobre a necessidade de armar as lutas em todas as esferas da vida e também sobre os riscos de uma acomodação hegemônica e de um “transformismo político”. Ele deu atenção especial para o papel – quase sempre deletério – dos intelectuais na vida popular e sobre a importância de avançar no marxismo enquanto visão de mundo integral – a filosofia da práxis.

Sendo assim, durante seus anos de prisão não há nada que indique que Gramsci havia abandonado a Revolução Russa como uma referência histórica e programática para a emancipação da classe trabalhadora. A Revolução Russa permaneceu viva na mente e no coração de Gramsci até a sua morte, em 27 de abril de 1937.

19 de abril de 2017

Relembrando a Revolta do Gueto de Varsóvia

Neste dia, em 1943, um grupo de combatentes da resistência judaica lançou uma insurreição armada contra os nazistas. Eles eram socialistas e internacionalistas orgulhosos.

Marcus Barnett

Combatentes da resistência judaica durante a Revolta do Gueto de Varsóvia. WWII War Crimes Records

Tradução / Na véspera da Páscoa de 1943 — dezenove de abril — um grupo de algumas centenas de jovens judeus mal armados começou o Levante do Gueto de Varsóvia, uma das primeiras insurreições contra o nazismo.

Para um pequeno grupo de combatentes, perceber — nas palavras líricas de um militante — que “morrer com armas é mais bonito do que sem”, um grupo isolado de militantes judeus resistiu por vinte e nove dias contra um inimigo muito maior, motivado pelo desejo de matar o maior número possível de fascistas antes de serem mortos. O levante, gravado na memória coletiva dos judeus do pós-guerra, continua emotivo e encorajador.

Que o heroísmo deles foi uma parte crucial da guerra é contestado por ninguém hoje. Mas menos conhecido é o quanto o levante, longe de ser espontâneo, foi produto de planejamento e preparação de um grupo relativamente pequeno — incrivelmente jovem — de radicais judeus.

O Gueto

Dentro de algumas semanas da consolidação nazista da Polônia, o Governador Hans Frank ordenou que quatrocentos mil judeus de Varsóvia entrassem em um gueto. Até novembro de 1940, cerca de quinhentos mil judeus de toda a Polônia haviam sido selados atrás de seus muros, cortados do mundo exterior e mergulhados em isolamento social. Cercado por uma barreira de três metros de altura, a criação do gueto significava a realocação de aproximadamente 30% da população de Varsóvia em 2,6% da cidade, sendo a área designada não mais do que dois quilômetros e meio de comprimento e que anteriormente abrigava menos de 160.000 pessoas.

No gueto, os judeus eram forçados a viver em fome e pobreza crônicas. Muitas famílias habitavam um único cômodo, e a falta crônica de alimentos significava que aproximadamente cem mil pessoas sobreviviam com não mais do que uma única tigela de sopa por dia. O sistema de saneamento entrou em colapso, e doenças se tornaram endêmicas. A partir de março de 1942, cinco mil pessoas morriam a cada mês de doenças e desnutrição.

A situação era grave — e, no entanto, a resposta inicial da liderança da comunidade judaica foi de inação. Após a criação do Judenrat (Conselho Judeu) — uma organização colaboracionista estabelecida com a aprovação nazista para facilitar a implementação das políticas antissemitas — alguns habitantes caíram em uma falsa sensação de segurança. Uma atitude permeou o gueto, através da lente da história judaica, de que o nazismo era apenas mais uma forma de perseguição que o povo judeu deveria sofrer e resistir.

Contra essa desmoralização, círculos de desafio podiam ser encontrados na auto-organização da ala esquerda da comunidade judaica. Comunistas, sionistas socialistas de várias descrições e sociais-democratas se organizaram em seções no gueto, com o objetivo de transformar a miséria em organização política significativa. Todas as partes — o Bund, uma organização de massa social-democrata que desfrutava de enorme popularidade pré-guerra; o grupo juvenil marxista-sionista Hashomer Hatzair; o partido sionista de esquerda Left Poale Zion; e o Partido Comunista — dedicaram-se a essa estratégia, organizando células que buscavam reviver atitudes coletivistas entre uma juventude judia emocionalmente prejudicada e descontente.

Em tempos sombrios, as estruturas de células das organizações juvenis forneciam uma âncora social e psicológica contra a fome e a depressão. “O dia em que consegui restabelecer o contato com meu grupo”, escreveu a militante jovem comunista Dora Goldkorn, “foi um dos dias mais felizes da minha vida dura e trágica no gueto.” No projeto de desenvolver uma liderança de resistência entre os jovens, manter o moral elevado era crucial; atos de amizade como a partilha de alimentos eram tão importantes quanto a distribuição de literatura antinazista.

Em 1942, as várias organizações juvenis sentiram-se confiantes o suficiente para considerar a formação de um “Bloco Antifascista”. Sob a insistência dos comunistas, um manifesto foi redigido visando unir a esquerda judaica no Gueto de Varsóvia, com a esperança de generalizar essa unidade política por outros guetos.

Pedindo um “frente nacional” contra a ocupação, pela unidade de todas as forças progressistas com base em demandas comuns e pelo antifascismo armado, o manifesto ecoava as Metas Frentistas pré-guerra em sua metodologia organizacional.

O Left Poale Zion aderiu entusiasticamente, assim como o Hashomer Hatzair — que reforçou sua fidelidade à União Soviética, apesar da oposição do Kremlin ao sionismo. O Bund, no entanto, era menos confiável, devido ao seu anticommunismo histórico e rejeição à ação armada especificamente judaica; um partido que afirmava resolutamente que a Polônia era o lar dos judeus poloneses, muitos bundistas recusavam-se a seguir caminhos além da unidade de ação polonesa-judaica.

O jornal do Bloco Antifascista, Der Ruf, foi publicado duas vezes. Seu conteúdo enfocava predominantemente o aplauso à resistência soviética e instava os habitantes do gueto a resistirem pela libertação iminente nas mãos do Exército Vermelho.

Os esquadrões de combate do bloco continham militantes pertencentes a todas as variedades de grupos do movimento trabalhista, mas o pilar da organização era Pinkus Kartin. Um firme comunista na Polônia pré-guerra e veterano das Brigadas Internacionais na Espanha, Kartin era líder tanto politicamente quanto militarmente. Para o historiador Israel Gutman, que também foi ativo no Hashomer Hatzair em sua juventude, Kartin “sem dúvida impressionou” os jovens e inexperientes quadros da clandestinidade.

Foi a prisão e o assassinato de Kartin em junho de 1943 que sinalizou o fim para o Bloco Antifascista. Sua prisão desencadeou uma intensa repressão contra os proeminentes jovens comunistas, que viram seus números dizimados e foram forçados a se esconder. Por essa razão, quando a Organização de Luta Judaica (ZOB) foi fundada alguns meses depois, os comunistas estavam ausentes no início — embora sua linha política fosse mantida e aplicada por pessoas como Abraham Fiszelson, líder do Left Poale Zion que havia sido braço direito de Kartin e se tornara amigo dele na Espanha.

Durante esse período, figuras da ala direita da comunidade judaica formaram um grupo rival, a União Militar Judaica (ZZW). Liderada pelo grupo sionista de direita Betar e financiada pela alta sociedade, a ZZW dependia de ex-oficiais do exército que podiam lutar uma guerra ortodoxa com os nazistas usando disciplina militar regular — ao contrário da ZOB, que se considerava a expressão armada do movimento trabalhista judeu. Além disso, as conexões da ZZW com nacionalistas poloneses, o governo polonês no exílio antissemita e o movimento sionista de direita Revisionista provocaram suspeitas entre a liderança da ZOB.

Por outro lado, aos olhos de Israel Gutman, os voluntários típicos da ZOB eram “jovens na casa dos vinte anos, sionistas, comunistas, socialistas — idealistas sem experiência de batalha, sem treinamento militar”. Enquanto a propaganda da ZZW era fortemente nacionalista, a propaganda e a literatura da ZOB incentivavam o internacionalismo antirracista, ofereciam posições intelectuais sobre a situação mundial e debatiam o movimento trabalhista.

Apesar da escuridão de seus tempos, os membros da ZOB pertenciam a uma tradição política que desejava um mundo melhor e buscava criá-lo por meio de sua luta.

A resistência

A ZOB estabeleceu como objetivo uma insurreição antinazista. No entanto, reconhecia que, para alcançar isso, era necessário fortalecer a posição da organização na comunidade em geral — decidiu-se que era preciso envolver a intimidação e execução de colaboradores judeus com os ocupantes.

Para os militantes da ZOB, os colaboradores representavam uma ala auxiliar do fascismo que era instrumental na facilitação da deportação dos judeus poloneses. Para demonstrar que essa postura não seria aceita no gueto, os militantes da ZOB escolheram executar o policial judeu Jacob Lejkin. Por seu “dedicação” em deportar judeus para Auschwitz, Lejkin foi morto a tiros, e seu exemplo desencadeou pânico generalizado no estabelecimento colaborador. Isso foi seguido pela execução de Alfred Nossig em fevereiro de 1943. Józef Szeryński, ex-chefe da polícia do gueto, cometeu suicídio para evitar seu próprio destino.

Esses atos garantiram a centralidade da ZOB no movimento de resistência e também encorajaram a resistência além de suas fileiras. Eles pretendiam provar que desafiar a colaboração era possível e um dever moral — e em pouco tempo conquistaram muitos habitantes do gueto para essa posição.

À medida que os meses avançavam, o espectro da morte se tornava cada vez mais presente. Entre junho e setembro de 1942, trezentos mil judeus haviam sido deportados ou assassinados, uma destruição da comunidade judaica polonesa. Nessas circunstâncias desesperadas, as pessoas perderam todos e muitos jovens começaram a dispensar as ansiedades sobre proteger suas famílias e a se comprometerem com a atividade política militante. Simplesmente, quanto mais judeus eram assassinados nos guetos, menos obrigações pessoais eram sentidas pelos sobreviventes, e mais o sentimento de responsabilidade por causar mais angústia devido a represálias nazistas diminuía.

O desdém foi demonstrado pelo martírio auto-determinado de Adam Czerniakow, o líder do Judenrat que cometeu suicídio em julho de 1942. Para jovens socialistas judeus como o proeminente bundista Marek Edelman, Czerniakow havia “tornado sua morte um assunto privado”, um símbolo de privilégio em contraste com Edelman e seus camaradas trabalhadores que aguardavam sua vez nas listas de deportação. Para eles, ele disse, o sentimento dominante nesses tempos era que a liderança política exigia que “um deveria morrer com um estrondo”.

O levante

Em muitos sentidos, as esperanças da Esquerda em convocar uma luta comum contra a barbárie nazista sobreviveram a seu eleitorado: a comunidade judaica estava em processo de ser exterminada. O que importava agora era a iniciativa que os jovens esquerdistas assumiram por si próprios — e a maioria favorecia um levante.

Na manhã de segunda-feira, 18 de janeiro, seis meses após as primeiras deportações em massa dos judeus de Varsóvia (que reduziram o número de habitantes do gueto de quatrocentos mil para aproximadamente setenta a oitenta mil), os militantes da ZOB emergiram das multidões de deportados para atacar soldados alemães, matando vários.

Uma série de ataques seguiu-se ao longo de quatro dias, onde militantes infiltraram-se nas fileiras de trabalhadores escravos marchando em direção ao Umschlagplatz [Deportação de Judeus], saíram da fila em um sinal dado e assassinaram seus guardas alemães. Embora dezenas de combatentes da ZOB tenham caído, a confusão criada pela luta permitiu que alguns fugissem — e demonstrou a outros que corpos nazistas também podiam cair no gueto.

Em abril de 1943, havia uma consciência geral de que o gueto seria totalmente liquidado. Um levante armado geral estava agendado para acontecer na próxima provocação nazista. Em 19 de abril, cinco mil soldados liderados pelo general da SS Jürgen Stroop entraram no gueto para remover os habitantes restantes; em resposta, aproximadamente 220 voluntários da ZOB começaram seu ataque, localizados em posições improvisadas em porões, apartamentos e telhados, cada um armado com uma única pistola e vários coquetéis Molotov.

O levante causou caos, pegando os nazistas desprevenidos e matando muitos soldados da Wehrmacht e da SS. Em resposta, o exército alemão humilhado, sofrendo perdas nas mãos de prisioneiros que pensavam já terem sido derrotados, iniciou uma política de queima sistemática dos combatentes. Parafraseando um militante da ZOB, foram as chamas — não os fascistas — que os combatentes perderam. Combates viscerais ocorreram por dias, e até o final de abril, a guerra coordenada pela ZOB entrou em colapso, o conflito agora consistindo principalmente nos alemães queimando pequenos grupos de judeus armados de esconderijos construídos para evitar a captura.

Segundo relatos, tanto a bandeira vermelha quanto a bandeira azul e branca do movimento sionista foram hasteadas sobre os edifícios tomados pela ZOB. O lutador mais jovem morto havia sido um ativista bundista com treze anos de idade. Embora claramente inexperiente como força de combate, um documento interno bundista, escrito anonimamente, que chegou a Londres em junho de 1943, enfatizou a “exemplar” unidade política e “fraternidade” entre os grupos de esquerda no combate. A dedicação inabalável com que os jovens combatentes da ZOB se apegaram aos seus sonhos de socialismo foi exemplificada de forma comovente em um comício do Dia do Trabalho realizado entre as ruínas do gueto.

Participando do comício, Marek Edelman refletiu que

O mundo inteiro, sabíamos, estava celebrando o Dia do Trabalho naquele dia e em todos os lugares palavras fortes e significativas estavam sendo ditas. Mas nunca antes a Internacional fora cantada em condições tão diferentes, tão trágicas, em um lugar onde uma nação inteira havia sido e ainda estava perecendo. As palavras e a música ecoaram das ruínas carbonizadas e foram, naquele momento específico, uma indicação de que a juventude socialista [estava] ainda lutando no gueto, e que mesmo diante da morte não estavam abandonando seus ideais.

Os militantes líderes da ZOB cometeram suicídio em massa em 8 de maio, cercados pelo exército alemão em sua base na Mila 18. Até meados de maio, o gueto havia sido arrasado, e a Grande Sinagoga de Varsóvia pessoalmente explodida pelo General Stroop em 16 de maio para celebrar o fim da resistência judaica. Apenas quarenta combatentes da ZOB haviam escapado para o lado “ariano” de Varsóvia, onde muitos mais caíram antes do fim da guerra na subsequente revolta em toda a cidade de 1944.

A lição

Em nossos tempos, o criminoso de guerra George W. Bush pode prestar homenagem confortável aos combatentes do Levante do Gueto de Varsóvia. Também podem os humanitários David Cameron e Barack Obama, que ofereceram discursos repletos de moralismo sobre o heroísmo do levante. Suas platitudes são produto da redução histórica do evento ao longo do tempo — algo que provavelmente aumentará à medida que mais testemunhas do Holocausto nos deixarem, muitas vezes com testemunhos não registrados.

Ainda mais perigosas são as tentativas ativas de apagar a política que produziu tamanha resistência heróica. Apenas esta semana, a Universidade de Vilnius, na Lituânia, anunciou que homenagearia os estudantes judeus assassinados no Holocausto — desde que não tivessem participado de atividades políticas de esquerda ou militância antinazista.

Contra esse ataque à história, a tarefa da Esquerda é defender os combatentes da ZOB da condescendência do patrocínio oficial ou das possibilidades sombrias de demonização pelo estado. Só podemos fazer isso reafirmando o que tantas dessas pessoas eram — jovens militantes, comprometidos com ideais de esquerda, transbordando de entusiasmo por um mundo melhor, levados ao esquecimento ao lado de sua comunidade.

Judeus por nascimento e filiação comunitária, eles também se engajaram na luta como internacionalistas, uma parte determinada de uma luta mundial contra o fascismo e o capitalismo. Por mais enfraquecidos que estivessem, sua atitude — de que se submeter significava morte, que a resistência mesmo diante de chances impossíveis era um imperativo moral — inspirou republicanos espanhóis aprisionados, camponeses comunistas franceses, seus compatriotas poloneses assistindo de trás dos muros do gueto, e seus colegas judeus languidescendo nos campos de concentração.

Sua história é um lembrete da brutalidade e da desesperança do Holocausto, mas também um exemplo brilhante daqueles que, nas piores circunstâncias — nas palavras do poeta partidário Hirsh Glik — nunca poderiam dizer que chegaram à estrada final.

Colaborador

Marcus Barnett é militante internacional da Young Labor e editor associado do Tribune.

Por uma Guiana livre

A Guiana francesa vai às ruas em protesto contra décadas de negligência e baixos investimentos.

Françoise Vergès

Jacobin
Manifestantes em Kouru, Guiana em abril de 2017. Créditos: Jeremy Beck.

Tradução / Em março, sindicatos e associações da Guiana Francesa organizaram um coletivo chamado Pou La Gwiyann dékolé, que significa, no crioulo guianês, “pela separação da Guiana”. Desde então, os ativistas planejaram manifestações, bloquearam estradas, fecharam cidades e comércio marítimo, organizaram uma greve geral e realizaram marchas que reuniram amplos estratos da população, desde estudantes do ensino médio e advogados até camponeses, agricultores e populações indígenas.

Eles apresentaram um memorando de quarenta páginas aos ministros franceses listando suas demandas, abrangendo saúde, educação, agricultura, desenvolvimento e segurança. O movimento denuncia como sucessivos governos franceses trataram a Guiana, citando a infraestrutura em ruínas da região; a falta de segurança e desenvolvimento; a crescente desigualdade e discriminação e o desrespeito generalizado. Os manifestantes repetidamente gritaram “Determinado!” e “Nou bon ké sa” (algo como “Basta!”). Carregaram a bandeira guianesa e cantaram em homenagem a seu país: a Guiana.

O sucesso do coletivo tem sido notável. Os bloqueios de trânsito, sit-ins [“sentaços”], marchas e a paralisação da capital, Cayenne, galvanizaram milhares de pessoas em protestos pacíficos. Os porta-vozes do coletivo mantiveram a multidão informada durante as conversações com o governo. Em 2 de abril, rejeitaram a oferta do governo de desembolsar pouco mais de 1 bilhão de euros; no dia seguinte, o primeiro-ministro declarou que a demanda coletiva por € 2,5 bilhões era “irrealista”.

Pou La Gwiyann dékolé prometeu continuar suas mobilizações e, em 4 de abril, milhares caminharam em direção a Kourou, a base aeroespacial europeia. Eles organizaram um “sit-in” na entrada, e trinta pessoas – incluindo mandatários eleitos, que o coletivo tinha anteriormente alijado – ocuparam o local. No dia seguinte o governo reiterou sua oferta de 1,086 bilhões de euros.

A ocupação terminou logo após a resposta decepcionante do Estado. Os ativistas expressaram sua frustração, denunciaram a contínua falta de respeito do governo e falaram da unidade da Guiana e do endurecimento do movimento. Na quinta-feira, o coletivo manteve seus bloqueios e começou a discutir novas estratégias.

Em maio, a França elegerá um novo presidente, e um novo parlamento virá em junho. Mas Pou La Gwiyann dékolé se recusa a ser refém da política francesa. Em cada barricada, em cada marcha e manifestação, eles gritam o que se tornou seu lema: “Determinado!”.

O movimento levanta questões familiares: que tipo de república reivindica o lema “Liberdade, Igualdade, Fraternidade” enquanto ainda governa tantas ex-colônias? Que tipo de poder imperial está sendo empregado agora? Muitos políticos na França continental repetem o clichê de que essas áreas são “território esquecido”, uma frase que implica amnésia. Em vez disso, não deveríamos discutir as escolhas políticas que criaram o esquecimento e a dependência?

Quando as notícias de um dos treze territórios ultramarinos franceses habitados chegam a Paris os meios de comunicação franceses respondem com surpresa, o público com descaso e os políticos com as mesmas velhas promessas de se lembrar mais dessas regiões. Essas respostas desempenharam papéis essenciais na reconfiguração do espaço republicano francês, transformando o que resta do império francês em um mapa mutilado de controle imperial.

O movimento de resistência guianense está desenvolvendo novas estratégias para conquistar a autodeterminação. Ainda que não consigam trazer a democracia e o desenvolvimento necessários para a Guiana, a sua luta pode ajudar-nos a compreender como a história colonial da França continua a moldar a vida dos seus súditos em todo o mundo.

A União Francesa no pós-guerra


Apesar do fato de Paris ainda governar territórios no Pacífico, no Oceano Índico, no Caribe e na América do Sul, as pessoas que vivem na França continental compartilham da convicção de que, após 1962, seu país abandonou qualquer forma de colonialismo. Os territórios ultramarinos desapareceram da consciência e este véu de ignorância impediu os franceses de se perguntarem por que tantas áreas supostamente descolonizadas ainda vivem sob o domínio imperial.

Lembrar a existência dessas regiões desencadeia uma de duas respostas. Alguns afirmam ter “amor e afeto eterno” para com os territórios e suas populações, enquanto outros se voltam para o discurso familiar da dependência, descrevendo seus concidadãos como preguiçosos, amargos, inconsequentes e irrealistas.

Em ambos os lados, os fatos permanecem vagos. Os ativistas precisam sempre repetir informações geográficas, sociais e políticas; os cidadãos franceses parecem incapazes de acumular esses conhecimentos, não importa quantas vezes eles os ouçam. Sua ignorância, no entanto, não importa de verdade: a verdade sempre pode vir à tona quando as sociedades ultramarinas estão em causa.

Para entender o descontentamento do coletivo guianense devemos retraçar rapidamente a reconfiguração do Estado francês durante o século XX. Depois da Segunda Guerra Mundial – como o racismo era universalmente condenado, os movimentos de descolonização estavam crescendo e a própria natureza do capital estava se transformando – a França revisou seu vocabulário oficial, renunciou a suas práticas imperiais e sugeriu parceria – e não o mero domínio – a suas antigas colônias. Eles chamaram a nova configuração de União Francesa, ligando a França continental – agora chamada de “Hexágono” – às suas ex-colônias como parceiros iguais, com Paris como guia.

Paris reconheceu que precisava de suas colônias. Seus recursos seriam essenciais para a reconstrução no pós-guerra e sua associação manteve o status de França como uma potência global. Enquanto o Estado investiu dinheiro em estradas, portos e outras obras de infraestrutura, pouco fez para acabar com a dependência, poder assimétrico ou racismo. No primeiro programa de desenvolvimento da França pós-guerra (1947-1954), afirmou que o desenvolvimento era impossível em partes de seu antigo império: Reunião, Guadalupe, Guiana e Martinica (que se tornaram departamentos em 1946), Mayotte, Nova Caledônia e Polinésia Francesa. Para garantir que essa análise se concretizasse, o Estado implementou duas políticas: emigração e controle de natalidade.

Durante toda a década de 1950 a França implementou essa política do “desenvolvimento impossível”. Ele destruiu a indústria local, aumentando o desemprego e a dependência. Milhares de jovens iam à França todos os anos para trabalhar em fábricas ou empregos públicos de baixo nível, onde enfrentaram formas metropolitanas de discriminação. Em suas terras natais, mulheres negras e pobres sofreram abortos forçados, esterilização e contracepção.

O Estado reprimiu os movimentos anticolonialistas e trabalhistas; a polícia francesa, o exército e as milícias privadas espancaram, prenderam e assassinaram líderes da resistência. O Estado rejeitou sistematicamente, reprimiu e condenou as demandas de autonomia ou independência e subjugou línguas, religiões e culturas não europeias. A fraude eleitoral garantiu que os conservadores leais permaneceram no poder. A França apresentou incansavelmente duas mensagens: “O futuro está em outro lugar” e “Não há alternativa à dependência”.

No final dos anos 1950, a França tinha preservado sua União, mas a guerra na Argélia exigiu uma segunda reconfiguração da República Francesa. Agora, a França seria totalmente europeia – apenas o “Hexágono” – e deixaria seu colonialismo no passado.

No entanto, sequer um ano se passou sem revoltas, greves e manifestações contra a censura e a fraude. As pessoas se levantaram na Martinica em 1959, na Ilha da Reunião em 1962, 1991 e 2012, em Guadalupe, em 1967, e na Nova Caledônia, em 1988, provando que a pacificação nunca teve êxito total. Os programas governamentais lançados em resposta a essas lutas, destinados a enfraquecer a desigualdade e aliviar o descontentamento, não produziram desenvolvimento econômico. Em vez disso, eles pretendiam manter o controle francês e oferecer ao Capital novos mercados para explorar.

Em 1999, a taxa de pobreza em todos os territórios ultramarinos era mais elevada do que em qualquer região francesa. Quase metade dos jovens com menos de vinte e cinco anos não tinha diploma (em comparação com um quinto na França); na Guiana, 50% da população deixou a escola ainda no nível primário. Na Martinica, a percentagem de crianças que vivem abaixo do nível de pobreza é quase o dobro daquela da França (13% e 8%, respectivamente); enquanto, na Guiana, 32% – quatro vezes o número no Hexágono – não podia pagar as suas necessidades básicas.

Apesar desta pobreza desenfreada, o custo de vida disparou, subindo entre 12% e 30% mais do que em Paris – o que se explica ao menos em parte por mais de 80% dos produtos serem importados da França. (Mesmo o café cultivado no Brasil deve viajar para a França antes de voltar para a América do Sul). Enquanto isso, os testes nucleares, o uso de pesticidas proibidos na Europa, a mineração de níquel, bem como a mineração de ouro ilegal e a infraestrutura de estilo europeu devastaram a terra e a saúde da população.

Em todos os territórios ultramarinos o racismo dividiu a população. As prisões estavam superpovoadas; negros e indígenas foram mantidos no fundo do poço social. Os funcionários públicos estaduais – que tendem a ser homens brancos franceses – recebem salários mais elevados do que os servidores públicos na França e pagam menos impostos. Esses burocratas locais lideraram greves, no início da década de 1950, para conquistar esses privilégios coloniais: salários mais altos, menos impostos e outras regalias financeiras, como viagens com suas famílias rumo à “pátria mãe”. Apresentavam suas reivindicações como reparação do colonialismo, mas os benefícios que receberam criaram uma assimetria duradoura entre a população local e os funcionários públicos de classe média.

A propriedade da terra está em disputa em toda parte, como resultado de séculos de colonialismo. Os descendentes dos senhores de escravos foram autorizados a manter suas terras após a abolição da escravidão em 1848, quando as receberam como compensação pela perda de sua propriedade escravizada. Os libertos não tinham acesso à terra e o Estado francês aplicava direitos à terra que expropriavam os nativos, reforçavam os privilégios dos grandes proprietários de terras e favoreciam os colonizadores brancos. Na Guiana, o Estado detém 80% da terra e não paga impostos sobre a propriedade. Em 2017, o desemprego, a dependência, o analfabetismo e o subdesenvolvimento continuam a definir os territórios ultramarinos.

Os políticos do Hexágono reclamam regularmente que os territórios ultramarinos “custam” o povo francês. Os benefícios oferecidos às multinacionais francesas e o fato de que o dinheiro público é reciclado para as empresas francesas e não para a indústria local desmente essas afirmações. Mesmo para o Estado francês, a continuação da propriedade dessas terras paga dividendos. Os territórios ultramarinos asseguram o estatuto nacional de potência marítima global, garantem a sua presença em todas as instituições regionais, fornecem terrenos para bases militares, vigilância por satélite e investigação científica e abrem novos mercados para os produtos franceses.

Simplificando, longe de se esquecer dos seus territórios ultramarinos, o Estado francês concebeu a sua configuração espacial e sua economia tendo eles plenamente em mente. Paris tem trabalhado para manter a dependência ao mesmo tempo em que concedeu alguns direitos de deliberação e decisão à população local, após intensas lutas. Este limitado poder local colocou os conselhos locais como responsáveis pelo desenvolvimento, libertando a França continental de qualquer responsabilidade.

O racismo colonial persiste, mas o Estado não é o único culpado. A esquerda francesa e os movimentos progressistas não se descolonizaram, eles próprios, a contento. Em 1956, Aimé Césaire se desligou do Partido Comunista Francês citando o fato de que o racismo colonial inevitavelmente contamina a sociedade colonizadora com uma crença na superioridade europeia, tornando-os incapazes de entender as demandas dos povos colonizados. Sua visão ainda é, infelizmente, atual.

Além disso, as políticas do Estado não poderiam ter sido implementadas sem proponentes locais, que brandissem seu status como cidadãos europeus e aqueles privilégios associados contra seus vizinhos indígenas. Não apenas os funcionários públicos, mas também trabalhadores sociais, professores, líderes políticos e artistas.

Mais recentemente, a xenofobia aumentou sensivelmente nos territórios ultramarinos. Em Mayotte, em Reunião, nas Antilhas e na Guiana, os habitantes locais associam novos migrantes a uma maior criminalidade, tirando proveito dos benefícios sociais e não trabalhando, não sendo “como nós”. Em Mayotte, os “estrangeiros” – normalmente oriundos de Camarões – são expulsos em maior número do que na França; os Maores chegam até a organizar a destruição de suas casas! Em outras palavras, a fabricação local do consentimento não pode ser ignorada. Na Guiana, ainda que alguns membros do coletivo Pou La Gwiyann dékolé demandem penas mais duras e até mesmo a expulsão de prisioneiros estrangeiros, nunca passaram aos ataques aos imigrantes.

Guiana, o Mundo


O movimento guianês representa um momento histórico. A capacidade do coletivo para mobilizar, organizar e reagir a eventos em desenvolvimento tem sido impressionante. Ao recusar-se a incluir funcionários eleitos, comunicando os resultados das negociações à multidão, permitindo que os meios de comunicação participem na maioria de suas reuniões e falando em crioulo guianês, os membros da Pou La Gwiyann dékolé estão inventando uma nova forma de deliberação e intervenção.

O coletivo inclui uma série de povos indígenas e Bushinenge (quilombolas). O grupo que domina o coletivo – os chamados “quinhentos irmãos” – formou-se para protestar contra a crescente taxa de assassinatos e exigir a expulsão de prisioneiros não-guianenses, bem como a construção de mais prisões, tribunais e delegacias. Eles imediatamente atraíram a atenção da mídia, pois seus líderes falam eloquentemente sobre a situação na Guiana e até agora mantiveram a unidade entre os diferentes grupos do coletivo.

Algumas de suas perguntas, entretanto, permanecem não apenas sem resposta, mas também não solicitadas: o que causa a criminalidade? Que posição toma o coletivo em relação aos migrantes e seus filhos nascidos na Guiana, que são cidadãos franceses? Que política de prevenção do crime eles imaginam? Mais policiais e mais deportações não apagarão a fronteira de setecentos quilômetros com o Brasil ou a fronteira de quinhentos quilômetros com o Suriname ou o aumento da pobreza que o capitalismo produziu. Embora haja, obviamente, um problema “franco-guianês”, a emancipação também deve ser imaginada com o contexto regional e global em mente. Os territórios ultramarinos franceses não existem no vácuo nem em relação exclusiva à França. A política e a economia regionais e globais devem ser consideradas.

No dia 2 de abril os membros do coletivo acrescentaram um novo item às suas demandas: uma discussão sobre o status administrativo da Guiana. Com isso, reapareceu a velha pergunta: como deveria a república francesa se relacionar com seus territórios ultramarinos? As demandas de autonomia ou independência nas décadas de 1960 e 1970 foram brutalmente reprimidas, e a possibilidade de imaginar outra estrutura administrativa foi excluída. No entanto, a posterior aplicação da hegemonia cultural e da pacificação não apagou as lembranças dessas lutas.

Movimentos anticoloniais naquele período fizeram uso de lutadores icônicos – quilombolas, rebeldes e artistas revolucionários – cujas memórias foram reativadas através de canções e poemas. O movimento atual também se baseia em referências revolucionárias e locais, como elogiar os espíritos de dois elementos essenciais: terra e água. Eles também apresentam sua luta no contexto de movimentos passados. Durante a Marcha de Terça-feira rumo a Kourou, os manifestantes inauguraram um monumento que celebra a memória de Martin Luther King Jr (que foi assassinado naquele dia, em 1968) e em honra de John Carlos e Tommie Smith (que levantou os punhos nos Jogos Olímpicos de 1968).

A mídia tende a prestar atenção apenas à discriminação racial na França continental, mas os movimentos políticos, sociais e culturais nos territórios ultramarinos, desde os primeiros anos da descolonização até hoje, tornam visível o colonialismo da república francesa. Embora historicamente e culturalmente situadas em todo o mundo, as colônias restantes da França pertencem ao Sul Global, todas ligadas a um Estado europeu com um passado imperial longo e uma história de descolonização repleta de violência.

18 de abril de 2017

Votar ou reinventar a política

Em um artigo no "Le Monde", o filósofo acredita que o voto só reforça o conservadorismo. Em vez disso, ele defende "reinventar o comunismo."

Alain Badiou

Le Monde


Tradução / Muitos eleitores ainda estão indecisos sobre a iminente eleição presidencial. Eu consigo entender o porquê. Não é tanto que os programas dos candidatos considerados elegíveis sejam obscuros ou confusos. Não é tanto – para usar uma formulação que usei certa vez com Sarkozy e que gozou de certo sucesso – que precisemos nos perguntar “em nome do que eles falam.” Na verdade, tudo isso está bastante evidente.

Marine Le Pen é a versão modernizada – e portanto feminizada – do que a extrema-direita francesa sempre foi, dévouée au capitalisme et à la propriété privée sur le fond, mais démagogiquement populiste, nationaliste à la petite semaine, xénophobe et boutiquière.

François Fillon é o burguês provincial católico intolerante, totalmente inconsciente do que é viver fora de seu ambiente rançoso, e cuja filosofia, ou orçamento pessoal, equivale a "poupar cada centavo". Sinon qu’il n’est pas regardant sur la provenance de ses propres sous, et par contre d’une intransigeance et d’une avarice sordides quand il s’agit des dépenses budgétaires, et donc des sous des autres, et surtout des sous des pauvres. Benoît Hamon est le représentant timide, quelque peu étriqué, du « socialisme de gauche », détermination qui a toujours existé, bien qu’elle soit plus difficile à identifier et découvrir que l’Arlésienne, sinon par sa différence in-différente d’avec le socialisme colonial et musclé des Lacoste ou des Valls.

Jean-Luc Mélenchon – certamente o menos desagradável – é no entanto a expressão parlamentar do que chamamos hoje de esquerda “radical”, na fronteira precária entre o velho socialismo fracassado e um comunismo espectral, misant sur l’éloquence « à la Jaurès » et sur une énergie partagée à la bonne franquette pour masquer qu’au pouvoir, il ne ferait que ce qui est déclaré possible par nos vrais maîtres, et donc presque rien de ce qu’il annonce à son de trompe.

Emmanuel Macron, lui, est une créature sortie du néant par eux, nos vrais maîtres, les plus récents, ceux qui ont acheté, par précaution, tous les journaux, les capitalistes de la dernière vague, ceux de la mesquine « révolution » informatique et de ses bas-côtés. Il porte beau, ce faux jeune, et s’il croit et dit que la Guyane est une île ou que le Pirée est un homme, ce n’est que parce qu’il sait que parler n’a jamais engagé personne dans le camp qui est le sien, et que, comme on disait dans le Midi du vieux socialisme de cassoulet, « il est bien pôvre, celui qui ne peut pas promettre ».

Alors, obscurément, ceux qui hésitent sentent que dans ce théâtre de rôles anciens et connus, la conviction politique, la révolte, la demande populaire, une dangereuse situation mondiale presque au bord de la guerre, le malheur planétaire de centaines de millions de gens, que tout cela ne compte guère, ou n’est qu’un prétexte pour de fallacieux effets de manche.

Por isso, é útil começar pela seguinte questão: o que é política? E o que é uma política identificável, declarada?

Uma política sempre pode ser definida a partir de três elementos. Primeiro, a massa de pessoas comuns, com o que pensam e fazem. Chamemos isso de “o povo.” Em seguida, as várias formações coletivas: associações, sindicatos e partidos – em suma, todos os grupos capazes de ação coletiva. Finalmente, os órgãos do poder estatal – congressistas, governo, exército, polícia – mas também os órgãos do poder econômico e midiático (uma diferença que se tornou quase imperceptível), ou tudo o que chamamos hoje – com um termo ao mesmo tempo pitoresco e opressor – “aqueles que decidem”.

Uma política sempre consiste em perseguir objetivos pela articulação destes três elementos. Assim, podemos ver que no mundo moderno – de modo geral – há quatro orientações políticas fundamentais: fascista, conservadora, reformista e comunista.

As orientações conservadoras e reformistas constituem o bloco parlamentar central nas sociedades capitalistas avançadas: a esquerda e a direita na França, os republicanos e democratas nos Estados Unidos, conservadores e trabalhistas no Reino Unido, democratas-cristãos e social-democratas na Alemanha, etc. O que essas duas orientações têm em comum é que afirmam que o conflito entre elas – especificamente a articulação desses três elementos – pode e deve permanecer nos limites constitucionais aceitos por ambas. Em outras palavras, o poder de alternância de um após o outro da tendência central é o modo de perpetuação, com pequenas alterações nas nuances de um consenso de base.

O que as duas outras orientações – fascista e comunista – tem em comum, apesar da radical oposição entre seus objetivos, é que elas defendem que o conflito entre os diferentes partidos sobre a questão do poder estatal é tendencialmente irreconciliável: não pode se restringir a um consenso constitucional. Eles se recusam a integrar na sua concepção de sociedade e do Estado os seus objetivos conflitantes ou apenas diferentes do seu.

Bien entendu, les objectifs de ces deux tendances sont – contrairement à ce qui règle le duo conservatisme/réformisme – totalement opposés. Le fascisme est un capitalisme d’Etat greffé sur le mythe d’une identité collective, raciale, nationale religieuse, culturelle, supérieure à toute autre. Le communisme entend, lui, briser le droit bourgeois, limiter de façon drastique la propriété privée des moyens de production, et s’adresse, hors identité fermée, à l’humanité tout entière. Mais l’un et l’autre s’opposent, au sein des opinions répandues dans le peuple, au bloc consensuel central.

Pode ser chamado de “parlamentarismo” a forma dominante do Estado no que é comumente chamado de Ocidente, a organização do poder que assegura a conservadores e reformistas uma hegemonia compartilhada – mediada pela máquina eleitoral, os partidos e sua clientela – que elimina em todos os lugares qualquer perspectiva séria dos fascistas ou comunistas tomarem o poder do estado.

Isto implica que existe um terceiro termo, uma poderosa base contratual comum, ao mesmo tempo externa e interna às duas orientações principais. É claro que em nossas sociedades, esta base é o capitalismo liberal. Liberdade ilimitada de empresa e enriquecimento, respeito absoluto da propriedade privada – garantida pelo sistema judiciário e pela polícia – confiança nos bancos, educação dos jovens sob o disfarce de “democratizar” a concorrência, apetite de “sucesso”, afirmações repetidas do caráter nocivo e utópico da igualdade: tal é a matriz das liberdades consensualmente estabelecidas. Estas são as liberdades que os tais partidos dominantes mais ou menos tacitamente se comprometem a garantir perpetuamente.

O desenvolvimento do capitalismo pode trazer algumas incertezas quanto ao valor do consenso parlamentar, e à confiança atribuída – durante o ritual eleitoral – aos “grandes” partidos conservadores ou reformistas. Isso é especialmente verdadeiro no caso da pequena-burguesia que tem seu status social ameaçado, ou em regiões de classe trabalhadora devastadas pela desindustrialização. Este é o caso no Ocidente - Estados Unidos e Europa, onde podemos observar uma espécie de decadência em face do poder ascendente dos países asiáticos. Essa crise subjetiva atual favorece sem dúvida orientações fascistas, nacionalistas, religiosas, islamofóbicas, e beligerantes, porque o medo é um mau conselheiro, e essas subjetividades marcadas pela crise são tentadas a se apegar a mitos identitários. Sobretudo, porque a hipótese comunista emergiu terrivelmente enfraquecida do fracasso histórico de todas as suas versões estatizantes, especialmente a URSS e a República Popular da China.

Les tenants intellectuels du consensus parlementaire, tant les conservateurs éclairés que les réformistes réalistes, tout ce qui va de Fillon à Mélenchon en passant par Macron et Hamon, nous supplient de voter « utile » pour barrer la route au proto-fascisme désormais installé dans le paysage. Mais qui a ouvert cette route ? Qui, par des campagnes ignorantes, acharnées, persécutrices, s’est employé à identifier l’orientation communiste à un crime ? Qui nous a enjoint de penser qu’une Idée égalitaire, le motif d’une émancipation de l’humanité toute entière, rompant avec une dizaine de millénaires de dictature de la propriété privée, pouvaient et devaient être jugés sur soixante ans d’expérimentations étatiques localisées, entre 1917 (révolution russe) et 1976 (échec définitif de la révolution culturelle chinoise) ?

Parlons de la répression de l’insurrection au Cameroun, avec les têtes des victimes exposées au seuil des villages. N’oublions pas les trente mille ouvriers morts sur le pavé de Paris lors de la répression de la Commune par ces parfaits démocrates qu’étaient messieurs Jules Ferry et Jules Favre. Et qu’on n’oublie surtout pas non plus que la seule première guerre mondiale, à partir des seuls Etats occidentaux et démocratiques, et pour des enjeux répugnants de rivalité impériale, créa l’époque où les morts à la guerre devaient désormais se compter par dizaines de millions. Qu’on se souvienne des atroces listes de jeune mortspour-rien qui composent de sinistres monuments dans le moindre de nos villages.

Oui, comparons, concluons. Le fléau de la balance ira invinciblement du côté de l’expérience communiste, laquelle, contre l’oligarchie minuscule qui cumule des profits extorqués, annonce, depuis très peu de temps, et dans la première grande vision étayée sur le réel, une libération de l’humanité tout entière. Quelques décennies de tentatives, brutalement encerclées et attaquées, ne peuvent convaincre quelqu’un de bonne foi qu’elles suffisent à annuler cette promesse et nous contraignent à y renoncer pour toujours.

Alors, voter ? Soyons, sur le fond, indifférent à cette demande de l’Etat et de ses organisations. On peut voter pour le moins pire, on peut ne pas voter par principe : c’est l’indifférence qui est en tout cas la bonne subjectivité. Car nous devrions désormais tous le savoir : voter, ce n’est jamais que renforcer, contre une autre, une des orientations conservatrices du système existant. Ainsi, ramené à son contenu réel, le vote est une cérémonie qui dépolitise les peuples. Analisado em seus reais conteúdos, o voto é uma cerimônia que despolitiza o povo. Devemos começar por re-estabelecer em todos os lugares a visão comunista do futuro. Militantes convictos devem discutir seus princípios em todos os contextos populares do mundo. Como propôs Mao, devemos “dar ao povo, em sua especificidade, o que ele nos dá em meio à confusão.” Oui, recommençons le communisme, au ras de la fusion entre son Idée et l’existence populaire. Ou seja, fazer política.

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