31 de dezembro de 2017

Para sociólogo, economia do século 21 forjou um novo tipo de individualismo


Colagem de Diego López Prosen

ANTHONY ELLIOTT
tradução PAULO MIGLIACCI
ilustração DIEGO LÓPEZ PROSEN


RESUMO Sociólogo argumenta que o 'individualismo', que girava em torno da construção de uma identidade privada e estável para nós mesmos, precisa ser substituído por um 'novo individualismo': a sociedade do século 21 nos encoraja a mudar tão completa e tão rapidamente que as identidades se tornam descartáveis.

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O jornal "The New York Times" publicou há alguns anos uma reportagem intitulada "Jogos Vorazes: Noivas". Tratava das tribulações enfrentadas por mulheres que querem perder peso para suas cerimônias de casamento.

Especialistas falavam sobre as técnicas mais efetivas de emagrecimento e desintoxicação. A perda típica de peso é de 7 kg a 10 kg. Valendo-se de métodos para purgar o organismo e de dietas que eliminam gordura, as noivas estão determinadas a exibir a completa transformação de seus corpos.

Reduzir as medidas para o grande dia requer uma forma curiosa de devoção; negação e privações adquirem posição central nos mantras. A certeza de que a transformação desejada pode ser obtida muito rapidamente ajuda muito. É por essa razão, e só por ela, que dietas drásticas são a grande moda nos jogos vorazes para noivas.

O procedimento conhecido como Diet Tube é um dos exemplos mais enfáticos. Seus usuários recebem nutrientes líquidos através de um tubo plástico inserido no nariz. Uma microbomba elétrica injeta a substância proteica diretamente no estômago, para controlar a fome.

Embora não pareça agradável nem desejável, o método nasogástrico ganha cada vez mais popularidade, não só entre noivas mas também entre mulheres (e homens) que buscam se reinventar.

Em contraste com cirurgias cosméticas, que requerem paralisação das atividades e um período de recuperação, o Diet Tube só demanda de seus usuários que não comam.

Se a obesidade é uma epidemia com sérias consequências globais, nossa preocupação com a perda de peso não fica muito atrás.

A divulgação constante de pesquisas relacionadas a dietas pela mídia de massa é um indicador das fantasias das mulheres e homens quanto a corpos mais esbeltos e mais sexy; a ascensão de um setor mundial de dieta que movimenta bilhões de dólares também sugere a onipresença do desejo por reinvenção nas sociedades modernas.

A dramatização mais perfeita desse fenômeno talvez esteja na incansável substituição das dietas. Da Atkins à Dukan, e delas à da zona e à Scarsdale, à da cebola e à do repolho: regimes de disciplina austera surgem como parte de um trabalho febril de reinvenção, no qual experimentar a mais recente moda dietética parece ser precondição para o florescimento humano.

UMA NOVA ERA

Esta é a era da reinvenção. Para muitos, ela oferece o estilo de vida perfeito. Das dietas aceleradas aos "life coaches" (técnicos para a vida), dos reality shows às cirurgias cosméticas, a arte da reinvenção se mescla com os atrativos da próxima fronteira, com o avanço rumo aos limites —especialmente os do indivíduo.

Para outros, a mania de reinvenção representa a degradação da cultura e as ilusões narcisistas de uma geração autocentrada.

Por trás da proliferação interminável dos espetáculos de reinvenção que vemos hoje, existe o imperativo cultural de agir —de consertar, refazer, melhorar ou transformar. Se você não gosta de seu estilo de vida ou de sua aparência atual, descarte-os e se reprojete.

Em tese, o imperativo cultural da reinvenção envolve constante redefinição do "eu", de modo a trazer ganhos ao indivíduo, e não perdas, mas na verdade o processo se assemelha a uma aniquilação niilista da identidade. É como se, embriagado com as fantasias narcisistas do ego, o indivíduo constantemente repaginado fosse exposto como um neurótico compulsivo, viciado nos altos e baixos de uma vida reconstruída uma vez após a outra.

Considere, por exemplo, a mistura perversa de terror e deleite que alimenta a gordofobia. Em um mundo com valores ditados pelo consumismo, pela cultura empresarial e pelo culto das celebridades, existe um escrutínio constante dos corpos obesos (e mesmo do possível surgimento de gordura).No entanto, o apelo à reinvenção está em toda parte: reinvenção da identidade e do corpo, do sexo e dos relacionamentos, das carreiras e das empresas, dos lugares, das regiões e da ordem mundial.

O reality show americano "The Biggest Loser" é emblemático. Mulheres são forçadas a se exibir em sutiãs sumários e shorts apertados, expondo sua carne trêmula, e a audiência se delicia assistindo aos exercícios dolorosos que os participantes acima do peso fazem sob as ordens de personal trainers.

Nota-se aqui um deleite quanto à reinvenção dos corpos —deleite que provoca o terror que busca transcender. Desse ângulo, a sociedade da reinvenção é revelada como uma ilusão destrutiva na qual mulheres e homens renegam, ou expelem de suas vidas, aquilo que não são capazes de tolerar.

Contudo, se existe ilusão, também existe resiliência. Apesar da natureza deslocadora, perversa e excessiva da cultura da reinvenção, estamos lidando com as maneiras complexas e contraditórias pelas quais homens e mulheres subvertem os valores tradicionais, criam novos significados, dão forma a novos códigos consensuais e experimentam com a vida e com novas possibilidades.

A reinvenção, assim, entre outras coisas, sempre representa um engajamento (ainda que mínimo) com os contornos da invenção.

Essa é uma razão para que mulheres e homens contemporâneos se deixem arrastar pela sociedade da reinvenção: levamos em conta as narrativas que as pessoas elaboram (a respeito de si mesmas ou de outros) a fim de lidar com um mundo em globalização avançada.

NOVO INDIVIDUALISMO

Meu argumento geral é o de que a reinvenção e as ideologias a ela relacionadas podem ser compreendidas mais corretamente como consequências da difusão daquilo que já defini como novo individualismo.

O individualismo girava em torno da construção de uma identidade privada e estável para nós mesmos, independente do mundo. Mas o individualismo de hoje nos encoraja a mudar tão completa e tão rapidamente que nossas identidades se tornam descartáveis.

O termo "individualismo" foi cunhado no começo do século 19 pelo francês Alexis de Tocqueville para descrever o senso emergente de isolamento social que ele observou nos Estados Unidos.

Hoje, essa noção continua em vigor, mas com um comportamento devidamente modificado e ajustado para se enquadrar ao novo capitalismo e às tecnologias criadas pela globalização —e é por isso que falo de um novo individualismo.

O novo individualismo é movido por uma fome insaciável de mudanças imediatas. A tendência pode ser percebida nas sociedades contemporâneas não só pela ascensão de cirurgias plásticas e pelos reality shows sobre reforma instantânea de identidade mas também pelo consumismo compulsivo, pelos namoros relâmpagos e pela cultura da terapia.

Colagem de Diego López Prosen

O desejo por resultados imediatos nunca foi tão pervasivo ou agudo. Ficamos acostumados a gastar meros segundos para mandar e-mails ao outro lado do mundo, comprar produtos supérfluos com um clique e deslizar de uma relação para outra sem maiores compromissos de longo prazo.

Não surpreende que agora tenhamos diferentes expectativas sobre as possibilidades da vida e o potencial para mudanças.

Em nossa sociedade imediatista, as pessoas querem mudanças e, cada vez mais, as querem para já. O mercado agora oferece uma série de soluções com a promessa da transformação instantânea. Mais e mais, tais soluções —da autoajuda à terapia, da reformas pessoais a cirurgias plásticas— são reduzidas a uma mentalidade mercantil.

O consumo "para já" de hoje em dia cria a fantasia da plasticidade infinita do "eu". A mensagem da indústria é a de que você poderá se reinventar como bem entender —e nada poderá impedi-lo.

Mas esse novo senso de individualismo dificilmente preservará sua felicidade por muito tempo. Pois melhorias pessoais são concebidas tendo em vista o curto prazo. Elas duram apenas até "a próxima vez".

Em um relatório que ressalta o entrelaçamento entre o individualismo e o imediatismo, o Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas aponta para a enorme demanda em todo o mundo por serviços e bens de consumo individuais.

"Demanda", nesse caso, significa desejo por gratificação instantânea, um desejo que não só estimula o senso de isolamento social percebido por Tocqueville mas também pode acarretar consequências mundiais desastrosas.

No que tange ao consumo desigual, por exemplo, a ONU apontou num estudo da década de 1990 que prover educação básica para todos os cidadãos dos países em desenvolvimento custaria em torno de US$ 6 bilhões adicionais ao ano, enquanto os EUA sozinhos já gastavam espantosos US$ 8 bilhões por ano com cosméticos. Considere alguns outros dados chocantes sobre gastos anuais (segundo o mesmo documento de 1998):

- US$ 11 bilhões com sorvete na Europa;

- US$ 17 bilhões com comida para animais de estimação na Europa e nos EUA;

- US$ 50 bilhões com cigarros na Europa;

- US$ 105 bilhões com bebidas alcoólicas na Europa;

- US$ 400 bilhões com narcóticos em todo o mundo.

Os números refletem não só uma obsessão cultural com consumo, prazer e hedonismo mas também apontam para uma ênfase individualista na satisfação dos desejos.

A maioria dos relatos sobre individualismo tende a caracterizar nossa atual preocupação com o "eu" em termos de narcisismo, emotividade e manipulação de necessidades e desejos pessoais.

Esses relatos destacam os traços restritivos de nossa cultura individualista e muitas vezes representam o mundo em que vivemos como eivado de consequências traumáticas para as vidas emocionais e os relacionamentos das pessoas.

AMBIVALÊNCIA

Embora esses relatos contenham percepções úteis, eles não captam os traços mais centrais do novo individualismo. Argumento que a ascensão de uma linguagem comum altamente individualizada para definir questões públicas é um fenômeno ambíguo, que promove a compreensão da realização do "eu" e também o cultivo da limitação do "eu".

A cultura do individualismo gerou um mundo de experimentação, expressão pessoal e tomada de riscos —que, por sua vez, é embasado por novas formas de apreensão, angústia e ansiedade derivadas dos perigos da globalização.

Se o novo individualismo se tornou supremo, é porque flexibilidade, adaptabilidade e transformação estão mescladas de modo complexo na economia eletrônica mundial.

Num mundo de demissões intermináveis pelas grandes empresas, transferências de operações para o exterior e reorganizações de companhias, as pessoas estão correndo para se ajustar a novas definições e experiências do "eu" quanto a relacionamentos, intimidade e trabalho, entre muitas outras áreas.

Diante do pano de fundo desse admirável mundo novo da globalização, da revolução nas comunicações e da tecnologia de produção baseada em computadores, não deveria ser surpresa que homens e mulheres contemporâneos expressem o desejo de transformar suas vidas instantaneamente, de modificar seu "eu" sem restrições ou resistência.

Como os participantes do reality show "Extreme Makeover" —no qual as pessoas passam por cirurgias cosméticas, trabalho ortodôntico, regimes de exercício e reformulações de guarda-roupa a fim de reconstruir suas existências—, mais e mais homens e mulheres acreditam que é possível e necessário recriar suas vidas da forma que preferirem.

Nessa condição narcisista, o "eu" é redefinido como uma espécie de kit "faça você mesmo". A realidade se deflaciona magicamente, já que deixam de existir restrições impostas pela sociedade, ao mesmo tempo em que o "eu" se eleva ao patamar de uma obra de arte.

Diversos fatores, em condições de globalização avançada, levam os indivíduos a exigir mudança instantânea a fim de obter aquilo que percebem como vantagem pessoal e profissional sobre os outros.

A nova economia causou mudanças de enorme magnitude, que sujeitam as pessoas a pressão intensa para que acompanhem a velocidade das transformações sociais. Empregos seguros desaparecem do dia para a noite. Homens e mulheres lutam freneticamente para conquistar novas capacitações, ou serão descartados.

Nessa nova economia de contratos de curto prazo, interminável redução de custos, entregas a jato e carreiras múltiplas, as transformações sociais objetivas são espelhadas no nível da vida cotidiana.

A demanda por mudança instantânea, em outras palavras, é amplamente percebida como demonstração de apetite por (e disposição de abraçar) mudança, flexibilidade e adaptabilidade.

O impacto das grandes empresas multinacionais, capazes de exportar a produção industrial para locais de baixos salários em todo o mundo e de reestruturar o investimento no Ocidente, desviando-o da manufatura para os setores de finanças, serviços e telecomunicações, causou grandes transformações na maneira como as pessoas vivem suas vidas, abordam o emprego e se posicionam dentro do mercado de trabalho.

O emprego se tornou muito mais complexo do que em períodos anteriores, como resultado da aceleração da globalização, e um fator institucional chave para a redefinição da condição contemporânea foi o declínio da ideia de posto de trabalho vitalício.

A morte da ideia de uma de uma carreira (uma vida de trabalho) desenvolvida dentro de uma só organização foi interpretada por alguns como sinal de uma nova economia —flexível, móvel, operando em rede. O financista e filantropo internacional George Soros argumenta que transações tomaram o lugar dos relacionamentos na economia moderna.

Diversos estudos enfatizam essas tendências mundiais ao imediatismo ou ao predomínio do episódico —nos relacionamentos pessoais, na dinâmica familiar, nas redes sociais, no trabalho.

O sociólogo Richard Sennett escreve sobre a ascensão "do trabalho de curto prazo, episódico e por contrato". O emprego vitalício do passado, ele argumenta, foi substituído pela empreitada de pequena duração.

FALTA DE CONFIANÇA

A cultura imediatista das empresas está produzindo uma erosão generalizada da relação de confiança que os trabalhadores desenvolviam com seus locais de trabalho. Em um mundo empresarial no qual todos estão sempre pensando em seu próximo passo na carreira ou se preparando para grandes mudanças, é muito difícil —e em última análise, pode se provar disfuncional— manter lealdade em relação a uma dada organização.

Autores como Sennett veem a flexibilidade exigida por empresas multinacionais como demonstração da realidade da globalização, que promove a concepção dominante dos indivíduos como descartáveis.

É diante desse pano de fundo sociológico que ele cita estatísticas segundo as quais o universitário americano médio que se formar hoje ocupará uma dúzia de empregos diferentes ao longo de sua carreira e terá de mudar sua capacitação profissional ao menos três vezes.

Não admira que o capitalismo flexível tenha seus descontentes, para os quais se torna desagradavelmente claro que os supostos benefícios do livre mercado estão cada vez menos aparentes.

Em outra obra posterior, "A Cultura do Novo Capitalismo", Sennett discorre sobre as consequências emocionais mais profundas das grandes mudanças organizacionais: "As pessoas temem se ver deslocadas, marginalizadas ou subutilizadas. O modelo institucional do futuro não lhes oferece uma narrativa de vida no trabalho, ou uma promessa de grande segurança no reino público".

Da mesma maneira que o capitalismo flexível se engaja em reestruturações organizacionais incessantes, as pessoas fazem o mesmo —empregados, empregadores, consumidores, pais e filhos.

Don DeLillo escreve que o capitalismo mundial gera transformações à velocidade da luz, não só em termos do movimento súbito de fábricas, migrações em massa de trabalhadores e transferências instantâneas de capital líquido, mas em "tudo, da arquitetura ao tempo de lazer, à maneira pela qual as pessoas comem, dormem e sonham".

Ao refletir sobre as maneiras complexas pelas quais nossas vidas emocionais são alteradas pelas mudanças socioeconômicas causadas pela globalização, busco expandir a gama de transformações mencionadas por DeLillo, tomando por foco as experiências mutáveis das pessoas quanto a identidades, emoções, afetos e corpos como resultado da difusão do novo individualismo.

Meu argumento é que forças globais, ao transformar as estruturas econômicas e tecnológicas, penetram no tecido de nossas vidas pessoais e emocionais.

A maioria dos autores concorda que a globalização envolve uma reformulação dramática das fronteiras nacionais e locais.

As viradas repentinas do capital de investimento, a expansão transnacional da produção multipropósitos, a privatização de instituições governamentais, o remodelamento incessante das finanças, a ascensão de novas tecnologias, a instável energia dos mercados de ações que funcionam 24 horas: essas imagens do capitalismo multinacional põem em foco a dimensão da reconstrução imposta ao planeta a cada dia.

Venho sugerindo que essas mudanças se infiltram profundamente na vida cotidiana e afetam um número crescente de seres humanos. Os valores da nova economia mundial cada vez mais estão sendo adotados pelas pessoas para remodelar suas vidas.

A ênfase está em viver ao estilo do contrato de curto prazo (naquilo que vestimos, nos lugares em que moramos, na forma como trabalhamos), em transformações cosméticas incessantes e na melhoria do corpo, na metamorfose instantânea e nas identidades múltiplas. Esse é o campo da sociedade da reinvenção, que continua a se espalhar pelas polidas e dispendiosas cidades do Ocidente, e mais além.

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ANTHONY ELLIOTT é professor de sociologia da Universidade South Australia e da Universidade Keio, no Japão. É autor do livro "The New Individualism" (o novo individualismo) junto a Charles Lemert. Esteve no Brasil, participando no Congresso Brasileiro de Sociologia, em Brasília no último mês de julho.

PAULO MIGLIACCI, 49, é tradutor.

DIEGO LÓPEZ PROSEN, 38, argentino radicado no Brasil, é artista plástico.

29 de dezembro de 2017

Bolchevismo, real e imaginado

Os críticos de Lenin gostam de pintá-lo como um autoritário feroz e absoluto. Mas essa imagem não combina a realidade.

Jason Schulman

Jacobin

V. I. Ulyanov entre os membros da "Liga de Luta de Petersburgo para a Emancipação da Classe Trabalhadora". No grupo da esquerda para a direita: em pé - A.L. Malchenko, P. K. Zaporozhets, A. A. Vaneyev; sentado - V. V. Starkov, G. M. Krzhizhanovsky, V. I. Ulyanov, Y. O. Martov - Tsederbaum. São Petersburgo. Não antes do dia 9 de dezembro (21) e não mais que 20 de dezembro (1 de janeiro de 1896).

Tradução / A grande falha do artigo "What Lenin’s Critics Got Right" [Onde os críticos de Lênin acertam] de Mitchell Cohen no número mais recente de Dissent é que repete o que Lars T. Lih, pesquisador independente e autor de Lenin Rediscovered: "What Is To Be Done" In Context [Lênin redescoberto: Que fazer? em contexto] (Haymarket, 2008) e de uma biografia de Lênin (Reaktion Books, 2011), chama de "interpretação pelo padrão de manual escolar" do pensamento de Lênin e, por extensão, de todo o bolchevismo como movimento.

Cohen retoma a versão sempre repetida segundo a qual, por causa da publicação de Que fazer?, em 1902 e 1904 o Partido Social-democrata Trabalhista Russo, Lênin e seus "Bolcheviques" (em 1904, o grupo majoritário) teriam criado um "partido de novo tipo" – partido de "vanguarda" despoticamente centralizado de "revolucionários profissionais" (supostamente de intelectuais ex-estudantes, não "trabalhadores de verdade") dominado por um comitê central todo poderoso.

Cohen contrasta essa visão "leninista" do partido marxista com a visão de um partido dito marxista democrático de minoria ("mencheviques") ao qual os bolcheviques fariam oposição, como queria Julius Martov. Lih chama isso de leitura que "se preocupa com os trabalhadores", baseado numa suposta posição de Lênin segundo a qual os trabalhadores jamais alcançariam "consciência revolucionária" mediante a luta política diária.

Temo que Cohen simplesmente não tenha sido informado sobre resultados das mais recentes pesquisas sobre Lênin e o bolchevismo; aliás, não cita e provavelmente não consultou fontes mais antigas, que poderiam desmontar sua tese, dentre outros, digamos, Orlando Figes. Pelo menos desde Leninism Under Lenin [Leninismo sob Lênin] (1975), de Marcel Liebman, já se sabe que o racha de 1904 entre Bolcheviques e Mencheviques não criou dois partidos separados mas, apenas duas fachadas públicas do mesmo Partido Social-democrata Trabalhista Russo. Assim sendo, o "partido de vanguarda" autoritário que estaria supostamente apresentado em Que fazer? não poderia existir e de fato jamais existiu na vida real antes de que o Terror Branco e a Guerra Civil Russa tivessem levado ao que se deve descrever como "pânico" na liderança bolchevique.

E considerando que o próprio Lênin desinteressou-se de fazer a defesa da tese que defendia em Que fazer?, segundo a qual em 1907 "O erro básico cometido pelos que polemizam contra Que Fazer? (...) é que extraem completamente a produção daquela reflexão, do seu específico contexto histórico, de um específico e hoje já muito distante período no desenvolvimento do Partido [Social-democrata Trabalhista Russo]," fica-se de fato sem entender muito bem o que se deve fazer desse panfleto evidente e ostensivamente muito importante, "do qual nasceu" o "leninismo".

Em Lenin Rediscovered, Lih oferece a primeira explicação lógica para a "peculiaridade" de Que fazer?: seria vítima de tradução viciosa de algumas palavras-chaves em russo. O que Lênin estava realmente defendendo, explica Lih, era um partido marxista da classe operária que seguisse o molde do Partido Social-democrata Alemão (PSDA). Lih classifica como "Erfurtiana" a posição de Lênin, que seguiria o Programa de Erfurt que o PSDA adotou em 1891.

Lênin talvez tenha realmente falado de "partido de vanguarda", mas, como Lih explica, o termo simplesmente descreve "a compreensão comum de o que seria a própria social-democracia (...). Que fazer? não pregou algum hipercentralismo ou algum partido de elite, quase conspiracional, restrito a revolucionários profissionais da intelligentsia. As posições que se leem em Que fazer? não foram a causa da divisão do Partido Social-democrata Trabalhista Russo em 1904. A centralidade da liberdade política na plataforma de Lênin torna impossível traçar qualquer conexão direta entre Que fazer? e o stalinismo", como Cohen tenta traçar.

Sim, marxistas russos enfrentaram condições de ilegalidade e perseguição policial. Daí que construir um partido revolucionário envolvia que um quadro ativista importante tivesse de ser professial’nyi revoliutsioneri. Normalmente traduzida como "revolucionários profissionais", a expressão realmente significa "revolucionários bem treinados". No final do século 19 e início do 20, professii ou professial’nyieram termos que se aplicavam em russo a profissionais de alta capacitação "numa organização eficiente".

Nada há de inerentemente elitista nesses termos. Acompanhando o modelo do PSD alemão, esses ativistas que devem operar na clandestinidade "brotarão das fileiras dos trabalhadores". Esses revolucionários devem tornar-se especialistas nas artes e habilidades da konspiratsiia. A palavra não significa qualquer tipo de "conspiração" elitista; mas simplesmente "as técnicas do trabalho político ilegal". Se para os clandestinos em geral como Lih escreve, o "revolucionário profissional" ganha autoridade porque é "duro o suficiente para ser preso e conseguir escapar", no caso de Lênin "o revolucionário bem treinado ganha autoridade porque é suficientemente esperto, antes de tudo, para não ser preso."

E o que dizer sobre o desprestígio do "sindicalismo" e da "espontaneidade" em Que fazer? Será que Lênin então não disse que o sindicalismo "espontâneo" reforçaria a dominação pela burguesia? Não disse. Porque Tred-iunionizm não significa ("trade unionism" [tradicionalmente traduzido ao português como "sindicalismo"] no sentido genérico de apoiar ou criar sindicatos, mas designava a específica política da ala direitista do movimento trabalhista britânico o qual — quando Que fazer? foi escrito – se opunha à formação de um partido trabalhista e não orientava suas políticas pela luta de classes. Hoje essa orientação poderia ser chamada de "business unionist" [alguma coisa como "sindicalista pró-business"].

Esse específico tipo de sindicalismo é que Lênin considera "burguês" e, de fato, apolítico, não todo o sindicalismo. Acima de tudo, Lênin acredita que os marxistas russos podem efetivamente enfrentar e superar o tred-iunionizm precisamente porque, nas palavras de Lih, Lênin tem "mais confiança nos trabalhadores [russos] que seus opositores [no movimento revolucionário russo]."

Quanto à "espontaneidade", o termo original em russo é stikhiinost. Lih explica que stikhiinost refere-se a forças elementais: "stikhiinost conota com a impossibilidade de o ego controlar o mundo; e "espontaneidade" conota com a impossibilidade de o mundo controlar o ego". Marxistas russos usaram as palavras stikhiinyi e stikhiinost antes de Que fazer? em duas acepções: numa acepção negativa, referidas a erupções "elementais", sem propósito, de fúria das massas, que não representavam a auto-organização da classe trabalhadora; e numa acepção positiva, em referência à ascensão das "massas trabalhadoras que pressionam o máximo possível na direção do socialismo e da luta política." Na verdade Lênin estava argumentando a favor da noção de que os social-democratas deviam unir-se àqueles trabalhadores cuja luta "espontânea" avançava rapidamente e poderia deixar para trás o Partido Social-democrata Trabalhista Russo.

E o que dizer do partido "centralista democrático" que – mesmo antes da Guerra Civil – supostamente envolveria disciplina quase militar, garantiria poderes extraordinários ao próprio comitê central e – se de algum modo admitia o dissenso interno – absolutamente não admitia que os dissidentes expressassem publicamente suas ideias?

Cita-se com frequência a crítica que Rosa Luxemburgo fez contra o "ultra-centralismo" de Lênin (Cohen cita a Luxemburgo de 1918, não de 1904, mas o objetivo dele é o mesmo). Tudo faz pensar que Cohen ainda não saiba que os mencheviques foram os primeiros socialistas russos a invocar o "centralismo democrático". Lênin apenas adotou a ideia para os bolcheviques.

Antes do Segundo Congresso do Comintern em 1920, quando foi redefinido para as duas alas do Partido Social-democrata Trabalhista Russo, o "centralismo democrático" significava simplesmente que congressos democraticamente eleitos pelo Partido tinham o poder de tomar decisões que se aplicavam a todos os comitês e membros do Partido. Isso não é e nunca foi autoritarismo.

Além do mais, já em The Bolcheviks Come to Power (1976) [Os bolcheviques chegam ao poder], Alexander Rabinowitch deixara claro que, sim, os bolcheviques tinham debates públicos. Por que Cohen repete ideias há tanto tempo desacreditadas? Por que não questiona a incongruência entre o objetivo inicial de Lênin, de liberdade política na Rússia, e a estratégia de "vanguardismo" que ele teria supostamente favorecido como meio para alcançar aquele objetivo? Lênin seria perfeito estúpido? De modo algum jamais foi suficientemente estúpido a ponto de defender "socialismo num só país" à moda Stalin, como Cohen sugere. (E será que afinal podemos admitir que Luxemburgo, sim, estava mal informada sobre o "leninismo" em 1904?)

A prova é clara: durante a maior parte da vida, Lênin foi mero "Erfurtiano," um "Kautskyista," não mais autoritário que o próprio Karl Kautsky (Lênin jamais diria de Kautsky que se tornara um "renegado" do marxismo, se não tivesse apreciado por tanto tempo os escritos de Kautsky). E nunca foi criador de teoria política, autor de teoria original.

O pouco espaço não permite investigar mais a fundo O Estado e a Revolução (1918) de Lênin e suas falhas (por exemplo, a ingenuidade), ou outros escritos, a maior parte dos quais não têm relevância hoje. Mas é preciso afirmar alguns fatos. Os sovietes de 1917 até meados de 1918 consistiam de partidos rivais legais. Em novembro de 1917 Lênin também promoveu a ideia de que as organizações dos trabalhadores e dos camponeses deviam receber recursos para construir imprensa livre. (Cohen também deveria investigar o modo como foram tratados o general Krasnov e seus soldados, que tentaram um golpe armado para derrubar o governo soviético dia 31 de outubro. Receberam tratamento muito, muito "soft.")

Não justificarei cada uma e todas as ações dos bolcheviques durante a Guerra Civil. E é claro que a Revolução de Outubro foi uma aposta na revolução dos proletários da Europa Ocidental. Falhou. Mas a alternativa de Martov – um governo revolucionário socialista-menchevique baseado na Assembleia Constituinte – era impossível. Alternativa real tampouco foram muitas das políticas que os bolcheviques implementaram, incluindo coagir os camponeses para que provessem alimentos; o Terror Vermelho (concebido em parte para controlar e limitar o terror que viesse "de baixo", dos camponeses), etc., ou o governo dos generais Brancos e o Terror Branco.

A principal "tragédia" não foi as ações dos Bolcheviques, mas as justificativas inventadas ad hoc para aquelas ações, apresentadas como se fossem normas em resoluções do Comintern, adotadas por organizações "leninistas". São justificativas que evidentemente têm de ser todas elas rejeitadas, se realmente queremos ter uma esquerda democrática radical.

Cohen com certeza discordará, mas Lênin simplesmente jamais foi teoricista suficientemente inovador para merecer seu próprio "ismo".  Mesmo assim, para os que dentre nós estão sinceramente convencidos de que a única escolha que resta para a humanidade é ou socialismo ou barbárie, e de que, se a classe trabalhadora global (hoje maior do que jamais antes em toda a história) não tomar o poder político, estamos todos condenados a crises econômicas e ecológicas perenes –, é absolutamente necessário estudar a história do bolchevismo –, seja pelas lições negativas, seja pelas lições positivas.

Colaborador

Jason Schulman faz parte do conselho editorial da New Politics, é editor de Rosa Luxemburg: Her Life and Legacy e autor de Neoliberal Labour Governments and the Union Response: The Politics of the End of Labourism.

27 de dezembro de 2017

O que está por trás da mania bitcoin?

Still don't understand Bitcoin? We've got you covered.

Doug Henwood


Francis Storr / Flickr

Tradução / Bitcoin, uma vez um tema bastante arcano, está agora em todos os lugares.

O guru do marketing Robert Prechter, grande psicólogo dos mercados financeiros embora seja seguidor devotado de Ayn Rand e acredite na peça de ficção denominada teoria Elliott Wave, alegou certa vez que num grande mercado especulativo há algo denominado “ponto de reconhecimento”, quando o público embarca. Isso significa que está ficando tarde e já é hora de os profissionais pensarem em cair fora (embora a mania possa continuar bem depois do envolvimento das pessoas comuns).

Parece que estamos nesse ponto com a Bitcoin, cujo preço teve, nos últimos anos, uma trajetória semelhante à de grandes manias da história, como o frenesi do bulbo de tulipa holandês, dos anos 1630, a bolha do Mar do Sul dos anos 1710 e as orgias do mercado de ações norte-americano nos anos 1920 e 1990.

O que acontece? Antes de entrar nos detalhes, é preciso lembrar que dinheiro, em geral, não é um tema simples. A maioria das pessoas tem um bom entendimento de como o ouro, que é um tipo específico de dinheiro, é garimpado, processado e formatado em lingotes e moedas. Um pouco menos óbvia é a razão por que tem um status monetário diferente, digamos, ao da platina. Mas é raro, puro, facilmente divisível, e muito apreciado ao longo dos tempos.

O dinheiro de papel é mais complexo. De 1900 até 1971, o dólar norte-americano era lastreado pelo ouro, o que significa que seu valor era legalmente definido por um certo peso do metal. Isso acabou em 1971, quando o presidente Richard Nixon chocou o mundo ao romper a relação com o ouro e permitir que seu valor fosse determinado pela negociação nos mercados de câmbio.

O Bitcoin, contudo, é um animal completamente diferente. É a primeira e mais famosa de uma família grande e crescente de coisas denominadas “criptomoedas”. A família inclui o Ethereum, o Ripple, o Dash e o Monero – mas o Bitcoin é de longe o maior. O valor total dos Bitcoins existentes hoje é de 261 bilhões de dólares. Isso é um terço a mais que o valor total das ações do Citigroup, e pouco menos que o valor das ações da Wells Fargo, bancos reais com milhões de clientes, que produzem dinheiro de verdade.

A origem do Bitcoin está num texto de 2008 escrito por alguém com o pseudônimo de Satoshi Nakamoto. Bem a propósito, a despeito das muitas tentativas, ninguém conseguiu saber quem ele é.

A definição semioficial de criptomoeda é “uma moeda digital produzida pessoa-a-pessoa, descentralizada, cuja implementação baseia-se nos princípios da criptografia para validar as transações e geração da própria moeda.” (Embora seja um tijolo denso de prosa, é preciso fazer justiça para os criptoides lembrando que também não seria fácil definir o dólar de forma sucinta.)

Tudo isso significa que o Bitcoin e as outras são moedas eletrônicas – pura entrada de dados em registros eletrônicos – criadas e transferidas por uma rede de computadores sem que ninguém seja responsável por isso. O papel da criptografia não é simplesmente garantir a segurança da transação, mas também gerar novas unidades da moeda. Novas unidades de criptomoeda são “garimpadas” por computadores ao resolver complicados (e descabidos) algoritmos matemáticos, que uma vez solucionados possibilitam o nascimento de uma unidade da moeda – com assinatura digital garantindo autenticidade e unicidade –, então anunciado ao resto do sistema.

Cada Bitcoin inclui um Blockchaim, registro digital anônimo do histórico de transação dessa unidade. O criador ganha o valor da nova moeda quando ela entra no sistema. Você pode comprar ou vender Bitcoins online, e há alguns poucos caixas eletrônicos para Bitcoins espalhados pelo mundo.

A garimpagem requer quantidades enormes de potência computacional. Segundo algumas estimativas, a potência usada pela Bitcoin pode já ser igual à de 3 milhões de famílias dos EUA, e superar o consumo individual de 159 países. A massa dessa garimpagem acontece na China, onde a maior parte da eletricidade é gerada pelo carvão, um negócio sujo. Espera-se que o número total de Bitcoins em circulação chegue a 21 milhões; já estamos por volta de 17 milhões. À medida em que o limite vai sendo alcançado, os algoritmos de criação das moedas ficam mais difíceis de resolver — e mais carbono é gerado. Mesmo as coisas aparentemente mais imateriais têm com frequência profundas raízes materiais.

Vale enfatizar que os algoritmos usados para gerar Bitcoins não têm sentido. Não servem a nada útil. Para alguns adeptos, isso é uma coisa boa, porque estar ligadas a um propósito útil poderia conferir valor intrínseco à moeda; é melhor deixar seu valor flutuar livremente, limitado apenas pela imaginação humana.

É essa a tecnologia do Bitcoin. E o que dizer dela como dinheiro? A clássica definição dos economistas sobre o dinheiro é que ele é uma reserva de valor, uma unidade de medida e um meio de troca. Você vai à loja e vê uma lata de tomates que custa 3 dólares, os quais serão registrados pela loja como receita quando a lata for vendida. Você saca 3 dólares do bolso ou do seu cartão de débito. Extrai o valor provisionado (dinheiro na mão ou no banco) e usa-o como meio de troca.

O dólar norte-americano tem valor porque todo mundo nos EUA (e além) considera a moeda bem-sucedida ao preencher estes três requisitos como dinheiro. O dólar é valorizado pelos bens e serviços que pode comprar.

Já o Bitcoin tem sérios problemas em todos esses aspectos. Recentemente, numa única semana, o valor da Bitcoin variou entre 15 mil e 21 mil dólares aproximadamente. Um ano atrás, seu valor era de pouco mais de 800 dólares. Não é, portanto, uma reserva de valor muito confiável. (Está cotado em US$15.625 agora. Mas espere um minuto e ele vai mudar. Aqui, uma cotação ao vivo.)

Quase ninguém aceita Bitcoins, nem empresas mantêm nele sua contabilidade; ele fracassa tanto como unidade de valor quanto como medida de troca. E sua curta história – os primeiros Bitcoins foram cunhadas em 2009 – tem sido turbulenta. Houve vários roubos, fraudes e hackeamentos, que seus partidários consideram dores de crescimento. Mas sem instituição reguladora, sem depósito de segurança e sem banco central, esse tipo de incidente é inevitável. Introduza, porém, esquemas de regulação e segurança e a Bitcoin perderá todo o seu anarco-charme.

O ouro é como o Bitcoin, por ser uma forma não estatal de dinheiro — razão pela qual é amado pelos libertários, mas tem se saído muito melhor como reserva de valor. O preço do ouro varia bem menos que um por cento ao dia – mas seu preço é ainda mais volátil que o do dólar norte-americano. É uma reserva de valor semiconfiável.

Já nos outros requisitos o ouro não é muito melhor que o Bitcoin: não dá pra comprar muita coisa com ele, e quase nada tem seu preço ou é contabilizado em ouro.

A despeito disso, o ouro retém um enorme apelo fantasmático – um tipo “objetivo” de medida de valor, determinada pelo mercado, distante da intervenção dos Estados. Keynes considerou o ouro parte do “aparato do conservadorismo”. Era um velho conservadorismo, o dos rentistas que amavam a austeridade, porque ela preservava o valor de seus ativos. O Bitcoin serve a um propósito totêmico semelhante para os ciberliberais de hoje — que o amam não somente pelo fato de ser dinheiro não-estatal, mas também por seu poder de “desestabilizar”. O Bitcoin é parte do aparato do anarco-capitalismo.

O universo político do Bitcoin tem face principalmente ultra-liberal, mas inclui uma esquerda. Um texto escrito há alguns anos por Denis “Jaromil” Roio — um hacker, artista e estudante de graduação — utiliza citações de Michael Hardt, Antonio Negri, Giorgio Agamben e Christian Marazzi para dar ao Bitcoin um giro revolucionário, vendo-o de forma criativa como caminho para “a multidão [construir] seu corpo além da linguagem”. Jaromil não explica como a transformação do instrumento monetário poderá mudar o caráter da produção ou o modo como a renda é distribuída.

Há algo a ser dito sobre o anonimato do Bitcoin – embora deva-se perguntar quão impenetrável é seu véu para a Agência de Segurança Nacional (NSA). Por agora, é um meio semisseguro para comprar armas e drogas.

Mas além do anonimato, é difícil enxergar quais os problemas que a Bitcoin resolve. A transição para o dinheiro de papel foi uma resposta à crise do sistema baseado no ouro. Não há valor prático no Bitcoin – de novo, além do anonimato – mas ele carrega bagagem política.

Deixando de lado seus empreendedores e especuladores, que querem apenas enriquecer, a visão política do Bitcoin é de um mundo descentralizado e sem Estados, com sistemas monetários em competição.

Dinheiro competitivo, que acaba com o monopólio do Estado na área, é há muito o sonho da direita. Num texto de 1976, Friedrich Hayek argumentava a favor de permitir a circulação de várias moedas dentro de cada país; a competição levaria ao uso da moeda mais sólida – isto é, a mais adequada às políticas de “austeridade”. Seria uma forma de controlar as tentativas governamentais de inflar as possibilidades de resolver problemas.

Isso significaria ausência de estímulo fiscal ou monetário em crises econômicas – deixem a seleção natural agir, simplesmente. As criptomoedas seriam um passo a mais em direção à ideia de moedas competitivas, que poderiam desafiar o próprio monopólio de emissão do Estado. (Na verdade, tínhamos moedas competindo no século 19; diversos tipos de pequenos bancos emitiam notas que frequentemente acabavam perdendo valor.) Claro, não há inflação; mas o dinheiro governamental provou ser muito mais estável do que suas alternativas — sejam elas ouro ou Bitcoin. Nenhum correntista perdeu um centavo na crise financeira de 2008; não se pode dizer o mesmo sobre os Bitcoins, em sua curta existência. Mas os libertários – e há muitos deles na tecnologia e nas finanças, as mães do Bitcoin – estão sempre preocupados com a inflação; do mesmo modo que os titãs dos fundos de investimento consideram o fim de suas isenções fiscais como uma reprise da Alemanha nazista.

De modo que, embora o Bitcoin falhe como dinheiro, ele adquiriu uma vida intensa como ativo especulativo. Ao contrário da maioria dos ativos especulativos convencionais, porém, seu valor é completamente imaterial. As ações são, em última instância, direitos sobre os lucros das empresas; e os títulos públicos asseguram um fluxo futuro de pagamentos de juros. Não se pode dizer o mesmo dos bitcoins. Seu único valor é aquilo que alguém vai pagar por eles hoje à tarde ou talvez amanhã. E agora estão sendos negociados no mercado futuro, o que leva a especulação a uma quarta ou quinta dimensão.

E que onda especulativa. Todo mundo quer participar do movimento. Imitadores do Bitcoin surgem todos os dias. Há pouco, especuladores garfaram mais de 700 milhões de dólares para uma empresa, a block.one, com uma criptomoeda que não existe realmente e, segundo seus patrocinadores, não tem objetivo. A empresa não divulgou quase nenhuma informação sobre si, e quase nada é conhecido sobre seus fundadores. Alguns dias depois, bem cedo, a empresa Long Island Ice Tea, que vende bebidas não alcoólicas, mudou seu nome para Long Blockchain, e imediatamente o preço de suas ações mais que dobraram. A empresa não tem acordo com nenhum promotor de criptomoeda, nem está prospectando isso. O truque foi a mera troca de nome.

É tudo uma loucura, mas meu palpite é que este tipo de bolha não causará grande dano econômico, quando estourar. Para isso, ela teria de ser financiada por bancos, que estariam em risco de falência quando as coisas ruíssem. Não é o que parece estar acontecendo. Haverá, contudo, quem perca a camisa.

O que é mais sério, essa bolha mostra que algumas pessoas têm muito dinheiro. Nossas sociedades têm dinheiro mais que suficiente para especular, mas não para suprir as necessidades humanas.

21 de dezembro de 2017

Cyril Ramaphosa não é a resposta

A África do Sul precisa de mais do que um novo líder: precisa de uma nova visão, uma que nivela a desigualdade econômica e desmantela os sistemas de patrocínio.

Benjamin Fogel


Cyril Ramaphosa durante as celebrações do vigésimo aniversário do Eastern Cape House of Traditional Leaders no Estádio Bhisho em Bisho Eastern Cape, África do Sul, 7 de julho 2017. Siyabulela Duda / GovernoZA

Tradução / O ex-líder sindical convertido em multimilionário Cyril Ramaphosa acaba de se eleger presidente do Congresso Nacional Africano (CNA). Numa histórica conferência eleitoral, derrotou sua rival, a Dra. Nkosazana Clarice Dlamini-Zuma (NDZ), médica, ex-presidenta da União Africana e ex-esposa e sucessora ungida do atual presidente Jacob Zuma. Porém, a vitória de Ramaphosa é pírrica. As seis principais posições principais do corpo mais poderoso do CNA, o Comitê Executivo Nacional, estão divididas no meio entre Zuma e as facções de Ramaphosa, o que resulta num ponto morto chamado “unidade”.

Os partidários de Ramaphosa proclamaram sua vitória como um triunfo sobre a corrupção, a criminalidade, a incompetência e a repressão que caracterizaram o desastre absoluto da presidência de Zuma. Uma vez querido pela esquerda, a reputação de Ramaphosa sempre estará manchada por sua participação no massacre de Marikana. Nos dias anteriores ao massacre, apresentou uma solicitação ao governo em nome de Lonmim. Suas ações contribuíram diretamente para o assassinato de 34 trabalhadores, traindo o movimento que cortou seus dentes políticos.

Amplamente visto como “capturado” pelos Guptas, uma família de empresários indianos, Zuma e seus comparsas desmantelaram grandes seções do estado, inclusive a procuradoria-nacional e o serviço de arrecadação de impostos, para manter-se fora do cárcere.

A defesa feita por Zuma da Transformação Econômica Radical (RET, em sua sigla em inglês) não fez nada para ajudar a economia. Sob o mandato de Zuma, a economia degradou-se para o status de sucata, o crime em todas as suas manifestações aumentou, o outrora poderoso movimento sindical se dividiu, os trabalhos de manufatura desapareceram, o desemprego alcançou um recorde oficial alto de 27% e as condições de vida da maioria dos trabalhadores negros diminuíram visivelmente.

O governo de Zuma descreveu qualquer da mídia, da comunidade empresarial ou de dentro do CNA como “Capital do monopólio branco”. E, de fato, o grande capital na África do Sul é tão corrupto e vingativo como Zuma e seus comparsas. Quando se adaptou a seus resultados, as empresas participaram na “captura do estado” e ajudaram os Guptas a esfolar o país a todo custo. O grande capital, tanto em suas encarnações nacionais ou internacionais, inclusive KPMG, MultiChoice e MacKinsey Company, estiveram implicados nos planos dos Guptas. Em dezembro último, no maior escândalo de fraude corporativa do país, a empresa de móveis Steinhoff revelou-se uma empresa criminosa.

África do Sul é o país mais desigual do mundo. Embora a demografia racial da desigualdade tenha mudado desde o fim do apartheid – cerca de 49% frente a 86% dos proprietários de maiores rendas, são brancos e os negros constituem apenas 30% -, quase a totalidade dos setores mais pobres da população são negros. Mas a retórica de Zuma distrai-se do fato de que seu governo não desafiou o capital. Destruiu e saqueou as instituições estatais, prejudicando mais a classe trabalhadora negra da África do Sul.

Por uma boa razão, Zuma e sua facção podem ter perdido a presidência do partido, mas os elementos mais corruptos e perigosos do CNA têm o controle do partido. O CNA está parcialmente controlado pela chamada Liga Premier, um apodo que se refere a uma camarilha corrupta de premiês (governadores) das províncias-chave da África do Sul, mais parecidos com os capos da máfia do que com os políticos que operam numa democracia constitucional. Dois de seus membros agora ocupam postos nos primeiros seis cargos do CNA: David Mabuza (governador de Mpumalanga) e Ace Magashule (governador de Free State).

Dois dos gangsters mais perigosos da África do Sul, Mabuza e Magashule transformaram suas respectivas províncias em feudos privadas. Mabuza tem sido associado a vários assassinatos políticos e parece mais do que disposto a retirar seus rivais. Magashule pagou o casamento da sobrinha de Guptas em dinheiro, e o CNA desqualificou sua província das eleições duas vezes graças ao seu total desrespeito pelo processo democrático básico – uma conquista notável considerando os já baixos padrões do partido.

Magashule supervisionará a manutenção diária do partido como secretário-geral do ANC com a ajuda de Jessie Duarte (reeleita como vice-secretária-geral), uma lacaia sem princípios dos Guptas e Mabuza está em posição de se tornar o próximo presidente da África do Sul após Ramaphosa.

O resultado é provavelmente um desastre: com Mabuza e Magashule no gabinete, será difícil para Ramaphosa embarcar em reformas agudas ou em mudanças de políticas, e talvez ele nem possa fazer recordar Zuma. A unidade, como qualifica Mabuza, significa que o CNA não vai se separar e o SACP e o COSATU permanecerão na aliança, abortando quaisquer esperanças de um novo partido de esquerda emergir. Na verdade, há indícios de que um acordo foi interrompido entre Ramaphosa e Mabuza antes da conferência que viu Mabuza se tornar um governador, trocando seu apoio de NDZ por Ramaphosa. Poderia significar que Mabuza poderia ter rompido com a Premier League e está buscando esculpir uma nova facção, tornando-se ainda mais perigoso e imprevisível.

Duas redes concorrentes patronais agora gerem o CNA: uma alinhada com a grande estabilidade promissora do capital e a outra representando uma facção predatória baseada na transferência de ativos do estado para elites politicamente conectadas, mesmo que isso mergulhe o país em uma crise econômica.

Zuma fica sozinho


O RET rondou esta campanha. A última versão da política do CNA promove o fim do neoliberalismo, a redistribuição radical e a transferência da economia sul-africana para as mãos negras.

No primeiro dia da conferência, Zuma anunciou a peça central do RET: um plano para educação superior gratuita, após vários anos de protestos estudantis sob a campanha #FeesMustFall. O movimento de Zuma baseou-se em uma proposta supostamente elaborada por um agente de segurança do Estado que também é o namorado de sua filha.

Zuma negligenciou uma consulta ao partido, a seu ministro das Finanças ou do tesouro antes de fazer o anúncio – um movimento que violou todos os padrões de democracia constitucional e deveria nos deixar muito céticos quanto às perspectivas de implementação dessas medidas.

Durante a conferência, Zuma entregou um discurso monumentalmente horrível, falando como se ele tivesse sido um mero observador durante a última década, em vez do chefe partidário e presidente nacional. Ele jogou a culpa dos problemas do CNA e da África do Sul nas parcelas imperialistas, nos tribunais, nos meios de comunicação, na sociedade civil – todos menos ele mesmo. O melhor resume-se na insistência de Zuma de que ele fez o seu melhor como presidente e não teve arrependimentos, apesar da profundidade da crise atual.

A retórica anti-imperialista de Zuma é tão transparentemente oportunista e falaciosa que persuade poucos. A classe trabalhadora sul-africana reconhece o RET como marketing cínico, mas também sabe que Ramaphosa também não é seu homem.

Zuma deixou todos os seus ex-aliados, incluindo o líder sindical Zwelinzima Vavi e o líder da SACP, Blade Nzimande, no ônibus. Tudo o que ele promoveu são os Guptabots, os gangsters, os lacaios e os idiotas, como o presidente da Liga da Juventude do ANC, de trinta e sete anos, Collen Maine. Publicamente ridicularizado como “o homem de Oros” – referindo-se à mascote da África do Sul para o nosso koolaid, uma versão laranja do homem Michelin – Maine não conseguiu ganhar o respeito de um único sul-africano.

“Oros” fez seu nome por acrobacias tão patéticas como ameaçar pelo pescoço o ex-ministro das Finanças Pravin Gordhan por supostamente ser um “impimpi” (informante), apesar de não ter nenhuma credencial de luta contra o apartheid para demonstrar. De fato, a geração mais nova do CNA não tem talento político; eles receberam suas posições graças à lealdade cega e à disposição de lançar seus princípios no caminho certo.

Do ponto de vista de Ramaphosa, unir-se com a facção do gângster do ANC seria um resultado desastroso, mas não devemos esperar uma divisão, uma purga, uma responsabilidade ou uma alternativa – apenas um ponto morto. Eu espero verdadeiramente que eu esteja errado e que Ramaphosa possa manobrar seus inimigos enquanto estabiliza a economia e purga o estado de seus elementos parasitários, mas é difícil ter fé no CNA.

Zuma está seguro por enquanto. Não convém nem a Ramaphosa nem ao eixo Gupta dividir o partido ou escalar o faccionalismo. Ambos os lados reconhecem que precisam do controle do estado para poderem impulsionar suas respectivas máquinas patronais.

Transformação radical realidade


Ao menos, a corrupção de Ramaphosa dará aos sul-africanos trens que realmente funcionam – sob Zuma, o governo fez um acordo de dois bilhões de dólares para vagões que não se encaixavam nas faixas. Ao menos, Ramaphosa pode nomear o próximo promotor nacional e substituir o odioso Shaun Abrahams. E, ao menos, o estado da África do Sul não será desmantelado, de modo que um futuro governo de esquerda – aqui estou bastante otimista – terá algo a ser herdado.

O que resta da esquerda sul-africana não pode assumir que o heroísmo da luta contra o apartheid tenha deixado uma base de massa gritando para o socialismo, apenas esperando pelo líder ou pela retórica certos. Também não pode assumir que altos níveis de luta social se traduziram automaticamente em um movimento contra-hegemônico. Deve construir uma maioria e conquistar pessoas. Perseguir atalhos nos deu Zuma – ao menos, devemos aprender com os nossos erros; esses erros que destruíram um dos movimentos trabalhistas mais poderosos do mundo.

Enquanto os Economic Freedom Fighters (EFF) e seu líder Julius Malema têm mais que alguns defeitos, eles mostraram que a retórica e a militância de esquerda têm uma audiência na África do Sul depois de ganhar mais de um milhão de votos nas eleições de 2014. Embora o EFF tenha sido inicialmente descartado como meros oportunistas pela esquerda estabelecida, eles mantiveram ideias emancipadoras nos discursos políticos da África do Sul e provavelmente fizeram mais para dar noites sem dormir a Zuma do que a Aliança Democrática de centro-direita e o lamento interminável de sua base de apoio liberal. Um partido de esquerda não será criado por tratativas clandestinas e pelo estilo endêmico do clube para ONGs e o movimento sindical. Ele precisa de uma visão que atraia pessoas e crie quadro em vez de aduladores.

Sem um movimento, só podemos discutir as lutas defensivas para proteger os ganhos pós-apartheid, como o sistema de subsídio social, a constituição e o estado de um poder judicial, que continua a marginalizar a classe pobre e trabalhadora muito frequentemente.

A reconstrução de um movimento sindical iniciado pela nova Federação Sul-Africana de Sindicatos levará anos, uma vez que as condições econômicas e a dizimação de empregos industriais significam que o clima para a organização do trabalho é excepcionalmente difícil.

A África do Sul precisa de mais do que um novo líder: precisa de uma nova visão, que nivela a desigualdade econômica e desmantela os sistemas patronais, que se inspire no passado heroico e trace um novo caminho a seguir. Isso certamente não está na agenda de Ramaphosa, enquanto bandidos como Mabuza ameaçam arrastar o país para um pesadelo.

Sobre o autor


Benjamin Fogel é doutorando em História na Universidade de Nova York. Faz parte do coletivo editorial Africa is a Country.

O homem da Viena Vermelha

What are we to make of Karl Polanyi? And what lessons might he offer for the present moment?

Robert Kuttner

The New York Review of Books

Leo Popper, Karl Polanyi, and Michael Polanyi, circa 1908

Karl Polanyi: A Life on the Left
de Gareth Dale
Columbia University Press, 381 páginas, 27 dólares

Tradução / Que era esplendorosa estaríamos supostamente vivendo, com a única superpotência restante espalhando o capitalismo e a democracia liberal em todo o mundo. Em vez disso, a democracia e o capitalismo parecem cada vez mais incompatíveis. O capitalismo global escapou dos limites de uma economia mista pós-guerra, que reconciliou o dinamismo com a segurança através da regulamentação do sistema financeiro, do empoderamento do trabalho, do estado do bem-estar social e de elementos de uma propriedade pública. A riqueza eliminou a cidadania, produzindo maior concentração de renda e poder, bem como a perda de fé na democracia. O resultado é uma economia de extrema desigualdade e instabilidade, organizada não para muitos, mas para poucos.

Não surpreendentemente, muitos reagiram. Para decepção daqueles que esperavam na esquerda democrática disposição para limitar a ação dos mercados, a reação é principalmente dos populistas de direita. E por “populista” entenda-se a natureza dessa reação cuja retórica, princípios e práticas nacionalistas tangenciam o neofascismo. Um aumento do fluxo de migrantes, outra característica da globalização, agravou a raiva de pessoas atingidas pelas crises econômicas que querem Fazer a América Grande Novamente (assim como a França, a Noruega, a Hungria, a Finlândia...). Isso ocorre não apenas em países fracamente democráticos como a Polônia e a Turquia, mas nas democracias estabelecidas — Grã-Bretanha, EUA, França, e mesmo a Escandinávia social-democrata.

Já vivemos esta situação antes. Durante o período entre as duas guerras mundiais, os liberais do livre mercado que governam a Grã-Bretanha, a França e os EUA tentaram restaurar o sistema do laissez-faire de antes da Primeira Guerra Mundial. Ressuscitaram o padrão-ouro e colocaram como prioridade não a recuperação econômica, mas o pagamento das dívidas de guerra e reparações. Foi um tempo de livre comércio e especulação desenfreada, sem controle sobre capital privado. O resultado foi uma década de insegurança econômica que terminou em depressão, enfraquecimento da democracia parlamentar e reação fascista. Até as eleições alemãs de julho de 1932, quando os nazistas se tornaram o maior partido no Reichstag, a coalizão governamental anterior a Hitler estava praticando a austeridade econômica recomendada pelos credores da Alemanha.

O grande profeta de como as forças do mercado levaram ao extremo de destruir a democracia e uma economia em funcionamento não foi Karl Marx, mas Karl Polanyi. Marx esperava que a crise do capitalismo acabasse numa rebelião global dos trabalhadores que levaria até o comunismo. Polanyi, com quase um século mais de história para avaliar, indicou que a maior probabilidade era o advento do fascismo.

Como Polanyi demonstrou em sua obra-prima, The Great Transformation (A Grande Transformação), de 1944, quando os mercados se tornam “desembarcados” de suas sociedades e criam deslocamentos sociais severos, as pessoas acabam por se revoltar. Polanyi viu a catástrofe da Primeira Guerra Mundial, o período entre as guerras, a Grande Depressão, o fascismo e a Segunda Guerra Mundial como a culminação lógica das forças do mercado que esmagam a sociedade. Tratava-se, para ele do “esforço utópico do liberalismo econômico para criar um sistema de mercado autorregulado” — algo que começou na Inglaterra do século XIX. Esta foi uma escolha deliberada, ele insistiu, e não a reversão a um estado econômico natural. A sociedade de mercado, Polanyi demonstrou insistentemente, só pode existir devido a uma ação deliberada do governo que define direitos de propriedade, termos de trabalho, comércio e finanças. “O laissez faire“, escreveu ele enfaticamente, “foi planejado”.

Polanyi acreditava que a única via política capaz de moderar a influência destrutiva do capital organizado e sua ideologia do ultra mercado era por meio de movimentos trabalhistas altamente mobilizados, astutos e sofisticados. Ele concluiu isso não a partir da teoria econômica marxista, mas de uma observação aguda da experiência mais bem sucedida de um socialismo municipal na Europa entreguerras: a “Viena Vermelha”, onde trabalhou como jornalista econômico na década de 1920. Por um tempo no pós-Segunda Guerra Mundial, todo o Ocidente teve uma forma igualitária de capitalismo construída sobre a força do Estado democrático e sustentada por fortes movimentos trabalhistas; mas, desde a era de Thatcher e Reagan, esse poder de contenção foi esmagado, com resultados previsíveis.

Em A Grande Transformação, Polanyi enfatizou que os imperativos essenciais do liberalismo clássico do século XIX eram 1) o livre comércio, 2) a ideia de que o trabalho devia “encontrar seu preço no mercado” e 3) a aplicação do padrão-ouro. Os equivalentes de hoje são estranhamente semelhantes. Temos um impulso cada vez mais intenso para o comércio desregulado, para destruir os restos do capitalismo com algum nível de gestão e regulação; e o desmantelamento do que resta das salvaguardas do mercado de trabalho para aumentar os lucros das empresas multinacionais. No lugar do padrão-ouro, cuja função do século XIX era a de forçar as nações a priorizar o “dinheiro seguro” e os interesses dos detentores de títulos antes do verdadeiro bem-estar econômico, temos políticas de “austeridade” aplicadas pela Comissão Europeia, pelo Fundo Monetário Internacional e a chanceler alemã, Angela Merkel, com os bancos centrais endurecendo o crédito aos primeiros sinais de inflação.

Esta trindade obscena de políticas econômicas que Polanyi identificou não está funcionando mais agora do que na década de 1920. São fracassos retumbantes, na economia, na política social e na política. A análise histórica de Polanyi, em ambos os escritos anteriores e em The Great Transformation, foi confirmada três vezes, primeiro pelos eventos que culminaram na Segunda Guerra Mundial, depois pela contenção temporária do laissez-faire com a prosperidade democrática durante o boom do pós-guerra e agora novamente pela restauração do liberalismo econômico primário e a reação neofascista a ele.


A biografia intelectual escrita por Gareth Dale, Karl Polanyi: A Life on the Left (Karl Polanyi: Uma vida à Esquerda), fez um fino trabalho de mergulhar no homem, seu trabalho e a configuração política e intelectual em que ele se desenvolveu. Esta não é a primeira biografia de Polanyi, mas é a mais abrangente. Dale, cientista político que ensina na Brunel University em Londres, também escreveu um livro anterior, Karl Polanyi: The Limits of the Market (2010), sobre seu pensamento econômico.

Polanyi nasceu em 1886 em Viena, em uma ilustre família judaica. Seu pai, Mihály Pollacsek, emigrou da região dos Cárpatos do Império Habsburgo e formou-se engenheiro na Suíça. Ele era empregado do vigoroso sistema ferroviário do império. No final da década de 1880, Mihály mudou a família para Budapeste, de acordo com o Arquivo Polanyi. Embora tenha mantido seu sobrenome, ele adaptou o dos filhos para ao magiar (húngaro) Polanyi em 1904 — o mesmo ano em que Karl iniciou estudos na Universidade de Budapeste. A mãe de Karl, Cecile, a filha bem educada de um rabino de Vilna (Lituânia), era uma feminista pioneira. Ela fundou um colégio de mulheres em 1912, escreveu para periódicos de língua alemã em Budapeste e Berlim e presidiu um dos salões literários de Budapeste.

Em casa, o alemão e o húngaro eram falados (juntamente com o francês “à mesa”); e o inglês foi aprendido, conta Dale. As cinco crianças Polanyi também estudaram grego e latim. No quarto de século antes da Primeira Guerra Mundial, Budapeste era um oásis de tolerância liberal. Tal como em Viena, Berlim e Praga, uma grande proporção da elite profissional e cultural era de judeus assimilados. Em meados da década de 1890, Dale observa: “a fé judaica recebeu os mesmos privilégios que as denominações cristãs, e os representantes judeus receberam assentos na câmara alta do parlamento”.

Com base em entrevistas, correspondências e textos publicados, Dale evoca a era vividamente. O círculo de Polanyi em Budapeste, conhecido como A Grande Geração, incluiu ativistas e teóricos sociais, como seu mentor, Oscar JasziKarl Mannheim; o marxista Georg Lukács; o irmão mais novo de Karl e seu sparring ideológico, o libertário Michael Polanyi; os físicos Leo Szilard e Edward Teller; o matemático John von Neumann; e os compositores Béla Bartók e Zoltán Kodály, entre muitos outros. Foi nesta estufa que Polanyi desenvolveu-se, frequentando o ginásio Minta, um dos melhores da cidade e a seguir a Universidade de Budapeste. Ele foi expulso em 1907, depois de uma confusão em que antissemitas interromperam uma palestra de um professor esquerdista popular, Gyula Pikler. Terminou sua graduação em Direito em 1908 na Universidade Provincial de Kolozsvár (hoje Cluj, na Romênia). Lá, foi um dos fundadores do jornal de esquerda humanista Círculo Galilei e depois integrou o conselho editorial do periódico.

Polanyi tornou-se um dos principais membros do partido político de Jaszi, o Radical, e foi nomeado seu secretário-geral em 1918. Ele foi atraído pelo socialismo cristão de Robert Owen e Richard Tawney e o socialismo comunitário de G.D.H. Cole. Ele contemplou uma fusão do marxismo e do cristianismo. Polanyi talvez seja melhor classificado como um social-democrata de esquerda — um cético, ao longo da vida, com a possibilidade de uma sociedade capitalista tolerar um sistema econômico híbrido.

Quando a Primeira Guerra Mundial eclodiu, Polanyi alistou-se como oficial de cavalaria. Quando voltou para casa no final de 1917, sofrendo de desnutrição, depressão e tifo, Budapeste estava num conflito caótico entre a esquerda e a direita. Em 1918, o governo húngaro firmou uma paz separada com os Aliados, rompendo com Viena e imaginando criar uma república liberal. Os acontecimentos nas ruas ultrapassaram a disputa parlamentar e o líder comunista Béla Kun proclamou o que acabou por ser uma República soviética húngara de curta duração.

Polanyi partiu para Viena, tanto para recuperar a saúde como para sair da linha de frente política. Lá, encontrou sua vocação como jornalista de economia de alto nível e o amor de sua vida, Ilona Duczynska, uma polonesa radical de esquerda. Sua filha, Kari, nascida em 1923, recorda, como um pré-adolescente, que fazia um clipping recortando artigos de jornais em três línguas diferentes para o seu pai. Com 94 anos, ela continua a co-dirigir o Arquivo Polanyi em Montreal.

Polanyi foi contratado em 1924 para escrever sobre política internacional naquele que pode ser considerado o equivalente da Europa Central ao The Economist, o semanário Österreichische Volkswirt. Ele continuou sua busca por um socialismo viável, envolvendo-se com outros intelectuais de esquerda e polemizando com a direita, especialmente com os argumentos do teórico do livre mercado, Ludwig von Mises. Nos debates, publicados em detalhes, Polanyi mostrava como uma economia socialista poderia ser capaz de praticar preços eficientes. Mises insistia que não era. Polanyi argumentava que uma forma descentralizada de socialismo liderada pelos trabalhadores poderia praticar preços com uma boa precisão. Com o tempo ele concluiu, diz Dale, que estes argumentos técnicos abstrusos haviam sido um desperdício de seu tempo.[1]

Uma resposta prática ao debate com Mises estava se desenrolando ao vivo na Viena Vermelha. Trabalhadores mobilizados mantiveram um governo socialista municipal no poder por quase 16 anos depois da I Guerra Mundial. O governo fornecia gás, água e eletricidade, e construía casas e prédios para os trabalhadores, financiando-se por impostos pagos pelos ricos — incluindo um imposto para os funcionários públicos. Havia subsídios familiares para pais e seguro desemprego municipal para os sindicatos. Nada disso prejudicou a eficiência da economia privada na Áustria, que era ameaçada pelas políticas infelizes de “austeridade” econômica criticadas por Polanyi. Depois de 1927, o desemprego aumentou implacavelmente e os salários diminuíram, o que ajudou a levar ao poder em 1932-1933 um governo austrofascista.


Para Polanyi, a Viena Vermelha foi tão importante por sua política quanto por sua economia. A política perversa da Inglaterra de Dickens refletiu a fraqueza política de sua classe trabalhadora, enquanto a Viena Vermelha era um emblema da força de sua classe trabalhadora. “Enquanto [a reforma das leis sociais dos ingleses] causou um verdadeiro desastre para as pessoas comuns”, escreveu ele, “Viena alcançou um dos triunfos mais espetaculares da história ocidental”. Mas, como Polanyi ponderou, uma ilha de socialismo municipal não poderia sobreviver à maior turbulência do mercado e ao fascismo crescente.

Em 1933, com os fascistas assumindo o governo, Polanyi deixou Viena e foi para Londres. Lá, com a ajuda de Cole e Tawney, ele encontrou trabalho em um programa de extensão patrocinado pela Universidade de Oxford, conhecido como Associação Educacional dos Trabalhadores. Ele ensinou, entre outros temas, a história industrial inglesa. Sua pesquisa original para essas palestras formou os primeiros rascunhos de A Grande Transformação.

Seu mentor, Oscar Jaszi, também estava agora no exílio e ensinava em Oberlin. Para complementar o seu reduzido pagamento como adjunto, Polanyi conseguiu se contratado para conferências em faculdades nos Estados Unidos. Ele encontrou a América de Roosevelt um contraponto esperançoso à Europa. Depois que a guerra explodiu, uma dessas viagens de conferência evoluiu para uma nomeação por três anos no Bennington College, onde completou seu livro.

O timing para a publicação de A Grande Transformação foi auspicioso. O ano de 1944 testemunhou o Acordo de Bretton Woods, o apelo de Roosevelt por uma Declaração de Direitos Econômicos e o plano épico de Lord Beverage, Pleno Emprego numa Sociedade Livre. O que estas iniciativas tinham em comum com o trabalho de Polanyi era a convicção de que um mercado excessivamente livre nunca mais deveria levar à miséria humana, que termina no fascismo.

No entanto, o livro de Polanyi foi inicialmente recebido com um silêncio retumbante. Isto, penso eu, foi o resultado de dois fatores. Primeiro, Polanyi não pertencia a nenhuma disciplina acadêmica e era essencialmente um autodidata. Dale escreve que quando finalmente lhe foi oferecido um trabalho como professor de História Econômica em Columbia, em 1947, “os sociólogos viram-no como um economista, enquanto os economistas pensavam o contrário”. Os meados do século XX, nos Estados Unidos, foram um período em que a economia política, o arcabouço institucional, a história do pensamento econômico e a história econômica entraram em um período de eclipse, em favor de uma visão formalista. E o pensamento de Polanyi não era uma hipótese que poderia ser testada.

Segundo e mais importante, os adversários ideológicos de Polanyi gozavam de prestígio e eram promovidos, enquanto ele contava apenas o poder de suas ideias. Mises, como Polanyi, não tinha credenciais acadêmicas. Mas ele conduziu um influente seminário privado a partir de seu cargo como secretário da Câmara de Comércio da Áustria. O seminário desenvolveu a escola de economia ultraliberal austríaca. O primeiro aluno de Mises foi Friedrich Hayek. Como teórico do laissez-faire financiado por empresários, Mises antecipou a Fundação Heritage em meio século.

Hayek afirmou em The Road to Serfdom (O Caminho da Servidão) que os esforços bem-intencionados do Estado para controlar os mercados acabariam em despotismo. Mas não há nenhum caso de social-democracia que tenha derivado em ditadura. A história deu razão a Polanyi, demonstrando que um mercado livre sem regras é que leva a uma ruptura com a democracia. Hayek acabou com uma cadeira na London School of Economics, que foi fundada originalmente pelos socialistas fabianos; a “Escola austríaca” foi reconhecida como uma escola de economia ultraliberal; e Hayek depois ganhou o Prêmio Nobel de Economia. O Caminho da Servidão, também publicado em 1944, foi um best-seller, publicado em capítulos no Reader's Digest. A Grande Transformação de Polanyi vendeu apenas 1.701 cópias em 1944 e 1945.

Quando A Grande Transformação apareceu em 1944, a resenha no The New York Times foi seca. O resenhista, John Chamberlain, escreveu: “Este ensaio maravilhosamente escrito reavalia 150 anos de história e apresenta um sutil apelo por um novo feudalismo, uma nova escravidão, um novo status econômico que vai amarrar os homens aos seus lugares de residência e seus empregos”. Não à toa, esta opinião soa como Hayek: o mesmo Chamberlain acabara de escrever o prefácio efusivo para O Caminho da Servidão. É o que se poder chamar de economia política de influência.

No entanto, o livro de Polanyi recusou-se a desaparecer. Em 1982, seus conceitos foram a peça central de um impactante artigo do estudioso de relações internacionais John Gerard Ruggie, que denominou a ordem econômica do pós-guerra de 1944 de “liberalismo incorporado”. O sistema de Bretton Woods, escreveu Ruggie, reconciliou o estado com o mercado por “re-incorporar” o liberalismo econômico na sociedade por meio de políticas democráticas”[2]. O sociólogo dinamarquês Gøsta Esping-Andersen, importante historiador da social-democracia, usou o conceito polanyiano de "desmercantilização" em um livro importante, The Three Worlds of Welfare Capitalism "Os três mundos do capitalismo do bem-estar social", para descrever como os social-democratas continham e complementavam o mercado.[3]

Outros estudiosos que valorizaram as ideias de Polanyi foram os historiadores políticos Ira KatznelsonJacob Hacker e Richard Valelly, o falecido sociólogo Daniel Bell, e os economistas Joseph StiglitzDani Rodrik e Herman Daly. Por outro lado há pensadores que parecem essencialmente polanyianos em sua preocupação com os mercados que invadem os reinos não mercadológicos, como Michael WalzerJohn Kenneth GalbraithAlbert Hirschman e a premiada com o Prêmio Nobel Elinor Ostrom. Este é o preço que se paga por ser, na auto-descrição de Hirschman, um intruso.


Exilado três vezes — de Budapeste para Viena, de Viena para Londres, e mais tarde para Nova York — Polanyi teve que se mudar mais uma vez quando as autoridades dos EUA não concederam a sua mulher Ilona um visto, alegando que ela havia sido do Partido Comunista na década de 1920. Eles mudaram-se para um subúrbio de Toronto, de onde Polanyi foi para Columbia, até sua aposentadoria em meados da década de 1950.

Embora seus entusiastas tendam a se concentrar apenas em A Grande Transformação, o livro de Dale é precioso para a avaliação sobre Polanyi depois de 1944. Ele viveu por mais 20 anos, trabalhando no que era conhecido como sistemas econômicos primitivos, o que lhe deu mais bases para demonstrar que o mercado livre não é uma condição natural, e que os mercados de fato não têm que predominar sobre o resto da sociedade. Ao contrário, muitas culturas ancestrais misturaram as formas de intercâmbio de mercado com relação econômicas e comerciais não mercadológicas. Ele estudou o tráfico de escravos do Daomé e a economia de Atenas na Antiguidade, os quais "demonstraram que elementos de redistribuição, reciprocidade e troca poderiam ser efetivamente fundidos em ‘um todo orgânico'". Dale escreve: “Para Polanyi, a Atenas democrática foi na verdade uma precursora, na Antiguidade, da Viena vermelha”. Atenas, é claro, estava longe de ser socialista, mas naquela economia pré-capitalista estavam mescladas formas de geração de renda mercadológicas e não mercadológicas.

Dale também aborda os pontos de vista de Polanyi sobre a escalada da Guerra Fria e sobre a economia mista do pós-guerra, que muitos agora veem como uma era dourada. Os Trinta Gloriosos que combinavam o capitalismo igualitário e a democracia restaurada, deveriam ter sido tomado por ele como uma afirmação. Mas ele, tendo vivido duas guerras, a destruição da Viena socialista, a perda de familiares durante o nazismo, quatro exílios e longas separações de Ilona, ​​não foi tão facilmente convencido. Enquanto admirava Roosevelt, ele considerava o governo trabalhista britânico de 1945 como um exemplo acabado de estado de bem-estar num sistema ainda capitalista.

Meio século depois, essa preocupação mostrou-se acertada. Outros viram o sistema de Bretton Woods como uma maneira elegante de reiniciar o comércio, criando condições para cada nação-membro administrar suas economias de pleno emprego; mas Polanyi considerou o sistema como uma extensão da influência do capital. Isso também pode ter sido profético. Na década de 1980, o FMI e o Banco Mundial foram transformados em defensores da austeridade, o oposto do que fora planejado por seu arquiteto, John Maynard Keynes. Ele culpou, pela Guerra Fria, principalmente a ação dos Aliados. Louvou a visão de Henry Wallace, de que o Ocidente poderia ter conseguido uma acomodação com Stalin.

Dale não poupou críticas a Polanyi sobre o que chamou de seu ponto cego em relação à União Soviética. Em vários momentos das décadas de 1920 e 1930, ele observa, Polanyi deu sua aprovação a Stalin, mesmo culpando o pacto Molotov-Ribbentrop de 1940 pelo o anti-sovietismo da Casa Branca. Ele estava muito otimista quanto às intenções dos soviéticos no período imediato do pós-guerra. Como membro do Conselho de Emigrados Húngaros em Londres, ele discutiu com os outros líderes se o Exército Vermelho deveria ser entendido como um precursor do socialismo democrático. A libertação soviética da Europa Oriental, insistiu Polanyi, traria “uma forma de governo representativo baseado em partidos políticos”.

Comprovado o erro de sua tese, Polanyi aplaudiu a abortada revolução húngara de 1956. Mesmo depois de a rebelião ter sido esmagada por tanques soviéticos, ele encontrou razões para a esperança no comunismo goulash ligeiramente reformista que se seguiu. Isso era ingênuo, mas não totalmente equivocado. Embora Polanyi não fosse marxista, havia uma abertura suficiente na Hungria a ponto de em 1963, um ano antes de sua morte e bem antes da queda Muro de Berlim, ele ter sido convidado para conferências na Universidade de Budapeste, sua primeira visita a seu país em quatro décadas.

No centenário de nascimento de Polanyi, em 1986, Kari Polanyi-Levitt organizou um simpósio em homenagem a seu pai em Budapeste. O volume da conferência é um excelente companheiro à biografia de Dale[4]. Os 25 artigos curtos são escritos por uma mistura de escritores com base no Ocidente e vários que moravam no que ainda era a Hungria comunista — onde Polanyi era amplamente lido. A escrita é surpreendentemente exploratória e não dogmática. Mesmo assim, quando chegou sua vez da falar, Polanyi-Levitt pediu: “Se me for permitido mais um pedido à Academia Húngara das Ciências... este é que A Grande Transformação seja disponibilizado aos leitores húngaros em língua húngara”. Isso foi finalmente feito em 1990. Como muitos no Ocidente, o regime comunista em Budapeste não tinha certeza do que fazer com Polanyi.

Hoje, depois de um interlúdio democrático, a Hungria é um centro da autocracia ultra-nacionalista. Políticas equivocadas de licenciosidade financeira têm desempenhado seu papel habitual. Após o colapso financeiro de 2008, o desemprego húngaro aumentou constantemente, de menos de 8% antes do crash até quase 12% até o início de 2010. Na eleição de 2010, o Fidesz – Magyar Polgári Szövetség (União Cívica Húngara), de extrema direita, varreu o governo de esquerda, ganhando mais do que 2/3 dos assentos parlamentares, o que possibilitou a “democracia de controle” do primeiro-ministro Viktor Orbán. Foi mais um eco, de que Polanyi não precisava.


O que, afinal, devemos fazer com Karl Polanyi? E que lições ele pode oferecer para o momento presente? Como até mesmo os seus admiradores admitem, algumas de suas observações eram falhas. Alguns de seus seguidores, Fred Block e Margaret Somers, ressaltam que sua narrativa da Grã-Bretanha do final do século XVIII exagera na abrangência da proteção legal aos mais pobres. Seu famoso estudo sobre a Lei dos Pobres ou Lei Speenhamland, de 1795, cuja assistência pública protegeu os pobres das primeiras perturbações do capitalismo, exagerou na avaliação de sua aplicação na Inglaterra como um todo. No entanto, seu relato da reforma liberal da Lei dos Pobres na década de 1830 foi perfeito. A intenção e efeito foram expulsar as pessoas da rede de apoio e forçar os trabalhadores a aceitarem empregos por salários mais baixos.

Pode-se também argumentar que o fracasso da democracia liberal em conquistar a Europa Central no século XIX, o que abriu o caminho para o nacionalismo de direita, teve causas mais complexas do que a disseminação do liberalismo econômico. No entanto, Polanyi estava certo ao observar que foi a tentativa fracassada de universalizar o liberalismo de mercado após a Primeira Guerra Mundial que deixou as democracias fracas, divididas e incapazes de resistir ao fascismo, até o início da guerra. Neville Chamberlain é mais lembrado por sua capitulação para Hitler em Munique em 1938. Mas, no fosso da Grande Depressão, em abril de 1933, quando Hitler estava consolidando o poder em Berlim e Chamberlain era o chanceler conservador do Tesouro em Londres, ele afirmou : “Estamos livres desse medo que nos assola, o medo de que as coisas vão piorar. Nós devemos nossa liberdade ao fato de termos equilibrado nosso orçamento”. Tal foi a sabedoria convencional perversa, então e agora.

Um artigo recente de três cientistas políticos dinamarqueses no Journal of Democracy questiona se é razoável atribuir o surgimento do fascismo nas décadas de 1920 e 1930 às políticas liberais do laissez-faire e ao colapso econômico.[5] Eles relatam que as democracias bem estabelecidas do noroeste da Europa e das antigas colônias britânicas do Canadá, dos EUA, da Austrália e da Nova Zelândia “foram virtualmente imunes às crises persistentes do período entreguerras”, enquanto as democracias mais novas e mais frágeis da Europa do Sul, Central e Oriental sucumbiram. Na verdade, os fascistas assumiram brevemente o poder no noroeste da Europa apenas por invasão e ocupação. No entanto, essa observação faz de Polanyi uma voz ainda mais profética e ameaçadora sobre o nosso tempo. Hoje, em grande parte da Europa, os partidos de extrema direita são agora a segunda ou terceira maior força.

Em suma, Polanyi pode ter errado aqui e ali, mas conseguiu acertar no grande cenário. A democracia não pode sobreviver com um mercado excessivamente livre; e conter o mercado é tarefa da política. Ignorar isso é cortejar o fascismo. Polanyi escreveu que o fascismo resolveu o problema do mercado desenfreado destruindo a democracia.

Mas, ao contrário dos fascistas do período entreguerras, os líderes de extrema direita de hoje não se ocupam de conter as turbulências no mercado ou proporcionar empregos dignos através de obras públicas. O Brexit, um espasmo de raiva dos despossuídos, não fará nada positivo para a classe trabalhadora britânica; e o programa de Donald Trump é uma mescla de retórica nacionalista e uma aliança ainda mais profunda do governo com o capitalismo predatório. O descontentamento ainda pode ir para outro lugar. Assumindo o valor da democracia, pode haver uma mobilização combativa no espírito do socialismo viável de Polanyi. O pessimista Polanyi diria que o capitalismo ganhou e a democracia perdeu. O otimista nele procuraria uma renovação da política popular.

Notas:

[1] Tratei do conflito Mises-Hayek-Polanyi em Karl Polanyi Explains It All, no The American Prospect, maio-jun 2014

[2] John Gerard Ruggie, International Regimes, Transactions, and Change: Embedded Liberalism in the Postwar Economic Order, International Organization, Vol. 36, No. 2 (Spring 1982).

[3] Gøsta Esping-Andersen,The Three Worlds of Welfare Capitalism (Polity, 1990).

[4] The Life and Work of Karl Polanyi: A Celebration, edited by Kari Polanyi-Levitt (Montreal: Black Rose, 1990).

[5] Agnes Cornell, Jørgen Møller, Svend-Erik Skaaning, The Real Lessons of the Interwar Years, Journal of Democracy, Vol. 28, No. 3 (July 2017).

Sobre os autores

Robert Kuttner is a Cofounder and Coeditor of The American Prospect and a Professor at Brandeis’s Heller School. His new book, Going Big: FDR’s Legacy and Biden’s New Deal, will be published in April. 
(November 2021)

18 de dezembro de 2017

Wobblies do mundo, uni-vos

Fiel ao seu nome, os  Industrial Workers of the World se espalharam pelo globo - uma história internacional que há muito foi esquecida.

Peter Cole

Jacobin

Apoiadores do IWW no início do século XX.

Até mesmo americanos familiarizados com a história do trabalho podem se surpreender com o slogan do Congresso de Sindicatos da África do Sul: “Lesão de um é lesão de todos”. Mais comumente associado aos Trabalhadores Industriais do Mundo (IWW), o lema provavelmente foi levado para a África do Sul por membros do IWW ("Wobblies") logo após a fundação do sindicato revolucionário em 1905.

O fato de o IWW ser global o suficiente para espalhar sua fraseologia pelo Oceano Atlântico desmente sua concepção popular, que tende a se concentrar exclusivamente na organização do sindicato nos Estados Unidos. Mas os ideais revolucionários do IWW encontraram aceitação entre os trabalhadores em todo o mundo, eventualmente ganhando membros em pelo menos vinte países em todos os seis continentes habitados.

O IWW inspirou ativistas no movimento Ghadr, que buscava a independência indiana do Império Britânico. Seus membros interagiram com os revolucionários republicanos chineses liderados por Sun Yat-sen e os anarquistas do Partido Liberal Mexicano, bem como com seu herói, Emiliano Zapata. Suas fileiras incluíam todos, desde o tribuno socialista Eugene Debs ao líder do movimento Ghadr, Pandurang Khankhoje, e trabalhadores migrantes que saltam na fronteira no sudoeste americano.

Uma nova antologia, Wobblies of the World, explora a rica história internacional do IWW pela primeira vez. Falei recentemente com o coeditor Peter Cole sobre como o IWW se encaixa na história do trabalho global, o que atraiu trabalhadores díspares para os Wobblies e por que esse aspecto do IWW foi esquecido por tanto tempo. Nossa discussão foi editada para maior clareza e brevidade.

The IWW was founded in Chicago. How did it grow into an international outfit?

PC

Literally from its birth, the IWW was global. Some of those who attended the founding convention brought the message back to their homes in Canada; others, no doubt, started writing to their friends and comrades in their home countries across Europe. IWW materials quickly traveled far and wide.

Most importantly, Wobblies were committed to the ideals of their union, so every member, in essence, was an organizer. As they moved around the country and world — for work in the short term and revolution in the long — they brought with them their ideas and newspapers.

Aboard long voyages from New York to Hamburg or, say, San Francisco to Shanghai, guess what the sailors had? Time! Time to read and talk and debate and organize. When Wobbly sailors disembarked in every direction, their revolutionary ideals traveled with them.

Was the structure and organizing of the IWW identical across countries?

PC

No, the IWW was quite anarchic in many senses of the term, including a lack of solid organization. Of course, it was no easy task to organize across the United States — a country three thousand miles across and with many tens of millions of residents. So it’s hardly surprising that the IWW, from its headquarters in Chicago, exerted precious little control or influence in Sydney or Buenos Aires, or even the High Plains of the Dakotas or Saskatchewan to their north.

Essentially the IWW in each country operated independently of every other, though they remained in contact via letters, telegraphs, and their many publications, as well as individual members who traveled. Whether this decentralized approach was good or bad can be debated, of course.

How much did membership grow as the union spread internationally? Where were the biggest concentrations?

PC

Membership grew greatly as the IWW spread worldwide. Alas, the figures for IWW membership are spotty at best. Even in the United States, the numbers are not exact and membership fluctuated greatly from 1905 to, say, 1925.

That said, the IWW was strong in many countries in different times, including the United States, Canada, and Mexico. In South America, the IWW had a strong presence in Argentina and especially Chile, as well as among sailors in the Caribbean and across to Spain. The IWW was influential in Australia and New Zealand too.

Wobblies influenced unions and organizations in many European countries, including the emerging Republic of Ireland as well as the UK. On the European continent, there already existed anarchist and syndicalist organizations and unions, so there were fewer Wobbly branches despite much interaction. That said, the IWW was influential in some of the Nordic countries, especially Sweden.

Despite the IWW’s global history, it is almost exclusively discussed as a US institution. Why?

PC

When historians of modern times think about the world, they generally divide it into nations and, far too often, fix their gazes firmly inside whichever one they study. Historians of the United States (and other countries) also face the challenge of “exceptionalism,” meaning the history of the US is unique, one of a kind, and thus must be examined in isolation.

Another factor is the limited linguistic skills of many Americans, myself included, which is especially problematic since so many Wobblies spoke and wrote in languages other than English. Time and money, in addition to the issue of reading multiple languages, have made even imagining a global history daunting, to say the least. Truly, an anthology was the best — perhaps only — way to write such a book.

What was it about the IWW that appealed to people as diverse as Finnish immigrants in Canada and Maori workers in New Zealand?

PC

The IWW was founded as a direct challenge to the mainstream labor movement in the US, embodied by the American Federation of Labor, which was well known for its racism, sexism, and xenophobia. The very first article of the IWW constitution’s bylaws announced that membership was open to everyone, regardless of “color or creed.”

While no doubt there were exceptions, generally IWW members opposed racism and nationalism because they saw and understood that these forces divided workers to the benefit of employers and to the detriment of those who dreamed of a socialist alternative. Accordingly, time and again — be it Finns in Canada; Xhosas, Tongas, and other ethnic groups in southern Africa; or the Irish in Scotland — many workers found the IWW’s radical inclusivity appealing.

The same also could be said in the United States. My earlier work on the IWW examined how thousands of African Americans allied with Irish Americans and East European immigrants to form a powerful union of dockworkers on the Philadelphia waterfront. Similarly, when the IWW sought to organize farmworkers in California (a group the AFL refused to touch because of its xenophobia as well as its narrow vision of which workers were organize-able), there were upwards of twenty languages spoken on the larger farms.

The IWW’s goal was revolution by way of a general strike that would shut down the economy and put workers in the driver’s seat, with the next stop being a world run by and for the people. Thus, Wobblies attempted to organize all workers, be they part time or full time, male or female, in factories or retail. They organized migratory workers, of which there were countless millions — not just farmworkers, but also timber workers and the like. They organized domestic workers and immigrants regardless of legal status. They wanted everyone who was not a boss to be in.

In examining the international history of the IWW, we see its many faces, adding to the familiar white and black figures from the United States an entire cast of Mexican, South African, and Indian organizers. Was there a particular individual that caught you totally by surprise?

PC

Now that is a tough question, as there were so many, shall we say, colorful characters in the IWW.

That said, I think many will find Tariq Khan’s history of South Asian revolutionaries in the Pacific Northwest to be mind-blowing. Although the number of South Asians in the United States in the early twentieth century was small, some of the leaders of the worldwide, anticolonial Ghadr movement were profoundly impacted by their membership in and exposure to the IWW.

Pandurang Khankhoje was a leader in the Ghadr movement who joined the IWW after Wobbly timber workers protested that their boss was racist for not hiring him. Subsequently, he became a proponent of the IWW, as he personally benefited from and was educated by antiracist white Fellow Workers (as the Wobblies would refer to one another). He later worked with Sun Yat-sen’s Chinese revolutionaries, the anarchist Partido Liberal Mexicano and Emiliano Zapata during the Mexican Revolution, and then became an agricultural scientist who served as the Mexican diplomat to India after the latter achieved independence.

Another personal favorite is Archie Crawford. So many Scottish, English, and other white working-class people traveled throughout the globe-spanning British Empire in the early twentieth century. As the South African scholar Jon Hyslop has noted, a great many of these white workers were racists — even those who belonged to leftist unions and political parties. “White Laborism” was a term used in places as disparate as Australia and South Africa to explain how white workers could embrace socialism and racism, as contradictory as that seems to many socialists today.

Yet some of these white workers were committed antiracists, including Crawford. As contributor Lucien van der Walt quotes someone talking about Crawford’s commitment to fighting racism: “More than one time it looked like he would be torn to pieces by an ignorant mob.” Many Wobblies were true believers in the best sense of that term.

Wobblies of the World covers such an exciting era for left-wing politics, from the late nineteenth century to the early twentieth century, when it really seemed like the forces of global labor (rather than global capital) were set to reshape the planet. We all know how that story ends, but does the history of the IWW offer particular insight into why it ended as it did?

PC

World War I (really a titanic and bloody struggle between European empires) unleashed the Russian Revolution as well as a wave of anticolonial movements, while labor unions of many sorts, anarchist groups, and socialist parties grew rapidly too.

For the IWW, World War I proved devastating, as many of its members and branches were targeted for destruction. For instance, in the case of Philadelphia’s dockworkers, the local and federal governments collaborated with employers and the AFL to destroy the most powerful black-led and black-majority IWW branch in the United States.

Related to your point about how that phase of world history ended, truly the first wave of government repression, in the United States as well as Australia, targeted the IWW, both during and after World War I. The repression of the Wobblies predicted what occurred to many other anarchists, socialists, and unionists, along with their organizations, after the war — the first Red Scare, as now understood by historians.

What is the value of understanding the IWW’s international history? Does this history reveal something important about the nature of socialism?

PC

The short version is that the history of the IWW continues to be marginalized. For those reading this interview, ask yourself when you learned about the IWW. Almost certainly, if you grew up in the United States, you were never taught this history. Even if you took a US history course at the university level, say the introductory survey, most likely you never learned about the Wobblies. The same holds for the history of the IWW in many other countries.

Utah Phillips, the legendary Wobbly singer and storyteller, provides one explanation. On the album he recorded with folk-rocker Ani DiFranco, he sang of “The Long Memory.” Basically, the history that children are taught in school is “the history of the ruling class, the generals, the industrialists, and the presidents who didn’t get caught.” We are taught “the history of the people who owned the wealth, but not the history of the people who created it.” As a result, Phillips noted, when we go out into the world, we’re not armed with the history of our background and so are not able to understand how to think about our work and lives.

For the countless millions who understand that capitalism is bad for humans and the planet, they may not appreciate that another world — a socialist world — is possible. They may have bought into the “end of history” narrative that political scientist Francis Fukuyama crowed about after the implosion of the Soviet Union in 1991 — a world where free market capitalism rules.

Fortunately, one need not defend every crime of the Soviet Union or East Germany before advocating for socialism. A century ago, socialists who belonged to the IWW simultaneously chastised the bosses and their political cronies. Wobblies in Cleveland, Wobblies in Auckland, Wobblies in Johannesburg, Wobblies in Dublin, Wobblies in Valparaiso — truly, there were Wobblies who sailed the seven seas to spread the word. This book picks up where they left off.

Sobre o autor

Peter Cole is a professor of history at Western Illinois University. He is the author of Wobblies on the Waterfront e Dockworker Power: Race and Activism in Durban and the San Francisco Bay Area.

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