12 de outubro de 2018

Jair bolsonaro, pretenso ditador do Brasil

Vincent Bevins

NYR Daily

Ex-capitão do Exército e candidato da extrema-direita para a presidência do Brasil Jair Bolsonaro posando com soldados, São Paulo, 3 de maio de 2018. Nelson Almeida/AFP/Getty Images

Tradução / Durante a maior parte de seus 27 anos na política, Jair Bolsonaro foi uma figura marginal da extrema direita brasileira, tendo passado por nove partidos diferentes, sempre vociferando seu apoio à ditadura militar do Brasil para um plenário da Câmara quase sempre vazio. Tudo isso mudou. O ex-capitão do Exército conquistou no primeiro turno mais de 46% dos votos na corrida presidencial do Brasil - chegando perto de uma vitória no primeiro turno. Chega ao segundo turno em 28 de outubro como favorito.

O Brasil é uma democracia com eleições presidenciais diretas desde 1989, tendo sido governado por um governo militar brutal no quarto de século precedente. Bolsonaro não é somente nostálgico daquela época; ele é responsável por reintroduzir o ethos político da ditadura preservado e intacto no Brasil moderno.

Em 31 de março de 1964, um grupo de oficiais mal equipados das Forças Armadas brasileiras começou a marchar para o Rio de Janeiro, onde se encontrava o presidente eleito João Goulart. Uma grande conspiração para removê-lo já havia tomado corpo, mas a ação não estava programada para aquele dia. Indignado com o que ele via como comunismo e subversão de Goulart, o general Olímpio Mourão Filho sacou a arma e se dirigiu para a cidade litorânea. Goulart voou para Brasília, a capital, mas quando ficou claro para ele que o alto comando militar estava decidido a derrubá-lo, fugiu e em seguida, sob ameaça de prisão, exilou-se no Uruguai. Os tanques estavam estacionados fora do Congresso e, invocando um “Ato Institucional” sem nenhuma base legal, a Junta cassou os mandatos dos parlamentares de esquerda do Congresso Nacional.

Esses são alguns dos eventos e imagens frequentemente lembrados quando falamos sobre o que se chama, apropriadamente, de golpe militar do Brasil. Muitas vezes esquecido, porém, é o fato de que grande parte da elite política e econômica do Brasil apoiou o golpe naquele momento. Mesmo antes do Ato Institucional 1, o Congresso declarou a presidência “vaga” enquanto Goulart ainda estava no país, em clara violação da Constituição. Em seguida, depois de 40 de seus colegas terem sido expulsos pelos golpistas, 361 dos deputados restantes votaram pela instalação no poder do marechal Humberto de Alencar Castelo Branco - que vinha conspirando com generais, os Estados Unidos e alguns políticos para destituir presidente legítimo. O embaixador dos EUA no Rio estava certo de que o Brasil poderia se tornar “a China dos anos 1960” (em outras palavras, tornar-se comunista) e queria derrubar Jango. Todos os principais jornais brasileiros, com exceção de um, apoiavam o golpe. Centenas de milhares de brasileiros, em sua maioria de classes privilegiadas, sofrendo com uma recessão econômica e acreditando que Goulart era demasiado de esquerda, já haviam deixado clara seu apoio ao golpe em uma série de marchas da Família com Deus pela Liberdade. Muitos acreditavam nos boatos, espalhados pelos conservadores, de que Goulart estava planejando um auto-golpe de Estado comunista.

Tanques nas ruas do Rio de Janeiro durante o golpe que depôs o presidente brasileiro João Goulart, 1964. Bettmann Archive/Getty Images

Como parte da Operação Brother Sam, Washington disponibilizou secretamente para os golpistas navios-tanque, munições e porta-aviões. Nada disso foi necessário. Alguns historiadores acreditam que uma das razões pelas quais Jango não organizou uma defesa é que ele acreditava, como grande parte do establishment político, que as Forças Armadas logo convocariam eleições, como previsto. Não está claro se o povo brasileiro realmente apoiou o golpe, e é possível que Goulart tivesse sido eleito novamente, mesmo considerando que, na época, a maioria da população, analfabeta, não votava, incluindo muitos descendentes de escravos e os moradores do campo, em situação de pobreza. Mas quase todos aqueles realmente importavam para o sistema político do Brasil estavam a favor da deposição de Jango, razão pela qual este período é muitas vezes chamado de uma ditadura “civil-militar”. Na visão das elites, haveria um retorno relativamente rápido à normalidade.

O problema dos regimes autoritários, no entanto, é que eles tendem a não fazer o que se espera deles e depois ir embora. A ditadura "civil-militar" logo se tornou simplesmente uma ditadura militar, torturando e matando milhares de dissidentes.

Apologistas do regime militar brasileiro alegam que os assassinatos do Estado podem ser contados “apenas” em centenas, mas esses números referem-se a casos urbanos documentados e ignoram inteiramente os milhares de indígenas que foram massacrados quando o regime militar se lançou no desenvolvimento da Amazônia. E eles esquecem a importante influência que o maior país da América Latina teve na região. Em 1971 - mesmo ano em que Bolsonaro ingressou nas Forças Armadas - o Brasil apoiou um golpe militar na Bolívia. No mesmo ano, impediu que uma coalizão de esquerda de ganhasse as eleições no Uruguai, movendo tropas para a fronteira e ameaçando uma invasão. Com o incentivo de Washington, os governantes militares do Brasil também trabalharam para minar o governo de Allende no Chile. Quando um golpe apoiado pela CIA instalou o general Pinochet em 1973, agentes da inteligência brasileira estavam no estádio nacional de futebol do Chile, ajudando a transformá-lo em um centro de detenção, tortura e assassinato da oposição política.

“O número de mortos pela ditadura brasileira é relativamente baixo quando comparado ao Chile ou à Argentina, mas foi no exterior que seu impacto foi mais devastador ”, escreveuTanya Harmer, historiadora da London School of Economics, em um artigo publicado em 2012. “Seja através de seu exemplo, sua interferência em outros países ou seu apoio aos golpes contra-revolucionários”. Mais particularmente, a ditadura militar do Brasil ajudou a concebera infame Operação Condor, uma rede internacional de terror e extermínio na América do Sul. Nascidos de um anticomunismo fanático, os regimes sob a Operação Condor assassinaram dezenas de milhares de opositores políticos.

Quando, em 2016, a presidente Dilma Rousseff sofreu um impeachment - em um processo que pode ter sido legal, mas abalou gravemente a legitimidade do governo - começou-se a falar em golpe novamente. Em sua maior parte, pessoas de esquerda, de oposição ao governo de direita de Michel Temer, veem paralelos entre 1964 e o processo em que parlamentares corruptosvotaram pela destituição de uma presidente de esquerda por uma suposta violação técnica de regras orçamentárias. Mas foi a ascensão política de Bolsonaro este ano que obrigou o país a olhar para o passado. 

A ideologia de Bolsonaro pode ser resumida como um cruzamento da Operação Condor com a Internet. Recentes reportagens internacionais o compararam a Donald Trump ou destacam seu desprezo por políticas identitárias, apontando seu histórico de declarações sexistas, racistas e homofóbicas, mas essas caracterizações são insuficientes. O que Bolsonaro oferece é um retorno explícito aos valores que sustentaram a brutal ditadura do Brasil. Bolsonaro não precisou tomar a pílula vermelha para achar que o politicamente correto foi longe demais no Brasil de hoje; suas afirmações hoje são coerentes com seus pontos de vista de ontem. Em 1999, apenas oito anos depois da retomada da democracia no Brasil, ele afirmou, em um programa de TV:

“As eleições não mudarão nada neste país. Nada! As coisas só vão mudar, infelizmente, depois de começar uma guerra civil aqui, e se fizer o trabalho que a ditadura não fez. Matar umas 30 mil pessoas, começando por FHC [o então presidente Fernando Henrique Cardoso, do Partido Social-Democrata Brasileiro]. Se alguns inocentes morrerem, não tem problema”.

Além de defender o regime militar de forma mais virulenta do que a maioria dos próprios líderes de então, ele construiu sua carreira política baseada no ataque aos direitos humanos e à comunidade LGBT, repetindo coisas como “a minoria tem que calar a boca e se curvar à maioria”.

Eu falei com Bolsonaro em 2016, antes de ele votar pelo impeachment de Rousseff. Ele disse que o mundo celebraria a queda da presidenta, e que ele estava ajudando a impedir que o Brasil se tornasse a Coréia do Norte. Mais tarde, no dia da votação, quando dedicou seu voto ao homem que havia supervisionado a tortura de Dilma em sua juventude, quando ela participou de um grupo de luta armada contra o regime militar, ele se tornou a face pública da oposição intransigente aos políticos que governavam o país há mais de uma década (embora muitas vezes trabalhasse para eles e se beneficiasse pessoalmente dos privilégios concedidos aos parlamentares). E à medida que o debate político brasileiro se transferia para as redes sociais, os membros de uma nova direita brasileira passaram a disseminar cada vez mais informações enganosas ou inteiramente falsas sobre seu líder, Bolsonaro, e seus odiados inimigos de esquerda.

Nos últimos dois anos, à medida que o crime piorava e os brasileiros assistiam Michel Temer, um presidente extremamente impopular de legitimidade questionável, cortar os direitos dos trabalhadores sem, no entanto, conseguir retomar o crescimento econômico, crescia o apoio à volta do regime militar. Por que não, afinal de contas? Se você fosse rico e permanecesse na linha, as coisas não seriam tão ruins - esse tipo de nostalgia era frequentemente reproduzido na mídia e na memória histórica. A democracia brasileira tinha apenas algumas décadas e, segundo a memória folclórica da ditadura, havia muito menos corrupção, muitos acreditam, do que hoje. Uma razão para esta reputação imerecida de que a ditadura reprimia a corrupção é que ela na verdade reprimia os relatos de corrupção: em um caso recentemente revelado, quando um diplomata anunciou que publicaria um livro sobre um caso de corrupção no governo militar, o regime o sequestrou, torturou e assassinou.

“É realmente estranho que tantas pessoas hoje acreditem que o regime militar de alguma forma tenha proporcionado segurança aos brasileiros ou administrado bem a economia, já que, no fim da década de 1970, os militares eram vistos como corruptos e incompetentes, e as estatísticas de criminalidade estavam piorando graças às políticas do governo”, lembra Marcos Napolitano, historiador da Universidade de São Paulo, especialista na ditadura brasileira. Sua pesquisa mostrou que, ao incentivar a migração em massa para favelas urbanas sem serviços públicos, e permitir que uma polícia militarizada cometesse assassinatos extrajudiciais rotineiramente para tentar controlar populações marginalizadas, a ditadura na verdade pôs o país no caminho da violência generalizada que vemos hoje. Os serviços de segurança adaptaram a mesma lógica do extermínio que haviam usado para eliminar a oposição de esquerda contra os pobres das cidades e passaram a travar contra eles uma guerra sem fim de baixa intensidade. Napolitano acrescenta:

“Está claro que a maneira como foi feita a transição democrática no Brasil permitiu a volta de políticos que elogiam o regime militar. Não houve investigação efetiva sobre os crimes cometidos pelo Estado, mas um processo de negociação e reconciliação que permitiu que a sociedade em geral evitasse uma real discussão sobre o período. E há hoje alguns elementos políticos que realmente nos remetem ao passado. Há um ressentimento da classe média contra a esquerda, incluindo contra partes da esquerda que nem são socialistas”.

Bolsonaro nunca se desculpou por nenhuma das posições incendiárias que defendeu ao longo das décadas. Mas moderou ligeiramente o tom durante a campanha este ano, após uma conversão tardia à economia de livre mercado que lhe valeu o apoio de investidores internacionais. O slogan da campanha de Bolsonaro - "O Brasil acima de tudo, Deus acima de todos" - lembra mais ou menos explicitamente a linguagem patriótica e pró-família dos protestos dos conservadores linha-dura pré-golpe de 1964 contra Jango. Quando os brasileiros votaram no primeiro turno, alguns moderados estavam tão cansados das outras opções que acharam possível relevar as promessas de Bolsonaro.

"Votei no PT antes, mas estamos cansados deles", disse a eleitora de Bolsonaro Carla Silva, uma acupunturista branca de 45 anos em uma zona eleitoral de um bairro de classe média alta de São Paulo. Quando perguntei se ela o considerava perigoso, ela respondeu: “Sou totalmente contra o plano dele de dar armas a todos, e sobre espancar as pessoas LGBT. Pelo amor de Deus, sou contra o que ele diz. Mas ele não governará sozinho e não poderá fazer tudo o que quiser.”

E há aqueles que parecem estar totalmente fechados com o Bolsonarismo. Quando Carla Silva terminou de falar, um jovem pai com seu filho saíram da cabine de votação. O menino, talvez com sete ou oito anos de idade, carregava um enorme fuzil de brinquedo. No Brasil de hoje, é um claro apoio da família à proposta de Bolsonaro de armar civis e ordenar que a polícia atire para matar. Quase todos com quem falei naquele dia disseram apoiar Bolsonaro. Alguns gritavam seu apoio com raiva e orgulho, como se achassem ser uma transgressão.

O apoio a Bolsonaro é mais alto entre os brasileiros brancos e ricos (especialmente homens brancos e ricos) e os evangélicos, mas é impossível receber 49 milhões de votos sem o apoio de muitos outros setores. O lavador de carros Julio César Alves, 37 anos, explicou por que votou em Bolsonaro, embora tenha votado alegremente duas vezes em Lula, antecessor de Dilma e líder do PT.

"Não acho que ele vai ser ótimo, necessariamente, mas é o que precisamos agora", disse Alves, antes de explicar que mal consegue pagar suas contas, e que seu bairro pobre ficou mais perigoso nos últimos tempos. "Sou contra o bolsa presidiário, pois os presos ganham mais do que eu".

Isso é um mito, um dos muitos exemplos de desinformação que circula e ganha credibilidade nas mídias sociais. A maioria dos presos brasileiros vive em condições terríveis. Quando perguntei a Alves onde ele tinha ouvido falar disso, ele respondeu: "Todo mundo sabe, basta ver na Internet", apontando para o meu telefone. Nas últimas semanas, as redes sociais brasileiras - especialmente o WhatsApp, de propriedade do Facebook - foram inundadas de boatos e mentiras que favoreceram claramente Bolsonaro. As mais comuns são denúncias histéricas da esquerda brasileira, que supostamente buscaria poderes totalitários e apoiaria a criminalidade.

Mas a esquerda não foi a maior derrotada nas eleições de domingo. O ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad, escolhido como substituto de Lula depois que o ex-presidente foi preso por acusações de corrupção e proibido de se candidatar novamente, conseguiu 29% dos votos, e seu Partido dos Trabalhadores, de centro-esquerda, continua com a maior bancada na Câmara dos Deputados. Foram os partidos de centro, que apoiaram o impeachment de Dilma Rousseff, que foram dizimados nas urnas - e em grande parte ultrapassados pelo partido que Bolsonaro escolheu como seu veículo eleitoral. Se Dilma não tivesse sido derrubada, é fácil imaginar que o PSDB, de centro-direita, teria agora boas condições de reconquistar o poder, avalia Flávia Biroli, cientista política da Universidade de Brasília:

“O PSDB cometeu um gigantesco erro tático ao apoio ao impeachment, com consequências para o país inteiro. Por décadas, Bolsonaro foi uma figura bizarra do passado que nunca teve espaço na política brasileira. Mas o momento atual - de sentimento antipolítico generalizado, morte do centro e um ambiente global mais tolerante a esse tipo de desafio ao status quo - permitiu que ele ocupasse o centro do palco”.

Haddad é visto como um quadro moderado de grande capacidade política dentro do PT. Ele tem chances, mas seu adversário é o favorito. E mesmo que Haddad vença, a ideologia que impulsionou as ditaduras sul-americanas está de volta. Ele enfrentaria uma direita radical no Congresso e setores poderosos da população que o considerariam ilegítimo, prontos a espalhar informações falsas para derrubá-lo. Pouco depois do primeiro turno, Bolsonaro se recusou a assinar um compromisso de não divulgar notícias falsas online. Em vez disso, ele afirmou, sem provas, que ele já teria vencido se as urnas eletrônicas tivessem funcionado adequadamente; e prometeu “acabar com todos os tipos de ativismo no Brasil”.

Alguns brasileiros temem não paralelos exatos com o passado, mas novos cenários assustadores. Talvez o impeachment não tenha sido uma repetição do golpe de 1964. Talvez a remoção de Rousseff tenha sido apenas o prólogo, o primeiro ato, a ser completado por uma vitória de Bolsonaro e a consolidação do governo autoritário: uma ditadura da era digital que não precisa de intervenção direta do exército para aniquilar a dissidência e governar por decreto. Talvez a prisão de Lula, após uma amarga batalha judicial, tenha tornado tudo isso possível. Ou talvez Haddad vença, e num eventual vacilo, inspire uma reação conservadora mais violenta. 

Alguns dias depois do primeiro turno, falei com Ivo Herzog. Em 1975, quando Ivo era um menino, seu pai, Vladimir Herzog, jornalista de esquerda, foi seqüestrado, torturado e morto pela ditadura. A foto do cadáver de Vladimir chocou o país na época. Ivo hoje trabalha na organização que leva o nome do pai, o Instituto Herzog, de memória e promoção dos direitos humanos, e constrói uma ampla frente de oposição à candidatura de Bolsonaro, mas não está otimista.

“Podemos estar dando um enorme passo para trás. Tenho muito medo”, disse. “A situação política me põe sob intenso estresse. Não consigo dormir sem remédio. Mas decidi que não é hora de desistir da luta”.

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