17 de outubro de 2018

A revolução conservadora de Bolsonaro

O principal apoio de Jair Bolsonaro está nos brasileiros ricos. Mas o vulto da extrema direita não teria chegado tão longe se ele também não tivesse estabelecido uma base formidável entre os pobres.

Matthew Aaron Richmond

Jacobin

Apoiadores de Jair Bolsonaro em 30 de setembro de 2018 em Porto Alegre, Brasil. Jacobin / Flickr

Tradução / É Dia de Eleição na periferia de Santo André, um município da região industrial do ABC, na Grande São Paulo. Um homem com seus cinquenta anos vende caldo de cana, de sua van. Enquanto ele empurra a cana através do triturador, dois homens aproximadamente da mesma idade, sentados em cadeiras brancas de plástico, conversam com entusiasmo. O tópico é o mesmo que está na boca de todos neste dia.

“Eu não gosto do Bolsonaro, mas pelo menos ele vai dar uma surra nos bandidos”, diz um dos homens. “E dar um fim ao Bolsa Família”, lança o outro, referindo-se ao famoso programa de transferência monetária condicionada do Brasil. “Eles não querem trabalhar, e se você tira o dinheiro eles apenas saem e roubam”. O primeiro homem aponta seus dedos como se segurasse um par de revólveres, um gesto popularizado pelo presidenciável favorito da extrema-direita, Jair Bolsonaro, cuja plataforma extrema de lei e ordem pode ser descrita com precisão como exterminadora. Seu amigo imita o ato. Todos os três homens riem. Ainda gargalhando, o vendedor de bebidas entrega meu caldo de cana e o troco: “Obrigado, tenha um bom dia!”

Naquela noite, enquanto chegavam os resultados, ficava claro que o Partido Social Liberal (PSL), de Bolsonaro, havia sido o grande vencedor. O próprio Bolsonaro conquistou 46% dos votos, comparado a 29% para o candidato do Partido dos Trabalhadores (PT), Fernando Haddad. Foi uma vitória esmagadora, mas não com a maioria absoluta que ele precisava a fim de evitar um segundo turno, que ocorrerá em 28 de outubro.

Enquanto isso, seu partido—no qual ele se filiou há seis meses e que previamente tinha apenas uma cadeira no Congresso—cresceu a ponto de se tornar o segundo maior partido, com 52 representantes na Câmara dos Deputados, apenas atrás dos 56 do PT. Com ganhos para uma safra de outros partidos conservadores simpáticos à agenda de Bolsonaro, ele parece estar bem colocado o suficiente para conseguir passar a maior parte de seu programa legislativo. Candidatos da direita alinhados, ou pelo menos flertando com Bolsonaro, aparentemente serão eleitos para governadores em diversos estados, incluindo os três mais populosos do país—São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro.

Apesar de machucado, o PT sobreviveu, com seus votos permanecendo especialmente entre os mais pobres das regiões Norte e Nordeste. Juntamente com outros partidos de esquerda e centro-esquerda, eles reunirão cerca de um quinto das cadeiras no Congresso. De fato, o PT de alguma forma melhorou em relação a performance desastrosa nas eleições municipais de 2016, que se seguiram pouco depois do impeachment da presidenta Dilma Rousseff.

Em contraste, os tradicionais partidos de direita, o Partido Social Democrata Brasileiro (PSDB) e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), foram dizimados, reduzidos ao segundo escalão de partidos medianos. Estes foram os dois partidos mais instrumentais no impeachment de Rousseff, mas posteriormente se envolveram em seus próprios escândalos de corrupção e foram contaminados pela imensa impopularidade do governo sucessor de Michel Temer.

Para resumir, a esquerda está atrás e a direita tradicional colapsou, sendo substituída por um novo, antidemocrático, polo da extrema-direita que orbita ao redor de Bolsonaro. A política brasileira foi virada do avesso.

Uma nova coalizão que atravessa classes

As razões para essa onda reacionária são diversas. Como foi possível notar em outros lugares, desde a vitória estreita do PT contra o PSDB em 2014 tem havido uma radicalização predominantemente entre as classes média a alta em direção a soluções autoritárias. Esta era a parte da população que dominava os protestos nas ruas clamando pelo impeachment de Dilma em 2016, mas que se desiludiu com a direita tradicional. Nem todos têm preferências autoritárias, obviamente, e muitos prefeririam que o PSDB continuasse a representar uma opção viável. Muitos não gostam de Bolsonaro, mas seu antipetismo virulento os leva em direção a enxergarem o candidato como um mal menor.

Mesmo que o apoio deste grupo a Bolsonaro seja primariamente ideológico ou tático, essa população gravita ao redor de um conjunto de atitudes que caem amplamente sob a bandeira da “Nova Direita“— uma corrente que emergiu no Brasil em meados dos anos 2000 em reação ao PT. O discurso da direita se alternava desde posições tradicionalmente elitistas e autoritárias a uma ênfase à “meritocracia”.

A oposição a programas de bem-estar como o Bolsa Família e ações afirmativas em universidades públicas se tornaram gritos de guerra chave. Apesar da retórica, contudo, essas atitudes, em seu âmago, foram motivadas por sentimentos profundamente antidemocráticos—um desejo de bloquear o acesso dos pobres ascendentes, frequentemente “não brancos”, aos espaços da elite. (Um exemplo infame disso foi a reclamação da colunista Danuza Leão de que não tinha mais graça viajar para o exterior, agora que ela poderia esbarrar com seu porteiro em Nova York).

A divisão demográfica das intenções de voto no primeiro turno, reveladas pelas pesquisas do Datafolha alguns dias antes das eleições, mostrava que 51% dos eleitores que recebem entre cinco e dez salários mínimos (R$4.685 e R$9.370 por mês) e 44% daqueles que recebem mais de dez salários mínimos (R$9.370) planejavam votar em Bolsonaro, comparado a 12% e 15%, respectivamente, em Haddad. Enquanto isso, 42% daqueles que se autodefinem como brancos planejavam votar em Bolsonaro, comparado a 15% em Haddad. (Dito isto, a relação entre raça e classe no Brasil é complexa e deve ser tratada com cuidado. Enquanto as classes média e alta são predominantemente brancas, os brancos não são, em sua maioria, bem de vida. Além disso, a autoclassificação por raça varia de maneira significante de acordo com o nível de salário e com a região do país.)

Contudo, a crescente radicalização e o autoritarismo das tradicionais classes média e alta do Brasil são insuficientes para explicar a “onda Bolsonaro”. Afinal, como o PSDB descobriu depois de quatro perdas eleitorais para o PT entre 2002 e 2014, esse grupo perfaz um pouco mais de um quarto da população e é insuficiente para garantir a vitória da presidência.

Na verdade, a vitória de Bolsonaro representa a construção de uma nova coalizão eleitoral que apresenta mais apelo entre diversas classes do que o PSDB conseguiu atingir desde o fim dos anos 1990. Os mesmos dados de pesquisa revelaram que, entre eleitores que recebem de dois a cinco salários mínimos (R$1.874-R$4.685), 39% planejavam votar em Bolsonaro, comparado a 18% em Haddad. Mesmo entre aqueles que recebem menos de dois salários mínimos (R$1.874), 21% favoreceram Bolsonaro em comparação a 28% que prefere Haddad. Os dados sobre raça contam uma história similar. Entre aqueles que se autodefinem como “pardos”, 30% preferiram Bolsonaro, comparados a 23% referente a Haddad, enquanto entre “pretos” (negros), os números foram de 18% contra 23%.

O motivo pelo qual brasileiros ricos e brancos se deslocaram da direita tradicional para a extrema é relativamente claro. Uma questão mais interessante, e importante, é a de por que um número significativo de brasileiros com rendas mais baixas e não brancos estão agora expressando apoio a Bolsonaro. Como Bolsonaro conseguiu reunir as elites desejantes do bloqueio à mobilidade social das classes populares, e uma proporção significativa justamente daqueles que essa elite tenta bloquear, na mesma coalizão eleitoral? E por quanto tempo isso pode durar?

Entendendo o “bolsonarismo popular”

Como ocorre com qualquer tendência envolvendo grandes números de pessoas, não ha uma explicação única para o “bolsonarismo popular”—ou seja, o apelo de Bolsonaro para pessoas de baixa renda. Alguns, graças aos ataques implacáveis da mídia contra o PT, desenvolveram atitudes antipetistas similares àquelas das elites, reclamando sobre tudo, da corrupção do PT aos altos impostos, até a injustiça das cotas raciais em universidades. Contudo, pela minha experiência, estas atitudes são relativamente raras.

Eu não vejo uma grande onda de “liberalismo popular” [“liberal”, no contexto brasileiro, referindo-se a uma atitude mais conservadora e amigável em relação ao mercado] nas periferias, ao contrário das reivindicações de um controverso relatório publicado após a derrota do PT nas eleições municipais de 2016. A propaganda boca-a-boca que muitas pessoas de baixa renda podem fazer para a meritocracia e a autossuficiência é ultrapassada pelo desejo por melhores serviços públicos e pela indignação em relação aos privilégios da elite. Se você passar da superfície, verá que a maioria deseja mais igualdade e que os ricos paguem mais para que isso aconteça.

Outros optaram por Bolsonaro por motivos religiosos. Igrejas neopentecostais cresceram imensamente nos últimos anos, particularmente nas periferias urbanas pobres. Em eleições recentes, essas igrejas alavancaram sua influência entre os congregantes para alcançar números crescentes de deputados conservadores eleitos para o congresso, inchando a bancada evangélica e dando poder a sua agenda política altamente reacionária.

Até este momento, o movimento não havia exercido um impacto perceptível sobre a presidência, porque os votos presidenciais são menos sujeitos à influência clientelista e também porque um grande conservador assumidamente religioso não havia, até então, contestado a presidência. Nesse sentido, Bolsonaro—ele mesmo um evangélico que se opõe de forma virulenta aos direitos de mulheres e LGBTs—representa a “saída do armário” desse crescente e silencioso movimento. O fato de que muitos católicos apoiam Bolsonaro por razões semelhantes, enquanto isso, sugere que ele representa uma faixa mais ampla, em vez de uma estreita corrente sectária, de opiniões religiosas conservadoras.

É verdade que igrejas neopentecostais têm crescido precipitadamente entre os pobres e têm construído uma máquina clientelista poderosa. Também é verdade que a agenda de Bolsonaro serve a um conservadorismo popular mais amplo entre grupos de baixa renda. Como mostrado em uma pesquisa Datafolha no ano passado sobre atitudes sociais dos brasileiros, os mais pobres têm mais tendência a acreditar que aqueles que creem em Deus são pessoas melhores, que o aborto é um crime que deve ser punido, e que as drogas devem ser proibidas. Eles respondem bem à afirmação de Bolsonaro de estar resistindo à “desconstrução da heteronormatividade” e a propostas de internação forçada de viciados em drogas.

Contudo, isso não significa que o apoio a Bolsonaro represente um conservadorismo doutrinário religioso entre os pobres. Enquanto alguns auto-identificados como evangélicos absorvem inteiramente a doutrina, a maioria não o faz. De fato, essas igrejas lutam para controlar seus membros que se movimentam entre diferentes denominações e misturam diferentes crenças espirituais. Até enquanto as igrejas evangélicas crescem massivamente, o sincretismo brasileiro permanece vivo.

Além disso, uma atitude “viva e deixe viver” ainda tende a reinar entre os pobres em relação à maioria das questões. Enquanto muitos brasileiros de baixa renda pensam em termos de papéis de gênero tradicionais e estão desconfortáveis a ideia do casamento entre pessoas do mesmo gênero, a maioria acredita que a homossexualidade deve ser aceita pela sociedade e que as mulheres deveriam poder se vestir da maneira como quisessem sem ter de temer o estupro. Pelo menos podemos afirmar que uma campanha centrada em questões de gênero e sexualidade não iria, por si só, persuadir grandes números a votarem na extrema-direita.

Então o que iria? Eu colocaria duas razões principais. A primeira é um simples efeito de encargo em um momento de crise severa. O PT esteve no poder por treze anos e, assim, acertada ou erroneamente, foram os primeiros a serem culpados quando a economia e os escândalos de corrupção massiva detonaram simultaneamente. O MDB, com o suporte do PSDB, assumiu o poder por dois anos e as coisas não melhoraram, então ele também se tornou contaminado pelas crises.

Contudo, é preciso observar que, entre os pobres, a insatisfação com esses partidos principais tinha uma lógica bem diferente da raiva altamente partidária dos antipetistas ricos. A maioria dos eleitores mais pobres nunca acreditou que o PT fosse mais corrupto ou incompetente do que outros partidos e, apesar de não terem se oposto ativamente a ele, não ficaram especialmente entusiasmados pelo impeachment de Dilma. Seu cinismo foi logo justificado pelo desastre absoluto do governo de Temer.

Essas atitudes revelam a resignação difundida entre os pobres em relação a políticos em geral, de quem eles aprenderam a esperar pouco. No entanto, muitos também expressam um apoio residual ao PT e especialmente a Lula, que permaneceu como o presidente que tirou muitos da pobreza e colocou jovens nas universidades. Claro que também há um desapontamento amplo com o partido, não apenas por falhar em manter o progresso quando a crise chegou, mas também por sua falha a longo prazo em melhorar serviços públicos centrais, como saúde e educação.

Contudo, poucas pessoas pobres enxergaram a direita tradicional como oferecedora de uma alternativa significativa. Eu diria que sua raiva em relação à crise econômica e aos escândalos de corrupção são motivadas fundamentalmente por um desejo por maior redistribuição, enquanto a elite incorpora indignação acerca da pouca redistribuição que já ocorria sob o governo do PT. De qualquer forma, com os principais partidos todos implicados em crises, ambos os grupos se tornaram receptivos a qualquer candidato que fosse suficientemente distante dos governantes em questão para se parecer como alguém de fora e que tivesse tanta raiva quanto eles mesmos tinham.

Mas de todos os autointitulados “outsiders” que foram elogiados como possíveis salvadores da pátria nos últimos dos anos—incluindo empresários libertários, juízes em cruzadas, pastores fundamentalistas, celebridades e ex-jogadores de futebol—por que foi Bolsonaro quem foi capaz de capitalizar o título? Isso me leva ao segundo direcionador chave do Bolsonarismo popular, o qual acredito ser decisivo.

Diferentemente de candidatos que estão preocupados, em primeiro lugar, com questões que, para a maioria dos pobres, são preocupações secundárias (se não amplamente irrelevantes), como educação sexual, o livre mercado ou os pormenores de investigações sobre corrupção, a campanha de Bolsonaro é retoricamente centralizada em um problema que é uma prioridade genuína para aqueles que vivem nas favelas e nas periferias de cidades de grande e médio porte ao redor do país: a segurança.

Nacionalmente, os níveis de crimes violentos têm aumentado constantemente por anos a fio. Em São Paulo e no Rio de Janeiro, a despeito de picos recentes, a tendência a longo prazo tem sido de queda na violência. No entanto, isso se deve, em grande parte, à consolidação do controle territorial por facções criminosas. Em muitas outras cidades, a violência explodiu. O Estado tem sido incapaz de tratar do problema.

A pacificação das favelas no Rio, inicialmente, foi popular e bem-sucedida em reduzir a violência na cidade, mas se provou muito cara para ser sustentável, principalmente quando o estado faliu. Uma política de encarceramento em massa em São Paulo apenas fortaleceu e expandiu o alcance da poderosa facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) a partir das prisões estaduais. Em outros lugares, a polícia parece ser incapaz de prevenir atividades criminosas de grupos armados, sendo com frequência exposta como cúmplice destes.

Enquanto isso, atores criminosos de baixo nível e aqueles confundidos com estes criminosos (adolescentes negros e pardos, em sua esmagadora maioria) morrem em números extraordinariamente altos. Com a polícia incapaz de prevenir a criminalidade cotidiana dentro dos limites legais, policiais fora de serviço e milícias vigilantes locais crescentemente buscam por vingança fora da lei.

A verdade desconfortável é que uma guerra paramilitar oculta e difusa contra criminosos proletários já é uma realidade no Brasil. O que é ainda mais desconfortável é que essa guerra é apoiada por um grande número de moradores de favelas e periferias. Enquanto partidos da esquerda e da direita tradicional condenam publicamente tais atos, Bolsonaro os defende. De fato, ao afrouxar meios de controle de armas de fogo e remover restrições legais à violência policial, ele deseja tornar essa guerra, que era secreta, agora em guerra oficial e intensificá-la. Muitos nas periferias de cidades como Santo André não gostam de Bolsonaro, mas acreditam que “pelo menos ele vai dar uma surra nos bandidos”.

Das cinzas

A onda Bolsonaro é um momento dramático na política brasileira, mas que vem se construindo a partir de diferentes direções por algum tempo. Tem havido uma radicalização das classes média e alta reacionárias, determinadas a destruir o PT e seu projeto de redistribuição moderada por quaisquer meios necessários. Tem havido o crescimento gradual e silencioso do conservadorismo religioso radical, amplificado pela influência desproporcional da bancada evangélica no Congresso quando comparada às suas raízes menos firmes na sociedade.

E há o crescimento do populismo penal, que se encontra difundido através de todo o espectro social, mas que constitui um elemento particularmente significativo do apelo de Bolsonaro entre as classes populares. Bolsonaro reúne essas tendências diferentes de um modo que a direita tradicional nunca foi capaz de fazer. Derrotar essa onda depende da identificação dos contornos dessa nova coalizão eleitoral e da exploração de suas contradições.

A mais óbvia delas é que os eleitores de Bolsonaro que são parte da elite querem voltar no tempo para a era pré-PT, quando não tinham de compartilhar universidades e aeroportos com aqueles que eles ainda acreditam ser seus inferiores. Eles desejam diminuição de impostos para eles mesmos e querem ver a previdência social e os serviços públicos (que eles não usam mesmo) estripados. Em todas essas frentes, os apoiadores de Bolsonaro de baixa renda querem justamente o oposto.

O provável ministro da fazenda em um eventual governo de Bolsonaro, Paulo Guedes, discípulo da Universidade de Chicago, irá pressionar para dar aos bolsonaristas da elite tudo aquilo que querem. É essencial que isso seja amplamente compreendido como o resultado pretendido de uma agenda econômica elitista. Até agora, Bolsonaro tem cultivado uma ambiguidade em relação a esse tema, dando margem à percepção de que ele pode ser um nacionalista amigo dos trabalhadores nos moldes de Getúlio Vargas. Em vez disso, ele precisa ser entendido mais como um antipopulista nos moldes de Augusto Pinochet.

Um segundo desafio, mais complicado, é encorajar a ruptura entre o fundamentalismo da bancada religiosa e dos líderes das igrejas, e a relativa moderação de seus membros. Isso será mais efetivo se partir de dentro das próprias igrejas. Essa atitude deveria ser enquadrada nos preceitos da tolerância e da não-violência—enfatizando o quanto Bolsonaro deixa de aderir aos princípios de sua própria fé.

Este é, claro, um difícil ato de equilíbrio para as forças de esquerda que querem aprofundar os direitos de mulheres e LGBTs. Não há um método mágico para resolver essas tensões, mas é essencial que as linhas do diálogo permaneçam abertas. Um ponto de partida seria simplesmente reconhecer que em favelas e periferias as igrejas evangélicas são eixos sociais, em que as pessoas fazem amizades e participam de atividades culturais, pelo menos tanto quanto são locais de adoração. Esse é o caso especialmente para mulheres negras e pardas pobres que, em geral, são privadas de espaços de socialização, muitas das quais podem também ser mães de jovens vitimados pela violência do tráfico e da polícia. Essas mulheres podem se tornar aliadas cruciais para resistir ao bolsonarismo, mas nós precisamos aceitar que elas o farão em seus próprios termos.

Um desafio final se relaciona à guerra aos crimes de baixo escalão que Bolsonaro pretende desencadear por todo o Brasil urbano. Conforme outros apontaram, é difícil acreditar que isso não irá produzir muita violência em um futuro próximo, direcionada de forma esmagadora contra homens pobres, de pele escura, das favelas e periferias. Isso não vai reduzir a criminalidade, obviamente, que é alimentada por lucrativos mercados ilegais coordenados por poderosas redes que operam através e além do território nacional.

Sabendo disso, a esquerda deveria continuar, sem remorsos, a focar em abordagens de redução da violência. No rastro da pacificação da favela e de outros experimentos malsucedidos com o “policiamento de proximidade”, não está claro nem mesmo com o que isso deva se parecer, e novas ideias precisam ser exploradas. Enquanto isso, a construção lenta em direção aos objetivos de longo prazo de desmilitarização da polícia, redução da desigualdade e investimento na educação e na juventude devem continuar.

Contudo, isso não irá satisfazer aqueles que desejam segurança agora. Talvez o melhor que a esquerda possa fazer no presente seja reconhecer que, para os pobres, isso representa mais do que uma mera sede de sangue. Preocupações quanto à insegurança são legítimas, mesmo que a crença em matar e aprisionar um número ainda maior de bandidos não seja. Será uma batalha penosa, que irá de encontro tanto ao senso comum quanto ao estado de espírito predominante vingativo. Mas os apoiadores de baixa renda de Bolsonaro precisam ser persuadidos de que as milícias policiais e os vigias, que eles acreditam poder oferecer maior “segurança”, apenas se tornarão, eles mesmos, bandidos.

Sobre o autor

Matthew Aaron Richmond é membro visitante do Latin America and Caribbean Centre da London School of Economics e pesquisador associado do Centro de Estudos da Metrópole da Universidade de São Paulo. Ele escreve sobre desigualdade urbana, moradia, segurança e política, com foco nas favelas brasileiras e nas periferias urbanas.

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