6 de agosto de 2022

Sarah Maldoror milita em "Sambizanga" sem espetacularizar a tortura

Filme da cineasta negra pioneira tem exibição gratuita na Mostra Ecofalante, em São Paulo, neste domingo (7)

Inácio Araujo

Folha de S.Paulo

Cena do filme "Sambizanga", de 1972, dirigido pela cineasta e poeta Sarah Maldoror - Reprodução

"SAMBIZANGA" ★★★☆☆

Quando Dom., às 17h30 Onde Cinemateca Brasileira - lgo. Sen. Raul Cardoso, 207, Vila Clementino, São Paulo Preço Grátis Elenco Elisa Andrade, Domingos de Oliveira e Jean M’Vondo Produção Angola, França, 1972 Direção Sarah Maldoror

"Sambizanga" reserva algumas surpresas. A primeira está no pseudônimo da diretora: Sarah Maldoror. O nome do poema em prosa de Lautréamont, o maldito dos malditos, inspira respeito: não é para ser usado sem mais nem menos. Mas é assim que Sarah Ducados, negra de nacionalidade francesa, assinava seus trabalhos.

E, a julgar por esse filme de 1972 (que chega ao Ecofalante em versão devidamente restaurada), não faz mau uso do pseudônimo. Casada com o poeta e ensaísta angolano Mário Pinto de Andrade, dedicou este filme à luta pela independência do país africano.

Sua realização é de 1972, portanto dois anos antes de a Revolução dos Cravos derrubar o salazarismo e encerrar a aventura colonial portuguesa na África. Ali ela trata de Domingos Xavier (Domingos de Oliveira), um tratorista sequestrado pela Pide, a violenta polícia política lusitana da época. Sua mulher, Maria (Elisa Andrade) inicia uma peregrinação em busca do marido, indo a pé da aldeia em que vivem até Luanda, a capital.

Essa sinopse sumária já enuncia o que é boa parte do trabalho: um filme militante característico do começo dos anos que se seguiram ao Maio de 68. Em parte é isso mesmo. Ressalte-se o bom gosto da cineasta, pois sabemos quantos filmes se perdem pela maneira como mostram a tortura, por exemplo. Aqui sabemos o quanto certos personagens são torturados, mas Maldoror em nenhum momento faz disso um espetáculo, embora deixe muito claro que a tortura fazia parte dos usos e costumes da Pide.

Mas o aspecto militante do filme é também um pretexto para Maldoror abrir as portas de Angola para os seus espectadores. Não uma Angola turística, mas tal como experimentada pelos que lá viviam naquele momento. Assim, logo de cara somos introduzidos à casa de taipa em que vivem as pessoas como Domingos e família.

Mas há também os rostos que se alternam na tela, o trabalho pesado (muito pesado), os rescaldos da ruinosa administração colonial que sobram aqui ou ali. Não só: de repente nos vemos no meio de uma feira, ou de uma praça no centro de Luanda. As paisagens se transformam: podem trazer uma capital moderna ou as montanhas do país.

Podem, e é talvez o melhor, mostrar uma rua com suas lojas que parecem lisboetas, mas quem passa por lá são pessoas descalças. O que não impede esses passantes de exibirem aqueles belos panos africanos (a versão angolana é mais discreta que a de outros lugares, mas a combinação de cores é tão rica quanto). Ou os trabalhadores de mostrarem seus rostos cobertos por chapéus.

"Sambizanga" é, em resumo, um filme modesto sobre pessoas modestas, seus modos de comer, de caminhar, de vestir e, sobretudo, de se dedicar ao outro. Naquilo que surge na tela como evidência (Maria e sua busca do marido) ou dissimulação (a militância). Sim, porque nada vemos, praticamente, de reuniões, preparação de ações e tudo mais que possa dizer respeito a um movimento independentista. Apenas uma festa, já no final do filme. A clandestinidade atinge o próprio filme: nenhum proselitismo, raros sinais exteriores de revolta. A guerra, no filme ao menos, é secreta.

Isso é outra surpresa e outra virtude: trabalha-se com uma produção hipermodesta sem perder por nenhum instante o sentido de uma rebelião que se espalha na surdina (e que invadiria o exército colonial português). Não há uma exortação à luta (embora haja um lamento, já no final). A cada segundo, porém, essa luta se faz sentir.

Porque um filme militante também pode ser assim: mostrar qual é o ânimo dos militantes, bem mais do que expor suas ideias no essencial óbvias (trata-se de um movimento nacionalista), como se dá sua luta, bem mais do que fazer demagogia em torno dela.

As virtudes do filme de Sarah Maldoror se mostram melhor quando notamos que, 50 anos depois, não perderam atualidade: permanecem como documento de uma luta feliz, porque bem-sucedida.

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