14 de agosto de 2022

Na década de 1930, a poesia foi essencial no combate ao fascismo

Um grupo de poetas ídiche alinhados ao Partido Comunista buscou a união cultural e nacional através da linguagem. Seus poemas permanecem como símbolos da luta antifascista e do internacionalismo nas artes.

Uma entrevista com
Amelia Glaser


Um grupo de criadores judeus, incluindo o poeta Peretz Markish (segundo da esquerda, sentado) assinam um manifesto chamando judeus ao redor do mundo a integrar a luta contra Adolf Hitler e todas as formas de fascismo (Sovfoto / Universal Images Group via Getty Images).

Uma entrevista de
Benjamin Schacht

Tradução / Há 70 anos — em 12 de agosto de 1952 — autoridades soviéticas executaram um grupo de 13 intelectuais e escritores judeus, entre eles os poetas Peretz Markis e Dovid Hofshteyn. Conhecido como “A noite dos poetas assassinados”, acontecimento que entrou para a infâmia não apenas por ter contribuído com o legado sanguinário de Stalin mas também pelo fato de que vários dos executados terem sido comunistas fervorosos e líderes da oposição ao fascismo durante a Segunda Guerra Mundial, ajudando a União Soviética a vencer a Alemanha Nazista.

Em seu livro ainda inédito no Brasil, Songs in Dark Times: Yiddish Poetry from Scottsboro to Palestine [Canções em tempos sombrios: poesia ídiche de Scottsboro à Palestina], Amelia Glaser narra a história de um grupo de poetas judeus alinhados ao Partido Comunista nas décadas antecedentes ao episódio. Focando no compromisso declarado destes poetas ao internacionalismo proletário, Glaser mostra como eles usaram a poesia, a história judaica e a língua ídiche para promover solidariedade entre grupos de diferentes partes do mundo nas lutas contra a opressão.

Para sabermos mais sobre a poesia e a política internacionalista desses escritores judeus de esquerda e sua permanente relevância em relação aos eventos atuais, Jacobin entrevistou Glaser.

Benjamin Schacht

Seu livro foca nos poetas ídiche alinhados com o Partido Comunista durante os anos de 1930. O que a levou a este tema e como você define as fronteiras dos “longos anos 30”?

AG

Queria escrever um livro sobre como o tema “o Outro” ganhou importância nos anos 1930. Estava fascinada com esses escritores ídiche que, nessa época, deixaram de escrever sobre temas do judaísmo e começaram a escrever sobre outros povos, outros grupos — ucranianos, africanos, americanos, republicanos espanhóis. Eles o fizeram de uma maneira muito parecida com outras pessoas que escreviam sobre temas judeus uma década antes.

O período que cubro é, mais ou menos, entre 1927–1943, porque o ano de 1927 é quando começamos a enxergar o momentum que antecede ao Terceiro Período na Internacional Comunista, que se tornou política oficial um ano depois. Muita coisa mudou no partido no final dos anos de 1920. Primeiramente, este é o período considerado como o início do alto Stalinismo — quando Joseph Stalin essencialmente declarou que ou você está conosco ou contra nós. Mas este é também o momento em que povos colonizados, incluindo populações agrárias, começaram a ser considerados trabalhadores. Isso abriu uma nova discussão sobre a forma como o poder atua no mundo.

Começo o livro logo na virada para os anos 1930, pois se trata de um período complicado e acho importante falarmos sobre momentos polarizantes. Era importante para mim tratar das coisas terríveis que aconteceram nesse período. Alguns poetas deixaram o partido e outros permaneceram por mais tempo, pois o enxergavam como a força mais poderosa contra o fascismo. Queria entender o que estes poetas estavam tentando fazer política e poética enquanto os anos 1930 se desdobravam.

O livro termina em 1943, ano em que acaba a Internacional Comunista. Stalin nunca gostou realmente do Comintern porque queria mesmo era construir o socialismo em apenas um país e este foi o ano em que ele dissolveu a organização.

Benjamin Schacht

No capítulo em que você trata da poesia ídiche sobre a Guerra Civil Espanhola, você faz referência ao pesquisador literário Cary Nelson que diz: “A velocidade com que a poesia se tornou tão significativa na guerra permanece surpreendente até hoje”. Por que a poesia se tornou tão importante para os movimentos políticos de esquerda em geral e para os esquerdistas ídiche em particular? O que explica a circulação cultural e política da poesia durante o período sobre o qual você escreve?

AG

Poesia é o gênero para o qual as pessoas se voltam quando as emoções estão à flor da pele. E também é rápida. Ninguém vai escrever um romance sobre a guerra estando no meio simplesmente porque não ficará pronto a tempo. Se você quer causar efeito, precisa escrever rápido. E a poesia é um gênero declaratório, frequentemente escrita em primeira pessoa. Nem sempre dialógico. Não é “tem isso, mas e isso aqui?” Também houve romances escritos em ídiche, mas não foram exatamente para o momento como a poesia.

Há também o tema da política em torno da literatura. A União Soviética abordou a literatura de modo muito sério. Houve um grande esforço de tradução de cânones literários para o russo assim como para outras línguas dos povos soviéticos. Os poetas alinhados com o partido tinham a oportunidade de publicar seu trabalho e serem pagos por isso. Então, os escritores tiveram um papel social importante e podiam frequentemente se manter da própria escrita.

Fora da União Soviética, os poetas normalmente tinham múltiplas ocupações, mas a imprensa de esquerda valorizava a literatura nos Estados Unidos. Por exemplo, os editores do diário comunista Frayhayt (que foi financiado pelo Comintern e tinha, no seu auge, circulação de mais de 20 mil exemplares) incluíram uma página de poesia, o que ajudou a promover a poesia ídiche pelo mundo. O Frayhayt era o principal órgão em língua ídiche do Partido Comunista nos Estados Unidos.

Mas neste período havia muita poesia sendo escrita em línguas diferentes. A Renascença do Harlem estava acontecendo no mesmo período e alguns desses poetas tinham visões políticas muito similares às dos poetas ídiche que eu estudo.

Benjamin Schacht

Sobre o que você falou de os escritores judeus voltarem sua escrita para a temática do “Outro”, dois conceitos centrais da análise que você propõe no livro, que estão relacionados com a questão de como esses poetas vêem o Outro, são senhas e a translocação da cultura. Você poderia descrever estes conceitos? Como eles se conectam com a política internacionalista dos poetas sobre os quais você escreve?

AG

Translocação é o termo que eu cunhei para a transferência de uma ideia poética do contexto de uma pessoa para outra.

Escrevi minha tese de doutorado sobre as interações entre escritores ucranianos, russos e ídiche nas Zonas de Assentamentos de judeus na Rússia no século XIX. Ao mesmo tempo, trabalhava como tradutora literária compilando uma coleção de poemas ídiche americanos de esquerda. Foi quando eu me dei conta de que muitos dos poemas proletários escritos em ídiche não eram absolutamente sobre judeus. Eles tratavam de outros grupos e eu achei isso fascinante.

Me surpreendeu muito o fato de que muitos poemas escritos em ídiche antes de 1930 tratavam dos pogroms — raízes dos incidentes violentos contra judeus. Isso certamente faz sentido devido às ondas de pogroms na virada para o século XX.

Houve uma grande onda de pogroms no início dos anos 1880 imediatamente posteriores ao assassinato de Alexandre II. Houve mais pogroms no início dos anos 1900, por todas as Zonas de Assentamentos, o mais famoso sendo o pogrom de Kishinev em 1903, onde morreram mais de 40 pessoas. Este é um número horrível, mas empalidece se comparado com as mortes dos pogroms que acompanharam a Guerra Russo-Polonesa de 1918-1920.

Mas, no início dos anos 1920, e mais ainda nos de 1930, começamos a ver uma mudança de foco e os poetas ídiche (às vezes os mesmos que haviam descrito os pogroms antes) começam a observar a violência praticada contra outros grupos étnicos. Os poemas que mais me marcaram foram os sobre linchamentos. O tema do linchamento foi o que me deu ímpeto para escrever o livro. Estes poetas ídiche pegaram o modelo do poema de pogrom e usaram para escrever poemas sobre linchamentos. Por vezes, como no caso de Beresh Vaynshteyn, encontramos poemas sobre linchamentos e pogroms que são quase idênticos. Vaynshteyn escreve um poema em 1933 que fala sobre o pogrom de Berlim e basicamente o reescreve em 1936 para falar sobre um linchamento. Se você ler estes dois poemas juntos, verá que ele usa as mesmas imagens e muitas das mesmas palavras. A reescrita de poemas judaicos como poemas sobre outros grupos é o que eu chamo de translocação.

Mas, para ajudar a explicar o processo de translocação, eu usei o conceito de senha. Depois de escrever capítulos sobre os poemas ídiche de Scottsboro, Sacco and Vanzetti, trabalhadores chineses e sobre a Espanha, de repente me dei conta “Oh, existem senhas que os permitem fazer isso”. A senha é uma palavra ou frase que permite o acesso de pessoas a um local fechado. Estes poetas estavam atribuindo termos da liturgia judaica ou de poemas judaicos anteriores a sofrimentos não-judaicos. Fazendo isso, eles estavam permitindo que outros grupos pudessem participar, pelo menos poeticamente.

Vou te dar o primeiro exemplo do livro. Quando H. Leivick escreve sobre a morte de Sacco e Vanzetti, ele escreve para um público ídiche americano. Leivick escreve que é “a mesma morte de kateyger a kateyger”. Kateyger é um termo em ídiche para um anjo persecutor, que deriva do termo para perseguidor no Talmud, via hebraico e grego. A palavra é usada na literatura ídiche como uma força acusatória, quase como um tipo de advogado do diabo, mas num senso particularmente judaico de advogado do diabo — como se dissesse “E se eu forçar contra você, se eu tentar argumentar contra a coisa certa a fazer?” Leivick usa esta noção do termo kateyger e vejo este uso como uma forma de integrar os anarquistas italianos executados ao mesmo grupo de judeus. É uma forma de expandir o conceito de “nós” para incluir não-judeus, normalmente membros de minorias étnicas ou grupos perseguidos, como parte de uma luta comum.

Benjamin Schacht

Muitos dos poetas sobre quem você escreve, Peretz Markish e Dovid Hofshteyn, por exemplo, foram executados por Stalin em 1952 como parte da infame “Noite dos Poetas Assassinados”. Sei que isso nos leva para fora do período que você enfoca, mas você poderia explicar o que foi este episódio? Por que poetas e escritores ídiche se tornaram objeto da paranóia e repressão assassina de Stalin?

AG

Em 12 de agosto de 1952, várias das mais proeminentes figuras culturais judaicas sovieticas que foram membros do Comitê Judeu Anti-Fascista foram mortas no pátio da prisão de Lubyanka em Moscou. Elas foram presas alguns anos antes. Foi um episódio sombrio do expurgo perpetrado por Stalin sobre escritores e intelectuais que ele não confiava.

Ironicamente, muitos desses mesmos escritores ídiche foram úteis durante o governo stalinista do período da Frente Popular até o final da Segunda Guerra Mundial. Foram úteis na promoção da luta contra Adolph Hitler, ainda mais por serem judeus. Depois da guerra, no entanto, eles não tinham mais utilidade e, inclusive, se apresentavam como uma potencial ameaça. Isso foi parte de uma paranóia geral e crescente sobre opositores. Quando as notícias do que aconteceu começaram a circular, a maioria dos escritores ídiche fora da União Soviética que ainda não haviam quebrado seus vínculos com o partido o fizeram.

Benjamin Schacht

A Ucrânia tem um papel significativo no seu livro. No primeiro capítulo você escreve sobre a Crimeia como o local para um tipo de utopia judeu-soviética, o que se tornou, no fim, Birobidzhan, no extremo leste da Rússia. Depois, você dedica um capítulo às traduções de Dovid Hofshteyn para o poeta ucraniano do século XIX Taras Shevchenko. Por quê você incluiu isso?

AG

A história da relação entre a Ucrânia e os judeus é complicada e houve episódios de conflito onde judeus e ucranianos se encontraram em lados opostos. Mas houve também muitos momentos importantes de unidade entre os dois grupos. Muito da minha produção acadêmica anterior examinou as relações literárias entre judeus, ucranianos e russos, então eu tinha muito a falar sobre elas.

O que os poetas que eu estudo nos ajudam a lembrar é que há momentos significativos de solidariedade entre judeus e ucranianos (entre outros grupos), inclusive durante o período soviético. Quando ele percebeu que a cultura judaica poderia estar desaparecendo nos anos do alto stalinismo, Dovid Hofshteyn se voltou para o escritor ucraniano Taras Shevchenko para inspiração. Foi Shevchenko que, no século XIX, bradou contra a supressão da cultura ucraniana sob os czares.

Ambos grupos — ucranianos e judeus — eram minorias sob os czares e até durante a União Soviética. Mas ambos grupos também eram fontes de ansiedade pois eram vistos como semeadores de potenciais rebeliões. Além disso, o simples fato das Zonas de Assentamentos incluir parte do território ucraniano significava que estes grupos coexistiam por séculos. Logo, faz todo sentido que os judeus da Ucrânia se considerassem patriotas ucranianos.

Sobre o autor

Benjamin Schacht é um acadêmico independente e editor freelance. Ele é PhD em literatura comparada pela Northwestern University.

Amelia Glaser é professora associada de Russo e Literatura Comparada na Universidade da Califórnia em San Diego.

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