Carolina Pavese
É doutora em relações internacionais pela London School of Economics e professora da ESPM
Folha de S.Paulo
A renúncia de Liz Truss, nesta quinta-feira (20), foi recebida com um misto de consternação e resiliência pelos britânicos —afinal, já era esperada. Os últimos quatro primeiros-ministros abandonaram o navio em naufrágio. Além de pertencer ao Partido Conservador, todos também ficaram marcados pela incapacidade de redefinir a identidade do Reino Unido nas relações internacionais pós-brexit.
Ignorando um contexto em que já não há espaço para grandes impérios, os conservadores instauraram o caos. Após anos de governo dos trabalhistas, o partido se consolidou majoritário nas eleições de 2010, com David Cameron como primeiro-ministro. Cinco anos depois, ele recorreu a discursos nacionalistas e eurocéticos para agradar a certos eleitores, comprometendo-se a convocar um referendo se ficasse no poder. Vitorioso, cumpriu a promessa.
Em junho de 2016, 52% dos eleitores optaram por deixar a União Europeia. A campanha vitoriosa foi marcada por narrativas sensacionalistas, disseminação de fake news e discursos xenófobos, revivendo com saudosismo a ideia de um império. Cameron, que ironicamente havia defendido a permanência no bloco, renunciou quando percebeu o problema que criara.
Desde então, foram três novos líderes conservadores, todos reafirmando o discurso de que uma grande potência como o Reino Unido anda melhor sozinha. É justamente essa arrogância, travestida de autoconfiança, o ponto franco da política externa britânica; o erro de análise permeia toda a história das interações entre o país e a União Europeia.
Em discurso histórico na Universidade de Zurique, em setembro de 1946, Winston Churchill argumentou em favor da criação de "uma espécie de Estados Unidos da Europa", com a participação da França e da Alemanha, mas sem a adesão do Reino Unido. Em 1951, o Tratado de Paris criou o embrião do processo de integração, a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, ampliado para mais duas em 1957.
Na década de 1960, os britânicos pleitearam a adesão à então Comunidade Europeia. Charles de Gaulle, presidente da França na época, opôs-se, argumentado que o Reino Unido seria um "cavalo de Troia" —a história mostrou que não estava errado. Finalmente aceitos no bloco em 1973, os britânicos não pareciam convencidos da ideia e em 1975 realizaram um primeiro referendo sobre a permanência; 67% da população optou por ficar.
Ao longo das quatro décadas que se seguiram, a participação na UE foi marcada por tentativas de frear certas agendas e buscar uma participação seletiva na medida do possível para "preservar sua soberania". Foi concedido, por exemplo, o direito de o Reino Unido não aderir a um acordo de 1993 e preservar sua moeda. Por outro lado, houve inegável reforço de uma interdependência comercial e econômica e ganhos mútuos em projeção política.
Em 2015, ano anterior ao referendo do brexit, 44% das exportações e 53% das importações de bens e serviços britânicas tinham o bloco europeu como mercado. Mais de 3 milhões de empregos estavam ligados às exportações para a UE, também o maior investidor direto do mercado financeiro britânico (48% dos investimentos em 2014).
A saída do bloco levou à revogação de acesso ao livre mercado. Estudo do think tank europeu Instituto de Pesquisa Econômica e Social estimou que o valor das exportações de Londres para Bruxelas estão 16% abaixo do que num cenário sem o brexit, enquanto importações caíram 20%. O resultado na economia é claro.
Continuar ignorando a importância do mercado europeu é insistir no erro. A solução passa exatamente em priorizar o comércio com a UE e se empenhar em derrubar as barreiras impostas pelo brexit. Há, ainda, a necessidade de definir as relações bilaterais com Bruxelas, ancoradas em um acordo temporário e com muitos pontos de tensão, como a questão com a Irlanda do Norte.
A perda de mercado se estende aos mais de 41 acordos comerciais que o bloco possui com cerca de 70 países. Depois do brexit, o Reino Unido se empenhou em estabelecer os próprios acordos preferenciais —hoje são 33, muitos com vigência temporária e poucos com a abrangência dos europeus.
A menor atratividade tem reverberado na dificuldade de celebrar pactos com parceiros estratégicos, como os EUA. Fica claro que não é possível retornar ao passado glorioso sem abraçar a globalização e enfrentar as contradições do capitalismo. Não há espaço para protecionismo nem nacionalismo, sobretudo em uma economia tão inserida no mercado global e altamente dependente de mão de obra estrangeira.
O que preocupa é que os conservadores continuam inclinados a reforçar esse discurso populista.
É importante ressaltar que o Reino Unido tem posição de destaque em processos globais de tomada de decisão, como membro de G7, G20, FMI, Banco Mundial, Otan e Conselho de Segurança da ONU. Permanece sendo, apesar da crise, uma das maiores economias do mundo. Assim, é protagonista.
A questão é que agora age sozinho —o que não seria ruim em outro contexto. Diante da crise econômica e da instabilidade política, vê sua reputação comprometida. Na ausência de perspectivas de reverter esse panorama, crescem os custos do brexit.
Ao subjugar a importância da cooperação com a Europa continental, o Reino Unido perde oportunidades de ampliar seu protagonismo nas relações internacionais. Torna-se mais forte a percepção do erro cometido. Era melhor estar mal acompanhado do que só.
Desde então, foram três novos líderes conservadores, todos reafirmando o discurso de que uma grande potência como o Reino Unido anda melhor sozinha. É justamente essa arrogância, travestida de autoconfiança, o ponto franco da política externa britânica; o erro de análise permeia toda a história das interações entre o país e a União Europeia.
Em discurso histórico na Universidade de Zurique, em setembro de 1946, Winston Churchill argumentou em favor da criação de "uma espécie de Estados Unidos da Europa", com a participação da França e da Alemanha, mas sem a adesão do Reino Unido. Em 1951, o Tratado de Paris criou o embrião do processo de integração, a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, ampliado para mais duas em 1957.
Na década de 1960, os britânicos pleitearam a adesão à então Comunidade Europeia. Charles de Gaulle, presidente da França na época, opôs-se, argumentado que o Reino Unido seria um "cavalo de Troia" —a história mostrou que não estava errado. Finalmente aceitos no bloco em 1973, os britânicos não pareciam convencidos da ideia e em 1975 realizaram um primeiro referendo sobre a permanência; 67% da população optou por ficar.
Ao longo das quatro décadas que se seguiram, a participação na UE foi marcada por tentativas de frear certas agendas e buscar uma participação seletiva na medida do possível para "preservar sua soberania". Foi concedido, por exemplo, o direito de o Reino Unido não aderir a um acordo de 1993 e preservar sua moeda. Por outro lado, houve inegável reforço de uma interdependência comercial e econômica e ganhos mútuos em projeção política.
Em 2015, ano anterior ao referendo do brexit, 44% das exportações e 53% das importações de bens e serviços britânicas tinham o bloco europeu como mercado. Mais de 3 milhões de empregos estavam ligados às exportações para a UE, também o maior investidor direto do mercado financeiro britânico (48% dos investimentos em 2014).
A saída do bloco levou à revogação de acesso ao livre mercado. Estudo do think tank europeu Instituto de Pesquisa Econômica e Social estimou que o valor das exportações de Londres para Bruxelas estão 16% abaixo do que num cenário sem o brexit, enquanto importações caíram 20%. O resultado na economia é claro.
Continuar ignorando a importância do mercado europeu é insistir no erro. A solução passa exatamente em priorizar o comércio com a UE e se empenhar em derrubar as barreiras impostas pelo brexit. Há, ainda, a necessidade de definir as relações bilaterais com Bruxelas, ancoradas em um acordo temporário e com muitos pontos de tensão, como a questão com a Irlanda do Norte.
A perda de mercado se estende aos mais de 41 acordos comerciais que o bloco possui com cerca de 70 países. Depois do brexit, o Reino Unido se empenhou em estabelecer os próprios acordos preferenciais —hoje são 33, muitos com vigência temporária e poucos com a abrangência dos europeus.
A menor atratividade tem reverberado na dificuldade de celebrar pactos com parceiros estratégicos, como os EUA. Fica claro que não é possível retornar ao passado glorioso sem abraçar a globalização e enfrentar as contradições do capitalismo. Não há espaço para protecionismo nem nacionalismo, sobretudo em uma economia tão inserida no mercado global e altamente dependente de mão de obra estrangeira.
O que preocupa é que os conservadores continuam inclinados a reforçar esse discurso populista.
É importante ressaltar que o Reino Unido tem posição de destaque em processos globais de tomada de decisão, como membro de G7, G20, FMI, Banco Mundial, Otan e Conselho de Segurança da ONU. Permanece sendo, apesar da crise, uma das maiores economias do mundo. Assim, é protagonista.
A questão é que agora age sozinho —o que não seria ruim em outro contexto. Diante da crise econômica e da instabilidade política, vê sua reputação comprometida. Na ausência de perspectivas de reverter esse panorama, crescem os custos do brexit.
Ao subjugar a importância da cooperação com a Europa continental, o Reino Unido perde oportunidades de ampliar seu protagonismo nas relações internacionais. Torna-se mais forte a percepção do erro cometido. Era melhor estar mal acompanhado do que só.
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