7 de maio de 1998

Entre mundos

Edward Said dá sentido à sua vida

Edward Said

London Review of Books

Vol. 20 No. 9 · 7 May 1998

Tradução / No primeiro livro que escrevi, Joseph Conrad and the Fiction of Autobiography [Joseph Conrad e a ficção da autobiografia], publicado há mais de trinta anos, e depois em um ensaio intitulado “Reflexões sobre o exílio”, de 1984, usei Conrad como um exemplo de alguém cuja vida e cuja obra pareciam tipificar o destino do errante que se torna um escritor consumado numa língua adquirida, mas jamais pode se livrar de seu sentimento de alienação dessa nova — isto é, adquirida — e, no caso um tanto especial de Conrad, admirada pátria. Todos os amigos de Conrad diziam que ele era feliz com a idéia de ser inglês, embora jamais tenha perdido seu forte sotaque polonês e seu peculiar mau humor, considerado muito pouco britânico. Não obstante, no momento em que entramos em seus escritos, a aura de deslocamento, instabilidade e estranheza é inconfundível. Ninguém poderia, melhor do que ele, representar a sina do descaminho e da desorientação, e ninguém foi mais irônico no esforço de tentar substituir essa condição com novos arranjos e acomodações, que invariavelmente conduzem a novas armadilhas, como as que Lord Jim encontra quando recomeça a vida em sua pequena ilha. Marlow entra no coração das trevas para descobrir que Kurtz não só estava lá antes dele como é incapaz de lhe contar toda a verdade; desse modo, ao narrar suas experiências, Marlow não pode ser tão exato quanto gostaria e acaba produzindo aproximações e até falsidades, das quais ele e seus ouvintes parecem bem conscientes.

Foi somente muito depois de sua morte que os críticos de Conrad tentaram reconstruir o que foi chamado de seu background polonês, do qual pouco se encontra diretamente em sua ficção. Mas o significado um tanto esquivo de sua obra não se oferece com muita facilidade, pois, mesmo se encontrarmos muita coisa sobre suas experiências, seus amigos e seus parentes poloneses, essas informações não resolverão por si mesmas o cerne de inquietação e agitação em torno do qual sua obra gira sem parar. Por fim, percebemos que essa obra é constituída pela experiência do exílio ou da alienação que não pode ser retificada. Não importa o grau de perfeição com que seja capaz de expressar alguma coisa, pois o resultado sempre lhe parece uma aproximação ao que queria dizer, e que o que foi dito foi dito tarde demais, depois do momento em que dizê-lo poderia ter sido útil. “Amy Foster”, a mais desolada de suas histórias, é sobre um jovem da Europa oriental que naufraga nas costas da Inglaterra quando estava a caminho da América e que acaba como marido da afetuosa mas pouco articulada Amy Foster. O homem permanece um estrangeiro, jamais aprende o idioma e, mesmo depois que tem um filho com Amy, não consegue fazer parte de sua própria família. Quando está próximo da morte e, em delírio, balbucia numa língua estranha, Amy vai embora com o filho, abandonando-o à sua dor final. Tal como muitas ficções de Conrad, a história é narrada por uma figura compassiva, um médico amigo do casal, mas mesmo ele não consegue salvar o jovem do isolamento, embora Conrad provoque no leitor o sentimento de que ele poderia escapar. É difícil ler “Amy Foster” sem pensar que Conrad devia temer encontrar uma morte semelhante, inconsolável, solitária, falando numa língua que ninguém entenderia.

A primeira coisa a reconhecer é a perda do lar e da língua no novo cenário, uma perda que Conrad tem a severidade de retratar como irrecuperável, inexoravelmente angustiosa, rude, intratável, sempre aguda — motivo pelo qual me vi ao longo dos anos lendo e escrevendo sobre Conrad, como um cantus firmus, um baixo-contínuo obstinado constante para muito do que vivi. Durante anos, parecia que eu voltava sempre à mesma coisa nos trabalhos que fazia, mas sempre por meio dos escritos de outras pessoas. Foi só no começo do outono de 1991, quando um diagnóstico médico me revelou subitamente a mortalidade, sobre a qual eu já deveria saber, que me vi tentando dar um sentido à minha vida no momento em que seu fim parecia tão próximo. Poucos meses depois, tentando ainda assimilar minha nova condição, me vi compondo uma longa carta explicativa para minha mãe, que já morrera havia quase dois anos, uma carta que inaugurou uma tentativa atrasada de impor uma narrativa a uma vida que eu deixara correr por si mesma, desorganizada, espalhada, descentrada. Eu tivera uma carreira honrada na universidade, escrevera bastante, adquirira uma reputação nada invejável (de “professor do terror”) graças a meus escritos, minhas falas e minha atividade militante em relação às questões palestinas, do Oriente Médio e islâmicas em geral e antiimperialistas, mas raramente havia feito uma pausa para pôr ordem na mixórdia. Eu era um trabalhador compulsivo, não gostava de férias — que raramente tive — e fazia o que fazia sem me preocupar muito (ou quase nada) com coisas como bloqueio da escrita, depressão ou esterilidade.

De repente, me vi calado, sem muito tempo disponível para fazer um levantamento de minha vida, cujas excentricidades eu aceitara como tantos fatos da natureza. Uma vez mais, reconheci que Conrad estivera ali antes de mim, exceto que ele era um europeu que deixara sua Polônia natal e se tornara um inglês, uma mudança mais ou menos dentro do mesmo mundo. Eu nasci em Jerusalém e passei a maior parte de meus anos de formação nessa cidade e antes — mas especialmente depois — de 1948, quando toda a minha família se tornou refugiada no Egito. Porém, toda a minha educação inicial se fez em escolas coloniais de elite, escolas públicas inglesas projetadas para formar uma geração de árabes com laços naturais com a Inglaterra. A última que freqüentei, antes de deixar o Oriente Médio e ir para os Estados Unidos, foi o Victoria College, no Cairo, uma escola criada de fato para educar os árabes e levantinos da classe dirigente que assumiriam o poder depois que os britânicos fossem embora. Entre meus contemporâneos e colegas de classe estavam o rei Hussein, da Jordânia, vários meninos jordanianos, egípcios, sírios e sauditas que se tornariam ministros, primeiros-ministros e empresários importantes, bem como figuras glamourosas como Michel Shalhoub, bedel-chefe da escola e atormentador-mor, que todos conheceram nas telas com o nome de Omar Sharif.

No momento que nos tornávamos alunos do VC, recebíamos o manual da escola, uma série de regulamentos que governavam todos os aspectos da vida escolar: o uniforme, o equipamento necessário para os esportes, as datas dos feriados escolares, horários de ônibus, e assim por diante. Mas a primeira regra da escola, proclamada na primeira página do manual, dizia: “O inglês é o idioma da escola; os alunos surpreendidos falando qualquer outra língua serão punidos”. Não obstante, não havia na escola nenhum aluno cuja língua materna fosse o inglês. Enquanto os professores eram todos britânicos, éramos um bando heterogêneo de árabes de vários tipos, armênios, gregos, italianos, judeus e turcos, todos com uma língua materna que a escola proibia explicitamente. Contudo, todos (ou quase todos) falávamos árabe — muitos falavam árabe e francês —, e assim conseguíamos nos refugiar num idioma comum, desafiando o que percebíamos como uma restrição colonial injusta. O poderio imperial britânico estava chegando ao fim logo após a Segunda Guerra Mundial e esse fato nos influenciou, embora eu não consiga me lembrar de nenhum estudante de minha geração que tenha sido capaz de expressar com palavras algo tão definitivo.

Para mim, havia uma complicação a mais: embora ambos os meus progenitores fossem palestinos — minha mãe de Nazaré, meu pai de Jerusalém —, meu pai ganhara a cidadania americana durante a Primeira Guerra Mundial, quando serviu na Força Expedicionária Americana, sob o comando de Pershing, na França. Ele deixara inicialmente a Palestina, então uma província otomana, em 1911, aos dezesseis anos de idade, para fugir do recrutamento militar que o levaria a lutar na Bulgária. Foi para os Estados Unidos, onde estudou e trabalhou durante alguns anos, depois retornou à Palestina em 1919, para abrir um negócio com seu primo. Além disso, com um nome de família árabe tão comum como Said ligado a um improvável prenome inglês (minha mãe admirava muito o príncipe de Gales em 1935, ano de meu nascimento), fui um estudante desconfortavelmente anômalo em meus primeiros anos de escola: um palestino que freqüentava a escola no Egito, com um prenome inglês, um passaporte americano e nenhuma identidade certa. Para piorar as coisas, o árabe, minha língua materna, e o inglês, meu idioma escolar, estavam inextricavelmente misturados: eu nunca soube qual era a minha primeira língua e nunca me senti plenamente à vontade nas duas, embora sonhe em ambas. Toda vez que pronuncio uma frase em inglês, ouço seu eco em árabe, e vice-versa.

Tudo isso passou pela minha cabeça naqueles meses, depois que o diagnóstico me revelou a necessidade de pensar sobre coisas definitivas. Mas fiz isso do meu jeito característico. Autor de um livro chamado Beginnings [Inícios], me vi levado para meus primeiros dias de menino em Jerusalém, Cairo e Dhour el Shweir, a aldeia das montanhas libaneses que eu odiava, mas aonde meu pai costumava nos levar para passar o verão. Descobri-me revivendo as perplexidades narrativas de meus primeiros anos, meu sentimento de dúvida e de deslocamento, de sempre me sentir no lado errado, em um lugar que parecia me escapar assim que eu tentava defini-lo ou descrevê-lo. Por que — lembro que eu me perguntava — eu não podia ter um passado simples, ser todo egípcio, ou todo alguma outra coisa, e não ter de encarar os rigores diários de questões que levavam a palavras que pareciam não ter uma origem estável? A parte pior de minha situação, que o tempo só exacerbou, era a relação conflitante entre inglês e árabe, algo que Conrad não teve de enfrentar, pois a passagem do polonês para o inglês via francês efetuou-se inteiramente dentro da Europa. Toda a minha educação foi anglocêntrica — tanto é verdade que eu sabia muito mais sobre a história e a geografia britânica e até indiana (matérias obrigatórias) do que sobre a história e a geografia do mundo árabe. Mas, embora ensinado a acreditar e pensar como um escolar inglês, também fui treinado a compreender que eu era um estranho, um Outro Não-Europeu, educado por meus superiores para conhecer meu lugar e não aspirar a ser inglês. A linha que separava Nós de Eles era lingüística, cultural, racial e étnica. Não me facilitava em nada ter nascido, ser batizado e confirmado na Igreja anglicana, onde o canto de hinos belicosos como “Adiante, soldados cristãos” e “Das montanhas geladas da Groenlândia” me fazia desempenhar ao mesmo tempo o papel de agressor e agredido. Ser ao mesmo tempo um wog* e um anglicano era viver em um estado de permanente guerra civil.

Na primavera de 1951, fui expulso do Victoria College por ser um encrenqueiro, o que significava que eu era mais visível e presa mais fácil do que os outros meninos nas escaramuças diárias entre mr. Griffith, mr. Hill, mr. Brown, mr. Maundrell, mr. Gatley e todos os outros professores ingleses, de um lado, e nós, os meninos da escola, de outro. Também tínhamos uma consciência subliminar de que a velha ordem árabe estava ruindo: a Palestina caíra, o Egito cambaleava sob a corrupção maciça do rei Farouk e sua corte (a revolução que levou Gamal Abdel Nasser e seus Oficiais Livres ao poder ocorreria em julho de 1952), a Síria passava por uma série alucinante de golpes militares, o Irã — cujo xá estava casado na época com a irmã de Farouk — teve sua primeira grande crise em 1951, e assim por diante. As perspectivas para pessoas desenraizadas como nós eram tão incertas que meu pai decidiu que seria melhor me mandar para o mais longe possível — com efeito, para uma escola austera e puritana no extremo noroeste de Massachusetts.

O dia do começo de setembro de 1951 em que minha mãe e meu pai me deixaram nos portões daquela escola e depois partiram imediatamente para o Oriente Médio foi provavelmente o mais infeliz da minha vida. Não somente a atmosfera da escola era rígida e explicitamente moralista, como parecia que eu era o único menino ali que não era americano nato, não falava com o sotaque esperado e não tinha crescido jogando beisebol, basquete e futebol americano. Pela primeira vez, eu estava privado do ambiente lingüístico de que dependia para ter uma alternativa às atenções hostis dos anglo-saxões cujo idioma não era o meu e que não hesitavam em deixar claro que eu pertencia a uma raça inferior e, de algum modo, condenada. Quem enfrentou os obstáculos cotidianos da rotina colonial saberá do que estou falando. Uma das primeiras coisas que fiz foi procurar um professor de origem egípcia cujo nome me fora dado por um amigo de minha família no Cairo. “Converse com Ned e ele fará você se sentir em casa no mesmo instante”, disse nosso amigo. Numa ensolarada tarde de sábado, me arrastei até a casa de Ned e me apresentei ao homem magro, rijo e de pele escura que era também o professor de tênis e lhe disse que Freddie Maalouf me pedira para procurá-lo. “Ah, sim”, disse o treinador de tênis com certa frieza. “Freddie.” Eu passei imediatamente a falar em árabe, mas Ned levantou a mão para me interromper. “Não, meu irmão, nada de árabe aqui. Eu deixei tudo isso para trás quando vim para a América.” E isso foi o fim daquela história.

Uma vez que eu recebera um bom ensino no Victoria College, me saí bem no internato, conseguindo o primeiro ou segundo lugar numa classe de cerca de 160 alunos. Mas também acharam que eu tinha deficiências morais, como se houvesse alguma coisa misteriosamente não muito certa em mim. Quando me formei, por exemplo, não me escolheram para orador da turma porque eu não era digno da honra — um julgamento moral que desde então achei difícil entender ou perdoar. Embora eu visitasse o Oriente Médio nas férias (minha família continuou a morar lá, mudando do Egito para o Líbano em 1963), comecei a me tornar uma pessoa totalmente ocidental. Na faculdade e na pós-graduação estudei literatura, música e filosofia, mas nada disso tinha relação com minha própria tradição. Nos anos 50 e começo dos 60, os estudantes do mundo árabe eram quase sempre cientistas, médicos e engenheiros ou especialistas em Oriente Médio que obtinham diplomas de lugares como Princeton e Harvard e que depois, em sua maioria, voltavam para seus países a fim de ensinar nas universidades. Por algum motivo, eu tinha muito pouco em comum com eles, e isso aumentou naturalmente meu isolamento quanto à minha língua e a meu passado. No outono de 1963, quando vim para Nova York a fim de lecionar em Columbia, era visto como alguém que tinha um passado árabe exótico, mas irrelevante; com efeito, lembro que a maioria de meus amigos e colegas não usava a palavra “árabe”, muito menos “palestino” para se referir a mim, preferindo o mais fácil e vago “do Oriente Médio”, termo que não ofendia ninguém. Um amigo que já lecionava em Columbia me contou mais tarde que, quando fui contratado, me descreveram no departamento como sendo um judeu de Alexandria! Lembro-me do sentimento de ser aceito e até cortejado por colegas mais velhos da universidade que, com uma ou duas exceções, me consideravam um jovem estudioso promissor, até muito promissor, de “nossa” cultura. Uma vez que naquela época não havia atividade política centrada no mundo árabe, minhas preocupações de ensino e pesquisa — que eram suficientemente canônicas, embora levemente heterodoxas — me mantiveram dentro dos limites.

A grande mudança aconteceu com a guerra árabe-israelense de 1967, que coincidiu com um período de intenso ativismo político no campus relacionado com os direitos civis e a guerra no Vietnã. Naturalmente, me envolvi em ambas as frentes, mas, para mim, havia a dificuldade adicional de tentar chamar a atenção para a causa palestina. Depois da derrota dos árabes, houve um renascimento vigoroso do nacionalismo palestino, representado pelo movimento de resistência localizado principalmente na Jordânia e nos territórios recentemente ocupados por Israel. Vários amigos e membros de minha família haviam entrado para o movimento, e, quando visitei a Jordânia, em 1968, 1969 e 1970, me vi entre vários contemporâneos de idéias similares. Mas nos Estados Unidos minhas posições políticas eram rejeitadas — com algumas exceções notáveis — tanto pelos ativistas contra guerra como pelos seguidores de Martin Luther King. Pela primeira vez, senti-me realmente dividido entre as novas pressões afirmativas de meu passado e minha língua e as complicadas exigências de uma situação nos Estados Unidos que ignorava — na verdade, desprezava — o que eu tinha a dizer sobre a busca por justiça para a Palestina, que era considerada anti-semita e parecida com o nazismo.

Em 1972, tirei férias sabáticas e aproveitei a oportunidade para passar um ano em Beirute, onde gastei a maior parte de meu tempo estudando filologia e literatura árabe, algo que nunca fizera, pelo menos não tão intensamente. O que me levou a isso foi o sentimento de que deixara crescer muito a disparidade entre minha identidade adquirida e a cultura em que nascera e da qual fora afastado. Em outras palavras, sentia uma necessidade existencial e política de harmonizar as duas, pois, quando o debate sobre o que antes era chamado de “Oriente Médio” se transformou numa discussão entre israelenses e palestinos, fui chamado a participar, por ironia, devido tanto à minha capacidade de falar como professor e intelectual americano como à contingência de eu ter nascido onde nasci. Na metade dos anos 70, eu estava na rica mas nada invejável posição de falar por duas clientelas diametralmente opostas, uma ocidental, outra árabe.

Pelo que me lembro, sempre me permiti ficar de fora do abrigo que protegia ou acomodava meus contemporâneos. Não posso dizer se isso se dava porque eu era de fato diferente, concretamente um forasteiro, ou porque era um solitário por temperamento, mas o fato é que, embora cumprisse todas as rotinas institucionais porque julgava que devia fazê-lo, algo em mim resistia a elas. Não sei o que me continha, mas, mesmo quando estava na mais profunda solidão ou fora de sincronia com todo o mundo, eu mantinha firmemente esse afastamento privado. Eu talvez tenha invejado amigos cuja língua era uma ou outra, ou que tivessem vivido no mesmo lugar a vida inteira, ou que tivessem se dado bem com as maneiras aceitas, ou que realmente pertencessem a um lugar, mas não lembro jamais ter pensado que qualquer dessas coisas me fosse possível. Não que eu me considerasse especial; o fato é que não me enquadrava nas situações em que me envolvia e não me incomodava muito aceitar esse estado de coisas. Além disso, sempre fui atraído por autodidatas obstinados e por vários tipos de desajustados intelectuais. Em parte, era a desconsideração para com a perspectiva peculiar deles que me atraía em escritores e artistas como Conrad, Vico, Adorno, Swift, Adonis, Hopkins, Auerbach, Glenn Gould, que tinham um estilo ou uma maneira de pensar altamente individualista e impossível de imitar, para quem o meio de expressão, fosse música ou palavras, era carregado de excentricidade, muito trabalhado, consciente de si mesmo no mais alto grau. O que me impressionava neles não era o mero fato de sua auto-invenção, mas que a empreitada se localizava de modo deliberado e aborrecido dentro de uma história geral que eles haviam escavado ab origine.

Depois de assumir gradualmente o tom profissional de um professor universitário americano como maneira de submergir meu passado difícil e inassimilável, comecei a pensar e escrever de modo contrapontístico, usando as metades díspares de minha experiência, de árabe e americano, para trabalhar com ambas e, ao mesmo tempo, uma contra a outra. Essa tendência começou a tomar forma após 1967, e, embora fosse difícil, era também estimulante. O que provocou a mudança em meu sentimento para comigo mesmo e com a língua que eu estava usando foi a percepção de que, ao me adaptar às exigências da vida no melting pot norte-americano, fui forçado a aceitar o princípio da anulação sobre o qual Adorno fala de maneira muito perspicaz em Minima moralia:

A vida passada dos emigrados é, como sabemos, anulada. Antes, era a ordem de prisão, hoje é a experiência intelectual que é declarada não-transferível e não-naturalizável. Qualquer coisa que não é reificada, que não pode ser contada e medida, deixa de existir. Porém, não satisfeita com isso, a reificação espalha-se para seu próprio oposto, a vida que não pode ser diretamente atualizada; qualquer coisa que vive meramente de pensamento e lembrança. Para isso, inventou-se uma rubrica especial. Chama-se “antecedentes” e aparece na ficha como um apêndice, depois de sexo, idade e profissão. Para completar sua violação, a vida é arrastada no automóvel triunfal dos estatísticos unidos e até o passado não está mais a salvo do presente, cuja recordação o condena pela segunda vez ao esquecimento.

Para minha família e para mim, a catástrofe de 1948 (eu tinha então doze anos) foi vivida de modo apolítico. Durante duas décadas, após a expropriação e a expulsão de seus lares e seu território, a maioria dos palestinos foi obrigada a vivercomo refugiada, tendo de se reconciliar não com o passado, que estava perdido, mas com o presente. Não quero sugerir que minha vida de escolar, que aprendia a falar e cunhar uma língua que me permitiu viver como cidadão dos Estados Unidos, tenha acarretado algo parecido com o sofrimento da primeira geração de refugiados palestinos, espalhados pelo mundo árabe, onde leis odiosas lhes tornavam impossível a naturalização, o trabalho e a viagem e os obrigavam a se recadastrar mensalmente na polícia; muitos foram forçados a viver em campos estarrecedores como os de Sabra e Shatila, em Beirute, cenários de massacres 34 anos depois. Porém, o que experienciei foi a supressão de uma história enquanto todos ao meu redor comemoravam a vitória de Israel, de sua terrível e veloz espada — como Barbara Tuchman disse de forma magistral —, às custas dos habitantes originais da Palestina, que se viram forçados a provar repetidamente que haviam existido no passado. “Não existem palestinos”, disse Golda Meir em 1969, e isso estabeleceu para mim e muitos outros o desafio algo absurdo de refutá-la, de começar a articular uma história de perda e expropriação que tinha de ser deslindada, minuto a minuto, palavra por palavra, polegada por polegada, da verdadeira história da criação, da existência e das realizações de Israel. Eu trabalhava quase que inteiramente com elementos negativos, com a não-existência, a não-história que eu precisava de algum modo tornar visível apesar das oclusões, representações erradas e negações.

Inevitavelmente, isso me conduziu a reconsiderar as noções de escrita e linguagem, que até então eu havia tratado como se fossem animadas por um determinado texto ou tema — a história do romance, por exemplo, ou a idéia de narrativa como um tema na prosa de ficção. O que passou a me preocupar foi como o tema se constituía, de que modo uma linguagem podia se formar — a escrita como uma construção de realidades que serviam instrumentalmente a um ou outro propósito. Tratava-se do mundo do poder e das representações, um mundo que passava a existir graças a uma série de decisões tomadas por escritores, políticos, filósofos para sugerir ou obscurecer uma realidade e, ao mesmo tempo, apagar as outras. A primeira dessas tentativas que fiz foi um ensaio curto que escrevi em 1968 intitulado “O árabe retratado”, no qual eu descrevia a imagem do árabe que fora manipulada no jornalismo e em alguns textos eruditos de forma a evitar qualquer discussão da história e da experiência como eu e muitos outros árabes havíamos vivido. Escrevi também um longo estudo da prosa de ficção árabe após 1948 em que mostrava o aspecto fragmentário, em combate, da linha narrativa.

Nos anos 70, dei meus cursos de literatura européia e americana em Columbia e outros lugares e, pouco a pouco, entrei nos mundos político e discursivo da política do Oriente Médio e internacional. Vale a pena mencionar aqui que, durante meus quarenta anos de professor, jamais lecionei outra coisa que não pertencesse ao cânone ocidental e, com certeza, nada sobre o Oriente Médio. Há muito tempo, eu tinha a ambição de dar um curso sobre literatura árabe moderna, mas não cheguei lá, e, nos últimos trinta anos, estive planejando um seminário sobre Vico e Ibn Khaldun (este, um grande historiógrafo e filósofo da história que viveu no século XIV). Mas meu sentimento de identidade como professor de literatura ocidental excluía esse outro aspecto de minhas atividades, ao menos no que se referia à sala de aula. Por ironia, o fato de eu continuar a escrever e lecionar sobre minha matéria deu aos patrocinadores e anfitriões de universidades que me convidavam a dar conferências uma desculpa para ignorar minha atividade política embaraçadora e pedir especificamente que eu tratasse de um tópico literário. E havia aqueles que falavam de meus esforços a favor de “meu povo”, sem jamais mencionar o nome desse povo. “Palestino” ainda era uma palavra a ser evitada.

Até mesmo no mundo árabe a Palestina causou-me muito opróbrio. Em 1985, quando a Liga de Defesa Judaica chamou-me de nazista, puseram fogo em meu escritório na universidade e eu e minha família recebemos inúmeras ameaças de morte, mas quando Anwar Sadat e Yasser Arafat me indicaram para ser o representante palestino nas conversações de paz (sem jamais me consultar) e não consegui sair de meu apartamento, tão grande era o assédio da imprensa, me tornei objeto da hostilidade nacionalista da extrema esquerda porque era considerado liberal demais na questão da Palestina e na idéia da coexistência entre judeus israelenses e árabes palestinos. Tenho sido consistente em minha crença de que não existe opção militar para ambos os lados e que somente um processo de reconciliação pacífica e justiça pelo que os palestinos tiveram de suportar com a expropriação e a ocupação militar poderá funcionar. Sempre critiquei também o uso de slogans e clichês como “luta armada” e o aventureirismo revolucionário que provocava mortes inocentes e não fazia nada para o progresso político da causa palestina. “A situação difícil da vida privada hoje é mostrada por sua arena”, escreveu Adorno. “Habitar, em seu sentido próprio, é impossível agora. As residências tradicionais em que crescemos se tornaram intoleráveis: cada traço de conforto nelas é pago com uma traição do conhecimento; cada vestígio de abrigo, com o pacto bolorento dos interesses familiares.” E de forma ainda mais inflexível ele continua:

A casa acabou [...] A melhor conduta, diante de tudo isso, ainda parece ser a de não-comprometimento, a de suspensão: levar uma vida privada, na medida em que a ordem social e as nossas próprias necessidades não tolerarão outra coisa, mas não atribuir peso a ela como algo ainda socialmente substancial e individualmente apropriado. “É até parte de minha boa sorte não ser proprietário de uma casa”, já escreveu Nietzsche em A gaia ciência. Hoje, devemos acrescentar: faz parte da moralidade não estar em casa na própria casa. 

Quanto a mim, não consegui viver uma vida sem compromisso ou suspensa: não hesitei em declarar minha filiação a uma causa extremamente impopular. Por outro lado, sempre me reservei o direito de ser crítico, até mesmo quando isso entrava em conflito com a solidariedade ou com o que outros esperavam em nome da lealdade nacional. Há um desconforto claro, quase palpável, nessa posição, especialmente tendo em vista a irreconciliabilidade dos dois públicos e das duas vidas que eles exigiram.

O reflexo disso na minha escrita foi uma tentativa de conseguir uma maior transparência, libertar-me do jargão acadêmico e não me esconder atrás de eufemismos e circunlóquios quando se tratava de questões difíceis. Dei o nome de “mundanidade” a essa voz, com o que não me refiro ao savoir faire do homem elegante, mas a uma atitude informada e destemida no sentido de explorar o mundo em que vivemos. Palavras cognatas, derivadas de Vico e Auerbach, foram “secular” e “secularismo”, aplicadas a matérias “terrenas”; nessas palavras — que derivam da tradição materialista italiana que vai de Lucrécio a Gramsci e Lampedusa — encontrei um corretivo importante para a tradição idealista germânica de sintetizar o antitético, tal como encontramos em Hegel, Marx, Lukács e Habermas. “Terreno” conota não somente este mundo histórico feito por homens e mulheres, em vez de por Deus ou pelo “gênio da nação”, como o chamou Herder, mas sugere ainda uma base territorial para minha argumentação e linguagem, que procedem de uma tentativa de compreender as geografias imaginativas criadas e depois impostas pelo poder a terras e povos distantes. Em Orientalismo e em Cultura e imperialismo, e depois nos cinco ou seis livros explicitamente políticos sobre a Palestina e o mundo islâmico que escrevi na mesma época, senti que estava moldando um eu que revelava para a platéia ocidental coisas que até então estavam escondidas ou não haviam sido discutidas. Assim, ao falar sobre o Oriente, que até aquele momento se acreditava ser um simples fato da natureza, tentei desvelar a obsessão geográfica antiga e muito variada por um mundo distante, amiúde inacessível, que ajudou a Europa a se definir como o oposto. Da mesma forma, eu acreditava que a Palestina, um território apagado no processo de construção de outra sociedade, poderia ser restaurada como um ato de resistência política à injustiça e ao esquecimento.

Às vezes, eu notava que me tornara uma criatura peculiar para muitas pessoas e até para alguns amigos, que pressupunham que ser palestino era equivalente a algo mitológico como um unicórnio ou uma variante sem futuro do ser humano. Uma psicóloga de Boston, especializada em solução de conflitos e que eu conhecera em vários seminários que envolviam palestinos e israelenses, certa vez me telefonou de Greenwich Village e me perguntou se podia me fazer uma visita. Ao entrar em minha casa, olhou incrédula para o piano — “ah, você realmente toca piano”, disse ela, com um traço de descrença na voz —, deu a volta e começou a sair. Perguntei-lhe se gostaria de uma xícara de chá antes de partir (afinal, ponderei eu, você veio de longe para uma visita tão curta), mas ela disse que não tinha tempo. “Só vim para ver como você vivia”, explicou sem um pingo de ironia. Em outra ocasião, um editor de outra cidade recusou-se a assinar meu contrato enquanto eu não almoçasse com ele. Quando perguntei a sua assistente por que era tão importante o almoço, ela me disse que o grande homem queria ver como eu me saía à mesa. Felizmente, nenhuma dessas experiências me afetou por muito tempo: eu estava sempre com pressa para ir dar aula ou cumprir um prazo e evitei deliberadamente o autoquestionamento que me teria levado a uma depressão terminal. De qualquer modo, a intifada palestina que irrompeu em dezembro de 1987 confirmou a existência de nosso povo de uma forma mais dramática e convincente do que qualquer coisa que eu pudesse dizer. Porém, não demorou para que eu me visse transformado numa figura simbólica, arrastado por umas poucas centenas de palavras escritas ou dez segundos de fala para ser testemunha “do que os palestinos estão dizendo”, mas decidi escapar desse papel, em especial devido às minhas discordâncias com a liderança da OLP a partir do final dos anos 80.

Não tenho certeza se devo chamar isso de auto-invenção perpétua ou inquietação constante. Seja o que for, aprendi há muito tempo a prezá-la. A identidade tem a ver com sondar um sujeito tanto quanto se possa imaginar. Nada é menos interessante do que o auto-estudo narcisista que hoje, em muitos lugares, passa por ser política da identidade, ou estudos étnicos, ou afirmações de raízes, orgulho cultural, nacionalismo militante, e assim por diante. Temos de defender povos e identidades ameaçados de extermínio ou subordinados porque são considerados inferiores, mas isso é muito diferente de engrandecer um passado inventado por motivos atuais. Os intelectuais americanos têm a obrigação para com nosso país de lutar contra o antiintelectualismo grosseiro, a fanfarronice, a injustiça e o provincianismo que desfigura sua carreira de última superpotência. É muito mais desafiador transformar-se em algo diferente do que insistir nas virtudes de ser americano no sentido ideológico. Por ter perdido um país sem esperança imediata de recuperá-lo, não encontro muito conforto em cultivar um novo jardim ou procurar alguma outra associação para me filiar. Aprendi com Adorno que a reconciliação sob coerção é covarde e inautêntica: mais vale uma causa perdida do que uma triunfante; é mais satisfatório o sentimento do provisório e contingente — uma casa alugada, por exemplo — do que a solidez proprietária da posse permanente. É por isso que dândis como Oscar Wilde e Baudelaire parecem-me intrinsecamente mais interessantes do que louvadores da virtude estabelecida, como Wordsworth ou Carlyle.

Nos últimos cinco anos, venho escrevendo duas colunas por mês para a imprensa árabe. Apesar de minha posição política extremamente anti-religiosa, sou freqüentemente descrito no mundo islâmico como defensor do islã e considerado um de seus partidários por alguns dos partidos islâmicos. Nada poderia estar mais longe da verdade, assim como dizer que fui um apologista do terrorismo. O aspecto prismático do que escrevemos quando não pertencemos inteiramente a qualquer campo, ou não somos militantes integrais de qualquer causa, é difícil de administrar, mas nisso também aceitei a irreconciliabilidade dos vários aspectos conflitantes — ou pelo menos harmonizados de modo incompleto — daquilo que, cumulativamente, parece que defendi. Uma expressão de Günter Grass descreve bem a situação: “intelectual sem mandato”. Uma situação complicada surgiu no final de 1993 quando, depois de parecer ser a voz aprovada da luta palestina, escrevi de maneira cada vez mais cortante sobre minhas discordâncias com Arafat e sua turma. Fui imediatamente rotulado de “inimigo da paz” porque tive a falta de tato de descrever o tratado de Oslo como profundamente falho. Agora que há todos os motivos para uma pausa, perguntam-me periodicamente como me sinto por ter razão, mas fiquei mais surpreso do que todos: profecias não fazem parte do meu arsenal.

Nos últimos três ou quatro anos, venho tentando escrever uma memória do começo de minha vida — ou seja, de minha vida pré-política — em larga medida porque penso ser uma história que vale a pena resgatar e comemorar, tendo em vista que os três lugares em que cresci deixaram de existir. A Palestina é agora Israel; o Líbano, depois de vinte anos de guerra civil, guarda pouco do lugar entediante onde eu passava meus verões trancado em Dhour el Shweir, e o Egito colonial e monárquico desapareceu em 1952. Minhas lembranças daqueles dias e lugares permanece extremamente vívida, cheia de pequenos detalhes que parecem ter sido preservados por mim entre as capas de um livro, repleta também de sentimentos não expressos gerados por situações ou eventos que ocorreram há décadas, mas que dão a impressão de esperar para serem articulados agora. Conrad diz, em Nostromo, que em cada coração espreita o desejo de escrever de uma vez por todas e para sempre um relato verdadeiro do que aconteceu, e isso foi certamente o que me levou a escrever minha memória, assim como me vi escrevendo uma carta para minha falecida mãe, por desejo de uma vez mais comunicar algo terrivelmente importante para uma presença primordial em minha vida. “Em seu texto”, diz Adorno,

o escritor ergue uma casa [...] Para um homem que não tem mais uma terra natal, escrever torna-se um lugar para viver [...] [Contudo] a exigência de que nos endureçamos contra a autocomiseração implica a necessidade técnica de conter qualquer enfraquecimento da tensão intelectual com a máxima vigilância e eliminar tudo o que comece a se incrustar na obra ou deixar-se vaguear ociosamente, o que pode, em um estágio inicial, ter servido, como uma conversa fiada, para gerar uma atmosfera cálida que conduz ao crescimento, mas que agora é deixado para trás, raso e cediço. No final, o escritor não tem permissão nem para viver em sua escrita.

Conseguimos, no máximo, uma satisfação provisória, que é logo atacada de emboscada pela dúvida, e uma necessidade de reescrever e refazer que torna o texto inabitável. Melhor isso, no entanto, do que o sono da satisfação consigo mesmo e o ponto final da morte.

Sobre o autor

Edward Said, who died in 2003, first contributed to the LRB in 1981.

Entre mundos

Edward Said dá sentido à sua vida


Vol. 20 No. 9 · 7 May 1998

No primeiro livro que escrevi, Joseph Conrad and the Fiction of Autobiography, publicado há mais de trinta anos, e depois num ensaio intitulado "Reflexões sobre o Exílio", publicado em 1984, usei Conrad como exemplo de alguém cuja vida e obra pareciam tipificar o destino do viajante que se torna um escritor consumado numa língua adquirida, mas que nunca consegue se livrar do seu sentimento de alienação do seu novo – isto é, adquirido – e, no caso bastante especial de Conrad, admirado lar. Todos os seus amigos diziam de Conrad que ele estava muito satisfeito com a ideia de ser inglês, embora nunca tenha perdido o seu forte sotaque polonês e o seu temperamento bastante peculiar, considerado muito pouco inglês. No entanto, no momento em que se aprofunda na sua escrita, a aura de deslocamento, instabilidade e estranheza é inconfundível. Ninguém poderia representar o destino da perdição e da desorientação melhor do que ele, e ninguém foi mais irônico sobre o esforço de tentar substituir essa condição por novos arranjos e acomodações – o que invariavelmente nos atraía para novas armadilhas, como aquelas que Lord Jim encontra ao recomeçar a vida em sua pequena ilha. Marlow adentra o coração das trevas para descobrir que Kurtz não só estava lá antes dele, como também é incapaz de lhe contar toda a verdade; de ​​modo que, ao narrar suas próprias experiências, Marlow não consegue ser tão exato quanto gostaria, e acaba produzindo aproximações e até mesmo falsidades das quais tanto ele quanto seus ouvintes parecem bastante cientes.

Somente bem depois de sua morte os críticos de Conrad tentaram reconstruir o que se convencionou chamar de sua origem polonesa, da qual muito pouco havia chegado diretamente à sua ficção. Mas o significado um tanto evasivo de sua escrita não é tão facilmente fornecido, pois mesmo que descubramos muito sobre suas experiências, amigos e parentes poloneses, essa informação não resolverá por si só o cerne de inquietação e desconforto que sua obra incansavelmente ronda. Eventualmente, percebemos que a obra é, na verdade, constituída pela experiência de exílio ou alienação que jamais pode ser retificada. Não importa quão perfeitamente ele seja capaz de expressar algo, o resultado sempre lhe parece uma aproximação do que ele queria dizer, e que foi dito tarde demais, além do ponto em que dizê-lo poderia ter sido útil. "Amy Foster", a mais desoladora de suas histórias, é sobre um jovem da Europa Oriental, naufragado na costa inglesa a caminho da América, que acaba como marido da afetuosa, porém inarticulada, Amy Foster. O homem permanece estrangeiro, nunca aprende a língua e, mesmo depois de ter um filho com Amy, não consegue se tornar parte da família que criou com ela. Quando ele está à beira da morte e balbucia delirantemente em uma língua estranha, Amy arranca o filho dele, abandonando-o à sua tristeza final. Como muitas das ficções de Conrad, a história é narrada por uma figura simpática, um médico que conhece o casal, mas mesmo ele não consegue redimir o isolamento do jovem, embora Conrad, provocativamente, faça o leitor sentir que talvez tivesse conseguido. É difícil ler "Amy Foster" sem pensar que Conrad deve ter temido morrer de uma morte semelhante, inconsolável, sozinho, falando sem parar em uma língua que ninguém conseguia entender.

A primeira coisa a reconhecer é a perda do lar e da língua no novo ambiente, uma perda que Conrad tem a severidade de retratar como irredimível, implacavelmente angustiante, crua, intratável, sempre aguda – e é por isso que, ao longo dos anos, me vi lendo e escrevendo sobre Conrad como um cantus firmus, um contraponto constante a muitas coisas que já vivenciei. Durante anos, pareceu-me estar repassando o mesmo tipo de coisa no trabalho que fazia, mas sempre por meio dos escritos de outras pessoas. Foi somente no início do outono de 1991, quando um diagnóstico médico sombrio me revelou repentinamente a mortalidade que eu deveria ter conhecido antes, que me vi tentando dar sentido à minha própria vida, enquanto seu fim parecia assustadoramente mais próximo. Poucos meses depois, ainda tentando assimilar minha nova condição, me vi redigindo uma longa carta explicativa para minha mãe, que já havia falecido há quase dois anos, uma carta que inaugurava uma tentativa tardia de impor uma narrativa a uma vida que eu havia deixado mais ou menos à própria sorte, desorganizada, dispersa, descentrada. Eu tivera uma carreira razoavelmente decente na universidade, escrevera bastante, adquirira uma reputação nada invejável (como o "professor do terror") por meus escritos, palestras e por ser ativo em questões palestinas e, em geral, do Oriente Médio, islâmicas e anti-imperialistas, mas raramente parava para juntar tudo. Eu era um trabalhador compulsivo, detestava férias e quase nunca as tirava, e fazia o que fazia sem me preocupar muito (ou nem um pouco) com questões como bloqueio criativo, depressão ou seca.
De repente, então, me vi paralisado, com algum tempo disponível, embora não muito, para analisar uma vida cujas excentricidades eu havia aceitado como se fossem fatos da natureza. Mais uma vez, reconheci que Conrad já estivera lá antes de mim – exceto que Conrad era um europeu que deixou sua Polônia natal e se tornou inglês, então a mudança para ele foi mais ou menos dentro do mesmo mundo. Nasci em Jerusalém e passei a maior parte dos meus anos de formação lá e, depois de 1948, quando toda a minha família se tornou refugiada, no Egito. Toda a minha educação inicial, no entanto, foi em escolas coloniais de elite, escolas públicas inglesas projetadas pelos britânicos para formar uma geração de árabes com laços naturais com a Grã-Bretanha. A última que frequentei antes de deixar o Oriente Médio para ir para os Estados Unidos foi o Victoria College, no Cairo, uma escola criada para educar os árabes e levantinos da classe dominante que assumiriam o poder após a saída dos britânicos. Meus contemporâneos e colegas de classe incluíam o Rei Hussein da Jordânia, vários garotos jordanianos, egípcios, sírios e sauditas que se tornariam ministros, primeiros-ministros e empresários de destaque, bem como figuras glamorosas como Michel Shalhoub, chefe de escola e principal algoz quando eu era um garoto relativamente novo, que todos já viram na tela como Omar Sharif.

No momento em que alguém se tornava aluno da VC, recebia o manual da escola, uma série de regulamentos que regiam todos os aspectos da vida escolar – o tipo de uniforme que deveríamos usar, o equipamento necessário para a prática de esportes, as datas das férias escolares, os horários dos ônibus e assim por diante. Mas a primeira regra da escola, estampada na página inicial do manual, dizia: "Inglês é a língua da escola; alunos pegos falando qualquer outra língua serão punidos". No entanto, não havia nenhum falante nativo de inglês entre os alunos. Enquanto os professores eram todos britânicos, nós éramos um grupo heterogêneo de árabes de vários tipos, armênios, gregos, italianos, judeus e turcos, cada um dos quais tinha uma língua nativa que a escola havia explicitamente proibido. No entanto, todos, ou quase todos, falávamos árabe – muitos falavam árabe e francês – e, assim, pudemos nos refugiar em uma língua comum, desafiando o que percebíamos como uma restrição colonial injusta. O poder imperial britânico estava chegando ao fim imediatamente após a Segunda Guerra Mundial, e esse fato não nos passou despercebido, embora eu não me lembre de nenhum aluno da minha geração que fosse capaz de expressar algo tão definitivo em palavras.

Para mim, havia uma complicação adicional: embora meus pais fossem palestinos – minha mãe de Nazaré, meu pai de Jerusalém –, meu pai adquiriu a cidadania americana durante a Primeira Guerra Mundial, quando serviu na Força Aérea Britânica sob o comando de Pershing, na França. Ele havia deixado a Palestina, então uma província otomana, em 1911, aos 16 anos, para escapar do recrutamento para lutar na Bulgária. Em vez disso, ele foi para os EUA, estudou e trabalhou lá por alguns anos, depois retornou à Palestina em 1919 para abrir um negócio com seu primo. Além disso, com um sobrenome excepcionalmente árabe como Said, conectado a um primeiro nome improvávelmente britânico (minha mãe admirava muito o Príncipe de Gales em 1935, ano do meu nascimento), fui um aluno desconfortavelmente anômalo durante todos os meus primeiros anos: um palestino indo para a escola no Egito, com um primeiro nome inglês, um passaporte americano e nenhuma identidade definida. Para piorar a situação, o árabe, minha língua nativa, e o inglês, minha língua da escola, eram inextricavelmente misturados: nunca soube qual era minha primeira língua e não me senti totalmente em casa em nenhuma delas, embora sonhe com ambas. Cada vez que falo uma frase em inglês, me pego repetindo-a em árabe, e vice-versa.

Tudo isso passou pela minha cabeça naqueles meses após meu diagnóstico me revelar a necessidade de pensar em coisas definitivas. Mas eu o fiz de uma maneira que, para mim, era característica. Como autor de um livro chamado Beginnings, me vi atraído pelos meus primeiros dias de menino em Jerusalém, Cairo e Dhour el Shweir, a aldeia montanhosa libanesa que eu detestava, mas onde, por anos e anos, meu pai nos levou para passar os verões. Eu me vi revivendo os dilemas narrativos dos meus primeiros anos, minha sensação de dúvida e de estar fora de lugar, de sempre me sentir no canto errado, em um lugar que parecia estar escapando de mim justamente quando eu tentava defini-lo ou descrevê-lo. Por que, lembro-me de me perguntar, eu não poderia ter tido uma origem simples, ser totalmente egípcio, ou totalmente outra coisa, e não ter tido que enfrentar os rigores diários de perguntas que me levavam de volta a palavras que pareciam não ter uma origem estável? A pior parte da minha situação, que o tempo só exacerbou, foi a relação conflituosa entre o inglês e o árabe, algo com que Conrad não teve que lidar desde que sua passagem do polonês para o inglês via francês foi efetuada inteiramente dentro da Europa. Toda a minha educação foi anglocêntrica, tanto que eu sabia muito mais sobre história e geografia britânica e até indiana (disciplinas obrigatórias) do que sobre história e geografia do mundo árabe. Mas, embora ensinado a acreditar e pensar como um estudante inglês, também fui treinado para entender que eu era um estrangeiro, um Outro Não Europeu, educado por meus superiores para conhecer minha posição e não aspirar a ser britânico. A linha que nos separava deles era linguística, cultural, racial e étnica. Não tornou as coisas mais fáceis para mim ter nascido, batizado e crismado na Igreja Anglicana, onde o canto de hinos belicosos como "Onward Christian Soldiers" e "From Greenland's Icy Mountains" me fez, na prática, desempenhar o papel de agressor e agredido ao mesmo tempo. Ser ao mesmo tempo um Wog e um Anglicano era estar em estado de guerra civil permanente.

Na primavera de 1951, fui expulso do Victoria College, expulso por ser um encrenqueiro, o que significava que eu era mais visível e mais facilmente capturado do que os outros rapazes nas escaramuças diárias entre o Sr. Griffith, o Sr. Hill, o Sr. Lowe, o Sr. Brown, o Sr. Maundrell, o Sr. Gatley e todos os outros professores britânicos, de um lado, e nós, os rapazes da escola, do outro. Tínhamos todos, subliminarmente, consciência de que a velha ordem árabe estava se desintegrando: a Palestina havia caído, o Egito cambaleava sob a corrupção maciça do Rei Farouk e sua corte (a revolução que levou Gamal Abdel Nasser e seus Oficiais Livres ao poder ocorreria em julho de 1952), a Síria passava por uma série vertiginosa de golpes militares, o Irã, cujo Xá era então casado com a irmã de Farouk, teve sua primeira grande crise em 1951, e assim por diante. As perspectivas para pessoas desenraizadas como nós eram tão incertas que meu pai decidiu que seria melhor me mandar para o mais longe possível — na verdade, para uma escola austera e puritana no canto noroeste de Massachusetts.

O dia, no início de setembro de 1951, em que meus pais me deixaram na entrada daquela escola e partiram imediatamente para o Oriente Médio foi provavelmente o mais miserável da minha vida. Não só a atmosfera da escola era rígida e explicitamente moralista, como eu parecia ser o único garoto ali que não era americano nativo, que não falava com o sotaque necessário e que não tinha crescido com beisebol, basquete e futebol americano. Pela primeira vez, fui privado do ambiente linguístico do qual dependia como alternativa às atenções hostis dos anglo-saxões, cuja língua não era a minha, e que não faziam segredo de que eu pertencia a uma raça inferior ou, de alguma forma, reprovada. Qualquer pessoa que tenha vivido os obstáculos cotidianos da rotina colonial sabe do que estou falando. Uma das primeiras coisas que fiz foi procurar um professor de origem egípcia cujo nome me fora dado por um amigo da família no Cairo. "Fale com o Ned", disse nosso amigo, "e ele fará você se sentir em casa imediatamente." Em uma tarde ensolarada de sábado, caminhei até a casa do Ned, apresentei-me ao homem magro e moreno que também era o treinador de tênis e contei a ele que Freddie Maalouf, do Cairo, havia me pedido para procurá-lo. "Ah, sim", disse o treinador de tênis, friamente, "Freddie." Imediatamente mudei para o árabe, mas Ned levantou a mão para me interromper. "Não, irmão, nada de árabe aqui. Deixei tudo isso para trás quando vim para a América." E foi isso.

Como eu tinha sido bem treinado no Victoria College, me saí bem no meu internato em Massachusetts, alcançando a primeira ou a segunda colocação em uma turma de cerca de cento e sessenta alunos. Mas também me consideraram moralmente deficiente, como se houvesse algo misteriosamente errado comigo. Quando me formei, por exemplo, o título de orador da turma ou orador da turma foi-me retirado sob a alegação de que eu não era apto para a honraria – um julgamento moral que desde então tenho dificuldade em compreender ou perdoar. Embora eu voltasse ao Oriente Médio nas férias (minha família continuou morando lá, mudando-se do Egito para o Líbano em 1963), acabei me tornando uma pessoa inteiramente ocidental; tanto na faculdade quanto na pós-graduação, estudei literatura, música e filosofia, mas nada disso tinha a ver com minha própria tradição. Nos anos 1950 e início dos anos 1960, os estudantes do mundo árabe eram quase invariavelmente cientistas, médicos e engenheiros, ou especialistas em Oriente Médio, obtendo diplomas em instituições como Princeton e Harvard e, em seguida, em sua maioria, retornando aos seus países para se tornarem professores em universidades locais. Eu tinha muito pouco contato com eles, por uma razão ou outra, e isso naturalmente aumentou meu isolamento da minha própria língua e formação. Quando cheguei a Nova York para lecionar na Columbia, no outono de 1963, eu era considerado como tendo uma origem árabe exótica, mas um tanto irrelevante – aliás, lembro-me de que era mais fácil para a maioria dos meus amigos e colegas não usar a palavra "árabe", e certamente não "palestino", em deferência à palavra muito mais fácil e vaga "Oriente Médio", um termo que não ofendia ninguém. Um amigo que já lecionava na Columbia me contou mais tarde que, quando fui contratado, fui descrito para o departamento como um judeu alexandrino! Lembro-me da sensação de ser aceito, até mesmo cortejado, por colegas mais velhos da Columbia, que, com uma ou duas exceções, me viam como um jovem acadêmico promissor, até mesmo muito promissor, da "nossa" cultura. Como não havia atividade política na época centrada no mundo árabe, descobri que minhas preocupações com meu ensino e pesquisa, que eram canônicas, embora um tanto heterodoxas, me mantinham dentro dos limites.

A grande mudança veio com a guerra árabe-israelense de 1967, que coincidiu com um período de intenso ativismo político no campus em relação aos direitos civis e à Guerra do Vietnã. Envolvi-me naturalmente em ambas as frentes, mas, para mim, havia a dificuldade adicional de tentar chamar a atenção para a causa palestina. Após a derrota árabe, houve um vigoroso ressurgimento do nacionalismo palestino, materializado no movimento de resistência localizado principalmente na Jordânia e nos territórios recém-ocupados. Vários amigos e familiares aderiram ao movimento e, quando visitei a Jordânia em 1968, 69 e 70, encontrei-me entre vários contemporâneos com ideias semelhantes. Nos EUA, no entanto, minhas posições políticas foram rejeitadas – com algumas exceções notáveis ​​– tanto por ativistas antiguerra quanto por apoiadores de Martin Luther King. Pela primeira vez, me senti genuinamente dividido entre as novas pressões assertivas da minha origem e língua e as demandas complicadas de uma situação nos EUA que desprezava, na verdade, o que eu tinha a dizer sobre a busca pela justiça palestina — o que era considerado antissemita e nazista.

Em 1972, tirei um ano sabático e aproveitei a oportunidade para passar um ano em Beirute, onde passei a maior parte do meu tempo estudando filologia e literatura árabes, algo que eu nunca havia feito antes, pelo menos não naquele nível, por sentir que havia permitido que a disparidade entre minha identidade adquirida e a cultura na qual nasci e da qual fui removido se tornasse grande demais. Em outras palavras, havia uma necessidade existencial, bem como uma necessidade política, de harmonizar o eu com o outro, pois, à medida que o debate sobre o que antes era chamado de "Oriente Médio" se transformava em um debate entre israelenses e palestinos, fui atraído, ironicamente, tanto pela minha capacidade de falar como acadêmico e intelectual americano quanto pela casualidade do meu nascimento. Em meados da década de 1970, eu estava na posição privilegiada, porém nada invejável, de falar em nome de dois grupos diametralmente opostos: um ocidental e outro árabe.

Desde que me lembro, eu me permitia ficar de fora do guarda-chuva que protegia ou acomodava meus contemporâneos. Se isso acontecia porque eu era genuinamente diferente, objetivamente um outsider, ou porque eu era temperamentalmente um solitário, não sei dizer, mas o fato é que, embora eu concordasse com todos os tipos de rotinas institucionais porque sentia que precisava, algo íntimo em mim resistia a elas. Não sei o que me fazia me conter, mas mesmo quando eu estava miseravelmente solitário ou fora de sincronia com todos os outros, eu me apegava a esse distanciamento íntimo com muita ferocidade. Posso ter invejado amigos cuja língua era uma ou outra, ou que viveram no mesmo lugar a vida toda, ou que se saíram bem em maneiras aceitas, ou que realmente pertenciam, mas não me lembro de alguma vez ter pensado que qualquer uma dessas coisas fosse possível para mim. Não era que eu me considerasse especial, mas sim que eu não me encaixava nas situações em que me encontrava e não estava muito descontente para aceitar esse estado de coisas. Além disso, sempre me senti atraído por autodidatas teimosos, por vários tipos de desajustados intelectuais. Em parte, foi a negligência de seu próprio ângulo peculiar de visão que me atraiu para escritores e artistas como Conrad, Vico, Adorno, Swift, Adonis, Hopkins, Auerbach, Glenn Gould, cujo estilo, ou modo de pensar, era altamente individualista e impossível de imitar, para quem o meio de expressão, fosse música ou palavras, era excentricamente carregado, muito elaborado, autoconsciente no mais alto grau. O que me impressionou neles não foi o mero fato de sua autoinvenção, mas o fato de o empreendimento estar deliberada e meticulosamente localizado dentro de uma história geral que eles haviam escavado ab origine.

Tendo me permitido gradualmente assumir a voz profissional de um acadêmico americano como forma de submergir meu passado difícil e inassimilável, comecei a pensar e escrever em contraponto, usando as metades díspares da minha experiência, como árabe e como americano, para trabalhar uma com a outra e também uma contra a outra. Essa tendência começou a tomar forma depois de 1967 e, embora difícil, também era estimulante. O que provocou a mudança inicial no meu senso de identidade e na linguagem que eu usava foi a constatação de que, ao me acomodar às exigências da vida no caldeirão cultural dos EUA, eu tinha que, quer queira quer não, aceitar o princípio da anulação do qual Adorno fala tão perceptivamente em Minima Moralia:

A vida passada dos emigrantes é, como sabemos, anulada. Antes era o mandado de prisão, hoje é a experiência intelectual, que é declarada intransferível e não naturalizável. Tudo o que não é reificado, não pode ser contado e medido, deixa de existir. Não satisfeita com isso, no entanto, a reificação se espalha para o seu próprio oposto, a vida que não pode ser diretamente atualizada; tudo o que vive meramente como pensamento e lembrança. Para isso, foi inventada uma rubrica especial. Ela se chama "antecedentes" e aparece no questionário como um apêndice, após sexo, idade e profissão. Para completar sua violação, a vida é arrastada no automóvel triunfal dos estatísticos unidos, e mesmo o passado não está mais a salvo do presente, cuja lembrança o consigna uma segunda vez ao esquecimento.

Para minha família e para mim, a catástrofe de 1948 (eu tinha então 12 anos) foi vivida de forma apolítica. Durante vinte anos após a desapropriação e expulsão de suas casas e territórios, a maioria dos palestinos teve que viver como refugiados, lidando não com seu passado, que estava perdido, anulado, mas com seu presente. Não quero sugerir que minha vida de estudante, aprendendo a falar e a cunhar uma língua que me permitisse viver como cidadão dos Estados Unidos, tenha implicado algo parecido com o sofrimento daquela primeira geração de refugiados palestinos, espalhados pelo mundo árabe, onde leis odiosas impossibilitavam sua naturalização, impediam-nos de trabalhar, de viajar, eram obrigados a se registrar e se registrar novamente todos os meses na polícia, muitos deles forçados a viver em campos terríveis como Sabra e Shatila, em Beirute, que foram palco de massacres 34 anos depois. O que vivenciei, no entanto, foi a supressão de uma história enquanto todos ao meu redor celebravam a vitória de Israel, sua terrível e veloz espada, como Barbara Tuchman pomposamente expressou, às custas dos habitantes originais da Palestina, que agora se viam forçados, repetidas vezes, a provar que um dia existiram. "Não existem palestinos", disse Golda Meir em 1969, e isso me lançou, e a muitos outros, o desafio um tanto absurdo de desmenti-la, de começar a articular uma história de perda e desapropriação que precisava ser desvendada, minuto a minuto, palavra por palavra, centímetro a centímetro, da história muito real do estabelecimento, da existência e das conquistas de Israel. Eu estava trabalhando com um elemento quase inteiramente negativo, a não existência, a não história que eu precisava, de alguma forma, tornar visível, apesar das oclusões, deturpações e negações.

Inevitavelmente, isso me levou a reconsiderar as noções de escrita e linguagem, que eu até então tratara como animadas por um determinado texto ou assunto – a história do romance, por exemplo, ou a ideia de narrativa como tema na ficção em prosa. O que me preocupava agora era como um sujeito era constituído, como uma linguagem podia ser formada – a escrita como uma construção de realidades que serviam instrumentalmente a um ou outro propósito. Este era o mundo do poder e das representações, um mundo que surgiu como uma série de decisões tomadas por escritores, políticos e filósofos para sugerir ou esboçar uma realidade e, ao mesmo tempo, apagar outras. A primeira tentativa que fiz nesse tipo de trabalho foi um breve ensaio que escrevi em 1968, intitulado "O Árabe Retratado", no qual descrevi a imagem do árabe que havia sido manipulada no jornalismo e em alguns escritos acadêmicos de forma a evitar qualquer discussão sobre história e experiência, como eu e muitos outros árabes as havíamos vivido. Também escrevi um longo estudo sobre ficção em prosa árabe após 1948, no qual relatei a qualidade fragmentária e conflituosa da linha narrativa.

Durante a década de 1970, ministrei meus cursos de literatura europeia e americana na Universidade de Columbia e em outros lugares, e aos poucos fui me inserindo nos mundos político e discursivo do Oriente Médio e da política internacional. Vale mencionar aqui que, nos quarenta anos em que leciono, nunca ensinei nada além do cânone ocidental, e certamente nada sobre o Oriente Médio. Há muito tempo tenho a ambição de ministrar um curso sobre literatura árabe moderna, mas não o fiz, e há pelo menos trinta anos venho planejando um seminário sobre Vico e Ibn Khaldun, o grande historiador e filósofo da história do século XIV. Mas meu senso de identidade como professor de literatura ocidental excluiu esse outro aspecto da minha atividade no que diz respeito à sala de aula. Ironicamente, o fato de eu continuar a escrever e lecionar minha disciplina deu aos patrocinadores e anfitriões de eventos universitários para os quais fui convidado a dar palestras uma desculpa para ignorar minha constrangedora atividade política, pedindo-me especificamente para dar palestras sobre um tema literário. E houve quem falasse dos meus esforços em prol do "meu povo", sem jamais mencionar o nome desse povo. "Palestina" ainda era uma palavra a ser evitada.

Mesmo no mundo árabe, a Palestina me rendeu muito opróbrio. Quando a Liga de Defesa Judaica me chamou de nazista em 1985, meu escritório na universidade foi incendiado e minha família e eu recebemos inúmeras ameaças de morte, mas quando Anwar Sadat e Yasser Arafat me nomearam representante palestino para as negociações de paz (sem nunca me consultar) e me vi impossibilitado de sair do meu apartamento, tão grande foi a onda de mídia ao meu redor, tornei-me alvo da hostilidade nacionalista de extrema esquerda por ser considerado liberal demais na questão da Palestina e na ideia de coexistência entre judeus israelenses e árabes palestinos. Tenho sido consistente na minha convicção de que não existe opção militar para nenhum dos lados, que apenas um processo de reconciliação pacífica e justiça pelo que os palestinos tiveram que suportar por meio da desapropriação e ocupação militar funcionaria. Também critiquei muito o uso de slogans-clichês como "luta armada" e o aventureirismo revolucionário que causou mortes de inocentes e nada fez para o avanço político da causa palestina. "A situação difícil da vida privada hoje é demonstrada por sua arena", escreveu Adorno. "Morar, no sentido próprio, é agora impossível. As residências tradicionais em que crescemos tornaram-se intoleráveis: cada traço de conforto nelas é pago com uma traição ao conhecimento, cada vestígio de abrigo com o pacto bolorento dos interesses familiares." De forma ainda mais inflexível, ele continuou:

A casa é passado... O melhor modo de conduta, diante de tudo isso, ainda parece descompromissado, suspenso: levar uma vida privada, na medida em que a ordem social e as próprias necessidades não tolerarem outra coisa, mas não atribuir a ela peso como algo ainda socialmente substancial e individualmente apropriado. "Faz até parte da minha boa sorte não ser dono de uma casa", Nietzsche já escrevia na Gaia Ciência. Hoje, deveríamos acrescentar: faz parte da moral não se sentir em casa, em casa.

Quanto a mim, não consegui viver uma vida descomprometida ou suspensa: não hesitei em declarar minha filiação a uma causa extremamente impopular. Por outro lado, sempre me reservei o direito de ser crítico, mesmo quando a crítica conflitava com a solidariedade ou com o que outros esperavam em nome da lealdade nacional. Há um desconforto definido, quase palpável, em tal posição, especialmente dada a irreconciliabilidade dos dois grupos e as duas vidas que eles exigiram.

O resultado líquido em termos da minha escrita foi tentar uma maior transparência, libertar-me do jargão acadêmico e não me esconder atrás de eufemismos e circunlóquios quando se tratava de questões difíceis. Dei o nome de "mundanismo" a essa voz, com o qual não me refiro ao savoir-faire cansado do homem da cidade, mas sim a uma atitude consciente e destemida em relação à exploração do mundo em que vivemos. Palavras cognatas, derivadas de Vico e Auerbach, foram "secular" e "secularismo" aplicado a questões "terrenas"; nessas palavras, que derivam da tradição materialista italiana que vai de Lucrécio a Gramsci e Lampedusa, encontrei um importante corretivo para a tradição idealista alemã de sintetizar o antitético, como o encontramos em Hegel, Marx, Lukács e Habermas. Pois "terreno" não apenas conotava este mundo histórico criado por homens e mulheres, e não por Deus ou "pelo gênio da nação", como Herder o denominou, mas também sugeria uma base territorial para minha argumentação e linguagem, que provinha de uma tentativa de compreender as geografias imaginativas moldadas e então impostas pelo poder a terras e povos distantes. Em Orientalismo e Cultura e Imperialismo, e novamente nos cinco ou seis livros explicitamente políticos sobre a Palestina e o mundo islâmico que escrevi na mesma época, senti que estava moldando um eu que revelava a um público ocidental coisas que até então haviam sido ocultadas ou sequer discutidas. Assim, ao falar sobre o Oriente, até então considerado um simples fato da natureza, tentei desvendar a obsessão geográfica de longa data e muito variada por um mundo distante, frequentemente inacessível, que ajudou a Europa a se definir por ser seu oposto. Da mesma forma, eu acreditava que a Palestina, um território apagado no processo de construção de outra sociedade, poderia ser restaurada como um ato de resistência política à injustiça e ao esquecimento.

De vez em quando, eu percebia que havia me tornado uma criatura peculiar para muitas pessoas, e até mesmo para alguns amigos, que presumiam que ser palestino era o equivalente a algo mitológico, como um unicórnio, ou uma variação irremediavelmente estranha de um ser humano. Uma psicóloga de Boston, especializada em resolução de conflitos, que conheci em vários seminários envolvendo palestinos e israelenses, certa vez me ligou de Greenwich Village e perguntou se poderia vir me visitar na parte alta da cidade. Ao chegar, entrou, olhou incrédula para o meu piano – "Ah, você toca piano mesmo", disse ela, com um toque de descrença na voz – e então se virou e começou a sair. Quando perguntei se ela tomaria uma xícara de chá antes de ir embora (afinal, eu disse, você veio de muito longe para uma visita tão curta), ela disse que não tinha tempo. "Só vim para ver como você vivia", disse ela sem a menor ironia. Em outra ocasião, um editor de outra cidade se recusou a assinar meu contrato até que eu almoçasse com ele. Quando perguntei ao seu assistente o que era tão importante em jantar comigo, ele me respondeu que o grande homem queria ver como eu me comportava à mesa. Felizmente, nenhuma dessas experiências me afetou ou me deteve por muito tempo: eu estava sempre com muita pressa para cumprir uma aula ou um prazo, e evitava deliberadamente o autoquestionamento que me levaria a uma depressão terminal. De qualquer forma, a intifada palestina que eclodiu em dezembro de 1987 confirmou nossa identidade de povo de forma tão dramática e convincente quanto qualquer coisa que eu pudesse ter dito. Em pouco tempo, porém, me vi me tornando uma figura simbólica, convocado para escrever algumas centenas de palavras ou um trecho de dez segundos testemunhando "o que os palestinos estão dizendo", e determinado a escapar desse papel, especialmente devido às minhas divergências com a liderança da OLP no final dos anos 1980.

Não sei bem se devo chamar isso de autoinvenção perpétua ou de inquietação constante. De qualquer forma, aprendi a apreciá-la há muito tempo. Identidade como tal é um assunto tão tedioso quanto se possa imaginar. Nada parece menos interessante do que o autoestudo narcisista que hoje se passa em muitos lugares por política identitária, estudos étnicos, afirmações de raízes, orgulho cultural, nacionalismo retórico e assim por diante. Temos que defender povos e identidades ameaçados de extinção ou subordinados por serem considerados inferiores, mas isso é muito diferente de engrandecer um passado inventado por razões presentes. Nós, intelectuais americanos, temos a obrigação para com o nosso país de combater o antiintelectualismo grosseiro, a intimidação, a injustiça e o provincianismo que desfiguram sua trajetória como a última superpotência. É muito mais desafiador tentar se transformar em algo diferente do que continuar insistindo nas virtudes de ser americano no sentido ideológico. Tendo perdido um país sem esperança imediata de recuperá-lo, não encontro muito conforto em cultivar um novo jardim ou procurar outra associação para me associar. Aprendi com Adorno que a reconciliação sob coação é covarde e inautêntica: melhor uma causa perdida do que uma triunfante, mais satisfatório um senso do provisório e contingente – uma casa alugada, por exemplo – do que a solidez proprietária de uma propriedade permanente. É por isso que dândis ambulantes como Oscar Wilde ou Baudelaire me parecem intrinsecamente mais interessantes do que exaltadores de virtudes estabelecidas como Wordsworth ou Carlyle.

Nos últimos cinco anos, tenho escrito duas colunas por mês para a imprensa árabe; e, apesar da minha política extremamente antirreligiosa, sou frequentemente descrito com entusiasmo no mundo islâmico como um defensor do Islã e considerado por alguns partidos islâmicos como um de seus apoiadores. Nada poderia estar mais longe da verdade, assim como não é verdade que eu tenha sido um apologista do terrorismo. A qualidade prismática da escrita de alguém que não é totalmente de nenhum campo, ou partidário total de qualquer causa, é difícil de lidar, mas também nisso aceitei a irreconciliabilidade dos vários aspectos conflitantes, ou pelo menos incompletamente harmonizados, daquilo que, cumulativamente, pareço ter defendido. Uma frase de Günter Grass descreve bem a situação: a do "intelectual sem mandato". Uma situação complicada surgiu no final de 1993, quando, depois de parecer ser a voz aprovada da luta palestina, escrevi de forma cada vez mais áspera sobre minhas divergências com Arafat e sua turma. Fui imediatamente rotulado de "antipaz" por não ter o tato necessário para descrever o Tratado de Oslo como profundamente falho. Agora que tudo estagnou, perguntam-me regularmente como é estar certo, mas fiquei mais surpreso com isso do que com qualquer outra pessoa: profecia não faz parte do meu arsenal.

Nos últimos três ou quatro anos, tenho tentado escrever um livro de memórias da minha vida inicial – isto é, pré-política –, em grande parte porque considero uma história digna de resgate e comemoração, visto que os três lugares onde cresci deixaram de existir. A Palestina agora é Israel, o Líbano, após vinte anos de guerra civil, dificilmente é o lugar sufocante e entediante que era quando passávamos os verões confinados em Dhour el Shweir, e o Egito colonial e monárquico desapareceu em 1952. Minhas memórias daqueles dias e lugares permanecem extremamente vívidas, repletas de pequenos detalhes que pareço ter preservado como se estivessem entre as capas de um livro, repletas também de sentimentos não expressos, gerados a partir de situações e eventos que ocorreram décadas atrás, mas que parecem estar esperando para serem articulados agora. Conrad diz em Nostromo que em cada coração se esconde o desejo de escrever, de uma vez por todas, um relato verdadeiro do que aconteceu, e foi isso certamente que me levou a escrever minhas memórias, assim como me vi escrevendo uma carta para minha falecida mãe, movido pelo desejo de comunicar novamente algo terrivelmente importante a uma presença primordial em minha vida. "Em seu texto", diz Adorno,

O escritor estabelece casa... Para um homem que não tem mais uma pátria, a escrita torna-se um lugar para viver... [No entanto] a exigência de que se endureça contra a autopiedade implica a necessidade técnica de combater qualquer afrouxamento da tensão intelectual com a máxima vigilância e de eliminar tudo o que começou a incrustar a obra ou a vagar à toa, o que pode ter servido, em um estágio anterior, como fofoca, para gerar a atmosfera acolhedora propícia ao crescimento, mas agora é deixado para trás, plano e obsoleto. No final, o escritor nem sequer tem permissão para viver em sua escrita.

Alcança-se, no máximo, uma satisfação provisória, que é rapidamente emboscada pela dúvida, e uma necessidade de reescrever e refazer que torna o texto inabitável. Melhor isso, porém, do que o sono da autossatisfação e a finalidade da morte.

1 de abril de 1998

Heterossexismo, falso reconhecimento e capitalismo: uma resposta a Judith Butler

Nancy Fraser



Tradução / O ensaio de Judith Bulter2 é bem-vindo sob vários aspectos. Ele nos faz retomar questões profundas e importantes em teoria social, as quais têm permanecido sem discussão por tempo demais. Além disso, ele conecta uma reflexão sobre tais questões a um diagnóstico do estado problemático da esquerda na conjuntura política atual. Mais importante, porém, é o comprometimento de Butler nesse ensaio em identificar e recuperar aspectos genuinamente valiosos do marxismo e do feminismo socialista dos anos 1970, que os atuais modismos políticos e culturais conspiram para reprimir. Igualmente exemplar é seu interesse em integrar os melhores insights de tais paradigmas com vertentes defensáveis de paradigmas mais recentes – incluindo a análise do discurso, os estudos culturais e o pós-estruturalismo – para entender o capitalismo contemporâneo. Esses são compromissos que compartilho de todo o coração.

Não obstante, Butler e eu discordamos. Nossas discordâncias mais importantes – e também as mais frutíferas para discussão – voltam-se para como exatamente realizar este projeto comum de reivindicação e integração. Nós possuímos visões diferentes do que constitui precisamente o legado mais duradouro do marxismo e dos insights ainda relevantes do feminismo socialista. Também divergimos em nossas respectivas avaliações sobre os méritos de várias correntes pós-estruturalistas e em nossas respectivas visões de como elas podem informar melhor uma teoria social que preserve uma dimensão materialista. Finalmente, discordamos sobre a natureza do capitalismo contemporâneo.


A fim de abrir o caminho para uma discussão frutífera sobre estes temas, quero começar apontando rapidamente o que considero serem falsas questões. Butler conjuga sua discussão do meu livro, Justice Interruptus, a uma crítica de um grupo de interlocutores anônimos que ela chama de “marxistas neoconservadores”. Sejam quais forem os méritos de sua crítica a este grupo – uma questão à qual voltarei mais tarde –, sua estratégia de utilizá-la para circunscrever uma discussão do meu trabalho é infeliz. Apesar de suas afirmações em sentido contrário, os leitores poderiam chegar à conclusão errônea de que compartilho com o “neomarximo conservador” a desqualificação das opressões de gays e lésbicas como “meramente culturais” e, portanto, como secundárias, derivadas ou mesmo triviais. Além disso, eles poderiam presumir que vejo a opressão sexual como menos fundamental, material e real do que a opressão de classe, e que eu gostaria de subordinar as lutas contra o heterossexismo às lutas contra a exploração dos trabalhadores. Vendo-me então agrupada junto a marxistas “ortodoxos sexualmente conservadores”, os leitores poderiam até concluir que considero os movimentos gays e lésbicos como particularismos injustificados que dividiram a esquerda e aos quais desejo forçosamente impor uma unidade.


Não acredito, é claro, em nada do tipo. Ao contrário, em Justice Interruptus analisei as atuais dissociações entre a chamada política da identidade e a política de classe, entre a esquerda cultural e a esquerda social, como um traço constitutivo da condição “pós-socialista”.3 Buscando superar estas divisões e articular uma base para uma frente unida da esquerda, propus um enquadramento teórico que evita distinções ortodoxas entre “base” e “superestrutura”, opressões “primárias” e “secundárias”, e que desafia o primado do econômico. Neste processo, teorizei a irredutibilidade conceitual da opressão heterossexista e a legitimidade moral das reivindicações de gays e lésbicas.


Central a este enquadramento é a distinção normativa entre injustiças de distribuição e injustiças de reconhecimento. Longe de revogar as últimas como “meramente culturais”, trata-se de conceituar dois danos igualmente primários, sérios e reais, que qualquer ordem social moralmente defensável deve erradicar. Sob meu ponto de vista, ser falsamente reconhecido [misrecognized] não é simplesmente ser menosprezado ou desvalorizado nas atitudes conscientes ou crenças mentais de outros. Trata-se, antes, de ter negado o status de parceiro integral nas interações sociais e de ser impedido de participar como um igual na vida social – não como consequência de uma desigualdade distributiva (como não receber a sua justa parte de recursos ou “bens primários”), senão como consequência de padrões institucionalizados de interpretação e avaliação, que constituem alguém como comparativamente indigno de respeito ou estima. Quando tais padrões de desrespeito e desconsideração são institucionalizados, por exemplo, na lei, nas políticas de bem-estar social, na medicina e/ou na cultura popular, eles impedem a paridade de participação tão certamente como fazem as desigualdades distributivas. Nos dois casos, o dano é bastante real.

Na minha concepção, portanto, o falso reconhecimento [misrecognition] é uma relação social institucionalizada, não um estado psicológico. Em essência uma injustiça de status, ele é analiticamente distinto e conceitualmente irredutível à injustiça de má distribuição [maldistribution], apesar de poder ser acompanhado por esta última. Se o falso reconhecimento se converte em má distribuição, e vice-versa, isso depende da natureza da formação social em questão. Em sociedades pré-estatais e pré-capitalistas, por exemplo, nas quais o status simplesmente é o princípio geral de distribuição e a ordem de status e a hierarquia de classe encontram-se, portanto, fundidas, o falso reconhecimento simplesmente acarreta má distribuição. Nas sociedades capitalistas, em contraste, onde a institucionalização de relações econômicas especializadas permite uma relativa separação da distribuição econômica das estruturas de prestígio, e onde status e classe podem, portanto, divergir, falso reconhecimento e má distribuição não são inteira e mutuamente conversíveis. Se, e até que ponto, eles coincidem hoje é uma questão que considerarei adiante.

Normativamente, contudo, o ponto-chave é o seguinte: o falso reconhecimento constitui uma injustiça fundamental, seja acompanhada por má distribuição ou não. E este ponto tem consequências políticas. Não é necessário mostrar que uma dada instância de falso reconhecimento traz com ela má distribuição a fim de certificar a reivindicação de corrigi-la como uma demanda genuína por justiça social. Este ponto é válido para o falso reconhecimento de caráter heterossexista, o qual envolve a institucionalização de interpretações e normas sexuais que negam a paridade de participação a gays e lésbicas. Oponentes do heterossexismo não precisam se esforçar para traduzir reivindicações de danos de status ligados à sexualidade em reivindicações de privação de classe para justificá-las. Tampouco precisam mostrar que suas lutas ameaçam a ordem capitalista para provar que são justas.

Do meu ponto de vista, então, injustiças de falso reconhecimento são exatamente tão sérias quanto injustiças de distribuição. E elas não podem ser reduzidas às últimas. Assim, longe de afirmar que os danos culturais são reflexos superestruturais dos danos econômicos, propus uma análise na qual os dois tipos de danos são igualmente fundamentais e irredutíveis conceitualmente. Sob minha perspectiva, portanto, não faz qualquer sentido dizer que o falso reconhecimento heterossexista é “meramente cultural”. Esta locução pressupõe a mesma espécie de modelo base-superestrutura, a mesma espécie de monismo economicista que meu enquadramento busca deslocar.

Butler, em suma, confundiu o que é, de fato, um dualismo quase weberiano de status e classe com um monismo economicista marxiano ortodoxo. Ao presumir erroneamente que distinguir a redistribuição do reconhecimento é necessariamente desvalorizar o reconhecimento, ela trata minha distinção normativa como uma “tática” visando depreciar as lutas gays e lésbicas e impor uma nova “ortodoxia”. Contra Butler, pretendo defender a distinção e, ao mesmo tempo, negar a tática. Portanto, para chegar às questões reais entre nós, é preciso dissociar duas problemáticas que são identificadas de modo excessivamente próximo em sua discussão. A primeira é uma questão política relativa à profundidade e à seriedade da opressão heterossexista; sobre isso, conforme argumentei, nós não discordamos. A segunda é uma questão teórica que diz respeito ao status conceitual do que Butler erroneamente chama de “distinção material/cultural” na medida em que se relaciona com a análise do heterossexismo e com a natureza da sociedade capitalista; aqui residem nossas discordâncias reais.4


Permitam-me começar a examinar estas discordâncias mediante uma recapitulação esquemática da crítica de Butler. De acordo com minha leitura, ela oferece três argumentos teóricos principais contra meu enquadramento de redistribuição/reconhecimento. Primeiro, ela alega que, porque gays e lésbicas sofrem danos econômicos e materiais, sua opressão não é adequadamente categorizada como falso reconhecimento. Segundo, ao invocar importantes insights do feminismo socialista dos anos 1970 de que a família é parte do modo de produção, ela argumenta que a regulação heteronormativa da sexualidade é “central ao funcionamento da economia política” e que as lutas contemporâneas contra tal regulação “ameaçam a viabilidade” do sistema capitalista. Terceiro, depois de revisitar as narrativas antropológicas das trocas pré-capitalistas, ela sustenta que a distinção entre o material e o cultural é “instável”, um “anacronismo teórico” a ser evitado pela teoria social. Sob meu ponto de vista, nenhum desses argumentos é persuasivo, em grande parte porque nenhum deles oferece uma visão adequadamente diferenciada e historicamente situada da sociedade capitalista moderna. Permitam-me considerar esses três argumentos um por vez.


O primeiro argumento de Butler apela a alguns fatos incontestáveis sobre os danos sofridos atualmente por gays e lésbicas. Longe de serem “meramente simbólicos”, estes danos incluem sérias desvantagens econômicas com inegáveis efeitos materiais. Hoje, nos Estados Unidos, por exemplo, gays e lésbicas podem ser sumariamente dispensados de cargos civis e do serviço militar, ter negada uma ampla variedade de benefícios sociais baseados na família, ser desproporcionalmente sobrecarregados com custos médicos, além de estarem em desvantagem nas leis de impostos e herança. Igualmente materiais são os efeitos do fato de homossexuais não disporem de uma vasta gama de proteções e direitos constitucionais usufruídos por heterossexuais. Em muitas jurisdições, eles podem ser processados por sexo consensual; e em muitos outros, podem ser agredidos com impunidade. Butler defende que o caráter material e econômico destes prejuízos faz com que a análise do heterossexismo baseada no “falso reconhecimento” esteja equivocada.


A premissa de Butler de fato é verdadeira, mas sua conclusão não se segue. Ela presume que injustiças de falso reconhecimento devam ser imateriais e não econômicas. Deixando de lado, por ora, sua conjunção do material com o econômico, sua suposição erra nos dois aspectos. Na minha concepção, injustiças de falso reconhecimento são tão materiais quanto injustiças de má distribuição. É claro que as primeiras estão radicadas em padrões sociais de interpretação, avaliação e comunicação, portanto, se se quiser, na ordem simbólica. Mas isso não quer dizer que eles são “meramente” simbólicos. Ao contrário, as normas, significados e construções da condição de pessoa [constructions ofpersonhood] que impedem mulheres, pessoas racializadas e/ou gays e lésbicas de exercerem a paridade de participação na vida social são materialmente instanciadas – em instituições e práticas sociais, na ação social e no habitus corporificado, e sim, também em aparelhos ideológicos de Estado. Longe de ocupar um reino diáfano e etéreo, elas são materiais, tanto em sua existência quanto em seus efeitos.


Sob minha perspectiva, portanto, os danos materiais citados por Butler constituem casos paradigmáticos de falso reconhecimento. Eles refletem a institucionalização de significados, normas e construções heterossexistas da condição de pessoa em arenas tais como a lei constitucional, a medicina, as políticas de imigração e naturalização, os códigos de impostos estaduais e federais, as políticas de emprego e bem-estar social, a legislação de oportunidades iguais, e assim por diante. Ademais, o que é institucionalizado, conforme a própria Butler nota, são as construções culturais de direitos e da condição de pessoa que produzem os sujeitos homossexuais como abjetos. Esta, para dizer de novo, é a essência do falso reconhecimento: a construção material, por meio da institucionalização de normas culturais, de uma classe de pessoas desvalorizadas que são privadas da paridade participativa.


Deste modo, se os danos que resultam do falso reconhecimento podem ser materiais, eles podem também ser econômicos? É verdade, como Butler nota, e como eu mesma notei expressamente em Justice Interruptus, que algumas formas de heterossexismo infligem danos materiais em gays e lésbicas. A questão é como interpretá-los.5 Uma possibilidade é ver estes danos econômicos como expressões diretas da estrutura econômica da sociedade – em grande parte como os marxistas veem a exploração dos trabalhadores. Segundo esta interpretação, que Butler parece endossar, os prejuízos econômicos de homossexuais estariam profundamente arraigados nas relações de produção. Remediá-los requereria transformar essas relações. Outra possibilidade, preferida por mim, é ver os danos econômicos do heterossexismo como consequências distributivas indiretas da injustiça mais fundamental de falso reconhecimento. Nesta interpretação, que propus em Justice Interruptus, as raízes do heterossexismo econômico seriam as “relações de reconhecimento”: um padrão institucionalizado de interpretação e valorização que concebe a heterossexualidade como normativa e a homossexualidade como desviante, negando deste modo a paridade participativa a gays e lésbicas. Mudando as relações de reconhecimento, a má distribuição despareceria.


Este conflito de interpretações levanta questões profundas e difíceis. É necessário transformar a estrutura econômica do capitalismo contemporâneo para poder corrigir as desvantagens econômicas dos homossexuais? O que precisamente significa “estrutura econômica”? Deve-se considerar a regulação heteronormativa da sexualidade como pertencendo diretamente à economia capitalista? Ou ela é mais bem compreendida como pertencendo a uma ordem de status que é diferenciada da, e complexamente relacionada com, a estrutura econômica? De maneira mais geral, as relações de reconhecimento nas sociedades tardo-capitalistas coincidem com as relações econômicas? Ou as diferenciações institucionais do capitalismo moderno introduzem lacunas entre status e classe?


Para prosseguir com estas questões, permitam-me examinar o segundo argumento de Butler. Aqui ela invoca o insight do feminismo socialista dos anos 1970 de que a família é parte do modo de produção, a fim de sustentar a tese de que a regulação heteronormativa da sexualidade é “central ao funcionamento da economia política”. Disso resulta, Butler afirma, que as lutas contemporâneas contra aquela regulação “ameaçam a viabilidade” do sistema capitalista.


Na verdade, duas variações diferentes do argumento podem ser discernidas aqui, uma definicional, outra funcionalista. De acordo com a primeira versão, a regulação (hetero)sexual pertence por definição à estrutura econômica. A estrutura econômica simplesmente é todo o conjunto de mecanismos e instituições sociais que (re)produzem pessoas e bens. Por definição, assim, a família é parte desta estrutura, sendo o local primário da reprodução de pessoas. Também o é, por extensão, a ordem de gênero, a qual padroniza os “produtos” da família para que se adaptem a um entre dois – e somente dois – tipos de pessoas mutuamente excludentes, aparentemente naturais: homem e mulher. A ordem de gênero, por sua vez, é tida como pressupondo um modo de regulação sexual que produz e naturaliza a heterossexualidade, enquanto simultaneamente produz a homossexualidade como abjeta. A conclusão a que chega Butler é que a regulação heteronormativa da sexualidade é uma parte da estrutura econômica por definição, a despeito de não estruturar nem a divisão social do trabalho, nem o modo de exploração da força de trabalho na sociedade capitalista.


Este argumento definicionaltem um ar de indiferença olímpica em relação à história. Como resultado, ele corre o risco de realizar coisas demais. Estipular que o modo de regulação sexual pertence à estrutura econômica por definição – mesmo na ausência de qualquer impacto discernível na divisão do trabalho ou no modo de exploração – ameaça des-historicizar a ideia da estrutura econômica e drenar sua força conceitual. O que se perde é a especificidade da sociedade capitalista como uma forma distintiva e altamente peculiar de organização social. Esta organização cria uma ordem de relações econômicas especializadas que são relativamente dissociadas das relações de parentesco e autoridade política. Assim, na sociedade capitalista, a ligação entre o modo de regulação sexual, de um lado, e a ordem de relações econômicas especializadas, cuja raison d’être é a acumulação de mais-valia, de outro, é atenuada. Ela é certamente muito mais tênue que nas sociedades pré-capitalistas e pré-estatais, onde as relações econômicas são em grande medida esboçadas por meio dos mecanismos de parentesco e diretamente imbricadas com a sexualidade. Na sociedade tardo-capitalista do século XX, ademais, os vínculos entre sexualidade e acumulação de mais-valia foram ainda mais atenuadas pela ascensão daquilo que Eli Zaretsky chamou de “vida pessoal”: um espaço de relações íntimas, incluindo sexualidade, amizade e amor, que não pode mais ser identificado com a família e que é vivido como desconectado dos imperativos de produção e reprodução.6 Em geral, então, a sociedade capitalista contemporânea contém “lacunas”: entre a ordem econômica e a ordem de parentesco; entre a família e a vida pessoal; e entre a ordem de status e a hierarquia de classe. Neste tipo de sociedade altamente diferenciada, não faz qualquer sentido para mim conceber o modo de regulação sexual como simplesmente uma parte da estrutura econômica. Nem em conceber as reivindicações queer por reconhecimento da diferença como demandas deslocadas por redistribuição.


Em outro sentido, além disso, o argumento definicionalrealiza coisas de menos. Butler quer concluir que as lutas acerca da sexualidade são econômicas, mas esta conclusão foi tornada tautológica. Se as lutas sexuais são econômicas por definição, então elas não são econômicas no mesmo sentido das lutas contra os índices de exploração. Simplesmente chamando os dois tipos de lutas “econômicas”, arrisca-se a fazer as diferenças entrarem em colapso, criando a impressão equivocada de que elas vão entrar em sinergia automaticamente e embotando nossa capacidade de colocar, e de responder, questões políticas difíceis mas prementes sobre como fazê-las entrarem em sinergia quando, de fato, elas divergem ou estão em conflito.7

Isso me leva à variação funcionalista do segundo argumento de  Butler.  Aqui,  a  alegação  é  que  a  regulação  heteronormativa  da sexualidade é econômica – não por definição, mas porque é funcional para a expansão da mais-valia. Em outras palavras, o capitalismo “precisa” ou se beneficia da heterossexualidade compulsória. Segue-se, de acordo com Butler, que as lutas gays e lésbicas contra o heterossexismo ameaçam a “viabilidade” do sistema capitalista.

Como  todos  os  argumentos  funcionalistas,  este  se  sustenta  ou  é  derrubado  com  as  relações  empíricas  de  causa  e  efeito.  Empiricamente,  no  entanto,  é  altamente  implausível  que  as  lutas  de gays e lésbicas ameacem o capitalismo em sua forma histórica realmente existente. Este poderia ser o caso se os homossexuais fossem   concebidos   como   uma   classe   inferior,   porém   útil,   de  trabalhadores  servis  cuja  exploração  fosse  central  para  o funcionamento da economia, como foram os afro-americanos, por exemplo. Assim, poder-se-ia dizer que os interesses do capital são  favorecidos  ao  mantê-los  “no  seu  lugar”.  Na  realidade, porém,  os  homossexuais  são  mais  frequentemente  concebidos como  um  grupo  cuja  própria  existência  é  uma  abominação, num certo sentido como a concepção nazista dos judeus; eles não deviam ter qualquer “lugar” na sociedade. Não é, pois, de surpreender  que  os  principais  oponentes  dos  direitos  de  gays  e  lésbicas  hoje  sejam  não  as  corporações  multinacionais,  mas  sim  os  conservadores  religiosos  e  culturais,  cuja  obsessão  é  o  status, não  o  lucro.  De  fato,  algumas  multinacionais  –  notadamente  a  American Airlines, a Apple Computers e a Disney – despertaram a ira de tais conservadores ao instituir políticas favoráveis aos gays, tais  como  benefícios  de  parceria  doméstica.  Elas  aparentemente  veem vantagens em acomodar gays, desde que não sejam sujeitas a boicotes ou, alternativamente, que sejam grandes o suficiente para resistir a eles caso isso aconteça.

Empiricamente,   portanto,   o   capitalismo   contemporâneo   parece não exigir o heterossexismo. Com suas lacunas entre a ordem  econômica  e  a  ordem  de  parentesco,  e  entre  a  família  e  a  vida pessoal, a sociedade capitalista agora permite que um número significativo de indivíduos viva de seu trabalho assalariado fora de famílias heterossexuais. Isso seria permitido a muitos mais – desde que as relações de reconhecimento fossem alteradas. Assim, podemos agora responder a uma questão colocada anteriormente: as desvantagens econômicas dos homossexuais são mais bem compreendidas  como  efeitos  do  heterossexismo  nas  relações de  reconhecimento  do  que  como  profundamente  arraigadas  na  estrutura  do  capitalismo.  A  boa  notícia  é  que  não  precisamos  derrubar o capitalismo a fim de remediar estas desvantagens –  apesar  de  podermos  muito  bem  precisar  derrubá-lo  por  outras  razões.  A  má  notícia  é  que  precisamos  transformar  a  ordem  de  status existente e reestruturar as relações de reconhecimento.

Com seu argumento funcionalista, Butler ressuscitou o que é, sob meu ponto de vista, um dos piores aspectos do marxismo e do feminismo socialista dos anos 1970: a visão totalizadora da sociedade capitalista como um “sistema” monolítico de estruturas entrelaçadas  de  opressão  que  se  reforçam  umas  às  outras  sem  quebras. Esta perspectiva não considera as “lacunas”. Isso têm sido reiterada e persuasivamente criticado a partir de muitas direções, incluindo  o  paradigma  pós-estruturalista  que  Butler  endossa  e  o  paradigma weberiano por mim adaptado. A teoria funcionalista dos  sistemas  é  uma  vertente  do  pensamento  dos  anos  1970  que  é melhor esquecer.

A  questão  sobre  o  que  deveria  substituir  o  funcionalismo  diz  respeito  ao  terceiro  argumento  de  Butler  contra  meu  recorte  redistribuição/reconhecimento.  Este  argumento  é  desconstrutivo.  Longe de insistir que as raízes do heterossexismo são econômicas em oposição ao “meramente cultural”, sua intenção é desconstruir a  “distinção  material/cultural”.  Esta  distinção,  afirma  Butler, é “instável”. Importantes correntes do pensamento neo-marxiano, de Raymond Williams a Althusser, colocaram-na irreversivelmente em “crise”. O argumento fulminante provém, no entanto, dos antropólogos, notadamente Mauss e Lévi-Strauss. Suas respectivas considerações da “dádiva” e da “troca de mulheres” revelam que os processos “primitivos” de intercâmbio não podem ser atribuídos a um lado ou a outro da divisão material/cultural. Sendo ambos um só processo, eles “desestabilizam” a própria distinção. Logo, ao evocar a separação material/cultural hoje, argumenta Butler, eu teria sucumbido a um “anacronismo teórico”.

Este  argumento  é  pouco  convincente  por  vários  motivos,  o  primeiro  dos  quais  é  que  mistura  “o  econômico”  com “o  material”.  Butler  presume  que  minha  distinção  normativa entre  redistribuição  e  reconhecimento  reside  em  uma  distinção  ontológica  entre  o  material  e  o  cultural.  Ela  presume,  assim,  que desconstruir a segunda distinção implica puxar o tapete da primeira.  Na  verdade,  entretanto,  a  suposição  não  se  sustenta.  Conforme notei anteriormente, injustiças de falso reconhecimento são,  sob  minha  perspectiva,  tão  materiais  quanto  injustiças  de  má  distribuição.  Deste  modo,  minha  distinção  normativa  não  se  apoia  em  nenhum  fundamento  de  diferença  ontológica.  Aquilo  com  o  que  ela  sim  se  correlaciona,  nas  sociedades  capitalistas,  é a distinção entre o econômico e o cultural. Esta, entretanto, não é  uma  distinção  ontológica,  mas  uma  distinção  de  teoria  social.  A distinção econômico/cultural, e não a distinção material/cultural, é o real pomo da discórdia entre nós, a distinção cujo status está em jogo.

Qual,  então,  é  o  status  conceitual  da  distinção  econômico/cultural?    Os    argumentos    antropológicos    realmente    lançam    uma  luz  sobre  o  assunto,  segundo  meu  ponto  de  vista,  mas  não  de  modo  a  apoiar  a  posição  de  Butler.  De  acordo  com  a  minha  leitura, tanto Mauss quanto Lévi-Strauss analisam processos de trocas  em  sociedades  pré-capitalistas  e  pré-estatais  nas  quais  o  idioma hegemônico das relações sociais era o parentesco. Em suas narrativas, o parentesco organizava não apenas o casamento e as relações sexuais, mas também o processo de trabalho e a distribuição dos bens; as relações de autoridade, reciprocidade e obrigação; e  as  hierarquias  simbólicas  de  status e prestígio. Não existiam relações distintivamente econômicas ou distintivamente culturais; logo, a distinção econômico/cultural presumivelmente não estava disponível aos membros daquelas sociedades. Disso não se segue, contudo, que a distinção seja sem sentido ou inútil. Pelo contrário, ela pode ser significativa e proveitosamente aplicada às sociedades capitalistas,  as  quais  diferentemente  das  sociedades  chamadas  “primitivas” contêm, de fato, as diferenciações em questão.8 Além disso,  ela  pode  ser  aplicada  por  nós  a  sociedades  que  carecem  destas  diferenciações,  de  modo  a  indicar  como  elas  diferem  da  nossa. Pode-se dizer, por exemplo, como acabei de fazer, que em tais  sociedades  uma  única  ordem  de  relações  sociais  dá  conta  de  ambas  as  integrações,  a  econômica  e  a  cultural,  questões  que  são  relativamente dissociadas na sociedade capitalista. Ademais, este é precisamente o espírito no qual entendo Mauss e Lévi-Strauss. Seja qual for sua intenção em relação ao “econômico” e ao “cultural”, ganhamos  menos  ao  lê-los  como  tendo  “desestabilizado” a distinção do que como tendo historicizado-a. Em outras palavras, o ponto é historicizar uma distinção central ao capitalismo moderno –  e,  com  ela,  o  próprio  capitalismo  moderno  –,  situando  ambos  em um contexto antropológico mais amplo e assim revelando sua especificidade histórica.

Deste  modo,  o  argumento  de  “desestabilização”  de Butler  perde-se  em  dois  pontos  cruciais.  Primeiro,  ele  estende  ilegitimamente a sociedades capitalistas um traço específico de sociedades pré-capitalistas: a saber, a ausência de uma diferenciação econômico/cultural.  Segundo,  ele  presume  erroneamente  que historicizar uma distinção é torná-la insignificante e inútil em teoria  social.  Na  verdade,  a  historicização  faz  o  contrário.  Longe  de  tornar  as  distinções    instáveis,  ela  permite  que  sua  utilização  seja mais precisa.

Da     minha     perspectiva,     portanto,     a     historicização     representa   uma   abordagem   melhor   da   teoria   social   do   que   a  desestabilização  ou  a  desconstrução.9  Ela  nos  permite  avaliar  o   caráter   sócio-estruturalmente   diferenciado   e   historicamente   específico da sociedade capitalista contemporânea. Ao fazer isso, ela  ainda  nos  permite  localizar  o  momento  antifuncionalista,  bem  como  possibilidades  de  “agência”  contrassistêmica  e transformação  social.  Estas  aparecem  não  em  uma  propriedade  abstrata e trans-histórica da linguagem, como “ressignificação” ou  “performatividade”,  senão  no  efetivo  caráter  contraditório de  relações  sociais  específicas.  Com  um  olhar  historicamente específico e diferenciado da sociedade capitalista contemporânea, podemos localizar as lacunas, o não isomorfismo de status e classe, as  múltiplas  interpelações  contraditórias  de  sujeitos  sociais  e  os  muitos imperativos  morais complexos que motivam as lutas por justiça social.

A partir deste tipo de perspectiva, ademais, a atual conjuntura política  não  é  adequadamente  apreendida  por  um  diagnóstico  centrado  na  suposta  ressurgência  do  marxismo  ortodoxo.  Ela é mais bem compreendida, em vez disso, por um diagnóstico que reconheça francamente e busque superar divisões na esquerda entre correntes  socialistas/social-democratas  orientadas  pelas  políticas  de   redistribuição,   de   um   lado,   e   correntes   multiculturalistas   orientadas pelas políticas de reconhecimento, de outro. O ponto de partida indispensável para tal análise deve ser um reconhecimento de princípio de que os dois lados têm reivindicações legítimas, as quais devem  ser  de  algum  modo  programaticamente  harmonizadas  e  politicamente  tornadas  sinérgicas.  Em  suma,  justiça  social  hoje  requer ambos,  redistribuição  e  reconhecimento;  nenhum  deles sozinho será suficiente.

Sobre este último ponto, estou certa, Butler e eu concordamos. A  despeito  de  sua  relutância  em  invocar  a  linguagem  da  justiça  social, e apesar de nossas divergências teóricas, nós duas estamos comprometidas  em  recuperar  os  melhores  elementos  da  política  socialista e em integrá-los com os melhores elementos da política dos “novos movimentos sociais”. Do mesmo modo, nós duas estamos  empenhadas  em  reabilitar  as  vertentes  genuinamente  valiosas da crítica neomarxiana do capitalismo e em integrá-las com as vertentes mais perspicazes da teoria crítica pós-marxiana. O mérito do artigo de Butler, e espero que o do meu próprio livro também, é ter colocado este projeto novamente em pauta.

1 Agradeço os comentários proveitosos de Laura Kipnis, Linda Nicholson e Eli Zaretsky.

2 BUTLER, J. Merely Cultural.Social Text, vol. 15, n. 3-4, p. 265-277, 1997. A tradução do artigo de Butler foi publicada na Parte I do dossiê Diálogos na Teoria Crítica (Revista Idéias, vol. 7, n. 2, p. 229-248, 2016) [N. T.].

3 Ver especialmente a Introdução e o Capítulo 1 (“From Redistribution to Recognition? Dilemmas of Justice in a ‘Postsocialist’ Age”) em: FRASER, N. Justice Interruptus: Critical Reflections on the “Postsocialist” Condition. New York: Routledge, 1997.

4 No que se segue, deixarei de lado um problema da interpretação de Butler acerca do argumento de Justice Interruptus. Ela me apresenta como argumentando categoricamente que o heterossexismo é uma pura injustiça de falso reconhecimento, sem qualquer ligação com a má distribuição. Na verdade, discuti a questão hipoteticamente na forma de um experimento de pensamento. Buscando revelar a lógica distintiva das reivindicações, respectivamente, de redistribuição e de reconhecimento, convidei os leitores a imaginar um espectro conceitual de coletividades oprimidas, desde vítimas típico-ideais de pura má distribuição de um lado até vítimas típico-ideais de puro falso reconhecimento de outro, com casos híbridos ou “bivalentes” entre eles. Neste espírito hipotético, esbocei uma concepção de “sexualidade desprezada” como uma aproximação concreta do tipo ideal no polo de falso reconhecimento do espectro, notando explicitamente que esta concepção de sexualidade era controvertida e deixando aberta a questão de se, e quão proximamente, ela correspondia às coletividades homossexuais efetivamente existentes em luta por justiça no mundo real. Assim, minha análise do heterossexismo baseada no “falso reconhecimento” em Justice Interruptusé muito mais qualificada do que Butler dá a entender. Além disso, defendi recentemente que, para fins práticos, virtualmente todas as coletividades oprimidas do mundo real são “bivalentes”. Ou seja, virtualmente todas elas têm tanto um componente econômico como um de status; virtualmente todas, portanto, sofrem tanto de má distribuição quanto de falso reconhecimento, de maneira que nenhuma dessas injustiças é um mero efeito indireto da outra, mas cada uma tem um peso independente. Não obstante, nem todas elas são bivalentes do mesmo modo ou no mesmo grau. Alguns eixos de opressão tendem mais fortemente em direção ao polo da distribuição do espectro, enquanto outros se inclinam mais para o polo do reconhecimento, e outros ainda se posicionam próximos ao centro. Nesta perspectiva, o heterossexismo, enquanto consistindo em parte de má distribuição, diz respeito primariamente a injustiças de falso reconhecimento e está radicado predominantemente em uma ordem de status que constrói a homossexualidade como desvalorizada e que a institui como uma sexualidade desprezada. O argumento original encontra-se no capítulo 1 de Justice Interruptus e foi subsequentemente refinado em FRASER, N. Social Justice in the Age of Identity Politics: Redistribution, Recognition, and Participation. In: The Tanner Lectures on Human Values, vol. 18. Salt Lake City: University of Utah Press, no prelo. [O texto foi posteriormente publicado como o primeiro capítulo de FRASER, N.; HONNETH, A. Redistribution or Recognition? A Political-philosophical Exchange. London: Verso Books, 2003, p. 7-109. N. T.].

5 Em geral, devem-se distinguir diversas questões aqui: 1) a natureza das injustiças em questão; 2) suas causas últimas; 3) os mecanismos causais contemporâneos que as reproduzem; e 4) seus remédios. Sou grata a Erik Olin Wright por este ponto (comunicação privada, 1997).

6 ZARETSKY, E. Capitalism, the Family, and Personal Life. New York: Harper & Row, 1976.

7 Assim, o argumento definicional simplesmente empurra a necessidade de distinções para outro nível. Com certeza, pode-se dizer que uma reivindicação política pode ser econômica em qualquer dos dois sentidos: primeiro, contestando a produção e a distribuição de valor econômico, inclusive a mais-valia; e segundo, contestando a produção e a reprodução de normas, significações e construções do estatuto da pessoa, inclusive aquelas concernentes à sexualidade. Mas não consigo ver como isso melhora minha estratégia mais simples de restringir o termo econômico a seu significado capitalista e de distinguir as reivindicações por reconhecimento das reivindicações por redistribuição.

8 Neste breve ensaio, não posso abordar a importante, porém difícil questão de como a distinção econômico/cultural pode ser mais bem aplicada à teoria crítica  da  sociedade  capitalista  contemporânea.  No  entanto,  discuto  este  assunto em profundidade em “Social Justice in the Age of Identity Politics”. Rejeitando a visão da economia e da cultura como esferas separadas, proponho uma abordagem crítica que revela as conexões ocultas entre elas. Em outras palavras, trata-se de usar a distinção a contrapelo, tornando visíveis e sujeitos a críticas tanto os subtextos culturais de processos aparentemente econômicos, quanto  os  subtextos  econômicos  de  processos  aparentemente  culturais. Tal “dualismo perspectivista” só é possível, é claro, uma vez que tenhamos a distinção econômico/cultural.

9 Em  um  outro  nível,  contudo,  pretendo  endossar  a  desconstrução.  Ela  representa uma abordagem da política do reconhecimento que é geralmente superior,  sob  o  meu  ponto  de  vista,  à  política  de  identidade  padrão.  Uma  política de reconhecimento desconstrutiva é transformativa, não-afirmativa, de identidades e diferenciações de grupos existentes. A este respeito, ela tem afinidades com o socialismo, o qual entendo como uma abordagem transformativa,  ao  contrário  de  afirmativa,  da  política  de  redistribuição. (Para uma elaboração desse argumento, ver o capítulo 1 de Justice Interruptus) Apesar disso, não considero a desconstrução útil no nível que Butler invoca aqui: nomeadamente, o da teoria social.

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